A ditadura militar no cinema a luta armada em cabra-cega

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0 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV LICENCIATURA EM HISTÓRIA ROBENILTON PINTO CARNEIRO A Ditadura Militar no cinema: A luta armada em Cabra-Cega Conceição do Coité 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ROBENILTON PINTO CARNEIRO

A Ditadura Militar no cinema:

A luta armada em Cabra-Cega

Conceição do Coité

2010

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ROBENILTON PINTO CARNEIRO

A Ditadura Militar no cinema

A luta armada em Cabra-Cega

Artigo apresentado à Universidade do Estado da

Bahia – Campus XIV como requisito parcial para

obtenção do título de graduado em Licenciatura em

História sob a orientação da professora Susana M. de S.

S. Severs

Conceição do Coité

2010

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Componentes da Banca examinadora:

Orientadora: Professora Susana M. de S. S. Severs

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RESUMO

As relações entre a História e o Cinema estão cada vez mais em evidencia. Ao longo da sua

história, o cinema produziu filmes com as mais diversas temáticas e gêneros, entre elas se

destacam as de temáticas históricas. As produções nacionais também seguem essa tendência.

Uma das temáticas mais filmadas do cinema brasileiro é a Ditadura Militar em seus diversos

aspectos. Esse artigo analisa a representação da luta armada no filme Cabra-Cega (2005). O

filme Cabra-Cega se insere dentro das produções da retomada do cinema nacional, e se

destaca por mostrar um personagem muito complexo que quer junto com seu agrupamento

político-militar, através da guerrilha, implantar a revolução no país e derrubar o regime

militar.

PALAVRAS – CHAVES: Cinema – História – Ditadura Militar – Luta Armada

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INTRODUÇÃO

O cinema é um fenômeno histórico relativamente novo. Surgiu no final do século

XIX, e se popularizou no século seguinte, transformando-se em indústria cultural de massas.

Propagando valores e disseminando ideologias, influenciou e povoou o imaginário da

sociedade.

No Brasil o fenômeno se repete. A nossa indústria cinematográfica cresce a cada ano

produzindo, distribuindo e exibindo filmes nacionais. Em 2009, por exemplo, o público que

assistiu às produções nacionais cresceu 76% em relação ao ano anterior. Também cresceu o

numero de filmes nacionais, chegando ao número de 84 filmes lançados comercialmente.1

Ao longo da sua história, o cinema produziu filmes com as mais diversas e

interessantes temáticas e gêneros. Temáticas políticas, filosóficas, religiosas. Gêneros como o

western, ficção científica, comédia, romance, drama, dentre outros. No entanto, uma temática

específica sempre foi trabalhada pelo cinema: a dos filmes históricos. O termo filmes

históricos é colocado aqui como um gênero de filmes que aborda uma temática histórica.

Entretanto, todo filme produzido é histórico, pois pode transformar-se em fonte para o

historiador, revelando aspectos do contexto em que foi produzido.

Desde a primeira fase do cinema mundial, passando pelo cinema mudo, e até nos

principais movimentos cinematográficos mundiais, como o neo-realismo italiano, a nouvelle

vague, o Cinema Novo, entre outros, todos abordaram temáticas históricas em suas

produções. A indústria hollywoodiana se apropriou como nenhuma outra da produção em

massa dessa fonte. Filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, a Conquista

do Oeste, o Nazismo, a Guerra Fria, o Império Romano, são constantemente produzidos,

filmados, refilmados e lançados pela mais influente indústria cinematográfica do planeta. O

cinema brasileiro também, desde os primeiros passos, produziu filmes de temáticas históricas.

Jean Claude Bernadet e Alcides Freire Ramos2 analisam panoramicamente essa

situação, enfatizando que o cinema nacional até o final da década de 1980 (quando o trabalho

foi publicado) sempre recorreu às temáticas históricas. Observando a temática da

1 Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2010/01/13/publico-do-cinema-brasileiro-cresceu-76-em-2009/

2 BERNADET, Jean-Claude e RAMOS, Alcides Freire. Cinema e história do Brasil. São Paulo: Contexto,

1988.

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Inconfidência Mineira e a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, os autores

pontuam “que nenhuma figura da história do Brasil a não ser, nas últimas décadas, Getúlio

Vargas, foi tema de tantos filmes quanto Tiradentes (e por extensão, a Inconfidência

Mineira)” 3

Outro tema histórico muito retratado pelo cinema brasileiro é o cangaço. Existem mais

de cinqüenta filmes, dos mais variados gêneros, sobre essa temática, desde comédia (Deu a

louca no cangaço, de Nelson Teixeira e Fauzi Mansur, 1969; O Cangaceiro Trapalhão, de

Daniel Filho, 1983), romance (Entre o Amor e o Cangaço, de Aurélio Teixeira, 1965), e até

filmes eróticos como As Cangaceiras Eróticas de Roberto Mansur, de 19744. Um dos grandes

nomes do Cinema Novo, Glauber Rocha, também produziu duas películas sobre esse

fenômeno: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra O Santo

Guerreiro (1969).

Durante a Ditadura Militar a Embrafilme5 passou a fomentar produções de temáticas

históricas com o objetivo de promover a cultura nacional, adaptando a literatura brasileira às

telas e reproduzindo as biografias de grandes vultos brasileiros como Santos Dumont,

Marechal Rondon, Tiradentes, dentre outros. Os militares não imaginavam que a reprodução

de episódios históricos poderia servir para criticar o sistema político vigente no presente. Eles

não perceberam a relação passado/presente nas obras cinematográficas.

Aproveitando essa brecha, e ainda com recursos do próprio governo militar, Joaquim

Pedro de Andrade levou as telas uma das mais sutis críticas cinematográficas ao regime

militar brasileiro: o filme Os Inconfidentes. Produzido em 1972, foi todo escrito e montado

utilizando como fonte histórica de pesquisa para produção o Auto das Devassas e o poema de

Cecília Meirelles, o Romanceiro da Inconfidência. Em uma das cenas, os revoltosos discutem

a participação do povo nos planos dos inconfidentes. Um militar, que fazia parte do grupo, em

posse de armas de fogo esbraveja: “pra que o povo se temos a força das armas”!6.

