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41º Encontro Anual da Anpocs
GT 8 – Democracia e Desigualdades
A disputa entre movimento LGBT e
neoconservadorismo religioso no governo Dilma
Rafael Dias Toitio
2017
A disputa entre movimento LGBT e
neoconservadorismo religioso no governo Dilma
Durante as últimas décadas, assistimos no Brasil o aumento gradual da visibilidade
da questão LGBT que alimentou e foi alimentado pelo processo de legitimação da questão
como direito civil e como política social. No que tange à esfera federal, desde os anos
1990 o movimento (hoje chamado) LGBT já participava da criação das políticas antiaids
e, no governo FHC, obteve algumas conquistas simbólicas. Mas, foi a partir dos anos 2000
que vieram as principais conquistas, como a criação do primeiro programa de políticas
sociais (o Brasil Sem Homofobia), a criação de espaços de participação política (como a
conferência e o conselho nacionais LGBT), a modificação de decretos e legislações, entre
outras. Um tema que era tratado como tabu até bem recentemente ganhou a política
institucional. Contudo, na medida em que o movimento ganhava mais espaço, a
organização conservadora se revigorou, expressando-se com mais força no Congresso
Nacional. Aqui, se tornou central a atuação da “bancada evangélica”, a forma de
articulação mais importante entre parlamentares, partidos e igrejas conservadores. Tal
reação foi a principal responsável por frear as conquistas LGBT junto ao Executivo e ao
Legislativo e, no período do governo de Dilma Rousseff, por provocar uma inflexão na
promoção das políticas LGBT em comparação ao governo petista anterior.
O objetivo do presente artigo é analisar a disputa política traçada em torno das
pautas relacionadas à diversidade sexual e de gênero a partir do primeiro governo Dilma
até o impeachment em 2016, considerando dois dos principais agentes dessa disputa: o
movimento LGBT e o neoconservadorismo religioso. Entender essa disputa se tornou
fundamental para a compreensão dos avanços e dos retrocessos das políticas e direitos
LGBT nesse período, bem como os impasses de um governo sustentado por uma política
conciliatória de forças antagônicas. Desse modo, a proposta da análise se desdobra mais
especificamente em: recuperar os principais marcos da relação entre governo federal,
movimento LGBT e lideranças e parlamentares conservadores (a partir de 2010); debater o
avanço do neoconservadorismo evangélico na política brasileira e analisar as estratégias e
os discursos produzidos contra a pauta da diversidade sexual e de gênero; discutir algumas
questões colocadas à luta LGBT no recente contexto de fortalecimento do
neoconservadorismo evangélico com o impeachment de Dilma Rousseff.
Cabe informar que apresento, aqui, parte dos resultados da pesquisa que resultou
na minha tese de doutorado Cores e contradições: a luta pela diversidade sexual e de
gênero sob o neoliberalismo brasileiro1. A pesquisa teve o propósito de analisar a
influência do neoliberalismo na trajetória do movimento LGBT, a partir do estudo da
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e
a relação desta com os governos FHC, Lula e Dilma. Durante esse período, a ABGLT teve
papel privilegiado na condução do diálogo do movimento LGBT com os governos
federais, na construção de políticas sociais. Neste artigo, trago parte das reflexões
desenvolvidas no terceiro capítulo da tese, acrescentando e desenvolvendo alguns pontos
da análise.
Em relação aos procedimentos de pesquisa, além da revisão da bibliografia
especializada, o trabalho envolveu a realização de entrevistas com os/as militantes da
ABGLT ou de grupos afiliados a ela e, também, com gestores públicos envolvidos na
construção de políticas LGBT; observação direta de reuniões e eventos; investigação de
documentos produzidos pelo movimento e pelo governo federal; pesquisa em jornais e
revistas de circulação nacional. Já que no que tange à fundamentação teórica, no intuito de
realizar a análise da citada conjuntura, serão consideradas as contribuições dos marxistas
Antonio Gramsci (como os conceitos de ideologia, hegemonia, sociedade civil-Estado) e
de Nicos Poulantzas (sobretudo o conceito de Estado como correlação de força e aparelho
de poder, presente na obra O Estado, o poder, o socialismo); mas em diálogo com
categorias e perspectivas do pós-estruturalismo, mais particulamente de Michel Foucault e
Judith Butler (como discurso, poder, sexualidade, gênero)2.
A primeira parte, a seguir, tem como proposta recompor os principais momentos
que evidenciam como o neoconservadorismo evangélico ganhou força no governo Dilma,
“monopolizando” a agenda política dos direitos sexuais e reprodutivos.
Uma vela pra deus, outra pro diabo
Acostumado a conviver com a conciliação de forças contraditórias, o petismo
apostou mais forte nessa forma de governabilidade no intuito de garantir a passagem da
faixa presidencial de Lula da Silva para Dilma Rousseff, em 2010. Desde o início do
1 A pesquisa foi financiada pela FAPESP e orientada pela Profa. Angela Maria Carneiro Araújo, no
Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp. 2 Uma forma de colocar em diálogo as análises desses autores encontra-se em Toitio (2016, p. 26-46).
processo eleitoral, ganharam força e visibilidade as igrejas e lideranças evangélicas, não
apenas por causa do rápido crescimento do número de eleitores evangélicos, mas também
pelo fato de que uma das principais candidatas, Marina Silva, ser ela mesma evangélica, o
que despertou o interesse desses eleitores para escolherem um representante alinhado com
suas convicções religiosas. Com isso, o discurso e o debate de líderes evangélicos
ganharam maior centralidade – se comparado com as eleições anteriores –, sendo o apoio
deles disputado palmo a palmo pelos três candidatos que tinham maior probabilidade de se
eleger.
Naquele momento, a candidata Dilma Rousseff era muito pouco conhecida pelo
conjunto do eleitorado brasileiro: ministra-chefe da Casa Civil entre 2005 e 2010, no
governo Lula, era a primeira vez que Dilma concorria a um cargo eletivo e foi alvo fácil
de campanhas difamatórias. A primeira questão explorada por seus adversários foi a
opinião dela sobre o aborto. Um vídeo, que fazia parte de uma entrevista concedida por
Dilma à Folha de São Paulo em 2007, em que ela defendia a discriminalização do aborto,
entendendo a questão como de saúde pública3, havia se difundido pela internet e não
demorou em despertar reação enraivecida de lideranças católicas e evangélicas.
Outro fato foi a campanha difamatória contra a candidata, promovida uma semana
antes do primeiro turno. Em vários blogs, espalhou-se a notícia de que uma ex-empregada
doméstica da candidata, com o nome de Verônica Maldonado, estaria reivindicando o
reconhecimento da relação sexual-afetiva que ambas tiveram por mais de quinze anos. Na
notícia, a suposta ex-empregada afirmava ter documentos que comprovavam o
relacionamento, como cartas e fotos, e que pleitearia direito à pensão na justiça4. Apesar
de o relacionamento entre Dilma e Verônica nunca ter sido provado, a onda de boatos
contra a petista influenciou em grande medida a sua agenda de campanha. As difamações
contra a candidata, que a classificavam como lésbica5 e abortista, se difundiram nesta
3 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2010/10/807505-dilma-diz-que-nao-mudou-de-ideia-
sobre-aborto.shtml. Acesso em dezembro de 2014. 4 A notícia se espalhou em dezenas de blogs. Em vários deles, foi citado o blog
http://catageral.blogspot.com.br/2010/09/dilma-roussef-e-lesbica-afirma-mineira.html como a fonte da
notícia. Mas quando consultado em janeiro de 2015, a notícia havia sido apagada. Entre vários endereços,
pode-se conferir a notícia em http://www.midiaindependente.org/pt/red/2010/09/477931.shtml;
http://www.suasnoticias.com.br/materia.asp?idmt=6658&idnot=2;
http://movimentoordemvigilia.blogspot.com.br/2010/09/dilma-rousseff-e-lesbica-mas-nunca-quis.html;
www.g1gospel.com/2010/09/dilma-esta-sendo-processada-pela-ex.html. Este último, trata-se de um blog de
notícias voltados para evangélicos. 5 Questionar o desejo sexual de Dilma Rousseff se tornaria constante, sobretudo, no começo de seu governo.
Em novembro de 2011, por exemplo, o deputado Jair Bolsonaro, ao criticar o kit do Escola Sem Homofobia,
questionou à presidenta na tribuna da Câmara: “O „kit gay‟ não foi sepultado ainda. Dilma Rousseff, pare de
eleição presidencial por um meio de comunicação que estava em larga expansão: a
internet e as redes sociais, tão ou mais eficaz que o boca-a-boca ou a pregação de padres e
pastores.
Durante a campanha, em agosto, para acalmar os ânimos dos setores religiosos
cristãos, a candidatura de Dilma lançou o manifesto “Carta aberta ao povo de Deus”, que
procurava neutralizar a imagem “negativa” de Dilma, sobretudo no que tange às assim
chamadas “questões morais”. A estratégia passava pela aproximação da figura da
candidata dos valores cristãos: “o sonho e o compromisso do evangelho são, em muitos
aspectos, o sonho e o compromisso de um governante sensível e comprometido com o
povo e com os menos favorecidos”. E afirmou como os programas sociais dos governos
do PT, como o “Bolsa Família” e o “Minha casa minha vida”, traduziam o compromisso
de resgatar “os valores da vida, da cidadania e da dignidade humana, valores universais
que trazem em si a semente do evangelho”. Mas, a questão central da mensagem veio
algumas linhas depois:
A família sempre foi e será o baluarte de uma sociedade saudável. Quanto mais
estruturada é a família, menos caos social teremos. É no desajuste familiar que
vemos nascer o abandono infantil gerando os chamados meninos de rua. (...) É
no caos familiar que temos os altos índices de agressões contra mulheres e mães
indefesas. Isso nos leva ao compromisso de fazer da família o foco principal do
nosso governo. Respeitar o elo sagrado das famílias e lutar para que todas elas
tenham dignidade, respeito e valor será o norte do nosso próximo governo.
