A Diversidade da psicanalise como prática social reconhecida (Christian Ingo Lenz Dunker)

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PSICOTERAPIAS i Psicanálise LACAN A diversidade interna da psicanálise a tornou apta a sobreviver até hoje e fixar-se como prática socialmente reconhecida '► O cenário que se apresentava a Lacan era substancialmente diferente. A partir da metade do século XX havia uma maciça aceitação cultural das práticas psicoterá- picas. Muito além do espaço privado - e liberal —do consultório, elas foram absor- vidas pela psiquiatria e educação, levando ao reconhecimento progressivo de sua im- portância e eficácia. As psicoterapias pas- saram também a ser abordadas no cinema e nas artes, além de serem popularizadas como práticas sociais inscritas em institui- ções jurídicas, hospitalares, entre outras. A psicologia, como disciplina universitária, adquiriu autonomia, e, em diversos lugares do mundo, os atendimentos feitos por psi- cólogos tornaram-se uma prática profissio - nal estabelecida. A psicanálise contribuiu para que esse processo ocorresse. No Brasil, como em muitos países, os cursos de psicologia contrataram psicanalistas para definir a formação e a orientação clínica dos psi- cólogos. Ela era ensinada nos cursos de psiquiatria, como uma espécie de comple- mento à formação do médico que preten- dia se habilitar como psicoterapeuta. Pro- cesso semelhante ocorreu nas faculdades de pedagogia, serviço social e terapia ocu- pacional. Surgiam assim psicoterapias de orientação psicanalítica, psicodinâmica e de base psicanalítica. Ou seja, soluções de compromisso entre a psicanálise e a prática psicoterapêutica, que aludia ao fato de que 12

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A Diversidade interna da psicanalise a tornou apta a sobreviver até hoje e fixar-se como prática social reconhecida (Christian Ingo Lenz Dunker)

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PSICOTERAPIAS i Psicanálise LACAN

A diversidade interna da psicanálise

a tornou apta a sobreviver até hoje

e fixar-se como prática socialmente

reconhecida

'► O cenário que se apresentava a Lacan era substancialm ente diferente. A partir da m etade do século X X havia um a maciça aceitação cultural das práticas psicoterá- picas. M uito além do espaço privado - e liberal — do consultório, elas foram absor- vidas pela psiquiatria e educação, levando ao reconhecim ento progressivo de sua im ­portância e eficácia. As psicoterapias pas­saram tam bém a ser abordadas no cinema e nas artes, além de serem popularizadas como práticas sociais inscritas em institu i­ções jurídicas, hospitalares, entre outras. A psicologia, como disciplina universitária, adquiriu autonom ia, e, em diversos lugares do m undo, os atendim entos feitos por psi­cólogos tornaram -se um a prática profissio­nal estabelecida.

A psicanálise contribuiu para que esse processo ocorresse. N o Brasil, como em m uitos países, os cursos de psicologia contrataram psicanalistas para definir a formação e a orientação clínica dos p si­cólogos. Ela era ensinada nos cursos de psiquiatria, como um a espécie de com ple­m ento à formação do médico que p re ten ­dia se habilitar como psicoterapeuta. P ro ­cesso sem elhante ocorreu nas faculdades de pedagogia, serviço social e terapia ocu- pacional. Surgiam assim psicoterapias de orientação psicanalítica, psicodinâm ica e de base psicanalítica. O u seja, soluções de com prom isso entre a psicanálise e a prática psicoterapêutica, que aludia ao fato de que

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tais profissionais não tinham formação es­pecífica conferida p o r um a instituição de formação de psicanalistas.

N o contexto francês havia um agravante. A psicoterapia era um a prática social popu­lar, que vinha se desenvolvendo desde o sé­culo X IX sob o impulso da laicização dos serviços médicos, consoante com o espírito da Revolução de 1789 e com o Código de Napoleão. O u seja, curadores de alma, hip- notizadores, charlatões (do espanhol charlar, falar) e aconselhadores de todo tipo form a­vam um grupo disperso de práticos aptos a ocupar o espaço social deixado pelos antigos diretores de consciência e pelos confessores formados em doutrinas religiosas.

Psiquiatras e educadores interessados na psicanálise, por sua vez, precisavam de uma versão acessível dela para incrementar suas formas de intervenção e tratam ento. Fi­nalmente, a psicologia nascente exigia um compromisso não apenas pragmático, mas conceituai com a psicanálise, o que veio a se estabelecer de inúm eras maneiras: psicologia do ego, teorias da personalidade, concepções de desenvolvimento, testes e procedimentos diagnósticos projetivos, teorias dinâmicas de grupos e instituições.

Todas essas implicações, derivadas da absorção da psicanálise pela cultura, de­viam ser com binadas com outro fator. D u ­rante a prim eira metade do século X X, quando Lacan se formava psicanalista, a p rópria psicanálise vinha sofrendo trans­

formações, sobretudo depois da: m orte de Freud, em 1939. M últiplas derivações, m o­dificações prático-teóricas e subdivisões no movimento psicanalítico exprimiam tanto a reação dos psicanalistas imigrados no pós- guerra, portan to sujeitos a ambiências aca­dêmicas e práticas distintas de sua origem, quanto os questionam entos internos e as controvérsias em relação ao m odo de ler e de dar continuidade às ideias freudianas. Os impasses relativos ao sentido de seus. textos, as questões sobre a legitimidade no quadro de um sistem a de formação de psicanalis­tas ainda em definição, as tensões teóricas e divergências práticas estavam longe de nos fornecer um quadro sólido, unitário e consensual de como o psicanalista deveria proceder com seu paciente.

Para m uitos, essa diversidade interna da psicanálise é o que a to rnou apta a sobrevi­ver até os dias de hoje e estabelecer-se como um a prática reconhecida socialmente, em ­bora não reduzida a um a profissão contro­lada pelo Estado nem pelas corporações de saúde ou pelas disciplinas universitárias.

DERIVAÇÕES CLINICAS

N a h istória do movimento psicanalítico encontram os três tipos de derivações clíni­cas da experiência inaugurada por Freud. H á aqueles, como Jung, Reich ou Adler, que a p a rtir de revisões teóricas formula-

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ram projetos clínicos independentes e au- tônom os da psicanálise original. R especti- vamente, eles desenvolveram a psicologia analítica, a bioenergética e a psicologia individual — concepções de tra tam en to d e­rivadas da psicanálise, mas bastan te d is­tin tas dela. Existem tam bém outros que, m antendo-se na órbita dos fundam entos do m étodo psicanalítico, inovaram sua téc­nica, seu alcance ou seus objetivos — caso de Ferenczi, Melanie Klein, ou W inn ico tt. Encontram os aqui inúm eras variantes da psicanálise, seus gêneros, suas escolas, suas tradições locais e internacionais.

Finalmente, há os que im portam noções e procedim entos clínicos da psicanálise adaptando-os a outras perspectivas psico- terapêuticas ou contextos de tra tam en to , com ou sem declaração de proveniência. A qui o critério não é o da diversidade in ­terna nem o da autonom ização, mas o da gradualização, ou seja, form as clínicas mais próxim as, combinadas, ou mais d istan tes do lim ite que definiria a psicanálise na sua essência ou do ponto de vista norm ativo. Representam esse tipo de derivação as psi- coterapias de inspiração ou base psicanalí- tica, as aplicações psiquiátricas ou pedagó­gicas e as formações de com prom isso com outros projetos clínicos.