Evidentemente, ao filmar essa cena em 1972, a intenção do autor não era simplesmente

reproduzir um possível diálogo de 1789, mas sim, criticar o Regime de Exceção que o país

vivia naqueles anos de chumbo.

3 Idem. Ibidem. Pg. 19 4 Há um trabalho de mestrado sendo desenvolvido atualmente sobre as mulheres do cangaço no cinema pela

aluna Caroline dos Santos Lima no mestrado de História Regional e local no Campus V da UNEB. 5Criada em 1969, a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) se tornou a principal referencia da produção

cinematográfica no país. 6 INCONFIDENTES. Joaquim Pedro de Andrade (dir.). Brasil: Sagres, 1972. 1 filme (100 min.), son., col.

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Com a abertura política do país, na década de 1980, e a reestruturação do setor

cinematográfico, intensificaram as produções de filmes sobre o período da Ditadura Militar.

E, ainda que na década de 1980, já tivessem sido produzidos filmes com temática sobre o

período dos militares no poder, como por exemplo, Cabra Marcado Pra Morrer (1984,

Eduardo Coutinho), o Bom Burguês (1982, Oswaldo Caldeira), e Memória do Cárcere (1984,

Nelson Pereira dos Santos), na década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI, esse

interesse foi maximizado, inclusive recortando especificamente os anos de chumbo, que

ocorreram logo após a promulgação do Ato Institucional nº 5, conhecido amplamente como

AI-5, e que motivou o surgimento da luta armada e as guerrilha.

Após a retomada do cinema nacional, a produção de filmes brasileiros que quase zerou

entre os anos 1992/1993, voltou com muita força a partir de 1994. De 1994 até 2009 mais de

uma dezena de filmes sobre a ditadura militar foi produzido. Alguns foram produções de

muito sucesso como: Lamarca, de Sérgio Rezende (1994) e O que é isso Companheiro? de

Bruno Barreto (1997), indicado ao prêmio Oscar do cinema norte-americano.7

Concomitante ao desenvolvimento das produções de temáticas históricas ao longo da

história do cinema desenvolveu-se no seio da historiografia mundial a necessidade de estudar

as relações umbilicais existentes entre Cinema e história. Um dos primeiros estudiosos a

fazer esse trajeto foi o historiador francês Marc Ferro. Influenciado pela Nova História, que

preconizava a ampliação de novos objetos e novos métodos de pesquisa, Ferro, ainda na

década de 1960 publicava o artigo intitulado “O filme, uma contra-análise da sociedade”,

revelando interesse pela área.8 Nas últimas duas décadas a produção acadêmica sobre a

relação história/cinema é espantosa, inclusive no Brasil.

Além de se estudar o Cinema na História, como faz Marc Ferro e outros

historiadores, também pesquisa-se a História do cinema e a História no Cinema. O Cinema na

História é a prespectiva através da qual o cinema é visto como fonte primária para

investigação histórica. É quando um historiador utiliza os filmes como documento para

interpretação histórica da sociedade que o produz. Por exemplo, O Triunfo da Vontade, de

Leni Riefenstahl (1934), pode ser utilizado como fonte primária para se perceber a estética e

7 A lista é muito peculiar: Lamarca, de Sérgio Rezende (1994); O que é isso Companheiro, de Bruno Barreto

(1997); Ação entre Amigos, de Beto Brent (1998); Dois córregos, de Carlos Reichenbach (1999); Quase Dois

Irmãos, de Lucia Murat (2003); Araguaia, a conspiração do silêncio, de Ronaldo Duque (2004) Cabra-Cega, de

Toni Venturi (2004); Zuzu Angel, de Sergio Rezende (2006); Batismo de Sangue, de Helvecio Ratton (2006); O

Ano em que meus país saíram de Férias, de Cão Hambúrger (2007). 8 FERRO, Marc. Cinema e história. São Paulo: Paz e Terra, 1992. [original Francês: 1976].

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propaganda nazista sob a égide de Hitler9. Ou, o Cinejornal Brasileiro (1938-1946), série de

documentários exibidos obrigatoriamente em todos os cinemas do território nacional antes do

filme principal, podendo ser utilizado para traçar um painel da sociedade estadonovista e

entender os mecanismos de propaganda do DIP na Era Vargas.

A História do cinema, no entanto, reporta-se a trajetória do cinema ao longo do tempo,

do surgimento da “sétima arte” aos nossos dias, do desenvolvimento das primeiras técnicas de

montagem ao uso de efeitos visuais modernos, além das correntes cinematográficas que

surgiram em várias partes do mundo. Já a História no Cinema é o cinema abordado como

produtor de discurso histórico, intérprete do passado e como representação histórica. Nesse

artigo, a linha de pesquisa versa sobre a história no cinema. Tratar-se-á logo abaixo de uma

análise da representação do fenômeno da Luta armada no filme de ficção Cabra-Cega de Toni

Venturi (2005).

Como já foi brevemente abordado acima, a última década do século XX e a primeira

do século XXI viram intensificar a produção de obras cinematográficas sobre a Ditadura

Militar. O que se percebe é que a sociedade brasileira está cada vez mais politizada, e gosta de

ver sua história sendo contada e revelada nas telas do cinema. Tanto é que a recepção da

crítica e do público desses filmes é considerável. Cada vez mais o cinema contribui

diretamente para que a história seja contada. E sobre a história da luta armada, algumas razões

conspiram para o difícil entendimento desse tema. O próprio Venturi esclarece seu ponto de

vista a esse respeito:

Primeiro, é a história dos derrotados e, portanto, não tem a força da história oficial,

que prefere apagar o período de nossa memória em vez de refletir sobre ele.

Segundo, é uma história de clandestinidade, as organizações, por questão de

estratégia e sobrevivência, estavam profundamente submersas e com pouco contato

com a sociedade em geral, o que também foi um motivo de seu enfraquecimento.