Compreendemos o quanto as igrejas, todas sem distinção de denominações
cristãs, são importantes e necessárias neste projeto de apoio e resgate da família
e da sociedade.
Ao prometer colocar a família no centro das ações e preocupações de seu futuro
governo, a candidata deu legitimidade para os discursos e a visão de mundo das igrejas
cristãs, distanciando-se de antigas concepções do projeto petista, de que os problemas
sociais são antes fruto das desigualdades sociais (de classe, gênero, raça e sexualidade) e
não, primordialmente, da “saúde” ou “estrutura” do conjunto das famílias brasileiras. E
não só, esquivou-se da defesa de duas demandas históricas do movimento feminista e do
movimento LGBT, a saber: a descriminalização do aborto e o casamento entre pessoas de
mesmo sexo.
mentir! Se gosta de homossexual, assuma! Se o seu negócio é amor com homossexual, assuma, mas não
deixe que essa covardia entre nas escolas do primeiro grau”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/11005-da-tribuna-da-camara-deputado-questiona-a-opcao-sexual-
de-dilma.shtml. Acesso em dezembro de 2014.
Lembro também a minha expectativa que cabe ao Congresso Nacional a função
básica de encontrar o ponto de equilíbrio nas posições que envolvam valores
éticos e fundamentais, muitas vezes contraditórios, como aborto, formação
familiar, uniões estáveis e outros temas relevantes, tanto para as minorias como
para toda a sociedade brasileira.
Já durante o segundo turno, Dilma assinou mais uma carta direcionada aos setores
cristãos, como forma de “pôr um fim definitivo à campanha de calúnias e boatos
espalhados por meus adversários eleitorais”. Nela, a candidata afirmou ser “pessoalmente
contra o aborto”, defendendo “a manutenção da legislação atual sobre o assunto”, que
prevê aborto para casos de estupro ou risco de morte para a pessoa gestante. Com isso,
assumiu o compromisso de não tomar “a iniciativa de propor alterações de pontos que
tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão
de qualquer religião no País”. Além disso, amenizou o Programa Nacional de Direitos
Humanos, o PNDH-3 lançado pelo governo Lula, classificando-o como “uma ampla carta
de intenções, que incorporou itens do programa anterior”, que fora lançado no governo
FHC. Afirmou que o programa estava sendo revisto e, se eleita: “não pretendo promover
nenhuma iniciativa que afronte a família”. Entre os temas que tiveram avanço na terceira
versão do PNDH, e que supostamente “afrontaria a família”, havia o tema do aborto, o
“projeto de lei que disponha sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo”, promover
a “garantia do direito de adoção por casais homoafetivos”, além de “reconhecer e incluir
nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações familiares
constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na
desconstrução da heteronormatividade” (BRASIL, 2010, p. 120-1).
Mas, o compromisso de Dilma na segunda mensagem ao “povo de Deus”,
divulgada no dia 15 de outubro, incluiu também um parágrafo sobre o Projeto de Lei da
Câmara - PLC 122, que regulamentava a criminalização da homofobia e que naquele
momento estava em tramitação. Afirmou que, caso aprovado, o PLC seria sancionado em
seu “futuro governo nos artigos que não violem a liberdade de crença, culto e expressão e
demais garantias constitucionais individuais existentes no Brasil”. No “vale tudo” das
eleições, a campanha petista não apenas assimilou a linguagem das igrejas cristãs. Ela
legitimou também as concepções dessas igrejas sobre a família, as quais reconhecem
apenas a família heterossexual e monogâmica, e sobre a criminalização da homofobia, que
supostamente poderia limitar a “liberdade de expressão” de líderes religiosos. E mais,
legitimou a própria influência e presença diretas dos setores cristãos na política
institucional.
Essa segunda mensagem de Dilma, que foi distribuída em cultos e igrejas na forma
de panfleto, era mais uma tentativa de amenizar as críticas advindas dos setores religiosos
contra ela. Na mesma semana em que essa carta foi lançada, Dilma se reuniu com dezenas
de lideranças evangélicas que exigiram o compromisso de vetar qualquer projeto aprovado
no Congresso Nacional que fosse “contra a vida e valores da família”. A mensagem,
contudo, foi considerada em muitos pontos ambígua, sobretudo para as lideranças
conservadoras críticas ao PT, uma vez que a candidata não se comprometeu a vetar a
descriminalização do aborto caso fosse aprovado pelo Congresso. Tão pouco não citou
que vetaria legislação sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo e de adoção de
crianças por casais homossexuais, outra exigência das referidas lideranças6. Nesse ponto, a
intenção da candidatura de Dilma foi de não escolher de forma peremptória entre os
interesses dos setores religiosos e os interesses da população e do movimento LGBT. Até
mesmo porque, segundo o jornal Estado de São Paulo, o grupo que comandava a
campanha petista avaliou que Dilma poderia perder mais votos do que ganhar, ao se
posicionar contra o casamento homossexual7.
A estratégia da candidatura de Dilma foi tentar neutralizar essas declarações, ao
mesmo tempo em que fazia aliança com setores religiosos. Temas considerados
“polêmicos” deveriam ser silenciados ao máximo. Ao contrário da campanha anterior para
presidente, a candidatura do PT não lançou material oficial voltado para a questão LGBT.
O material que veiculou sobre esse assunto foi elaborado e feito sem autorização do PT
por militantes ligados ao setorial LGBT do partido (TOITIO, 2016, p. 182). No entanto, a
candidatura de Dilma não se restringiu ao silenciamento ou mesmo a retroceder o debate
sobre as questões sexuais e reprodutivas. O grupo que dirigia a campanha acreditava que
Dilma poderia ter ganhado as eleições no primeiro turno – dada a credibilidade do
governo Lula –, atribuindo a derrota à campanha moralista contra a figura de Dilma e ao
“caso” Erenice Guerra8. Com isso, no segundo turno, os discursos e concepções cristãos
6 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1610201009.htm. Acesso em dezembro de
2014. 7 Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-resiste-a-assinar-manifesto-antiaborto-
imp-,625088. Acesso em dezembro de 2014. 8 Erenice Guerra substituiu Dilma na Casa Civil, quando esta se licenciou para a campanha eleitoral. Guerra
era secretária-executiva de Dilma e considerada seu braço direito. Durante a campanha, ela foi acusada de
tráfico de influência, pois teria favorecido a empresa de seu filho na obtenção de um contrato com os
(conservadores) foram ainda mais assimilados e legitimados pelas candidaturas. Dilma
passou a se expressar de forma mais religiosa, citando trecho da bíblia ao falar do número
de jovens que fazem aborto por falta de assistência. Já Serra reforçou, em diversas vezes,
sua convicção nos valores cristãos, trouxe para seu programa de TV depoimentos de
líderes religiosos, dentre eles o do pastor Silas Malafaia da Assembleia de Deus, e
distribuiu santinhos com a mensagem “Jesus é a verdade e a justiça” ao lado de sua foto.
Ambos foram a missas, cultos e grandes eventos católicos e evangélicos.
A partir dessa disputa eleitoral, o discurso religioso passou a ter mais visibilidade e
legitimidade no Executivo e no Legislativo. O ano de 2010 foi um marco na ascensão de
grupos religiosos conservadores. Sobretudo, os evangélicos, que jamais viram a sua força
política tão valorizada num processo eleitoral. Isso se refletiu já em 2011 que foi um
momento de inflexão no desenvolvimento das políticas LGBT pelo governo federal,
graças à pressão dos grupos religiosos organizados em partidos políticos. Desse modo,
assim como a “Carta ao povo brasileiro” foi um anúncio de como seria a política
econômica do governo Lula (SINGER, 2012), a “Carta ao povo de Deus” foi o primeiro
indício de como o governo Dilma trataria as políticas e os direitos sexuais: estes só seriam
disputados pelo governo na medida em que não afetassem sua política de alianças, cuja
composição incluía partidos conservadores.
Apesar do quadro político configurado durante as eleições de 2010, os primeiros
meses de 2011 foram de ventos favoráveis à luta LGBT vindos dos Três Poderes. Em
fevereiro, na primeira semana da nova legislatura no Senado, Marta Suplicy, senadora do
PT, conseguiu reunir as assinaturas necessárias para o desarquivamento do PLC 122,
entrando novamente em tramitação. Na Câmara, tomou posse Jean Wyllys (PSol), o
primeiro deputado gay, abertamente assumido, que se elegeu em torno da pauta LGBT.
Do Executivo, por meio do Ministério de Relações Exteriores, o Brasil participou da
apresentação de Resolução no Conselho de Direitos Humanos na ONU, a qual solicitava
estudo “para documentar leis e práticas discriminatórias e atos de violência contra as
pessoas por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero, em todas as regiões
do mundo” 9
. O estudo era um primeiro passo para a organização pensar de forma mais
sistemática o enfrentamento de leis e práticas discriminatórias e de atos de violência
contra LGBT.