Tem os então três políticas que defini­riam as formas de psicoterapia p rovenien­tes da invenção de Freud: (1) de fronteira fixa , baseada na exclusão-inclusão e na de-

Lacan radicaliza a leitura e a prática de operadores clínicos, dando origem a uma tradição autônoma de transmissão da psicanálisefinição essencialista e norm ativa da psica­nálise; (2) de fronteira interna, fundam en­tada no distanciam ento-aproxim ação com relação ao ideal h istórico ou con tex tual de psicanálise; e (3 ) de fronteira móvel, apo ia­da no deslocam ento, na assim ilação e na com binação de elem entos do que viriam a gradativam ente definir a p rática psicanalí- tica. O s exemplos até aqui tra tados estão organizados no quadro abaixo, lem brando tra tar-se apenas de casos representativos (ver quadro na pág. ao lado).

E ncontram os algum a dificuldade q u an ­do exam inam os a posição de Lacan nesse pequeno m apa da clínica psicanalítica ou dos tipos psicanaliticam ente inspirados. E m prim eiro lugar, ele p ropõe um a revisão teórica radical na form a de ler e p raticar os principais operadores clínicos da psicaná­lise. Isso de fato dá origem a um a tradição au tônom a de transm issão da clín ica, com

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suas regras, associações e genealogias, bem como com as próprias institu ições de fo r­m ação de psicanalistas. O corre que, em vez de caracterizar-se e justificar-se segundo "ou tros princípios", a clínica de Lacan se apresenta como psicanalítica e rigorosa­m ente freudiana. C o n tra a política de fron- teiras fixas, Lacan afirm a que todo e qual­quer tra tam en to dirigido por um psicana­lista é psicanálise. O u seja, ele substitu i o critério norm ativo (sobre a regularidade dos procedim entos) pelo form ativo (acerca de quem se responsabiliza p o r eles).

Em segundo lugar, Lacan inova a clínica tan to no que diz respeito à sua técnica (no- tadam ente o m anejo do tem po e das pa la ­vras em análise) como ao seu alcance (com relação ao tra tam en to seja das psicoses, seja

das perversões), e ainda no que tange aos seus objetivos (tan to em face da proposição radical de um a ética da psicanálise, qu an ­to ao que se refere ao final do tra tam en to ). P o rtan to , a experiência lacaniana pode ser incluída com o um fragm ento adicional no quadro da diversidade das psicanálises. D e novo, porém , encontram os objeções para enquadrar a clínica de Lacan nesse critério.

As inovações técnicas, a idiossincrasia do estilo e as consequências políticas das ideias de L acan determ inaram qúe ele fosse expulso da Associação Psicanalítica In te r­nacional (IPA , sigla em inglês), em 1963. D o po n to de vista teórico, isso rep resen ta­ria um caso-lim ite de passagem da condi­ção de “diversidade no in te rio r do mesmo"' para a situação de "outra coisa que deve ser

DERIVAÇÕES AUTONOMASDESENVOLVIMENTOS

INTERNOS COM . INOVAÇÕES TÉCNICAS

COMBINAÇÕES E COMPROMISSOS

Jung (psicologia analítica) Ferenczi (técnica ativa, neocatarse)

Psicoterapia psicodinâmica

Adler (psicologia individual) Melanie Klein (ludoterapia) Psicoterapia de base psicanalítica

Reich (vegetoterapia, bioenergética, terapias

corporais)

Winnicott (jogo do rabisco, atendimento conforme a

demanda)

Psicodrama de orientação psicanalítica

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excluída". O ra, naquele m om ento Lacan já tin h a contribuído significativamente para form ar um a nova geração francesa de ana­listas, contava 62 anos e era figura conheci­da e respeitada nos círculos psicanalíticos, psiquiátricos e psicológicos, bem como nos circuitos universitários e intelectuais. P o r­tan to , sua descaracterização com o psicana­lista soava apenas como um a m anobra po- lítico-norm ativa, francam ente indefensável segundo parâm etros atuais. Isso, no en tan ­to, criou essa espécie de paradoxo para lo- calizá-lo na origem de mais um a orientação psicanalítica, entre outras.

C o n tra a política das fronteiras in ternas Lacan afirm ou que “o psicanalista não se au to riza senão por si mesmo", assim com o não haveria nenhum ser do analista, como figura positiva de identidade, descendente de um arquipsicanalista originário, pas­sível de ser verificado em alguém . N a sua concepção, o que se transm itiria de psica­nalista a psicanalista, desde Freud, seria um desejo (o desejo de analista), e não um a identificação nem um a form a de ser ou de obedecer (obede-ser).

Essa situação duplamente anômala, um a clínica independente, embora não au tônom a e diversa das outras, mas excluída do conjun­to do ponto de vista normativo, sugere tra- tar-se aqui de um caso do terceiro tipo: um a clínica mais ou menos psicanalítica, um a formação de compromisso. Esse enquadra­mento, no entanto, também não é possível.

H avia po r parte de Lacan um esforço contínuo para fu n d am en tar não apenas a psicanálise, como teoria do inconsciente e das pulsões, m as seu m étodo de tra tam en ­to. U m em penho para d e te rm inar as condi­ções e os lim ites além de um prolongam ento da técnica ou de certas modificações de sua d ou trina teórica, m as de toda e qualquer experiência que se queira psicanalítica. Para

Na clínica lacaniana, a duração da sessão é variável e depende do que é dito e realizado entre os participantes da cena analítica

ele, o psicanalista, m ais que um a pessoa e um a função, tom a parte no p róprio concei­to de inconsciente. D essa m aneira ele con­tribu iu para estabelecer algum a unidade do próprio cam po psicanalítico e prom over um a separação m ais clara d ian te das outras m odalidades de tra tam en to psicológico.

C on tra a política da fronteira móvel L a­can afirm ou que a psicoterapia levava o sujeito de volta ao pior. O u seja, os com ­prom issos e as concessões à m oral da adap­

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tação e da conform idade social, o objetivo de elim inar o m au desem penho psíquico de form a a rein tegrar o sujeito em um fu n ­cionam ento social patológico seriam ideais de cura bastante suspeitos. A objeção aqui é que fronteira móvel acabaria sendo um pretexto para que a ética do desejo, como trágica, fosse diluída em um a norm alização do sujeito e um a o rtoped ia da alma.

Essa ambição de Lacan de fundam entar a ação do psicanalista, tan to do ponto de vista ético, como epistemológico, era ao mesmo tem po um convite à exploração de novas form as de intervenção e à construção de um estilo próprio de cada analista. O u seja, em vez de padronizar a ação, norm atizar a for­mação e burocratizar os procedim entos clí­nicos, ten tou fixar alguns princípios e convi­dar o psicanalista a pensar e problem atizar continuam ente as razões de sua prática. U m exemplo m uito discutido dessa p ro ­

posta é o uso do tem po lógico. Investigando a incidência da tem poralidade nas relações intersubjetivas, Lacan propôs um a espécie de teoria alternativa para pensar as relações do sujeito com o próprio ato do ponto de vis­ta tem poral, a partir da hipótese do incons­ciente. N o processo de construção de certe­zas, decisões e escolhas deparam os sem pre com o outro e consequentem ente com nosso próprio desejo inconsciente. Com o in terpo­lar esse aspecto decisivo da experiência de qualquer sujeito à clínica psicanalítica? A conclusão de Lacan é que o próprio tem po

da sessão e do tratam ento , em seu conjunto, deveria ser ponderado a partir desse aspecto constitutivo dos sujeitos desejantes.