Terceiro, o país vivia uma pesada censura nos meios de comunicação e sob o signo

do medo, que pairava e pautava a vida de todos os brasileiros.10

Evidentemente, a recente historiografia já problematiza esses questionamentos,

lançando luz sobre esse ponto de vista. Mesmo assim, e consciente das dificuldades, Venturi,

9 Sobre cinema nazista ver a tese de doutoramento de Luiz Nazário Imaginários de destruição - O papel da

Imagem na preparação do Holocausto. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1994. E toda sua produção sobre

totalitarismos. 10 Disponível em http://revistaquem.globo.com/Quem/0,6993,EQG946729-3428,00.html

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por outro lado, afirmava que a sociedade brasileira estava mais preparada para refletir e fazer

uma revisão sobre os episódios luta armada, mas nesse caso o que se percebe é exatamente o

contrário. Depois que o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Direitos Humanos, que

entre outras coisas acena com a possibilidade de investigação de casos de tortura (crime

imprescritível) praticados pelos militares durante o regime militar, o atual ministro da Defesa

e os comandantes das Três Armas ameaçaram pedir demissão dos seus respectivos cargos

alegando revanchismo. Noutras palavras, para os militares, o passado incomoda muito, as

“memórias reveladas” 11

também, e é melhor deixá-lo como está para evitar embaraços no

presente. Nada de revisão.12

Vários procedimentos serão tomados na análise da obra cinematográfica. A crítica

analítica de uma obra cinematográfica de ficção deve se o mais amplo possível, reunindo

várias possibilidades de investigação como perceber a sociedade que a produz, a relação entre

autor, filme e sociedade. Também a história da produção do próprio filme (as várias versões

que teve as mudanças do roteiro, as recepções da crítica e do público...). As operações de

análises derivam de diferentes metodologias (história, literatura, psicanálise, análise da

decupagem, da filmagem). A análise de cada filme procede da experimentação de cada uma

destas aproximações, de sua aplicação ao conteúdo aparente de cada substancia do filme

(imagem, música, diálogos etc.).13

Nessa perspectiva, a análise do filme também deve ser realizada apontando eventuais

omissões, anacronismos e informações erradas veiculadas. Além disso, a perspectiva de

análise deve ir além, detectando o discurso que a obra constrói sobre a sociedade na qual se

insere, revelando suas incertezas, ambigüidades e até problemáticas nela inseridas.

Esse artigo se propõe a analisar o filme Cabra-Cega destacando os principais aspectos

do fenômeno da luta armada retratado na película, fazendo um diálogo como a bibliografia

historiográfica sobre esse período da história brasileira: como e por que surgiu? Que classes

sociais engrossaram suas fileiras? Quem apoiou os grupos? Quais eram os principais grupos e

os principais líderes? Como agiam? Como a sociedade via os grupos? Como o governo reagia

11 Existe um projeto também do Governo Federal chamado Memórias Reveladas que objetiva em longo prazo a abertura dos arquivos do regime militar que também causa muito incômodo no setor militar brasileiro. 12 Sobre essa polemica, ver carta aberta de Sílvio Tendler a Nelson Jobim, atual ministro da defesa, e também

carta aberta de Alípio Freire à Paulo Vannuchi, atual secretário especial dos Direitos Humanos, publicadas no

endereço eletrônico: www.cartamaior.com.br 13 NAPOLITANO, Marcos.A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise

comparada de Amistad e Danton e MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc

Ferro.IN: CAPELATO, Maria Helena (ET AL): História e cinema. São Paulo: Alameda editorial, 2007.

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às ações? Como o diretor dialoga com obras historiográficas sobre o tema? Como foi

elaborado o processo de construção da história? Quais as teses centrais do diretor? Como o a

luta armada foi representada nas telas?

A PESQUISA E A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HISTÓRICA EM CABRA-CEGA

No artigo “O cinema e o conhecimento da história”, Cristiane Nova polemiza dizendo

que “não é absurdo considerar que o cineasta, ao realizar um filme histórico, assume a posição

de historiador, mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do trabalho

historiográfico”.14

Como a maioria dos diretores que produzem uma película de temática

histórica, Toni Venturi também realizou muita pesquisa para compor a obra Cabra-Cega.

Nesse caso específico, há um complicador, já que o filme é de ficção. Dentro dessa

problemática, ele faz uma reflexão salutar no livro Cabra-Cega, O caminho do filme: do

roteiro de Di Moretti às telas:

Como construir uma mise-en-scene “verdadeira” quando é tudo mentira? Como

fazer que sua representação tenha verossimilhança e toque as pessoas se tudo

(cenário, situação, época) é falso e de mentirinha? Como fazer um filme sobre a luta

armada, que deixou tantas seqüelas e dor a tantas famílias, digno e autentico? São

questões profundas, que estiveram sempre no âmago de minhas preocupações e

meus medos15

A busca para se fazer um filme fidedigno é o principal objetivo do diretor, mesmo

sabendo que a realidade em cinema, não existe. Isso se explica pela busca de uma estética

naturalista, tão bem consolidada em Hollywood.

Duas figuras históricas foram fundamentais na composição das características da

personagem Tiago: Luis Carlos Prestes16

e Carlos Eugenio Paz17

. Venturi e Moretti já tinham

14 NOVA, Cristiane. O cinema e o conhecimento da história. In Revista O Olho da História, nº 1 Salvador, 1997/

Este artigo encontra-se digitalizado no seguinte endereço: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/o3cris.html 15 MORETTI, Di. Cabra-Cega: do roteiro de Di Moretti às telas/ uma análise cena a cena de Toni Venturi e

Ricardo Kauffman. São Paulo: imprensa oficial do Estado de São Paulo: Cultura- fundação padre Anchieta,

2005, pg. 10 (coleção aplauso. Série Cinema Brasil/ Coordenador Rubens Ewald Filho) 16 Luis Carlos prestes é um ícone da esquerda latino-americana. Sua luta em prol da implantação de um regime

social mais justo e igualitário no Brasil começa ainda na década de 1920, com a coluna que teve seu nome, se

afilia ao PCB, torna-se senador e posteriormente secretário Geral do Partido. Morreu em 1990. 17 Carlos Eugenio Paz participou intensamente da luta armada no Brasil entre 1966 e 1973. Aos 17 anos

integrou-se à Ação Libertadora Nacional (ALN) e em pouco tempo era um de seus dirigentes. Poucos militantes

participaram de tantas ações armadas naquele período como Clemente, codinome de Carlos Eugênio. Ao tornar-

se um dos homens mais procurados do país, foi obrigado a exilar-se na França, em 1973. Lá viveu até 1981,

trabalhando como músico de jazz. Jornalista, escreveu alguns livros sobre a Luta Armada na Ditadura Militar,

inclusive Viagem à Luta Armada, editada em 1997 pela Civilização Brasileira.