Correios. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/798556-entenda-as-denuncias-envolvendo-
erenice-guerra.shtml. Acesso em dezembro de 2014. 9 Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=170. Acesso em dezembro de 2014.
Mas, a notícia mais significativa veio do Judiciário, quando o STF concedeu aos
casais do mesmo sexo o direito à união estável, no dia 5 de maio. O julgamento se deu
graças a duas ações movidas nessa corte. Uma da Procuradoria-Geral da República, que
buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como
entidade familiar, pedindo que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões
estáveis heterossexuais fossem estendidos aos companheiros nas uniões homossexuais. A
outra ação foi ajuizada pelo então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB),
que solicitou a aplicação do regime jurídico das uniões estáveis, que estava previsto no
artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homossexuais de funcionários públicos civis do
Rio de Janeiro. O governador foi representado por treze organizações, entre elas, estavam
a ABGLT, grupo Arco-íris, GGB, Cellos e Asstrav (Associação de Travestis e
Transexuais de Minas Gerais). Das organizações contra a solicitação, que participaram do
julgamento, estavam somente a CNBB e a Associação Eduardo Banks10
.
Não demorou muito para a reação conservadora começar a aparecer. Na sociedade
civil, as lideranças católicas e evangélicas foram as primeiras a se pronunciar. Mas a
reação mais forte viria do Congresso, na figura do deputado Jair Bolsonaro que, sem ter a
possibilidade de reverter facilmente a decisão do STF, partiu para o combate de uma
política LGBT que estava em desenvolvimento pelo governo federal: o kit do Projeto
Escola Sem Homofobia, vulgarmente intitulado por seus críticos de “kit-gay”. O projeto,
como um desdobramento do programa Brasil Sem Homofobia, tinha por objetivo
combater o preconceito e a violência no sistema escolar. Para tanto, a concretização do
projeto envolveu a realização de seminários voltados para profissionais da educação e de
pesquisa qualitativa sobre homofobia na escola, além da criação de um conjunto de
materiais educativo-pedagógicos (denominado de “kit”) e a capacitação de técnicos/as da
educação e de representantes do movimento LGBT para o trabalho desses materiais no
interior da escola11
. Entre outros elementos, os conteúdos dos materiais produzidos no
projeto contribuíam para a compreensão da sexualidade como construção histórica e
cultural, buscando evidenciar e corrigir situações de agressão velada e aberta contra as
pessoas LGBT12
.
10
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em
dezembro de 2014. 11
Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=246. Acesso em dezembro de 2014. 12
Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=246 e http://www1.folha.uol.com.br
/fsp/cotidian/ff1905201102.htm. Acesso em dezembro de 2014.
Os vídeos do projeto vazaram pela internet causando polêmica no Congresso
Nacional e “pânico moral” entre os parlamentares mais conservadores. Menos de uma
semana após a decisão do STF, Bolsonaro começou a distribuir um informativo contra o
kit anti-homofobia e o I Plano Nacional LGBT. Nesse informativo de quatro páginas, o
deputado classificou o plano como “Plano Nacional da Vergonha”, “onde meninos e
meninas, alunos do 1º grau, serão emboscados por grupos de homossexuais
fundamentalistas, levando aos nossos inocentes estudantes a mensagem de que ser gay ou
lésbica é motivo de orgulho para a família brasileira”. E afirmou: “tirem as suas
conclusões sobre as absurdas propostas do Governo, alguma já em execução conforme
publicações do Diário Oficial da União”. Apesar de trazer por meio de sua releitura
dezenas de ações propostas no plano, o alvo principal de Bolsonaro era o que ele
classificava como kit-gay: “Querem, na escola, transformar seu filho de 6 a 8 anos em
homossexual. Com o falso discurso de combater a homofobia, o MEC, na verdade
incentiva o homossexualismo nas escolas públicas do 1º grau e torna nossos filhos presas
fáceis para pedófilos”13
.
A reação de Bolsonaro contra o kit teria começado alguns meses antes, em
dezembro de 2010. Indignado com a proposta, o deputado já havia ido ao plenário da
Câmara para afirmar que o kit era “um estímulo ao homossexualismo” e “um incentivo à
promiscuidade”14
. No entanto, a aprovação da união civil homossexual era o sinal mais
significativo do avanço da assimilação da pauta LGBT nas instituições do regime
democrático formal e, por isso, intensificar o tom de sua ofensiva se fez necessário. Logo,
outros setores se mobilizaram. No dia 15 de maio, o bispo Edir Macedo, da Igreja
Universal, publicou no blog da igreja o texto “Nossos filhos não vão virar gays”, no
intuito de atacar o kit. Para ele, “a Palavra de Deus e a IURD nos ensinam que devemos
aceitar o homossexual, mas nunca, jamais, o homossexualismo!”. E continua: “É meu,
SOMENTE MEU, o direito de não desejar um filho gay! A Constituição me garante isto.
(...) E, sob a luz da nossa fé, o caminho da felicidade passa pela construção de uma família
com marido e esposa, isto é: homem e mulher”15
.
A mensagem crítica do líder religioso rapidamente se difundiu pela internet e pela
imprensa. E era mais um sinal de que as primeiras resistências vieram da base aliada e dos
13
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1105201118.htm. Acesso em dezembro de
2014. 14
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gNJKJLCPrT4. Acesso em janeiro de 2015. 15
Disponível em: http://blogs.universal.org/bispomacedo/2011/05/15/nossos-filhos-nao-vao-virar-gays/.
Acesso em janeiro de 2015.
apoiadores do governo. É importante lembrar que Edir Macedo apoiou publicamente a
petista na campanha para presidente e, além disso, o PRB era o partido onde se
concentravam os candidatos e parlamentares eleitos que pertenciam à Universal do Reino
de Deus, sendo Marcelo Crivella, senador reeleito por esse partido, pastor da igreja e
sobrinho de Macedo – e que em 2012 seria nomeado ministro da Pesca e Aquicultura. Já
Jair Bolsonaro era do PP, também um dos partidos da “base aliada” do governo federal.
Além do PP e do PRB, faziam parte dessa base o PMDB, PCdoB, PDT, PR, PSB, PSC,
PTC, PTN.
A oposição ao governo Dilma vinda de sua “base aliada”, nesse período, não se
limitou às ações relacionadas à sexualidade e ao gênero. No dia 24 de maio, houve a
aprovação de um novo texto do Código Florestal, responsável pela determinação de como
deve ser a preservação de rios, florestas e encostas, diante da produção de alimentos e da
criação de gado. O governo federal não conseguiu convencer parte significativa de sua
“base aliada”, inclusive o relator do texto Aldo Rebelo (PCdoB), a mudar os pontos
considerados mais importantes. O texto aprovado liberava a manutenção de atividades
agrícolas em áreas de preservação permanente, conferia anistia por desmatamentos,
aumentava as áreas com isenção de reserva legal. Para o desagrado do movimento
ambientalista, a proposta surgiu da bancada ruralista com deputados aliados sobretudo do
PMDB, PP, PR e PTB16
.
No mesmo dia, as bancadas evangélica e católica se reunirem e decidiram
chantagear o governo federal, caso a distribuição do kit anti-homofobia fosse mantido.
Com mais de noventa deputados e quatro senadores, a bancada religiosa ameaçou
bloquear as votações na Câmara dos Deputados e apoiar a convocação do então ministro
da Casa Civil, Antonio Palocci, para explicar a evolução de seu patrimônio (também) na
Câmara17
. No dia 18 de maio, o governo Dilma conseguira impedir todas as tentativas de
convocação do ministro feitas pela oposição.
Contudo, não demorou muito para uma parte da base aliada mudar de
comportamento em relação ao “caso Palocci” e se unir à oposição por meio das
16
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2505201101.htm,
http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/920514-camara-aprova-texto-final-do-novo-codigo-florestal.shtml.
Ver também: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/MEIO-AMBIENTE/197560-CAMARA-
APROVA-NOVO-CODIGO-FLORESTAL-COM-MUDANCA-EM-REGRAS-PARA-APPS.html. Acesso
em dezembro de 2014. 17
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2105201102.htm. Acesso em dezembro de
2014.
articulações realizadas no interior das bancadas religiosas. Segundo o então líder da Frente
Parlamentar Evangélica, o deputado João Campos (PSDB), em entrevista para o Jornal do
Brasil: “se o governo insistisse em manter o kit, bloquearíamos a votação na Câmara e
apoiaríamos a convocação do ministro Palocci para dar explicações”. E complementou: “É
claro que o governo se sentiu ameaçado porque está num momento delicado com Palocci,
mas é esse o jogo político. Não quiseram nos ouvir antes, agora ouviram”18
. Essa última
afirmação se devia ao fato de que, uma semana antes, o ministro da Educação daquele
momento, Fernando Haddad, se reunira com representantes das bancadas religiosas, mas
logo declarou que não se comprometia a alterar o material, que estava em análise em seu
Ministério, pois consistia ação importante para combater o preconceito e a violência
contra LGBT no espaço escolar19
.