O u seja, nunca se sabe quando um a sessão de psicanálise vai term inar. Sua duração é variável e dependente do que é efetivam ente dito e realizado en tre os p a r­ticipantes da cena analítica. Esse é um bom exemplo de como um fundam ento teorica­m ente simples leva a consequências p rá ti­cas, técnicas e éticas difíceis de enfrentar. N a verdade é bastan te intuitivo que nossa experiência tem poral dependa do tipo de relação na qual estam os inseridos, e, ao con­trário , a form a de nos relacionarm os com o tem po (pressa, atraso, suspensão, indeter- m inação) defina aspectos fundam entais de nosso encontro com o outro . O ra , por qual m otivo essa trivialidade teórica não deveria ser levada em conta na clínica psicanalítica— nessa que é um a experiência radicalm en­te fundam en tada no sujeito?

SOFRIMENTO E MAL-ESTAR

Lacan p rocu rou m ostrar que a psicaná­lise seria capaz de contar com um a psicopa- tologia p rópria , ou seja, que os quadros clí­nicos havia m uito conhecidos pela psiqu ia­tria e pela m edicina da alm a poderiam e deveriam ganhar novas descrições, segundo as condições do m étodo psicanalítico. C om isso conseguiu "despsiquiatrizar" e “desbio-

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logizar" a psicanálise sem que esta deixasse de ser um a clínica, no sentido mais rigoro­so do term o. A eficácia do tra tam en to psi- canalítico se justificava para Lacan no fato evidente, mas frequentem ente esquecido, de que a psicanálise é um a experiência de fala. Se é p o r meio dela que o “tratam ento" age, p ressupõe-se que as transform ações p roduzidas pela fala e a reversibilidade dos sintom as que propicia dependam da e s tru ­tu ra de linguagem destes. D essa m aneira, supõe-se que o sin tom a tenha estru tu ra de m etáfora; o desejo, de m etonímia; o recal­que, de denegação; o sonho, de escrita; e a resistência, de discurso. O sujeito, po r sua vez, estaria situado entre significantes. A psicanálise seria assim a ciência da lingua- gem habitada pelo sujeito.

N a clínica de orientação lacaniana, há diagnóstico psicanalítico, mas ele não deve ser entendido como detecção de um a doen­ça orgânica ou de um desvio m oral, e sim das form as de relação do sujeito com o outro , especificam ente segundo o fenôm e­no descrito po r Freud como transferência. H á um a sem iologia, m as esta não é form a­da por um conjunto de signos estáveis ou p o r um dicionário de sintom as, mas pela relação do sujeito com a p rópria fala, com a linguagem que esta pressupõe e os d iscur­sos que a organizam , bem como com a lín ­gua que lhe é p róp ria e com um . H á ainda um m étodo de intervenção, mas este não é constitu ído por um conjunto de protocolos

técnicos a ser seguidos, mas po r um a rela­ção ética com o desejo, até mesm o por p a r­te do p róp rio analista, que condiciona as in terpre tações e a condução da cura em seu conjunto. P o r fim, Lacan investigou siste­m aticam ente a questão das causas, descar­tou qualquer associação do inconsciente com a irracionalidade e estudou a fundo a regularidade estru tu ra l dos sintom as, das inibições e das angústias.

O u seja, há um a clínica psicanalítica, que, no entanto, não é im portação deform a­da ou m im etizada da médica. O sintom a é o conceito que a define como tal; certas re- gularidades e condições estão envolvidas na produção, por exemplo, de um a conversão histérica, de um a ideia obsessiva ou de uma fobia. H á ainda formas típicas de inibição de pensam ento, de ação ou de emoções, assim como m odalidades e transform ações previ­síveis da angústia, da ansiedade e do pânico.

O sin tom a é, ao m esm o tem po, um a m ensagem e um a prática; extração sim bó­lica de satisfação. E tam bém um a ativida- de de defesa e a expressão de um a fantasia. N essa m edida, é possível reconhecer as es­tru tu ras de linguagem nas quais cada um deles se apresenta, bem como as inibições e angústias; caracterizar m odos de relação com o ou tro que se encarnam em tais estru ­turas; descrever a gênese delas a partir da constituição lógica do sujeito; e, finalm ente, é possível in tervir e transfo rm ar tais apre­sentações sin tom áticas po r meio da palavra

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O sintoma é, ao mesmo tempo, uma

mensagem e uma prática, bem como uma atividade de

defesa e expressão de uma fantasia

e da relação na qual elas se realizam . T ra ­ta-se, po rtan to , de um a clínica autónom a, capaz de oferecer os p róp rio s fundam entos segundo o crivo da razão e em acordo com critérios de cientificidade, justificação e transm issão que lhe são atinen tes.

Esse é justam ente um aspecto problem á­tico em algumas formas de psicoterapia, nas quais a intervenção ju n to ao paciente se en­contra subm etida a um diagnóstico origina­do em outro discurso (psiquiátrico ou moral, por exemplo). Além disso, quando o trabalho psicoterapêutico se dá em outros contextos (jurídico, educacional ou institucional), corre o risco de que seus fins sejam a eles subm eti­dos, de m odo acrítico. Podem os ainda veri­ficar que, em alguns casos, a psicoterapia se reduz a um conjunto de técnicas de aplicação mecânica, sem um m étodo propriam ente ju s­tificado, segundo critérios internos e conso­antes à prática em questão.

C on tra essa política de fronteiras móveis, em term os m etodológicos e clínicos, Lacan desenvolveu um a clínica estru tural, ou seja, um a lógica da ação ao longo do tra tam en to , rigorosam ente congruente com a teo ria e com a ética da psicanálise.

Se o p rim eiro aspecto do projeto laca- n iano é m o stra r que a psicanálise é um a clínica fundada na linguagem, o segundo aspecto do program a clínico lacaniano cor­responde à crítica sistem ática do exercício do poder na situação de tra tam en to . P r i­m eiram ente, ele en tendeu que isso derivava da form a autocrática e subserviente como a form ação de analistas vinha sendo tr a ­tada nos anos 40 e 50, em que candidatos a analistas deviam seguir regulam entos e m estres. O u seja, após anos de obed iên ­cia, essa experiência de dom inação tend ia a se rep roduz ir no in terio r do tra tam en to psicanalítico. M as, além de um a vicissitu­de instituc ional, isso levou Lacan a pensar m ais radicalm ente a vocação hum ana para a servidão vo luntária e alienação — relação que se a tualiza nas form as de sintom as, nos tipos de relação neurótica, perversa ou psi­cótica, e que no fundo definem um a espécie de desconhecim ento sistem ático do sujeito em relação ao seu desejo. Seja na sua im pli­cação nele ou no seu reconhecim ento, seja na sua realização sim bólica, no quadro de um a h is tó ria ou de suas condições de so­cialização, esse sistem a de desconhecim en­to do desejo e de não responsabilização de

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si é o m otor da alienação, p rocedente do que Lacan cham ou de imaginário .

D istinguir a dim ensão im aginária da simbólica na condução do tra tam en to seria assim um prim eiro an tído to para que "a im ­potência em susten tar autenticam ente um a práxis [não se reduza] ao exercício de um p oder". É im portan te salientar o títu lo do texto no qual Lacan coloca essa ideia: “D i- reção da cura e os princíp ios de seu poder" (1958), ou seja, um a declaração d ire ta e p rogram ática de que a reflexão sobre o tra ­tam en to é indissociável de um a abordagem crítica das form as de poder.

A pedagogia ou ortopedia da alma, assim como a direção da consciência, rum o à adap­tação ou ao conformismo, figuram como antim odelos para a psicanálise lacaniana. N esse sentido, Lacan pretendeu orientar o tra tam ento psicanalítico para um a dissolu­ção das condições que o to rnaram possível. O u seja, rum o a um a experiência radical de decomposição da ficção pela qual o psicana­lista se apresenta como m estre soberano do saber inconsciente (função tam bém deno­m inada “sujeito suposto saber"). E isso, por meio da travessia das identificações e ideais e da separação com relação à paixão especí­fica pela qual nos oferecemos como objeto e assim nos tom am os.