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10

produzidos juntos o premiadíssimo documentário O Velho, a história de Luis Carlos Prestes,

que mostra toda a trajetória política do Cavaleiro da Esperança. O documentário reúne 70

anos de imagens da História do Brasil, com depoimentos de jornalistas, familiares, ex-

membros do PCB. Assim, esse trabalho anterior afetou na confecção de Cabra, e mais

especificamente na configuração da personagem de Tiago:

o documentário O Velho é uma narrativa documental sobre um ícone da esquerda latino-americana. A luta de Prestes, durante 70 anos da história do Brasil, foi sempre

marcada por sua tenacidade, teimosia, determinação, características que também me

serviram para delinear a psique do personagem de Thiago, o protagonista de Cabra-

Cega.18

Toni Venturi tem uma relação pessoal constante com Carlos Eugenio Paz, inclusive

consultando-o durante a produção do filme. Outro consultor que colaborou com informações

sobre a Luta Armada foi Alípio Freire, ex-militante que foi preso e torturado nos anos de

chumbo, foi muito útil na troca de ponderações de até onde a ficção poderia ir sem macular ou

transgredir os fatos daquela época.

Outra fonte muito útil na construção do roteiro do filme foi o documentário No olho

do furacão, de Renato Tapajós e do próprio Toni Venturi (2003), que contem 11 depoimentos

de ex-combatentes da luta armada. Pensando no conjunto de toda obra de Venturi, em O

velho, ele abordou muito panoramicamente a ditadura militar. Assim, fazia parte de seus

planos voltar a essa temática. Em parceria com Tapajós, ele confeccionou No Olho do

Furacão. Para completar o ciclo, dirigiu Cabra-Cega.

Todo esse processo de criação de uma reconstituição histórica mais próxima do real é

relevante na construção do filme, e também na análise da relação Cinema/História. É o que

Michèle Lagny chama de “signo de autenticidade”.19

Sendo assim, os cartazes espalhados

pelos cenários, os jornais lidos pelos personagens (Tiago faz um recorte em um jornal com a

foto de Médici, e com a manchete de lançamento do disco de John Lennon, Imagine), os

livros nas prateleiras, as imagens na televisão assistidas pelos figurantes, enfim, o cenário de

um modo geral, é construído para trazer ao espectador essa sensação de verossimilhança da

obra com o período nela retratado.

Mais um exemplo dessa busca pela verossimilhança está na trilha sonora do filme.

Capitaneada por Fernanda Porto, as músicas são todas de época, com clássicos como Roda

18 MORETTI, Di, 2005. pg. 15-16 19 LAGNY, Michèle. O cinema como fonte de história. IN: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto;

FRIEGELSON, Kristian (organizadores). Cinematografo, um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São

Paulo: Ed. da UNESP, 2009.

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Viva e Construção (Chico Buarque), porém com nova roupagem, e Eu Quero é Botar Meu

Bloco na Rua (Sérgio Sampaio). Já na composição ficcional do Grupo de Ação, agrupamento

político-militar na qual Tiago era militante, Venturi e Moretti se inspiraram, acima de tudo na

ALN e da Ala Vermelha20

, grupos que fizeram parte os dois consultores do filme, Alípio

Freire e Carlos Eugenio Paz.

O CINEMA NA HISTÓRIA E A HISTÓRIA NO CINEMA: CABRA-CEGA E A

REPRESENTAÇÃO HISTÓRICA

O filme Cabra-Cega foi uma das produções mais consagradas de 2005, vencendo

vários festivais de Cinema, inclusive o Festival de Brasília, um dos mais tradicionais do país.

Dirigido e produzido por Toni Venturi21

, diretor do documentário O Velho, a História de Luis

Carlos Prestes, e com o roteiro de Di Moretti22

, o filme aborda a história de Tiago (Leonardo

Medeiros), um guerrilheiro que é ferido em combate no ano de 1971 na cidade de São Paulo.

A organização clandestina à qual está filiado apresenta-se debilitada no enredo do filme,

inclusive a ponto de discutir o abandono da luta armada como ação política, já que eles

propunham a revolução armada para derrubar os militares no poder e implantar um regime

social mais justo e democrático.

Assim, Tiago é confinado no apartamento de Pedro (Michel Berecovitch), um

estudante de arquitetura que leva uma vida mais dedicada aos estudos. Pedro é um militante

de esquerda que não está envolvido diretamente nas ações armadas, apenas cedeu o

apartamento para Tiago se recuperar fisicamente. Lá, Tiago é assistido pela enfermeira Rosa

(Débora Duboc), uma jovem filha de um ex-militante operário morto em ação.

Na apresentação do filme é exibido um clipe com cenas em preto e branco mostrando

as passeatas e manifestações estudantis ocorridas nos anos 67-68. Os estudantes questionam a

parceria feita pelo o MEC (Ministério da Educação e Cultura) com o United States Aid for

20 A ALN (Ação Libertadora Nacional), cujo líder principal foi o ex-militante comunista Carlos Marighella, e a

Ala Vermelha se inserem no amontoado se siglas que surgiram após o golpe de 1964. Em anexo, segue uma

tabela comparativa com os principais grupos político-militares do período, enfocando as principais

características, os principais líderes e os objetivos. 21 Filmografia de Toni Venturi: O Velho, a história de Luis Carlos Prestes,(1997); Latitude Zero,(2002); No olho

do furacão, (2003); Cabra-Cega (2005); Dia de Festa (2006); Atualmente trabalha no filme (Estamos Juntos) 22 Parcerias entre Di Moretti e Venturi: O Velho, a história de Luis Carlos Prestes,(1997); Latitude Zero,(2002);

Cabra-Cega (2005);

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Development (USAID)23

, enquanto vão às ruas contra o regime militar. A última cena desse

clipe mostra as imagens do guerrilheiro revolucionário Ernesto “Che” Guevara morto na

Bolívia. Essas cenas de material de arquivo não estavam previstas no roteiro, sendo

incorporadas após a primeira exibição fechada para colaboradores do filme. Percebeu-se a

necessidade de incluir na obra uma contextualização histórica. Venturi optou, então por

introduzir um conteúdo imagético e documental sem didatismo. Até mesmo a utilização de

um letreiro com datas foi descartada. As imagens da apresentação aparecem na tela sob a

música Saveiros cuja autoria é de Nelson Motta e Dory Caymmi, com a qual Elis Regina

ganhou o Festival Internacional da Canção de 1966, interpretada por Fernanda Porto, em nova

versão feita para o filme.