O governo Dilma, diante a votação do Código Florestal – que foi sua primeira
derrota no Congresso – e com a ameaça de convocação de Palocci – considerado o seu
principal ministro –, decidiu cancelar a distribuição do kit no dia 25 de maio. A decisão
também aliviou a pressão sobre Fernando Haddad, que já era cotado por parte do PT para
ser candidato a prefeito de São Paulo. Após reunião com parlamentares das bancadas
religiosas, o secretário-geral da Presidência, o ministro Gilberto Carvalho, afirmou ao
informar a suspensão do kit: “a presidenta se comprometeu, daqui para frente, que todo
material sobre costumes será feito a partir de consultas mais amplas à sociedade, inclusive
às bancadas que têm interesse nessa situação”20
. Um dia depois, em entrevista à imprensa,
a presidenta afirmou que não permitiria a nenhum órgão governamental fazer “propaganda
de opções sexuais”, uma vez que não caberia ao governo “interferir na vida privada das
pessoas”. Disse, ainda, que não concordava com o kit, pois ele não fazia a “defesa de
práticas não homofóbicas”. E quando questionada se havia assistido aos vídeos que
compunham o kit, disse que vira apenas um “pedaço na televisão” exibido pela
imprensa21
.
Além de ter utilizado um termo combatido pelo movimento LGBT, a presidenta
ocultou que os governos e o Estado, direta ou indiretamente, fazem “propaganda de opção
18
Disponível em: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/05/25/evangelicos-ameacaram-ir-contra-palocci-
para-coibir-kit-gay/. Acesso em dezembro de 2014. 19
Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2011-05-19/haddad-nega-que-mec-ira-
alterar-conteudo-de-material-de-combate-homofobia-nas-escolas. Acesso em dezembro de 2014. 20
Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2011-05-25/apos-pressao-de-religiosos-
dilma-suspende-producao-de-kit-homofobia. Acesso em dezembro de 2014. 21
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2705201101.htm. Acesso em dezembro de
2014.
sexual”, mas como o heterossexismo é naturalizado, não é visto como uma “opção”. Este
está presente não apenas nos materiais didáticos e práticas pedagógicas do sistema escolar,
mas também quando só reconhece a existência da família heterossexual (negando o
casamento e adoção de crianças por casais homossexuais ou voltando as políticas sociais
apenas para família heterossexual, por exemplo); impõe a obrigação de estabelecer um
gênero no nascimento e impede as pessoas transexuais e intersexuais a autodeterminarem
seu gênero; discriminam as pessoas LGBT nos espaços públicos; proíbem essas pessoas
de trabalharem nas Forças Armadas etc. Mas, o fundamental é que esse episódio
exacerbou o distanciamento da presidenta da pauta e do movimento LGBT, que duraria
um longo período de tempo.
No outro dia após o anúncio de veto ao kit anti-homofobia, a ABGLT, juntamente
à Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e à Articulação Brasileira de
Lésbicas (ABL), lançou nota contra a decisão do governo federal. No texto, as associações
afirmaram que tal ação maculou “a imagem do Brasil internacionalmente no que tange ao
respeito aos direitos humanos” e, em alusão à negociação feita entre governo Dilma e
parlamentares da bancada religiosa, reivindicaram que “os direitos humanos de um
determinado segmento da sociedade não podem, jamais, virar moeda de troca nas
negociações políticas”. E denunciaram o não cumprimento da laicidade do Estado: “um
princípio básico do Estado republicano” que estava “ameaçado pela chantagem praticada
(...) contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no
Congresso Nacional”22
. Mas, na disputa de forças entre movimento LGBT e movimento
“fundamentalista” no interior da relação Congresso Nacional e governo federal, o primeiro
movimento era muito mais frágil em termos de número de parlamentares e gestores que
colocavam as demandas LGBT como uma pauta política prioritária.
Assim, durante esse período, o governo federal capitulou outras vezes diante o
conservadorismo. Nas vésperas do carnaval de 2012, o governo vetou a veiculação de
vídeo voltado para a prevenção da aids para jovens homossexuais. O vídeo mostrava dois
homens trocando afetos e no final aparecia uma fadinha que lhes entregava uma
camisinha. Segundo a Folha de São Paulo, a presidenta Dilma chegou a ver os vídeos da
campanha, só aprovando o vídeo com um casal heterossexual, com cenas bem mais
insinuantes se comparado ao vídeo censurado. Antes, o Ministério da Saúde chegou a
22
Uma cópia da nota pode ser encontrada em: http://www.direitohomoafetivo.com.br/ver-
noticia.php?noticia=189. Ver também em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2605201108.htm.
Acesso em janeiro de 2015.
publicar um release da campanha informando que divulgaria os vídeos na TV e na internet
com situações envolvendo jovens gays e heterossexuais. Chegou também a disponibilizar
o vídeo em seu site, mas retirou alguns dias depois afirmando que se tratava de um
equívoco, haja vista que o vídeo não teria sido feito para ser veiculado amplamente23
. Em
pouco tempo, o deputado federal pastor Marco Feliciano publicou, em sua página do
Twitter, um link com reportagem sobre o veto do material junto à frase: “Pressão nossa”,
com clara referência à bancada evangélica24
. Ainda que o governo tenha negado a
interferência externa na tomada de decisão, ele não conseguiu explicar por que um vídeo
pronto, que já havia sido aprovado pela Secretaria de Comunicação da Presidência da
República e também anunciado como parte da campanha de aids, foi censurado após o
início de sua divulgação.
Outro episódio protagonizado por esse pastor e que evidenciaria, de forma mais
visível, a força e a disputa de posições dos parlamentares do neoconservadorismo religioso
se deu em março de 2013, com a eleição dele para a presidência da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados. Isso aconteceu após uma articulação do deputado
Eduardo Cunha, além de integrante da bancada evangélica era líder do PMDB da Câmara,
e um acordo entre as bancadas dos partidos que decidiram dar ao PSC a presidência da
comissão. Como as cadeiras das comissões eram distribuídas pelo tamanho das bancadas
dos partidos, sendo a do PT a maior, este também teve uma parcela de responsabilidade ao
abrir mão da referida comissão e optar por outras (Seguridade Social e Família, Relações
Exteriores e Comércio, Constituição e Justiça, esta considerada a mais importante)25
.
A atuação do pastor Feliciano ganhou ainda mais notoriedade quando conseguiu,
em meados de junho, aprovar na comissão o projeto de lei 234/2011, apelidado de “cura
gay”, pois permitia psicólogos de promover tratamento de “cura” da homossexualidade.
No turbilhão das jornadas de junho de 2013, a atuação do pastor e o projeto de lei que já
eram alvo de críticas nas mobilizações, passaram a ser ainda mais atacados em
manifestações massivas em todo o Brasil. Naquela altura, a presidenta começou a fazer
uma série de audiências públicas com vários movimentos sociais, no sentido de ouvir
deles suas reivindicações. No dia 28 de junho, considerado o dia internacional do orgulho
LGBT, a ABGLT e outras organizações se reuniram com a presidenta e entregaram a
23
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/25854-apos-veto-video-de-campanha-contra-
aids-e-improvisado.shtml. Acesso em janeiro de 2015. 24
Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/basecoluna.php?cod=285. Acesso em dezembro de 2014. 25
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/97479-pastor-e-eleito-para-comissao-de-direitos-
humanos-da-camara.shtml. Acesso em janeiro de 2015.
Carta Pública das Entidades do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais do Brasil, que as demandas consideradas mais urgentes, como a lei de
criminalização da homofobia, a garantia de recursos orçamentários para implementar as
politicas LGBT, mobilização contra o projeto 234/2011 e a garantia do Estado laico.
Uma resposta mais imediata do governo foi a mobilização de deputados/as
aliados/as para votarem contra o projeto, colocando também em discussão um texto de
criminalização da homofobia. A expectativa do governo era que o projeto fosse reprovado
por maioria ampla26
, antes de ser retirado de tramitação pelo autor, no início de julho.
Acuado, o deputado João Campos ao solicitar a retirada do projeto acusou o governo de
explorar o tema para desviar os focos das manifestações que, segundo ele, seriam
resumidas a questões como segurança, saúde e corrupção. Em sua página no Twitter,
Feliciano defendeu o aliado evangélico, ameaçando: “Na próxima legislatura, a bancada
evangélica vem dobrada, e a gente vem com a força total”27
Se o conjunto das políticas LGBT e o diálogo com o movimento pouco avançou no
governo Dilma, houve uma novidade no final do primeiro mandato com a presidenta
passando a defender publicamente o combate à violência contra a população LGBT nas
eleições de 2014. Nesse momento, seria de se esperar que a presidenta evitasse ao máximo
temas relacionados à diversidade sexual e de gênero. Mas, o que aconteceu foi o contrário,
uma vez que esses temas tomaram de assalto os debates entre os/as candidatos/as
presidenciáveis.