Q uanto a essa política de fronteiras internas, em que o psicoterapeuta expande sua ação de influência sobre o paciente, ao m odo de um a colonização por sugestão, se poderia dizer,

0 trabalho da associação livre, a rememoração e a reapropriação das formas de desejar levam à reconstituição simbólica do desejosegundo Lacan, que se trata do próprio an- timodelo da psicanálise. O psicanalista dirige a cura, e não o paciente. Por isso, deve cuidar para que a identificação do analisando com ele seja dissolvida de maneira metódica e que o lugar de mestre, que por vezes o paciente confere ao analista na transferência analítica, seja analisado, passo a passo.

O terceiro aspecto notório do projeto clínico de Lacan refere-se à sua insistência de que o tra tam ento seja um a “aventura da verdade". R ecuperando a noção de expe­riência, como percurso dialét ico e trans- form ativo po r meio do qual um sujeito se encontra e produz as próprias condições de existência, a psicanálise se coloca sim ul­taneam ente como um em preendim ento de descoberta e invenção. O trabalho da as­sociação livre em análise, a rem em oração e a reapropriação das formas de desejar es­tabelecidas na história do sujeito levam a

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uma espécie de reconstituição sim bólica do desejo. A descoberta de certas regularida- des, na gram ática da vida am orosa ou na re ­corrência de certas injunções traum áticas, po r exemplo, p ro d u z increm ento de saber sobre a vida do paciente.

A lição clínica de Lacan começa pelo fato de que esse saber - obtido peio processo de decifração do inconsciente, segundo a escu­ta rigorosa da fala do paciente, com o m enor acréscimo possível de sentido — não cura o sujeito. É fato que isso produz efeitos de es­tabilização narcísica, de redução da angústia e até de rearticulação das relações com a reali­dade e seus laços constitutivos. H á, portanto, um efeito terapêutico decorrente de tal forma de produzir um saber, de refazer um a h is tó ­ria, de recuperar as escolhas de um sujeito se­gundo determinações que lhe escapam.

Lacan, no artigo “Ciência e verdade" (1966), lançou a seguinte pergunta para aqueles que ingressavam na prática clínica: “O que vocês fazem tem o sentido de afir­m ar que a verdade do sofrim ento neurótico é ter a verdade como causa? S im ou não?". O u seja, o sofrim ento tem um a verdade que precisa ser reconhecida talvez porque ele mesmo não passe dessa verdade bloqueada, como um a realização intersubjetiva, um a palavra amordaçada, um a assunção subjetiva ou social de um a experiência inom inada e, portanto , incapaz de ser sim bolizada (social­mente integrada). C ontudo, um a psicanálise não term ina, mas começa nesse ponto.

Para Lacan, a experiência psicanalítica deve ser capaz de inventar um a verdade, de ser um acontecimento de verdade na vida de alguém. O emprego dessa palavra — verdade- tão carregado nesse contexto, deve ser m i­nim am ente esclarecido, pois não se trata de um conteúdo ou conjunto de saberes mais ou m enos confiáveis sobre si mesmo. A psica­nálise, para Lacan, não é um a experiência de autoconhecim ento, pois só se pode apreender propriam ente objetos; conhecer-se a si m es­mo é tom ar-se como objeto, portanto alienar- se — o que é um contrassenso na perspectiva lacaniana. A psicanálise, portanto, tem mais a ver com cuidar de si que conhecer a si.

Para Lacan, um a verdade só pode ser sem idita, e em dada estrutura de ficção, de m odo singular, mas não individual. Ela é m uito mais da ordem do tem po, ou de um acontecim ento local, que um enunciado un i­versalmente verídico ou plausível; m uito mais experiência e formalização de um paradoxo que a aquisição de um a evidência clara e dis­tin ta sobre si mesmo. Portanto, contra um a política de fronteiras fixas, que tornaria a psi- coterapia um a busca dirigida pelo encontro com nossa essência interior, Lacan propõe um a política da dissolução de fronteiras, ba­seada no reconhecimento de que somos seres destituídos de essência, ou que nossa essência é essa falta chamada desejo. Essa aventura da verdade seria apenas um trajeto de separa­ções ou de suspensões de falsas fronteiras, de abandonos progressivos de modos de ser.

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O quarto aspecto que caracteriza a clí- nica de orientação lacaniana diz respeito ao que não pode ser curado, ou seja, ao in tra ­tável em determ inado sujeito. Eis um traço antipsicológico ou antifilosófico m arcante dessa concepção de experiência psicanalíti- ca. O u seja, ela se p ropõe reduzir o sofri- m ento assim com o as psicoterapias. A psi­canálise tam bém se propõe dissolver certos

As pessoas não buscam tratamento

porque sofrem, mas devido ao saber

sobre o próprio sofrimento, que se tornou insuficiente

sintomas, de acordo com as aspirações da clínica baseada em um m étodo que, por sua vez, pode dar conta conceitualm ente de sua eficácia terapêutica. M as, assim como as psicoterapias em geral, não é capaz de aca­bar com o que Freud chamava de m al-estar (Unbehagen). Esse aspecto é m uito im p o r­tante, pois implica reconhecer lim ites para o que podemos p rom eter aos nossos p a ­cientes, aos quais não se pode recrim inar que demandem nada m enos que a felicida­

de. Significa não p rom eter a cura para além do possível. O reconhecim ento do caráter irredutível do m al-estar não é um a fórm ula genérica, aplicável no quadro de um a visão pessim ista ou trágica de m undo. Ele preci­sa ser encontrado em cada sujeito, que de fato o vive de m aneira diferente e única.

N esse ponto , a crítica de Lacan ao pro- je to adap tac ion is ta das psicoterapias refe- re-se ao m odo como as diferentes políticas da cura podem ser levadas a prom eter o im ­possível e com isso desconhecer o real que se exprim e na experiência hum ana: a loucu­ra constitu in te e lim itan te de sua liberdade, sua fin itude expressa pelo envelhecim ento e precariedade do corpo, sua lim itação p e ­las incidências da falta (castração, privação e frustração), sua paixão pelo desconheci­m ento e pela servidão.

T udo se passa com o se no núcleo duro de certos sin tom as, na form a cristalina de determ inadas angústias e, no fundo, no que há de p ior na experiência de alguém, en ­contrássem os algo que precisa ser reconhe­cido ou destinado, mas não elim inado. É o que Freud denom inou pulsão de morte, que com põe um verdadeiro divisor de águas na h istó ria da psicanálise: há os que adm item esse conceito e os que o rejeitam . Lacan, po r sua vez, com preendeu essa noção de várias m aneiras: com o repetição insidiosa que atravessa a vida de alguém ; como fas­cinação neurótica pelo traum a; como lugar de retorno da alucinação; e com o um a es-

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pécie de m olde às avessas para a p rópria se­xualidade do sujeito e eventualm ente para seu m asoquism o. A essa série de fenôm e­nos clínicos e de constatações em to rno da form a como lidam os com certas condições como a finitude, o desam paro e a diferença sexual, Lacan deu o nom e de real.