No início da década de 1960, o Brasil passava por um período de esperanças no seio

da luta política. Era um período de intensa participação política das massas, instigadas,

sobretudo, pela ação “politizante” dos jovens estudantes (secundaristas e universitários) e

pelos principais movimentos culturais do período (Cinema Novo, CPC’s da UNE, Teatro

Arena e Oficina, etc.). A esquerda política estava no poder, após João Goulart, então vice-

presidente da República, assumir o poder depois da renúncia de Janio Quadros, e o PCB

(Partido Comunista Brasileiro) vivia um período próspero de atuação.

Na noite de 31 de março de 1964 os militares com o apoio dos conservadores

brasileiros e do governo americano tomam o poder. Desde o segundo período em que Getúlio

Vargas foi presidente (1951-1954), os militares já conspiravam para tomar o poder. Na

verdade, esse foi um dos motivos do suicídio de Vargas. Além disso, havia uma imprensa que

golpeava Jango nos noticiários, além da ação da Igreja Católica contra o presidente,

manifestada na Marcha da Família com Deus pela liberdade.

Mesmo com essa atmosfera golpista, a esquerda foi surpreendida, e mais precisamente

o PCB. O secretário geral do partido, e já na época lendário, Luis Carlos Prestes dizia

abertamente que as forças armadas brasileiras tinham um caráter democrático, e que jamais

conspirariam contra o governo institucional.24

Outro fator que pode ter contribuído para essa

23 Era uma parceria entre o MEC e a USAID (United States Aid for development: Agencia dos E.U.A para o

desenvolvimento internacional) que visava a reforma universitária nos moldes norte-americanos, muito criticada

pela UNE, que mesmo na ilegalidade influenciava o movimento estudantil, e também pela esquerda , que

denunciavam o acordo como uma infiltração imperialista na educação nacional. 24 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. 2. Ed. São Paulo: Ática, 1987.

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leniência frente ao perigo golpista pode ter sido a aprovação do governo de Jango, no mês de

março de 1964, com mais de 65% pelo instituto IBOPE.25

Decepcionados com a reação do PCB frente ao golpe vão surgir novas organizações

políticas que contestarão a apatia política do partido, e que além disso, irão questionar a idéia

de que a revolução no país virá através do caminho pacífico. Assim, optarão pelos métodos

revolucionários da luta armada, em sua maioria inspirados nas experiências cubanas e

chinesas, para se chegar à revolução brasileira. A maioria dos militantes que engrossaram as

fileiras dessas organizações político-militares eram membros ativos do PCB.

Todos esses agrupamentos são conhecidos historicamente como Nova Esquerda, e

entre seus objetivo estão a crítica ácida ao PCB; o abandono do modelo leninista de

organização, concretizados nos partidos comunistas26

; o método de ações armadas como

caminho para a revolução. Muitas ações desses agrupamentos ganharam o noticiário nacional,

como o seqüestro do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, coordenados pela

ALN e pela DI-GB (Dissidência da Guanabara), a expropriação do “cofre do Ademar” (assim

conhecida a ação que raptou o cofre do ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros,

efetivado pelo grupo de Lamarca, VAR-Palmares), a Guerrilha do Araguaia, o roubo de armas

nos quartéis do exército, entre outros. Essas ações objetivavam despertar o povo brasileiro

para a luta revolucionária, e também arrecadar fundos para manter a dispendiosa guerrilha.

Depois das manifestações estudantis e das passeatas que sacudiam principalmente o

Rio de Janeiro e São Paulo no período 64/68, a ditadura militar encrudesce ainda mais. O

governo Médici (1969-1974) é considerado por muitos como o mais sanguinário e cruel dos

ditadores do regime militar. Thomas Skidmore denominou-o de “a face autoritária” do regime

de exceção.27

Ao tomar posse em 30 de Outubro de 1969, Médici prometeu devolver o País à

plenitude do regime democrático. Mas o que se viu foi totalmente o contrário. Já nas

nomeações dos principais ministérios, Médici coloca nas pastas justamente os signatários do

AI-5. Edita a Lei de Imprensa para censurar ainda mais os meios de comunicação. Cria os

famigerados DOI-CODI’s (Departamento de Operações Internas- Centro de Operações para

Defesa Interna). No seu governo, a tortura foi institucionalizada.

25 SEVERIANO, Mylton (editor). Coleções Caros Amigos: A ditadura militar no Brasil. São Paulo: Casa

Amarela, 2007. pg. 29 26 Para essas novas organizações, submeter suas estratégias de atuação ao comando de um partido político formal

seria incorrer no mesmo erro do PCB , por isso o abandono ao modelo leninista de organização 27 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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É nesse contexto de repressão que em setembro de 1971 o personagem Tiago e seu

Grupo de Ação são surpreendidos pelos militares, entrando em conflito. Dora (Odara

Carvalho), militante do Grupo de Ação, é presa, enquanto Tiago é ferido. Mesmo ferido, ele

ainda tenta salvar Dora dos militares, mas Mateus chega para resgatá-lo e impedir que

também seja preso.

O apartamento onde Tiago fica confinado faz parte da trama e do drama do

personagem. Para um guerrilheiro que precisava “fazer a Revolução”, estar naquelas

condições não era nada animador. O tédio, a solidão deixava-lhe totalmente perturbado. A

todo o momento, as câmeras mostram o relógio, que teima avançar no tempo. A rachadura no

teto também é enfocada com intensidade. Tiago olha para ela muitas vezes. O destaque é

dado porque este elemento será usado, no decorrer da história, como medida de tempo

atrelada ao desenvolvimento dramático do protagonista confinado e à lógica interna do filme.