Entre outros episódios, com a morte de Eduardo Campos (PSB), o terceiro
candidato na intenção de votos, Marina Silva, que estava na mesma chapa como vice,
assumiu novamente a candidatura à presidência. Com isso, ela mandou retirar uma parte
do programa de governo, assinado por Campos, que tratava sobre as políticas e os direitos
LGBT e, entre eles, a defesa da criminalização da homofobia. Poucos dias depois, após
um dos debates entre os/as presidenciáveis, questionada sobre a temática, Dilma se
declarou a favor da criminalização e afirmou: “No caso especifico da homofobia, eu acho
que é uma ofensa ao Brasil. Então, fico triste de ver que temos grandes índices [de
26
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1304247-as-vesperas-da-votacao-do-projeto-
cura-gay-governo-mobiliza-aliados-para-rejeitar-texto.shtml. Acesso em maio de 2016. 27
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1305027-projeto-da-cura-gay-e-retirado-
pelo-autor-joao-campos.shtml, http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1302032-apos-protestos-contra-
cura-gay-psdb-divulga-nota-para-se-descolar-do-projeto.shtml,
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1299209-cura-gay-e-um-absurdo-diz-presidente-da-
camara.shtml. Acesso em janeiro de 2015.
violência] atingindo essa população”28
. É importante lembrar que na chapa que reelegeu
Dilma Rousseff não havia muitos dos partidos conservadores que havia em 2010. Um
exemplo era o PSC, que trazia várias lideranças religiosas, lançou um candidato próprio
(Pastor Everaldo) e, no segundo turno, apoiou o candidato tucano Aécio Neves. Porém, a
mudança de estratégia da candidatura petista em relação à pauta LGBT também se dava no
sentido de diferenciar a imagem da candidata à reeleição da imagem de Marina Silva.
Uma vez mais, o governo apostou na atuação contraditória. Um mês antes das
eleições, na tentativa de conter o avanço da candidatura de Marina Silva, o governo
resolveu apoiar o projeto da Lei Geral das Religiões, uma das principais bandeiras
evangélicas no Congresso. O projeto, do deputado George Hilton (PRB) que seria
nomeado ministro dos Esportes durante o segundo mandato, estava parado no Senado e
seu conteúdo estendia os mesmos benefícios concedidos pelo governo à igreja católica,
como a isenção de impostos29
. Ao mesmo tempo, Dilma, na abertura da Assembleia Geral
da ONU em meados de setembro, defendeu novamente o combate à homofobia:
O racismo, mais que um crime inafiançável é uma mancha que não hesitamos
em combater, punir e erradicar. O mesmo empenho que temos em combater a
violência contra as mulheres e os negros, os afro-brasileiros, temos também
contra a homofobia. A Suprema Corte do meu país reconheceu a união estável
entre pessoas do mesmo sexo, assegurando-lhes todos os direitos civis, daí
decorrentes. Acreditamos firmemente na dignidade de todo ser humano e na
universalidade de seus direitos fundamentais30
.
Essa declaração não era algo menor. Ao contrário, havia um ganho simbólico
importante no fato de uma presidenta de um país fazer tal defesa em uma reunião que
tinha a presença de representantes e líderes de outros países, que desconsideravam a pauta
ou mesmo chegavam a proibir as expressões não heterossexistas. Nesse clima,
diferentemente do processo eleitoral de 2010, voltou o conteúdo da questão LGBT no
programa de governo da campanha do PT. Adesivos com os escritos “Dilma Presidenta
13” com o fundo de arco-íris foram distribuídos por todo o Brasil. Além disso, a
campanha lançou o material “LGBT: novo governo, novas ideias”, com um novo
compromisso de implementar treze ações, caso o governo fosse reeleito.
28
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/09/1509382-apos-debate-dilma-defende-
criminalizacao-da-homofobia.shtml e http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,dilma-tenta-se-
contrapor-a-marina-e-defende-criminalizacao-da-homofobia,1553249. Acesso em maio de 2016. 29
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/09/1509461-governo-reage-a-marina-com-
apoio-a-igrejas.shtml. Acesso em março de 2016. 30
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/09/1521742-leia-a-integra-do-discurso-de-
dilma-na-assembleia-da-onu.shtml. Acesso em abril de 2015.
Se nas eleições de 2010 o tema relacionado aos direitos sexuais e reprodutivos foi
o debate sobre o aborto, nas de 2014, as questões da criminalização da homofobia e do
casamento entre pessoas do mesmo sexo ganharam centralidade na “cena” da disputa
eleitoral. No entanto, uma vez reeleita, Dilma voltou a silenciar sobre a população LGBT,
a mais atacada e deslegitimada durante a disputa, no seu discurso de vitória:
Vamos continuar construindo um Brasil melhor, mais inclusivo, mais moderno,
mais produtivo. Um país da solidariedade e das oportunidades. Um Brasil que
valoriza o trabalho e a energia empreendedora. Um Brasil que cuida das
pessoas, com um olhar especial para as mulheres, os negros e os jovens.
O segundo turno das eleições, sobretudo, dividiu o país em dois polos, que
defendiam projetos hegemônicos diferentes. A disputa mais acirrada da história terminou
com 51% dos votos válidos para a candidata petista e 48% para o tucano. Por isso,
durante todo o discurso, Dilma procurou um tom conciliatório, procurando evitar uma
crise política anunciada – e que se tornaria mais contundente em 2015. Nesse momento,
falar da população LGBT seria incomodar e afastar amplos setores da sociedade numa
crise política que se aprofundava. Mas, isso demonstrava que o governo novamente não
estava disposto a incluir a questão LGBT em suas ações de forma mais consistente e com
maior prioridade.
Deus e o diabo em “um país de todos”
Durante a maior parte do tempo, o governo Dilma ficou distante das organizações
do movimento, mas mantendo algumas das políticas LGBT (sobretudo nas áreas de
educação e saúde). Esse afastamento se dava, sobretudo, devido à necessidade do
executivo em manter a governabilidade no Congresso Nacional31
. Se a presença de
religiosos e, mais especificamente, de lideranças evangélicas no Congresso é bastante
antiga, foi nas eleições de 2010 que tais lideranças organizadas na bancada evangélica
aumentaram sua capacidade de pressão política. Não só porque havia um maior número de
parlamentares evangélicos eleitos, mas sobretudo pela própria política de conciliação de
31
Penso que a questão da governabilidade não explica por si só o comportamento do governo Dilma, haja
vista que a necessidade da governabilidade residia no fato de esta ser pressuposto para o governo conseguir
realizar seu “projeto hegemônico” em articulação com sua “estratégia de acumulação” (JESSOP, 2007), isto
é, de desenvolver uma relação entre Estado e sociedade civil articulada com uma estratégia de
desenvolvimento econômico (do qual depende o sucesso do próprio governo) – como aponto melhor em
Toitio (2016).
forças que elegeu o governo Dilma e que trouxe para a “base aliada” no Congresso
partidos conservadores e parte dos referidos parlamentares. Ao passarem para a condição
de interlocutores constantes do governo, isso contribuiu para a maior visibilidade e o
fortalecimento da pauta e dos interesses do neoconservadorismo evangélico. Nessa parte,
faço algumas considerações sobre esse que se tornou o principal adversário político do
movimento LGBT, no período estudado, apontando algumas questões para explicar a sua
força política e analisando parte de suas estratégias e discursos.
Nos últimos anos, tornou-se muito evidente a prioridade de algumas igrejas
evangélicas de elegerem pastores e fiéis não apenas para o Congresso Nacional, mas
também para prefeituras, câmara de vereadores e presidência da República, no intuito de
defenderem seus interesses e expandirem suas concepções. Uma ação privilegiada foi a
proposição de projetos de lei estadual e municipal que proibissem o debate de gênero e
sexualidade na escola, além da retirada dos termos “orientação sexual” e “identidade de
gênero” do Plano Nacional de Educação (em 2014). Mesmo que não fosse novidade a
presença de lideranças evangélicas no legislativo, foram nos primeiros anos da década de
2010 que eles se fortaleceram de maneira até então inédita. Esse fenômeno, denominado
por Magali Cunha de neoconservadorismo evangélico, se expressou na legislatura iniciada
em 2011 como o momento de maior poder alcançado por esse segmento religioso, que
avançou também para cargos em ministérios e presidências de comissões importantes da
Câmara dos Deputados. E pelo menos quatro agremiações tinham forte presença do
“segmento” evangélico: PRB, PSD, PROS e PSC (CUNHA, 2016, p. 145-150).
De acordo com sua autoapresentação, a Frente Parlamentar Evangélica foi
instituída em outubro de 2003, na Câmara dos Deputados, em torno da “defesa da ética, da
vida humana, família, da liberdade religiosa e de uma sociedade justa e igualitária”. Na
primeira legislatura que atuou (2003-2006), era composta por 58 congressistas, entre eles
três senadores. Em relação às igrejas, 23 parlamentares eram da Assembleia de Deus e os
demais pertenciam às Igrejas Batistas, Universal, Presbiteriana, Quadrangular, entre
outras32
. Se nas eleições de 2006 o número de representantes da Frente decaiu para 43
parlamentares, em 2010 foi a bancada que mais cresceu, com 66 parlamentares, sendo 63
32
Disponível em http://www.fpebrasil.com.br/portal/index.php/a-frente/sobre-a-fep. Acesso em janeiro de
2015.
deputados e três senadores33
. Longe de silenciarem os motivos que os levaram a concorrer
aos cargos no Legislativo, suas campanhas eleitorais foram constituídas abertamente
contra as bandeiras da criminalização da homofobia, o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, a descriminalização do aborto e a legalização das drogas.
Entre outras ações, a bancada evangélica se organizava monitorando centenas de
projetos de lei no Congresso Nacional relacionados às questões sexuais e reprodutivas.
Seus deputados e senadores também foram autores de diversos projetos conservadores e
retrógrados no trato dessas questões. Dentre os partidos com maior número de
representantes evangélicos (no primeiro mandato do governo Dilma), estavam o PSC, com
onze parlamentares eleitos, o PR, com dez parlamentares, e o PRB, com nove. O PMDB
(partido do vice-presidente eleito) e o PSDB tiveram, cada um, sete evangélicos eleitos. E
o PT reuniu três integrantes34
. Segundo a Gazeta do Povo, o crescimento da bancada
evangélica a tornou maior do que a maioria das bancadas dos partidos, na legislatura entre
2011 e 2014. Ficando atrás apenas das bancadas do PT (que tinham 89 deputados) e do
PMDB (com 82 deputados), o tamanho da Frente Parlamentar Evangélica lhe rendeu, em
muitos momentos, a possibilidade de se comportar como partido durante negociações e
votações35
.