Assim como a verdade não corresponde muito bem ao saber, o real não se confunde com a realidade. Ele poderia ser definido ju s ­tam ente como aquilo que, fazendo parte da existência, não "entra" na realidade, não cabe nela. Daí as ligações dessa dim ensão psíquica com a criação e a sublimação. E tam bém sua incidência sempre na form a de um im possí­vel que "não cessa de não acontecer" na vida de alguém, o que corresponde aproxim ada­m ente à noção clínica de gozo. N o final de sua vida, Lacan começou a perceber que as ambições clínicas da psicanálise dependiam da forma de considerar o real, bem como da possibilidade e dos limites de tratá-lo pelo simbólico ou pelo im aginário.

ENTRADA EM ANALISE

N em todo paciente que p rocura um analista se transform ará em um analisante. Por isso, desde Freud, antes de se começar um a análise p ropriam en te dita, é feita um a série de encontros, conhecida como tra ta- mento de ensaio ou entrevistas preliminares, cujas funções são diversas. E n tre elas, exa­

m inar a na tu reza e o estado das queixas trazidas pelo paciente, bem como a posição e o saber que o sujeito m antém com relação ao seu sofrim ento, além de favorecer a fala livre de tal m odo que a relação de tran sfe ­rência possa ser desencadeada. Essas en tre ­vistas p relim inares costum am trazer algum alívio àquele que procura um a análise ta n ­to po rque algum as dim ensões do m al-estar encontram nomeação, reduzindo o sen­tim en to de dispersão e confusão, quanto pelo fato de que o discurso interior, com o qual o sujeito se debate, v irtualm ente se m odifica quando encontra um destinatário . É com um as pessoas que dizem não se lem ­b rar de seus sonhos com eçarem a trazê-los para a sessão apenas pelo fato de que, a p a r­tir de então, há alguém disposto a ouvi-los. A oferta cria a dem anda.

O exame da queixa leva inevitavelm ente ao trabalho de recordação: quando aquilo de que o paciente reclama começou, sob quais circunstâncias ficou mais in tenso ou desapareceu; suas teorias e hipóteses sobre a origem ou sua determ inação; as repetições e incidências dessa dificuldade nas pessoas significativas para ele. Esse processo depen­de então de um fato m uito simples. O s in ­divíduos não p rocuram tra tam en to porque sofrem , m as devido ao saber deles sobre seu sofrim ento , que se to rnou insuficiente ou inadequado. É isso que determ ina que o m al-estar, antes visto como decorrente das contingências da vida, da boa ou má sorte

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ou do je ito de ser do p ró p rioquem o cerca, seja agora in su p o rtáv e l.

É por isso que há sempreassociada ao sintom a, por exemplo, "nas-cemos para sofrer", "é preciso

sujeito ou de

um a narrativa

aceitar o quevier”, "cada um deve resolver seus problem as por si mesmo" Esta pode ser induzida por algo exterior ao sujeito, por exemplo: "a es­cola pediu que eu fosse atendido", "o médico recom endou que procurasse um psicanalis­ta" “determ inado parente está m uito preo­cupado comigo" "na nossa família é assim" O u , ainda, está silenciada ou truncada de tal m aneira que nem mesmo o paciente sabe do que se queixar: "está tudo ótimo, não tenho do que me reclamar" "tenho tudo o que sem ­pre sonhei, mas..."

Essas diferentes formas de queixa expri­mem um saber sobre o que vai mal, ou do qual se infere determinado regime de rela­ções do sujeito com a realidade. Por exemplo: "o problem a vem do outro" ou "começa em mim", ou ainda "está em algo que ultrapassa a m im e ao outro". Portanto, durante as entre­vistas prelim inares é preciso tra tar a queixa de tal m aneira que as relações do sujeito com a realidade sejam transformadas. Isso ocorre em função de um erro de perspectiva, estru ­turalm ente determinado no caso da neurose. A realidade em que o sujeito se insere e da qual ele se queixa não é o que procura trans­formar, pois em geral ele já está dem asiada­m ente adaptado a ela. O que ele dem anda é outra coisa, que ela lhe dê mais satisfação,

volte a ser como antes, que o sintom a seja re­movido. Esse é o estado psicoterapêutico da queixa, pois supõe que o sintom a tenha sido produzido sem função, história ou determ i­nação que im plique o próprio sujeito. O sin­tom a pode então ser removido sem prejuízo ou consequência, pois é um excesso sem sen­tido ou serventia.

N o prim eiro m om ento das entrevistas p relim inares, a tarefa é retificar as relações do sujeito com o real. C onsiderem os que o real, na acepção lacaniana, é o im possí­vel de reconhecer em certo regim e de rea­lidade, o p o n to cego que, ao ser excluído, fo rm a um a realidade, conferindo-lhe con­sistência, coerência e unidade. Retificar as relações com a realidade seria assim m os­trar, no caso daquela vida específica, o que o sujeito precisa negar para se constitu ir e se m an ter com o tal. R atificar e retificar são alternativas im portan tes nesse caso. R atifi­car a posição do sujeito d iante da realida­de o rien ta o tra tam en to para a solução de problem as; já retificá-la é convidá-lo a re ­p o r a questão de ou tra form a, A retificação depende de um a recusa calculada po r parte do analista dos term os nos quais o proble- m a-queixa é colocado, de tal m aneira que o paciente vê-se obrigado a a lterar a sua posi­ção, fazendo o problem a evoluir para um a questão, e a queixa, para um sin tom a. Para retificar a posição de realidade é necessário refazer a h is tó ria na qual o sujeito se insere, passando da do sin tom a para a do sujeito.

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Nas entrevistas preliminares é preciso

tratar a queixa de tal modo que as

relações do sujeito com a realidade sejam

transformadasPor exemplo, alguém que ten ta várias ve­zes en trar num a faculdade, estando sem pre prejudicado por infortún ios (perder o h o ­rário, passar o rascunho de form a e rrada ou esquecer a carteira de iden tidade), pode ter sua relação com essa queixa ratificada pelo analista, se ele en tender que é preciso m e­lhorar o foco e a atenção do candidato para que isso não ocorra nas próxim as te n ta ti­vas. O u então ele pode retificá-la, ou seja, levar o sujeito a alterar as relações com a realidade, pergun tando-lhe sobre as razões desejantes que envolvem a escolha dessa carreira ou a execução desse curso.

A questão, po r sua vez, difere do proble­ma porque precisa de um a h is tó ria para se colocar, sendo do tada de certa insistência nas palavras que a representam . E stas são cham adas por Lacan de significantes, e é a escuta deles — não apenas do significado e do sentido — o que caracteriza a psicaná­

lise. O desejo hum ano estaria alienado em significantes que retêm e sim bolizam en­contros significativos de p razer e desprazer, dem andas postas ou suprim idas ao longo da vida, pon to s de inserção de lim ites, re­gras e condições que form am a lei pela qual nos socializam os, sendo suportes para a transm issão de desejos, ideais e expecta­tivas de um a família, g rupo ou cultura, com o em blem as e brasões de um a h istó ria dos desejos de alguém. O que cham am os de posição diante da realidade é, no fundo, certo estado de alienação com relação a tais significantes, que vão aparecendo de m odo insistente, recorrente, e p roduzindo um a cadeia m odificada de incidências quando se passa da queixa ao sin tom a duran te a as­sociação livre, a qual o paciente é convidado a fazer nas entrevistas prelim inares.