Trata-se de uma licença poética que revela o recrudescimento do ambiente em torno do

personagem.

Essa escolha do diretor Toni Venturi de concentrar as cenas no apartamento,

mostrando as reações de Tiago, seja diante do toque de uma campainha ou telefone, ou com a

chegada de alguém a casa, difere da forma com que boa parte das produções brasileiras

representou à temática. Enquanto que Lamarca (1994) Zuzu Angel (2005) e Batismo de

Sangue (2006) optaram por enfocar as ações externas, com intensas movimentações, Cabra-

Cega concentra seu foco no drama intimista vivido pelo guerrilheiro Tiago confinado no

apartamento. Guardadas as devidas proporções, a tortura psicológica de Tiago na clausura é

análoga à tortura submetida aos companheiros guerrilheiros pegos pelo regime repressor

policial. E sobre a tortura sentida na pele pelos inúmeros mortos e desaparecidos no auge da

repressão, cabe aqui levantar uma ausência significativa em relação a Cabra-Cega; quase

ausência de cenas de tortura física.

É fato que os primeiros anos da década de 1970 foram os mais intensos nas práticas da

tortura deliberada pelos órgãos repressor. Também é fato que a maioria dos filmes já citados

sobre essa temática abordam a questão da tortura como elemento primordial para se entender

esse contexto específico. No entanto, como já referi acima, Cabra-Cega mostra apenas uma

companheira de Tiago do Grupo de Ação que foi capturada no tiroteio entre o grupo e os

militares sendo torturada. A opção de Venturi é realmente substituir a tortura física insana

sofrida pelos militantes de esquerda, pela tortura psicológica, paranóica, da clausura do

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esconderijo. Essa cena de tortura da guerrilheira Dora causou surpresa para alguns estudantes

de comunicação, entre 18 e 22 anos, numa exibição-teste do filme, pois os estudantes não

tinham muita informação sobre a tortura28

. Por conta disso, Venturi sentiu a necessidade de

ampliar a preocupação com a parcela desse público que tem pouca idéia do que se passou

durante aqueles anos, acrescentando mais informações sobre a tortura. Mas como se vê na

montagem final, se comparando com outros filmes sobre luta armada, as cenas de tortura são

escassas. Interessante notar que essa cena de tortura tem apenas uma frase dita pelo oficial

interpretado pelo ator Renato Rorghi que é: “vai parir eletricidade!”. Essa cena foi uma

homenagem de Venturi a Dulce Maia, uma das ex-guerrilheiras que relataram suas histórias

no documentário No olho do furacão, e a primeira mulher a ser torturada pela ditadura

brasileira.

Curiosamente, a ênfase dada às cenas no confinamento é motivada boa parte por conta

do baixo orçamento que a produção conseguiu captar para realização da obra. No roteiro

original, estavam programadas mais cenas externas do que as que chegaram as salas de

cinema. No início do filme, por exemplo, a chegada de Tiago ao apartamento se daria após

uma perseguição policial, oriundas de uma blitz para fiscalizar as ruas de São Paulo. No

entanto, essas cenas foram eliminadas pouco antes das filmagens. Toni Venturi e Ricardo

Kauffmam explicam o processo:

Filmar a perseguição era um forte desejo da direção. Muita energia foi empreendida

neste sentido, tanto que foram feitos vários preparativos. A equipe chegou a elaborar

o storyboard das cenas e fez pesquisa de locação completa. Cabra-Cega é um filme

de época, passado na São Paulo do início dos anos 70, o que amplia

significativamente as dificuldades das gravações externas. [...] Esse tipo de

seqüência é raridade no audiovisual brasileiro. A demanda técnica implicada expõe

um variado leque de carências que as nossas produções sempre enfrentaram- da falta de equipamentos à de pessoal especializado, tudo agravado pela intrínseca ausência

de tradição e experiência no ramo. A estrutura ainda deficiente no Brasil para a

realização de cenas deste tipo é o motivo da retirada da seqüência inicial do filme29.

Só sabemos como Tiago foi parar no apartamento de Pedro, com os flashbacks usados

pelo diretor, explicando a ação repressora policial que capturou a militante da organização

Dora. Isso por que o filme já se inicia com Rosa preparando o apartamento para a chegada de

Tiago.

28

MORETTI, Di, 2005. pg. 116 29 MORETTI, Di, 2005. pg. 10.

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Tiago tinha uma personalidade difícil. Ríspido, rígido, quase beirando a antipatia,

tinha uma postura muito dura, e mesmo com as pessoas próximas a ele, não mostrava ternura.

No primeiro grande bloco do filme, ele se fecha nesse mundo, isolado, introspectivo. Sua

mente esta povoada com as lembranças de fogo. Quase não falava com Rosa e Pedro. Essa

postura se revelava também em suas posições revolucionárias que eram inegociáveis. Aos

poucos ele vai sendo seduzido pelo mundo externo. No segundo bloco, ele vai se soltando,

deixando o mau humor de lado, começando a observar as coisas a sua volta, inclusive vai se

abrindo com Rosa. Depois de manter um breve contato com dona Nenê, Tiago se abre a um

romance com Rosa e inicia um processo de humanização que o levará a recuperar a ternura.

Porém se a solidez de sua personalidade rígida e difícil vai se desmanchando, a sua fé na luta

armada se robustece, inclusive a ponto de questionar todas as reorientações do Grupo de

Ação.

Tiago e Mateus eram membros ativos do Grupo de Ação. Os agrupamentos político-

militares durante os anos 70/71 estavam passando por uma situação muito grave que

ameaçava sua extinção. Por um lado a repressão policial estava cada vez mais especializada e

coordenada, sobretudo com a sistematização dos órgãos de informação como os DOI-CODI’s,

o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), a OBAN (Operação

Bandeirantes), CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), dentre outros. Por outro,

havia a luta interna em cada uma dessas organizações, que discutia a possibilidade do

abandono da luta armada por outra estratégia de luta.

O Grupo de Ação estava nessa situação. Depois de perder vários quadros na ação

revolucionária armada, os dirigentes debatiam uma nova orientação. Entretanto, Tiago não

aceitava o abandono das ações, e teimava em continuar mesmo fundando outro agrupamento

armado ou se juntando às outras ainda existentes.