Para o movimento LGBT, a bancada evangélica era constituída por um conjunto de
parlamentares que representavam os interesses, valores e demandas de suas igrejas. Mas,
antes de tudo, ela representava uma força social e política que tinha concepções contrárias
às concepções do movimento. Isso leva a questionar sobre a “base” que sustentava tal
força e as condições sociais que possibilitaram seu desenvolvimento, permitindo
compreender as igrejas não apenas como instituições religiosas que professam a fé e
realizam rituais proselitistas, mas também como “partidos”, no sentido gramsciano, que
organizam politicamente e formam ideologicamente.
Durante a legislatura entre 2011 e 2014, as igrejas mais fortes, isto é, com mais
representantes dentro do Congresso Nacional eram, em ordem decrescente: Assembleia de
Deus, Batista, Universal do Reino de Deus, Presbiteriana e Evangelho Quadrangular.
33
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-
pesquisa/fiquePorDentro/temas/nova_composicao_cd/documento-de-referencia-da-consultoria-legislativa-1.
Acesso em janeiro de 2015. 34
Disponível em: http://diap.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14637&Itemid=296.
Acesso em janeiro de 2015. 35
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1365176. Acesso em
janeiro de 2015.
Apesar de nas investidas contra os movimentos LGBT e feminista a bancada evangélica se
apresentar em sua unidade, é fundamental compreender o fundamentalismo religioso em
sua diversidade. O termo evangélico diz respeito a um vasto campo religioso formado
pelas denominações cristãs descendentes da Reforma Protestante e que se colocam em
oposição ao catolicismo no interior do cristianismo. Esse campo religioso pode ser
dividido, no mínimo, em duas partes: as igrejas protestantes históricas, entre elas a Batista
e a Presbiteriana, mas também a Luterana, Congregacional, Anglicana e Metodista; e as
igrejas pentecostais, entre elas a Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus,
Evangelho Quadrangular, além da Congregação Cristã do Brasil, Deus é Amor, Brasil
para Cristo, entre outras. O pentecostalismo, que descende do protestantismo histórico,
surgiu nos EUA no começo do século XX. A grosso modo, distingue-se por pregar a
contemporaneidade dos dons do Espírito Santo, dos quais ressaltam os dons de língua
(glossolalia), cura e profecia (MARIANO, 1996, p. 25; ALMEIDA, 2006).
Segundo o Censo do IBGE, em 2010, haviam mais de 42 milhões de pessoas
evangélicas no Brasil, sendo mais de 25 milhões de origem pentecostal e, 7,6 milhões,
evangélicas “de Missão” (IBGE, 2012, p. 143). Mesmo que as igrejas mais velhas, como a
Assembleia de Deus, tenham surgido no início do século XX e as mais novas, as
neopentecostais, datarem dos anos 1970, como a Universal do Reino de Deus, é a partir
dos 1980 que a expansão do número de evangélicos se acelera (MARIANO, 2008, p. 69).
É importante considerar que o crescimento dos adeptos do pentecostalismo se acelerou no
mesmo contexto de crise econômica e da adoção de medidas e políticas neoliberais no
desenvolvimento da economia e na gestão do Estado. Desigualdade social, altas taxas de
emprego informal e de desemprego, aumento da população urbana etc. são alguns dos
fatores que compõem o “cenário” de crescimento desse movimento religioso cujas
lideranças priorizaram o trabalho de evangelização entre as classes populares.
Ainda segundo o censo de 2010, os evangélicos pentecostais eram o grupo
religioso com maior proporção de pessoas com rendimento de até um salário mínimo
(IBGE, 2012, p. 156). Além de estar na “base” da pirâmide salarial, as pessoas
pentecostais eram em sua maioria negras e pardas, do gênero feminino, de baixa
escolaridade e trabalhadoras em empregos domésticos e precários. Uma das características
principais do crescimento acentuado do pentecostalismo é ele se desenvolver entre as
classes mais pobres das periferias das grandes cidades – embora isso por si só não explica
a expansão das igrejas pentecostais, sendo preciso entender também as dinâmicas e lógicas
internas de cada denominação (MARIANO, 2008, p. 71).
De toda forma, essa tendência de expansão dessas igrejas sobre as classes
populares explica, em parte, por que partidos como PRB, PSD e PSC, que faria parte –
segundo Codato et. al. (2015) – da “nova direita” brasileira, se alinharia com um governo
petista considerado por eles como de esquerda. De acordo com esses autores, assim como
a “velha” direita – herdeira das ditaduras militares –, a “nova” apostava no capitalismo
como modelo econômico e nos preceitos morais tradicionais, mas não era contra as
políticas sociais de distribuição de renda, implementadas por exemplo pelos governos PT,
que para ela geraria “igualdade de oportunidades”. Assim, a “nova direita” estava
“orientada para conviver com governos de esquerda, fazendo parte de suas coalizões de
apoio, e admitir, pragmaticamente, a existência de programas sociais” (CODATO et. al.,
2015, p. 116). Cabe apontar também a nova direita foi a corrente política que, nas últimas
eleições, mais elegeu novos parlamentares e, também, trabalhadores/as para a política
nacional (CODATO et. al., 2015). Se muitos dos parlamentares da “nova direita” são
também lideranças religiosas, é importante chamar atenção para o fato de que o que unia
esses partidos ao PT era a capacidade deste de produzir políticas que melhoravam
relativamente as condições de vida das classes populares, as quais forneciam parte do
sustento das igrejas pentecostais, principalmente por meio do dízimo.
A emergência do neoconservadorismo, nesse período, que trouxe uma ofensiva
sistemática contra as políticas e os direitos sexuais e reprodutivos, gerou também novas
estratégias e discursos. Isso pode ser notado, por exemplo, na atuação de lideranças
ligadas à Assembleia de Deus. Durante o governo Dilma, a Assembleia de Deus era a
igreja com maior número de parlamentares na Frente Evangélica e à qual pertencia o líder
da bancada (João Campos) bem como o deputado Marco Feliciano. Essa era a
denominação com o maior número de fiéis, com mais de 12,3 milhões de adeptos (IBGE,
2012, p. 143).
É importante ressaltar que mesmo a Assembleia de Deus sendo menos centralizada
e mais fragmentada (se comparada com a Igreja Universal do Reino de Deus, por
exemplo), ela apareceu no Congresso Nacional na forma de unidade, não apenas nas
ofensivas contra as questões sexuais e reprodutivas, mas também nas proposições de
projetos de lei que reforçam o poder e os privilégios das igrejas evangélicas ou mesmo
versam sobre a difusão de símbolos religiosos. Durante as eleições de 2010, em vídeo
veiculado pela internet, Malafaia divulgou os motivos que o fizeram retirar o apoio à
Marina Silva: acusou a candidata de não encaminhar um projeto de lei, do qual ela era
relatora, que instituía a obrigatoriedade de exemplares da Bíblia Sagrada nos acervos das
bibliotecas públicas. No vídeo, ainda, o pastor defendeu que, caso as religiões não cristãs
se sentissem prejudicadas, seus representantes também fizessem “emendas para votar seus
interesses” e, ao declarar apoio a Serra, afirmou a necessidade de os evangélicos
marcarem “posição por princípio”36
. A fala do pastor é articulada no sentido de resumir
todo o amplo espectro de questões que perpassam a disputa eleitoral à defesa das
concepções e o expansionismo das igrejas evangélicas. Assim, não se pode desprezar o
conteúdo desse projeto de lei que forçaria a difusão de material ideológico cristão em
espaço público, a despeito da laicidade do Estado.
Esse projeto, de 2008, era de autoria do deputado federal Filipe Pereira37
, que
pertencia ao PSC, partido que concentrava número significativo de parlamentares da
Assembleia de Deus. Esse partido, fundado em 1985, tinha como uma de suas finalidades
a “realização e execução de seu programa com base na Doutrina Social Cristã”38
. Em
programas do horário eleitoral, exibidos entre 2011 e 2013, a apresentação do então vice-
presidente do PSC, Pastor Everaldo Pereira, se dedicou a explorar a pauta central do
partido: a defesa da família. A partir dessa pauta se articularam as principais ações
realizadas pelos parlamentares do PSC, como os projetos “lei seca”, de redução da
maioridade penal, de criminalização do aborto e das drogas. Articularam-se também
algumas de suas concepções políticas, como a de que a família nuclear seria apenas
formada por “pai, mãe e filhos”, sendo a base de toda a sociedade. Tentando distanciar a
imagem religiosa do PSC, o programa traz o discurso “científico” no intuito de afirmar a
importância da família na preservação da sociedade, de forma que a força das famílias
depende das relações heterossexuais.