D izem os alienação porque esses signifi­cantes aparecem sem pre de um lugar: o O u ­tro, na acepção lacaniana do term o. A lium , quer d izer ou tro , e é ju s tam en te assim que nos relacionam os com o desejo inconscien­te, como se ele viesse de um O u tro (grafado com letra m aiúscula), e não de m im mesm o. Disse isso, mas na verdade não era isso que eu queria dizer (po rtan to , quem o disse?); so­nhei aquilo, mas era só um sonho, nada diz de mim como um ser dotado de razão e vontade autônoma (m as, então, quem sonhou?); f i z determinada coisa, algo que eu mesmo sei ser prejudicial, tolo, ou contrário, uma delibera- ção da minha consciência (então, fez segun­

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do a vontade de quem?); quando o f i z e disse “estava fora de mim mesmo” (e onde você es- tava?). Hm cada um a dessas localizações do inconsciente o sujeito pode se tom ar como coisa, um objeto imaterialmente material ou como pura form a vazia. N esse sentido, d i­zem os que o sujeito está reificado (coisifi- cado), quando tom a a si m esm o com o um objeto e não subjetiva seu desejo.

Se tudo caminha bem, esse processo de ref i cação das relações com o real, que orga­niza a realidade do sujeito, abala seu estado de reificação e suspende sua dem anda de rati­ficação. Essa retificação equivale a um prim ei­ro momento de reconhecimento do desejo e, consequentemente, do inconsciente. O que se verifica então é que esse desejo, tendo um a história, expressando-se em significantes m a­teriais da língua e organizando-se ao m odo de um mito individual, é no fundo desejo do O utro. É assim que a linguagem, a história e a família se apresentam como alteridades que nos constituem como tal, sobredeterm inando nossos anseios. O desejo hum ano é o desejo do O utro; no entanto, nos esquecemos disso ou rejeitamos esse fato. E a verdade negada retorna no sintoma.

Contudo, subjetivar um desejo não é o mesmo que assumir um a vontade, assim como apropriar-se de um a imagem não é o mesmo que se responsabilizar por um dese­jo. Temos aqui um segundo m om ento que marca o encerramento das entrevistas p re ­liminares e caracteriza a entrada em aná-

O desejo humano é o desejo do Outro, mas esquecemos disso ou rejeitamos esse fato, e a verdade negada retorna no sintomalise. Se para Freud o tratam ento de ensaio deveria durar algumas semanas, para Lacan ele segue um tem po cham ado de lógico, que pode ser mais ou menos extenso (do ponto de vista da duração objetiva) para cada um.

Tem po, d inheiro e disposição dos en- volvidos são três aspectos que precisam ser acertados nas entrevistas prelim inares. Isso envolve solução para assuntos práticos, tais como quantas sessões sem anais serão ne­cessárias, o valor dos honorários, e, princi- palm ente, a disposição para ingressar nessa aventura incerta, cuja regra fundam ental é ten ta r m an ter a associação livre. Falar de form a tão solta quanto se consiga, sem crítica, ju ízo ou preparação, sem saber ao certo o que o ou tro quer ou espera ouvir dele. Falar para um ou tro do qual se saberá m uito pouco, mas em direção a quem um vínculo de grande confiança e acolhim ento se form ará. A decisão de acolher esse p a ­

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ciente e de to rná-lo um analisante é um ato do analista, que tem seu correlato do lado do paciente. Todo ato é um a decisão ética, po rtan to não dependerá apenas de condi­ções que, um a vez atendidas, de term inem o seguim ento do processo. Isso será m uito im portan te nos m om entos vindouros do tratam ento. A decisão de parar ou continuar se abre de tem pos em tem pos e será, a cada vez, um a reconfiguração da estru tu ra lógica dessa aposta inicial.

Esse segundo m om ento que encerra as entrevistas prelim inares está, p o rt anto, b a ­seado na implicação subjetiva. A to de reco­nhecim ento ou de intuição inicial do que está em jogo no sintom a, bem como de sua abordagem pela análise. É p o r isso que os psicanalistas são, em geral, tão econômicos em apresentar regras de funcionam ento . Não há exatam ente um a bula ou um m anual de instruções para a psicanálise porque faz parte do tra tam en to que suas norm as se­jam apresentadas no ato, e não ao m odo de um jogo em que prim eiro se leem as regras e depois se inicia a partida.

Isso tem seus m otivos. N ão se pode sa ­ber de antem ão de qual m aneira ao paciente se relacionará com o analista, como será a transferência. A apresentação neutra do fu n ­cionam ento das sessões será, portanto , vaga e indeterm inada do ponto de vista do que realmente im porta para o analisante, ou en ­fatizará aspectos que podem ser indiferentes ou desnecessários para o caso. A lém disso,

tal apresentação será sem pre um a fixação do que.se espera, o que é potencialm ente opres­sivo, ao contrário da sim plicidade cristalina representada pela regra fundam ental: fale- me livremente do que te ocorrer. Essa fixação de expectativas terá u m papel im portan te no seguim ento dos acontecim entos, servin­do de p on to de apoio para o que Freud cha­m ou de resistência.

TRANSFERÊNCIA E INTERPRETAÇÃO

V im os que a noção de implicação subjeti­va é fundam ental para a en trada em análise, bem como a d im ensão tem poral é im por­tan te nesse processo de decisão. Implicação é um term o da lógica que se refere à neces­sidade de consequências necessárias. O u seja, os d itos do sujeito re to rnam a p a rtir do lugar do O u tro , de form a invertida, para ele p róprio . Por exemplo, se ele diz "essa é m inha m u lher”, está im plícito que “ele é seu hom em ”; se nega veem entem ente que um a figura com quem sonhou é seu pai, ele está im plicado nessa negação veem ente; se afir­m a ter esquecido isto ou aquilo, está su b ­tend ido que ele, m esm o assim, sabe do que se tra ta . Isso não quer d izer que no tra ta ­m ento não se pode voltar atrás no que se disse ou afirm ou, mas que tudo o que é dito terá potencialm ente um a consequência, de tal form a que está excluída a possibilidade de apelar para o álibi “não fui eu, foi o o u ­

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tro (inconsciente) que disse ou que me fez dizer". Isso cria um a posição p a ra o psica­nalista que é a de fazer valer esse lugar do O u tro , de onde as palavras ditas podem re­to rnar, de m aneira invertida, para o próprio sujeito, de tal form a que ele as escute.

Tem os então dois m ovim entos im por­tan tes contidos nesse en tendim ento de im ­plicação subjetiva: a subjetivação do desejo e a realização do sujeito. C erta vez, Lacan sin te tizou da seguinte m aneira o percurso do tra tram ento, baseando-se nessa oposi­ção: "Q uando a análise começa o sujeito fala de si, mas não fala com o outro ; depois ele fala com o outro , mas não fala de si; quan­do ele fala de si com o outro , o tratam ento está terminado". Essa alternância exprime a oscilação das duas principais m odalida­des de intervenção do analista: o manejo da transferência e a interpretação. Q ue o su ­je ito fale de si, mas não fale com o outro, é um a situação m uito conhecida na neurose. Ele não fala com o ou tro como instância sim bólica, mas como projeção im aginá­ria de si mesmo, ou seja, um espelho, um a som bra dele pela qual está apaixonado sem saber, como no m ito de N arciso. Essa rela­ção im aginária, m arcada pela agressividade e rivalidade, mas tam bém pela paixão, faz com que o analisante situe o analista como um figurante desconhecido da própria h is­tó ria , como alguém que sabe tão bem quan­to aquele que fala do que são feitas suas convicções, crenças e esperanças.