Essa nova orientação é fruto direto da repressão acima citada, mas também motivada

pela falta de apoio das massas frente aos agrupamentos armados. Hoje, boa parte dos

militantes combatentes que pegaram em armas faz autocrítica dizendo que o que mais

contribuiu para a derrota da luta armada foi exatamente o quase nulo apoio popular. A cena

em que Mateus se encontra com Rosa no Cinema foi criada para fazer uma crítica simbólica

ao distanciamento que a luta armada gerava na população. No cinema estava sendo exibido o

filme Betão Ronca-Ferro de Mazzaropi, ou seja, um filme popular que divertia boa parte da

população alheia ao processo revolucionário. Por sua vez, a guerrilha encarnada por Mateus e

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Rosa, que representava a libertação nacional das massas, não atraía a participação da mesma.

A cena expõe esta contradição da luta armada no Brasil. Outro trecho dessa mesma cena

mostra na tela do cinema o matuto sentindo mau cheiro no ar e desconfia que o odor venha do

sapato do “doutor” ao seu lado. Para Toni Venturi “o país fedia”.30

Uma análise dos documentos políticos dessas organizações políticas é feito pelo

historiador, e na época militante de esquerda, Daniel Aarão Reis em parceria com Jair Ferreira

Sá. O livro Imagens da Revolução é uma importante coletânea desses documentos, que foi

publicado em 1985, e permite um contato direto com os documentos produzidos pelos grupos,

o que possibilita verificar as divergências de seus projetos políticos31

. Os grupos clandestinos

pesquisados pelos autores são fundados, organizados e, muitos deles, extintos, entre os anos

1961/71. A luta armada foi brutalmente reprimida, e as organizações precisavam mudar de

estratégia:

A destruição de mais esta tentativa (a Guerrilha do Araguaia) fortaleceria a

tendência esboçada, já em 1970, pelos primeiros documentos autocríticos, que, depois de uma fase de transição prolongada até 1973, se afirmariam reconhecendo

novas realidades, propondo novos caminhos, inaugurando nova fase, caracterizada

pela busca de formas legais de luta e pela admissão da situação de defensiva em que

se encontravam o movimento popular e as organizações e partidos de esquerda do

Brasil.32

Uma das principais cenas do filme mostra uma indagação oportuna sobre essa questão.

Tiago e Rosa estão no terraço do prédio olhando para a imensidão de São Paulo, quando

Tiago pergunta: Será que alguém aí sabe da nossa luta? O próprio Venturi comenta essa cena:

o personagem Tiago e o próprio filme vivem nesta cena o seu clímax. No roteiro não

há nenhuma descrição detalhada deste momento. A equipe viveu na pele a sensação

de liberdade, já que havia permanecido fechada nas filmagens do apartamento. O

alívio experimentado ao se chegar num espaço aberto, retratado nesta cena, se

reforçou pelo sentimento real que permeou o trabalho da dupla de atores, diretos e

diretor de fotografia. [...] A música escolhida, Eu Qquero é Botar o Meu Bloco na

Rua, se Sérgio Sampaio, foi uma sugestão do consultor informal do filme Carlos Eugenio Paz- ex-comandante da ALN, ouvido no documentário No Olho do

Furacão. Ele contou ao diretor que vibrava com esse hit da época em seu fusca

quando seguia em missão da organização, naqueles tempos. Esta é uma canção que

se conecta aos sentimentos da juventude rebelde dos anos de chumbo33.

30 MORETI, Di, 2005. Pg. 211 31 REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ,Jair Ferreira de (orgs.). Imagens da Revolução. Documentos políticos das

organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971.2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 32 Idem. Ibidem. Pg. 19 33 MORETTI, Di, 2005. Pg. 224

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Outra cena de muito impacto e de significação para perceber a idéia central do filme é

a seqüência que informa a morte do Capitão Lamarca. Tiago está no apartamento assistindo à

televisão quando um plantão do repórter Esso noticia:

Cai o último líder do terror... Carlos Lamarca foi morto em Ipupiara, no interior da

Bahia. Aos 34 anos, o ex-capitão, desertor do Exército brasileiro, transformou-se no

inimigo número 1 da nossa democracia. Autor de assaltos, seqüestros e assassinatos,

o terrorista é o líder da VPR, Vanguarda Popular Revolucionária.34

Em seguida, frente ao momento de impacto Tiago se expões desesperado à janela do

aparelho. O close da câmara fixa nos olhos tensos de Tiago. O teto parece que vai desabar. O

seu mundo, esse desaba, pois Lamarca era uma referencia para a esquerda armada.

Lamarca era uma das grandes lideranças armadas que o Brasil dispunha. Tiago, assim

como tantos outros militantes, tinha em Lamarca um exemplo de revolucionário a ser seguido.

Ex-Capitão do Exército brasileiro deixou o lado da repressão e se juntou aos milhares de

militantes na causa contra a Ditadura. Ao sair do exército, levou consigo armamentos que foi

utilizado depois contra o próprio exército em ações armadas. Junto com o sargento Darcy

Rodrigues, integra a VPR. Em julho 1969, a VPR e o Comando de Libertação Nacional

(COLINA) se fundem e forma a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-

Palmares). Entretanto, divergências envolvendo questões referentes à concepção da

combinação entre luta armada e lutas sociais, e a estratégia revolucionária, levariam à

reconstituição da VPR.35

O nome de Lamarca vai ficando conhecido no Brasil todo. Os militantes de esquerda

tinham uma profunda admiração por ele, e pela VPR. Daniel Aarão e Jair Ferreira afirmam

que:

A VPR tornar-se-ia conhecida por uma série de ações de caráter espetacular. Em 1969: expropriação de armas no quartel do 49° Regimento de Infantaria de São

Paulo, quando o capitão Lamarca abandonaria o exército; expropriação da

“caixinha” do ex- governador Ademar de Barros no valor de US$ 2,5 milhões. Em

1970: seqüestros do cônsul japonês em são Paulo (março) e dos embaixadores

alemão (com a ALN) e suíço (junho e dezembro), trocados pelas vidas de 115

militantes presos; rompimento do cerco ao campo de treinamento guerrilheiro da

VPR no Vale do Ribeira36

34 Transcrição de uma cena do filme em análise 35 Toda a discussão sobre os rumos do VAR-Palmares e ressurgimento da VPR foi debatida em um congresso

que durou 44 dias. Emiliano José e Oldack Miranda escreveram uma biografia que ate hoje é referencia sobre a

vida do Capitão da Guerrilha. Ver: JOSÉ, Emiliano e MIRANDA, Oldack. Lamarca, o Capitão da Guerrilha.