A fala do pastor Silas Malafaia, proferida em novembro de 2012 durante a Sessão
Solene em homenagem ao Dia Nacional de Valorização da Família, na Câmara de
Deputados, revela em vários aspectos a dinâmica desse novo discurso dos agentes ligados
à Assembleia de Deus, que “embaralhava” o discurso científico com o religioso. Por
diversas vezes, o pastor comentou a sua formação de psicólogo e evocou as teorias da
36
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LF0CpgEoIKQ. Acesso em janeiro de 2015. 37
Informações sobre o projeto, disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao
?idProposicao=384080. Acesso em janeiro de 2015. 38
Disponível em: http://www.psc.org.br/partido-social-cristao/documentos/estatuto. Acesso em janeiro de
2015.
psicologia social para defender o papel da família na socialização dos indivíduos, a
argumentação ao mesmo tempo evocando e complementando com as concepções de sua
religião.
As relações sociais são de importância fundamental ao desenvolvimento do ser
humano. E ao falarmos das relações sociais, a família, como a célula principal
da sociedade, é fundamental para o desenvolvimento do ser humano (...). É de
vital importância por ser não só a primeira, mas a mais importante agência
socializadora. Quem fez a família foi Deus e Deus criou normas, estabeleceu
normas para o bom andar dessa instituição. Ele cria normas para que o ser
humano possa tirar proveito, possa crescer e se desenvolver. (...) Querem destruir as figuras da família: a desconstrução da heteronormatividade e
a desconstrução dessa família nuclear [formada pelo pai, mãe e sua prole]. E nós
vamos ver o que vai acontecer nas gerações futuras, o desarranjo social. Porque
como qualquer instituição ela precisa de organização. (...) Então, Deus cria uma
organização nessa instituição chamada família. Coloca o homem como
autoridade (...). O princípio de Deus não é machista, é organizacional, porque
toda instituição tem que ter princípio de autoridade. (...) A mulher edifica a
autoridade do Homem. A mulher traz o equilíbrio das partes na construção da
família.
Interessante que o pastor estava atento a termos como heteronormatividade ou
desconstrução da família, que eram ligados aos estudos da sexualidade e à teoria queer e
que também estavam presentes em parte do movimento LGBT. Explicitados assim de
forma vazia, tais termos poderiam ser criticados facilmente pelo pastor, cuja
“performance” se utilizou de argumentos relacionados ao divino e a certas crenças que
reforçavam as visões essencialistas sobre o gênero. E longe de afastar as explicações
“mundanas”, o pastor citou um estudo sociológico não apenas para ressaltar a importância
da família nuclear, mas também no intuito de justificar “cientificamente” o
heterossexismo. Cabe apontar que esse estudo foi utilizado também em um programa
eleitoral do PSC para fundamentar a mesma ideia.
Um sociólogo francês – não é evangélico não, gente! – chamado George Gilder,
é um PhD em Sociologia. Ele pesquisou mais de duas mil culturas no mundo.
Chegou à conclusão de que apenas 55 eram unissexuais: não havia papel
definido de macho e fêmea. Essas culturas rapidamente se destruíram. Qual é a
conclusão que George Gilder chega? Nenhuma sociedade é mais forte do que os
laços de suas famílias. A fortaleza de suas famílias depende das relações
heterossexuais. Querido, não estou falando de teologia. Eu estou falando de
sociologia, eu estou falando de antropologia39
.
39
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dB4STUSb9Wc. Acesso em janeiro de 2015.
Um ano antes, em outra fala no debate sobre a criminalização da homofobia,
organizado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado,
Malafaia argumentou contra o PLC 122 que, entre outros elementos, tinha o intuito de
comparar o crime motivado por homofobia ao crime motivado por racismo.
O negro não nasceu branco ou não pediu para nascer negro ou branco. Ele é. A
criança, ela não pede para ser criança. Ela é. O idoso, ele não pede para ser
idoso. Ele é. Homossexualismo é comportamental. Querem dar status a
comportamento? [Comparar] à raça? O que é o homossexualismo? É um homem
ou mulher por determinação genética e homossexual por preferência aprendida
ou imposta. É isso aqui. Não tem ordem cromossômica homossexual. Que
conversa é essa? Que paridade esses caras estão querendo?40
Nesse discurso utilizado não apenas por Malafaia, mas também pelo PSC e por
outros agentes do fundamentalismo religioso, há novamente uma simbiose entre as
concepções religiosas e as científicas. Isso se dava por meio de um discurso marcado pela
seletividade de argumentos científicos utilizados somente para legitimar e fundamentar
parte de sua visão sobre sexualidade e as formas dominantes de parentesco. A sociologia e
a antropologia simplesmente desapareciam para outras relações, desconsiderando a própria
historicidade da questão racial, da infância e da velhice.
No intuito de atacar a luta LGBT, esse discurso assimilou parte das teorias
construtivistas ou historicistas da sexualidade e do gênero, afastando o discurso
biologizante de que a homossexualidade ou transexualidade, por exemplo, seriam uma
questão genética. Então, se a sexualidade e o gênero são construídos (“aprendidos” ou
“impostos”) nas relações sociais, um desvio das formas e expressões dominantes poderia
ser desconstruído, ou mesmo “tratado”. Além disso, certas formas e expressões poderiam
ser estimuladas e disseminadas e, por isso, o “pânico” e os protestos contra o kit do Escola
Sem Homofobia, que por diversas vezes recebeu o apelido pejorativo de “fábrica de gays”.
Ao mesmo tempo, as concepções religiosas são evocadas sem grandes mediações com a
análise científica. A figura de Deus é utilizada, sobretudo, para explicar porque a
organização normativa se dá do modo que conhecemos e não de outro. As categorias
explicativas mudam de caráter: a organização normativa da vida social se dá pela vontade
divina e não devido às relações de poder de sexualidade e de gênero. Assim, os “desvios”
e infortúnios podem ser facilmente atribuídos à obra do Diabo e “corrigidos” com a ajuda
das igrejas e de seus rituais.
40
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2fbhpcQs6xI. Acesso em janeiro de 2015.
Outra tática interessante utilizada pela “bancada evangélica” foi assimilação de
códigos da linguagem e do discurso do movimento LGBT. Um exemplo foi, após a
votação tumultuada que elegeu Marco Feliciano para presidir a CDH, o deputado
Takayama, do PSC, afirmou que quem tentara impedir a sessão era “cristofóbico”41
, numa
clara tentativa de se utilizar um termo do movimento, assimilando o sentido de “aversão a
um grupo social”, mas adequando-o aos termos do conservadorismo religioso contra o
próprio movimento. Outros termos foram ressignicados como é o caso de “heterofobia” ou
“orgulho heterossexual”. Assim, o conservadorismo evangélico, na construção da
legitimidade de suas demandas, passou a constituir uma “política de identidade”, de
afirmação e fortalecimento da identidade evangélica, que seria alvo de preconceitos. Isso
questiona até que ponto a ação política centrada na afirmação identitária é produtiva. No
final das contas, o neoconservadorismo evangélico, que tinha maior força para pressionar
o Executivo e garantir pautas no Legislativo, tinha também maior capacidade para
“afirmar” sua identidade na política institucional – como é o caso dos cultos evangélicos
realizados periódica e cotidianamente no Congresso Nacional entre deputados/as e
senadores/as. No jogo de afirmação de identidades que representam forças antagônicas,
perde aquela que está em desvantagem política, ainda mais se tratando de uma identidade
que pertence a um grupo alijado da e subalternizado pela institucionalidade política.
Ao demônio, o inferno!
O cenário político de 2015 não foi favorável para a reaproximação do governo com
a pauta LGBT. No primeiro semestre, uma crise econômica foi deflagrada no país e a crise
política se aprofundou. Enquanto a economia entrava em recessão, aumentavam
rapidamente os movimentos que pediam o impeachment da presidenta recém-empossada.
Esse quadro era agravado pelo fato de a nova configuração do Congresso Nacional (que
resultou das eleições de 2014) apresentava um perfil ainda mais conservador do que a
legislatura anterior. Em uma reportagem da Folha de São Paulo, lançada após o resultado
das eleições, a Frente Parlamentar Evangélica afirmou que sua bancada seria a maior na
história da igreja evangélica no Brasil. A bancada passou de 71 para 80 deputados/as. E
Marco Feliciano foi reeleito com cerca de 398 mil votos, quase o dobro de 2010.
41
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/97479-pastor-e-eleito-para-comissao-de-direitos-
humanos-da-camara.shtml. Acesso em janeiro de 2015
Ao mesmo tempo, cresceu também a bancada “ruralista” (que, entre outras coisas,
defendia limitar a criação de terras indígenas e atenuar a definição de trabalho escravo na
legislação) e a bancada “policial” (que defendia medidas mais repressivas para a
segurança pública e a redução da maioridade penal)42
. As três bancadas juntas eram
consideradas a expressão mais bem-acabada da nova face conservadora da Câmara e,
devido à facilidade de articulação entre elas, foram rapidamente apelidadas de bancadas
BBB (Boi, Bala, Bíblia).
Nesse cenário, não foi uma surpresa quando o fortalecimento do conservadorismo
evangélico passou a afetar diretamente a estabilidade do próprio governo. No começo de
fevereiro, na eleição para presidente da Câmara dos Deputados, o candidato do governo
foi derrotado pelo deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB). A derrota mostrou que o
executivo não tinha, novamente, o controle sobre sua nova “base aliada” (PT, PMDB,
PSD, PP, PR, PROS, PDT, PCdoB e PRB)43
, que era menor em comparação com a base
governista do início de 2011, mas mantinha elementos da “nova direita”. Cunha havia
liderado protesto no Legislativo contra o governo em 2014. Além disso, ele representava o
que tinha de mais reacionário do ponto de vista das lutas subalternas. Cunha era autor de
projetos de lei como a criação do dia do orgulho heterossexual, em um claro propósito de
enfrentamento ao movimento LGBT, que conseguira criar o Dia Nacional do Orgulho
LGBT e o Dia Nacional de Combate à Homofobia. Quando presidente, Cunha foi
responsável pela votação e aprovação na Câmara de projetos como a ampliação da
terceirização, redução da maioridade penal, redução do acesso ao aborto legal para vítimas
de estupro e punição para quem facilitar a prática do aborto44
, além de ter coordenado o
processo de impeachment.