O estilo lacaniano de interpretar é inspirado no chiste; ele deve ser breve, produzir surpresa e reverter expectativas de significação

O u seja, ao longo da passagem do p ro ­blem a para a questão e da queixa para o sintom a, o p róprio analista foi tom ando parte nesse sintom a; foi en trando na peça teatral à m edida que ela foi sendo rem em o­rada pelo paciente. Ao falar, o analisante vai desenhando a im agem e a figura de seu in terlocutor, depositando nele respostas e assentim entos, de tal form a que o analista se to rna ele mesm o um sujeito suposto para o saber fraturado e d istendido em to rno do desdobram ento da narrativa do sin tom a. C onform e a im agem vai sendo co nstru í­da na figura do analista, ela é sim bolizada pelo paciente. Esse sím bolo de seu desejo, até então recalcado, é assum ido pelo sujeito como fragm ento esquecido da própria h is­tória. Lem brem o-nos: a dem anda do p a ­ciente é que o saber sobre o sofrim ento seja recom posto, que a realidade seja ratificada, que a sua identificação seja preservada, nem

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que isso custe sua reificação como objeto ou sua desim plicação como sujeito em prol do am or do analista. Para Lacan, toda vez que alguém fala de m odo auten tico com o ou tro surge a transferência, e esta é a realidade se­xual do inconsciente colocada em ato.

A transferência pode ser pensada como uma troca por meio da qual o analista re- encena personagens, reaçoes e experiências com o analisante, ao m odo de um a repeti­ção dos conflitos que constituem a história da vida deste. M as trata-se de um a repetição que in troduz um a novidade, diferencial, pois agora há um a nova possibilidade de solucio­nar a falta que se reapresenta na reaparição do significante. C ontudo, a troca transfe­rencial não é ju sta , porque de fato o analista não poderá oferecer ao analisante aquilo que ficou em suspenso ou se cristalizou como imagem de desam paro, ausência ou incom- pletude. T udo o que ele pode é fazer-se su­porte para o processo de simbolização que ficou bloqueado nesse ponto. A psicanálise seria assim um a form a de tra ta r o real pelo simbólico, separando-o do imaginário.

H á, portanto , três dim ensões da transfe­rência. A imaginária, com posta pela dem an­da am orosa e sua contrapartida em term os de identificação, projeção e introjeção. A sim ­bólica, pela qual o analista se serve do O u tro para favorecer a subjetivação e simbolização do desejo. E, finalmente, a real, representa­da pela repetição e pelo apego “insensato" ao m al-estar e um desejo de "não se curar".

A presença do analista, como um objeto não "especularizável" e que funciona como sem blante de causa de desejo para aquele paciente, am arra essas três dim ensões: ima­ginária, que Freud chamava de resistência (e, para Lacan, é sem pre do analista); simbólica, que Freud denom inava elaboração ou o to r­nar consciente; e real, para Freud nom eada reação terapêutica negativa, dependente da pulsão de m orte (e que, para Lacan, se liga ao gozo). Esse objeto enigmático, coorde­nador das relações entre desejo e dem anda, figura-se na transferência ao m odo de uma fantasia. É nele que se concentram as formas mais decisivas da angústia.

O manejo da transferência alterna-se com a interpretação. O estilo lacaniano de in ter­p retar é tradicionalm ente inspirado no chis­te, ou seja, deve ser breve, produzir surpresa e reverter expectativas de significação e com­preensão. A ideia aqui é que a sessão é um espaço m uito curto para examinar, recons­tru ir e às vezes refazer o conjunto extenso de encontros que compõe um a vida. Portanto, é im portante que o analisante trabalhe d u ­rante a sessão, mas o. essencial é que ele leve sua análise adiante, fora do consultório. Daí a pertinência da noção de transferência, nos diversos sentidos lacanianos: deslocamen­to tem poral do presente ao passado e deste ao futuro; um a substituição simbólica entre pessoas, modos de relação e dem andas reti­das; um a transform ação da metáfora (que dá a estru tura do sintom a) em m etoním ia (que

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compreende a estrutura do desejo); palavras transferidas entre analisante e analista, bem como para um sujeito suposto ao saber in- consciente. Todos esses sentidos foram sin- tetizados por Lacan na tese de que a trans­ferência tem a estrutura lógica do que ele denom inou sujeito suposto saber.

Freud estabeleceu um a sequência para designar esse processo: recordar, repetir e elaborar. O que se recorda é o suposto, o que se repete é o sujeito, e o que se elabora é o sa­ber. O u seja, o trabalho de recordação parte do presente, lança-se ao passado e projeta- se no futuro. N o caso dos sintom as, quando eles se atualizam na transferência (tam bém cham ada neurose de transferência), esse tra ­balho de recordação é substitu ído pela repe­tição. À s vezes, trata-se de um a repetição em ato (no qual o sujeito age para não pensar ou não lem brar); em outras, é discursiva (da qual não consegue sair); em outras ainda, a encontram os nas escolhas ou na form a de o sujeito colocar-se em situações traum áticas (em que reencontra de m odo sistemático algo do qual está perm anentem ente fugin­do). O corre que a repetição satisfaz a resis­tência, e com isso o processo de simboliza- ção e de subjetivação se interrom pe.

Já o terceiro tempo, representado pela ela­boração, é o que a interpretação visa favorecer. Portanto, ela deve dar continuidade, prolon­gar ou acrescentar, de forma mínima, o que for necessário para a passagem da recordação à elaboração. Daí vem a ideia de que uma boa

interpretação deve com portar certa ambigui­dade, pois assim perm itirá ao analisante que decida onde e como ela será recebida; ou seja, que ele mesmo complete o trabalho de ressig- nificação do próprio dizer. A interpretação pode se resumir à repetição de um significan- te insistente ao longo da sessão ou da análise. É passível de ser feita por meio de um a pe­quena m udança na forma da palavra: uma pessoa m uito ocupada, por exemplo, pode se dar conta de um a nova implicação se lhe su­gerimos que de fato é ela é m uito oculpada. Pode tam bém se resum ir ao silêncio ali onde esperávamos um a resposta, e vice-versa.

Se a análise progride entre períodos de manejo sobre a transferência e m om entos de interpretação, é de sum a im portância que ambas respeitem o que Lacan cham ou de tem po lógico. Já vimos ser ele que decide o encerram ento das entrevistas prelim inares e o início da análise. Será tam bém de acordo com ele que cada sessão se estru turará e o conjunto do tratam ento poderá ser pensado. A direção do tra tam ento passa pela m odu­lação do tem po, e isso não significa apenas que a duração das sessões seja variável, assim como sua frequência, e que as próprias in­tervenções devam ser feitas de acordo com o momento certo. Esse ponto foi, e ainda é, alvo de m uita controvérsia no meio psicanalítico.

Lacan tentou justificar esse procedim en­to em um artigo notável: “O tem po lógico e a asserção da certeza antecipada: um novo sofisma” publicado em 1945. Nele, aborda

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O tempo lógico é uma tentativa de

apreender como as nossas decisões são

sempre tomadas coletivamente, ou seja,

em função do outrouma situação virtualm ente indecidível. U m carcereiro diz a três prisioneiros que libertará aquele que resolver o seguinte enigma: ha- vendo três discos brancos e dois negros, cada um deles será colocado nas costas dos prisio- neiros, de tal form a que cada um deles verá a cor dos demais, mas não poderá ver a do seu disco, devendo sair da sala para declarar ao carcereiro a cor que tem às costas, justifi­cando sua resposta. Dessa situação inferem- se três soluções. N o caso em que vê dois pre­tos, o prisioneiro apresenta-se im ediatamente à saída para declarar que é portador de um branco (pois só restam discos dessa cor); é o instante de ver, em que ele percebe a situação. N o caso em que vê um branco e outro preto, ele não tem como decidir de imediato. Mas, percebendo que ninguém se move e nenhum dos três se apresenta à saída, ele conclui que só pode ser um branco (pois, se ele tives­se um negro, o outro já teria saído). Temos

aqui um a solução que não é imediata, mas que passa reflexivamente pelo não movimento do outro, pela subjetivação desse tempo para compreender: se o outro não age é porque ele não vê dois pretos. N o terceiro caso, o prisio­neiro vê dois discos brancos e suspende seu ato, mas, após simbolizar esse tem po em que nenhum dos três se move, ele pensa tratar-se de um caso em que alguém está vendo um preto e um branco (e ele é o preto). P ortan­to, começa a sair. Mas, quando ele o faz, os outros o acompanham no mesmo momento. Ao ver os outros saindo, o prisioneiro perde a certeza antes adquirida (que ele tem um disco preto porque alguém está vendo um branco e um preto). M as, ao constatar que a certe­za foi abalada nos três, que interrom pem seu ato (tam bém chamado de escansão do ato), o prisioneiro recupera a certeza de que ele é um branco, e não há mais dúvida possível sobre isso: é o momento de concluir.