São Paulo: Global editora, 16ª Ed. 2004 36 REIS FILHO, 2006. Pg. 84

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Assim como Lamarca, Tiago era renitente em relação à guerrilha. Lamarca sabia que a

repressão estava próximo dele. Foi lhe proposta, inclusive, que saísse do país para repensar as

estratégias mais ele não acata as ordens. Tiago também insiste renitente na postura de

guerrilheiro.

A cena que retrata a morte de Mateus também é muito significativa. Tiago precisava

se encontrar com Mateus em um ponto na Praça Ramos, centro de São Paulo. No entanto,

houve muita dificuldade para filmar essa cena. Então Venturi optou por incluir novamente

cenas de arquivo. Tiago passa pela escadaria do Bexiga e pelo jardim do Teatro Municipal

com a música Construção, como fundo musical, versão de Fernanda Porto para o filme. A

nova roupagem do clássico de Chico Buarque é tão ritmada que a direção sentiu a necessidade

de aumentar a quantidade de imagens na seqüência para combiná-la com a batida da canção.

A tarefa de se rodar mais cenas do personagem caminhando nas ruas esbarrou na dificuldade

de encontrar locações em São Paulo que mantiveram suas características. Assim, Venturi

optou por trazer uma linguagem documental para este trecho do filme. As cenas de

manifestações e confrontos com a polícia foram inseridas para dar uma impressão de que elas

estavam passando pela cabeça de Tiago naquele momento. Aqui se percebe a justaposição de

documentário e ficção que marcam a obra de Venturi. Emotivamente, para Tiago, nada

poderia ser pior do que ver um de seus inspiradores morto em pleno centro de São Paulo.

Durante toda a película, Venturi defende sua tese: enquanto a esquerda armada no

auge dos anos de chumbo repensa a luta armada, Tiago reafirma sua importância. Desde a

apresentação do início do filme que termina com a imagem da morte de Ernesto “Che”

Guevara, o diretor já quer mostrar a utopia das armas. Che era uma referência para toda

esquerda revolucionária. Mostrá-lo morto no início do filme já direciona uma impressão para

o expectador. No momento de intensidade, logo após a morte de Lamarca, Pedro faz uma

crítica direta ao movimento armado, pois todos estão morrendo.

Todos os guerrilheiros mostrados no filme, diretamente nas imagens, ou apenas sendo

citado pelos personagens, morreram em combate: Che, Mário Alves (do PCBR), Carlos

Marighella, Toledo (Joaquim Câmara, da ALN), Carlos Lamarca, Mateus (companheiro de

Thiago), o filho de Dona Nenê (jovem guerrilheiro morto na ditadura franquista na Espanha),

e o pai de Rosa. Diante dessa realidade, era esperado que Thiago, convalescente, mudasse de

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estratégia e abandonasse a guerrilha. Ainda mais, quando se sabe que sua própria organização

já optara por um novo caminho para enfrentar os militares.

O mundo utópico e romântico do revolucionário Tiago estava desmoronando. Os

heróis em que ele se inspirava estavam todos mortos. Entretanto, mesmo diante da realidade

da repressão, tortura, mortes, desaparecimento, e desmembramento dos grupos armados,

Tiago reitera sua crença na Luta Armada arregimentando para sua luta Pedro e Rosa. Os três,

todos com armas nas mãos, na última cena do filme mergulham na imensidão das incertezas.

A cena final vai concretizar a opção de Tiago, e também mostra a transformação do

personagem Pedro que nesse momento abre mão do seu conforto e bem estar individuais, e

opta por contribuir com a causa.

Por fim, em homenagem aos jovens militantes dos grupos armados, Venturi e Moretti

finaliza a película com uma frase poética: “Aos muitos brasileiros, cabras-cegas, que tentaram

atravessar a escuridão para tomar os céus de assalto”

CONCLUSÃO

Diante de tudo isso, cabra-cega simboliza bem essa nova tendência de filmes que após

a retomada do cinema brasileiro optou por efetivar uma leitura cinematográfica da história.

Toni Venturi procurou confeccionou primorosamente a obra, construindo uma história

cativante de um jovem herói, que se humaniza e leva até as últimas conseqüências sua crença

revolucionária na luta contra o regime militar, mesmo sem o apoio do agrupamento a qual

fazia parte. Toda a composição da mise-en-scene comprova a aplicação do diretor em

construir uma representação fiel aos fatos, por isso lançou mão de uma consultoria com

pessoas que participaram diretamente da luta.

Obviamente, não se deve esquecer que o filme tem uma linguagem própria e não é

um tratado historiográfico sobre a problemática a que se propõe abordar. Como a análise do

filme não deve ficar restrita apenas a reconstituição histórica, Cabra-Cega é mais um desse

filmes que une cada vez mais o Cinema com a História, uma relação que é historicamente

nova, mas que vislumbra um futuro cada vez mais dialógico. Sem falar na utilização cada vez

mais ampla de fontes audiovisuais pela historiografia contemporânea, fruto direto dos novos

rumos preconizado pelos Annales.

Além do mais, essa obra cinematográfica pode ser utilizada em sala de aula como

ferramenta pedagógica que auxiliam o professor na prática educacional. Faz-se necessário, no

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21

entanto, que o professor tome os devidos cuidados, e lembrar, acima de tudo que o que se

passa no filme não é a realidade, e sim uma representação.

Segundo Marc Ferro, o filme, seja ele documentário ou ficção, quando analisado em

associação com o mundo que o produziu, pode prestar testemunhos da realidade representada.

Diante disso, Cabra-Cega consegue apresentar a Luta Armada de forma muito construtiva,

lançando um olhar crítico e reflexivo sobre os jovens revolucionários que nos anos de chumbo

do regime militar pegaram em arma para fazer a revolução.

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Fontes:

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