O golpe de 2016, mais do que ter levado à substituição de Dilma Rousseff pelo
vice Michel Temer, resultou na mudança de correlação de forças que sustentava o governo
executivo. A nova configuração se aglutinou em torno da construção de um programa
político-econômico fundamentado na “ortodoxia” neoliberal45
e, entre os diversos grupos
sociais que se alinharam pelo impeachment de Rousseff, estava presente parlamentares e
42
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1529052-mais-conservadora-camara-deve-
barrar-acoes-liberalizantes.shtml. Acesso em maio de 2015. 43
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/476548-COM-BASE-
MENOR,-NOVO-GOVERNO-DILMA-FICARA-MAIS-DEPENDENTE-DE-OUTROS-PARTIDOS.html.
Acesso em junho de 2016. 44
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1696664-camara-aprova-projeto-que-
dificulta-aborto-legal-e-pune-venda-de-abortivos.shtml. Acesso em março de 2016. 45
Ver Boito (2016).
lideranças evangélicos, que traziam uma pauta conservadora no que se relacionava à
diversidade sexual e ao gênero. Nesse contexto, a questão LGBT não era mais
politicamente tratada como tal na correlação que passou a sustentar o novo governo.
Já com o afastamento de Dilma, em abril de 2016, Temer na condição de
presidente interino logo acabou com o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos
Direitos Humanos; a SDH foi dissolvida na estrutura do Ministério da Justiça; a Secretaria
de Mulheres, também removida para este ministério, ficou sob a responsabilidade de “uma
deputada que já presidiu a Frente Parlamentar Evangélica e é abertamente contrária ao
aborto” (QUINALHA, 2016, p. 132). Além disso, Temer escolheu como líder do governo
na Câmara dos Deputados, André Moura do PSC, o que mostrava que o novo governo não
tinha interesse algum em debater temas relacionados ao avanço dos direitos sexuais e
reprodutivos no Congresso.
Da crise política iniciada em junho de 2013 e agravada no final de 2014, o
movimento LGBT saiu muito fragilizado. Desde o primeiro governo Dilma, o movimento
vinha passando por uma crise de mobilização de recursos, uma vez que parte importante
das organizações dependia de financiamento público vindo de políticas que foram aos
poucos desmontadas. Enquanto as pautas da diversidade sexual e de gênero ganhavam
maior visibilidade, as organização LGBT, sobretudo aquelas mais atreladas à disputa
institucional, se enfraqueceram rapidamente e pouco puderam fazer para barrar a ascensão
conservadora (TOITIO, 2016).
O enfrentamento ao conservadorismo evangélico tornou o movimento LGBT e o
movimento feminista os atuais protagonistas da luta histórica pela consolidação do Estado
laico no Brasil. No período analisado, a ABGLT se destacou sobretudo na discussão com
lideranças e parlamentares evangélicos e no diálogo com o governo federal. A presença do
neoconservadorismo evangélico na política institucional fez com que a entidade
direcionasse mais atenção e esforços para entendê-lo e enfrentá-lo. O debate do Estado
laico, que sempre esteve presente entre as demandas da associação, ganhou maior
visibilidade e prioridade em suas ações, nesse momento. A associação promoveu
seminários sobre o tema, inclusive dentro do Congresso Nacional, e passou a defender a
bandeira em marchas e paradas de forma mais permanente. Outra ação importante foi a
articulação com os movimentos feminista e negro e outras organizações.
Entretanto, mesmo fazendo várias investidas pelo Estado laico, não se pode
desconsiderar que as ações da ABGLT foram bastante tímidas. Isso porque as estratégias e
discursos utilizados evocavam a noção de laicidade de forma abstrata, apontando muito
pouco o que ela deveria ser concretamente. Não problematizou, por exemplo, por que
pastores podem ser eleitos como tais ou qual a legitimidade da bancada evangélica se
comportar como partido. Ora, se o Estado não pode beneficiar ou preferir nenhuma
religião, uma liderança religiosa com fortes vínculos com sua igreja pode se eleger para o
legislativo ou o executivo? Com qual interesse? Não seria dar imediatamente a eles a
legitimidade de criar leis ou políticas sociais nos termos de suas convicções religiosas?
Uma proposta concreta, por exemplo, poderia ter sido a criação de projetos de lei, como
existe no México, que restringem a candidatura de lideranças religiosas nas eleições para o
legislativo e o executivo – assim, tais lideranças deveriam se afastar das obrigações
confessionais para poderem se eleger. Enfim, as ações da associação não conseguiram
elaborar uma proposta concreta para efetivar a laicidade no Estado brasileiro.
Nesse debate, a ofensiva conservadora parecia, uma vez mais, um passo à frente do
movimento LGBT. Não apenas porque o discurso do “cidadão evangélico” escondia a
contradição entre laicidade e a presença de lideranças religiosas no Congresso Nacional.
Mas, sobretudo, porque foram bastante hábeis na construção de um “pânico moral” em
torno do avanço das políticas LGBT, numa cruzada pela demonização do que chamavam
pejorativamente de instalação da “ditadura gayzista”. Porém, ocultava-se o fato de que
enquanto projetos de lei da bancada evangélica criavam exclusões (como o do Estatuto da
Família) ou mesmo patologizavam a diversidade sexual e de gênero (como o projeto de
“cura gay”), as políticas e os direitos LGBT procuravam amenizar a opressão histórica
exercida pelo heterossexismo. Vale ressaltar que os direitos LGBT não cerceiam a
liberdade de ninguém mas, antes, a garantem. Já as políticas LGBT, mesmo aquelas com o
caráter mais universal, voltadas para a população em geral (como o Escola Sem
Homofobia), eram muito restritas à construção de uma cultura de tolerância e de respeito à
diversidade sexual e de gênero. Em verdade, o conteúdo da maioria das políticas
desenvolvidas trazia desafio para o heterossexismo, no entanto, eram muito tímidas na
denúncia e na desconstrução dessa lógica de inteligibilidade que é o que fundamenta a
opressão LGBT.
Além disso, se assumirmos a luta pela diversidade sexual e de gênero como uma
disputa hegemônica pela construção de novas concepções de mundo e modos de vida,
então, outros questionamentos podem ser feitos para refletir sobre os caminhos trilhados
pela ABGLT. O fato da conservadora bancada evangélica se autointitular como
representante do “povo evangélico” não significa que esse “povo” exista, pelo menos não
de maneira unitária. Há contradições importantes na parte evangélica da população que
devem ser consideradas, sobretudo com a existência de igrejas e vertentes evangélicas que
extrapolam o conservadorismo. Hoje, é crescente o número de “igrejas inclusivas”, com
fiéis e pastores/as LGBT, e outras com bandeiras declaradamente progressistas. A
expansão das religiões evangélicas nas últimas décadas no Brasil, ao mesmo tempo em
que deu fundamento para a organização de igrejas e lideranças conservadoras, abriu
também espaço para uma maior diversidade de novas orientações. E caso se trate de
disputa hegemônica, uma aliança com esses setores (que são marginalizados pelas igrejas
maiores e mais conservadoras) não pode ser descartada pelo movimento.
Outra questão, mais ligada ao movimento LGBT, refere-se às estratégias por ele
traçadas. Cabe reconhecer os ganhos na disputa institucional, que tinha como conteúdo a
“política de identidade” e, como forma, o advocacy, com o avanço da visibilidade da pauta
da diversidade sexual e de gênero, que tem ganhado os mais diversos espaços públicos.
Por outro lado, é importante apontar os limites dessa estratégia que possibilitou avanços
nas últimas duas décadas, mas que se esgotou durante o governo Dilma. O advocacy que
agia pressionando parlamentares, governos, meios de comunicação etc., privilegiava por
demais a luta institucional, em detrimento da mobilização política e da disputa na
sociedade civil. A disputa com o neoconservadorismo evangélico precisa considerar como
este se constitui como força política e, com isso, a própria base social do pentecostalismo,
que se expandiu nas últimas décadas sobretudo (embora não exclusivamente) entre as
classes populares e certos grupos subalternos. O pentecostalismo se estabeleceu com força
nas periferias das grandes cidades, para onde o movimento LGBT direcionou poucos
esforços e onde pouco surgiram organizações. Mas, essa “batalha” não precisa ser
necessariamente pela mobilização direta, mas também pela articulação com instituições e
movimentos sociais inseridos nas classes populares. A disputa nesses setores se tornou
ainda mais urgente com o golpe de 2016. A ofensiva que aliou neoliberalismo e
neoconservadorismo não deixou espaço para a questão LGBT ser tratada com estatuto
político. Ao mesmo tempo, a crise econômica e a política de austeridade (seletiva)
jogaram de volta milhões de pessoas para a linha pobreza provocando o aumento da
sensação de insegurança e do medo, o que tem sido um prato cheio para a expansão das
ideologias conservadoras.
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