O tem po lógico é um a tentativa de apre­ender como nossas decisões são sem pre to ­madas coletivamente, ou seja, em função do outro. Por meio dele se percebe que não é possível saber algo sobre nós mesmos sem passar pelo outro. H á, portan to , um a lógica tem poral que não é a do inconsciente em si— que, como Freud afirmara, não com por­ta tem poralidade —, mas do sujeito, desde que se considere o inconsciente e que ele se apresente ao sujeito como discurso do O u ­tro. Pode-se entender assim como a relação transferencial se m ovim enta entre instantes

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de ver, tempos de compreender e momentos de conclusão. E, assim, de m odo cruzado, movi­menta-se a interpretação. D aí que seja um grande problema clínico colocá-la de m odo a, por exemplo, retirar determ inado sujeito de suas açóes impulsivas, baseadas no ime- diatismo do instante de ver, in troduzindo-o no tempo de compreender.

Inversamente, a interpretação pode fa­vorecer a passagem do tempo sem fim para compreender indefinidamente (e não deci­dir), indo na direção do mom ento de con­cluir. Por fim, a perenidade deste pode ser revertida por uma interpretação de que todo momento de concluir é tam bém um novo ins­tante de ver. A interrupção de um a sessão, cortando a fala do paciente e im pedindo que ele pronuncie a últim a palavra in ten ­cionada, pode ser uma maneira de alterar a temporalidade que estrutura o sintom a ou a transferência. Nesse caso, a interrupção terá adquirido um efeito de interpretação, o que só se poderá julgar a posteriori pelas conse­quências produzidas sobre o sujeito.

FIM DO TRATAMENTO

As condições para delim itar o térm ino do tratamento constituem, hoje, um tem a de muita pesquisa nos estudos lacanianos. De certo modo, essa é uma forma de p en ­sar o tratamento em seu conjunto e em sua orientação geral. A análise dos sintom as e

das form as de transferência se m odifica ao longo do tem po, em geral com a redução do sofrim ento im pingido pelos prim eiros e pela estabilização de m odos mais p ro ­dutivos da segunda. C om isso, um vasto m aterial discursivo — represen tado por sonhos, lem branças, confrontações, h ip ó ­teses e elaborações sobre as m odalidades mais variadas de amor, escolhas, decisões e acontecim entos — vai se p roduz indo e se acum ulando de form a crescente com o adensam ento simbólico dos significantes envolvidos, das identificações e da dialética entre desejo e dem anda. Form as mais agu­das da transferência, bem como experiên­cias mais cristalinas de angústia, começam a ser abordadas. H á um a recorrência cada vez m aior de certas fantasias, e estas se co­m unicam en tre si de form a mais repetitiva e fechada que antes.

Freud já tin h a observado que um sin to ­ma rem ete a várias fantasias, e vice-versa. Ao contrário dos devaneios e das fantasias conscientes, a determ inação dos sintom as se dá a p a rtir das fantasias inconscientes. Estas com andam a form a de amar, condi­cionam escolha de objetos desejáveis, de­term inam traços de sim patia e antipatia, confl uem para identificações e ideais e pau ­tam a vida sexual. A fantasia é um a espécie de hipótese sobre os m odos preferenciais de construção de objetos para um sujeito. Cada uma delas apresenta duas fases, um a ativa e ou tra passiva. Por exemplo, du ran te

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os at aques histéricos descritos por C harco t, e observados p o r Freud, um a m ulher, em estado de alteração de consciência, podia, sim ultaneam ente arrancar as roupas com uma mão enquan to cobria o corpo com a outra. M ostrar-se e esconder-se form ava assim duas fases de um a m esm a fantasia . Além dessas duas fases, a fantasia tem três tem pos, ou três sequências, das quais um a perm anece oculta para o sujeito. C om isso, já se dizia que nela há um a espécie de con­tradição fundam ental subjetiva, ou, m ais precisam ente, um a divisão. A fantasia per­mite defender o sujeito da angústia decor­rente do encontro com as form as “desves­tidas” do objeto de seu desejo, deform á-lo por meio das trocas significantes e articu lar a lei sim bólica da interdição (responsável pelo recalcam ento) com a extração de satis­fação, prazer e gozo.

Ao contrário das demais formações do inconsciente, como sintom as, sonhos, lap­sos de linguagem e ação e transferências, a fantasia não é propriam ente interpretável (no sentido de fazê-la parte da elaboração do sujeito). Isso ocorre porque no fundo ela já é um adensam ento construído para am ar­rar diversas funções psíquicas, ao m odo de um quadro com um a paisagem ensolarada que se coloca sobre uma janela para se ter uma garantia de que "lá fora” o tem po esta­rá sempre bom . In terp re tar o quadro pode nos ajudar a enxergá-lo melhor, mas isso não mudará o fato de que ele ainda está a enco-

A fantasia, ao contrário das demais formações do inconsciente, como sintomas, sonhos e lapsos, não é interpretávelb rir a janela e, mais que isso, a nos enganar, confundindo-nos quan to ao ponto onde ter­m ina m oldura e começa a teia. D aí que para lidar com a fantasia é necessário um pro ­cedim ento clínico diferente da retificação, implicação, do m anejo da transferência e da in terpretação. T ra ta -se do que Freud cha­m ou de construção. O u seja, aqui o analista in tro d u z ativam ente um fragm ento novo na tela de fantasia do sujeito.

E ssa in trodução deve obedecer às exi­gências da lógica do significante e do tem ­po, e a inda estar de acordo com o regime de ficção, em que se desenro la a verdade do sujeito. É po r isso que falam os da psicaná­lise com o um a aventura da verdade e como um a experiência do real. A fantasia articula essas duas d im ensões, a da verdade e a do real, de ta l fo rm a a to rn a r o sujeito apto ao desejo. Q u an d o p e rtu rb a o desejo, ele pode te r d ificuldade em se ap resen tar ou se sus­

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tentar. O objetivo ú ltim o da análise é fazer uma “travessia” dessa fantasia, ou das identi­ficações que são perfiladas e organizadas por ela. Por travessia se entende a experiência de que a fantasia é um a construção artificial e contingente, e não um a form a obrigatória e necessária de estar com o outro . T am bém se pode com preender essa experiência como o processo pelo qual nos dam os conta de que o O utro é um lugar simbólico (e não a encarnação perfeita sob a form a de in s titu i­ções, pessoas ou ideais); ou seja, ele m esm o não é completo. F inalm ente, a ideia de tr a ­vessia evoca a noção de viagem, e de fato essa é uma ótim a im agem para sin tetizar a experiência psicanalítica. U m a jo rn ad a que nos transform a profundam ente tan to pela ficção que ela perm ite inventar quanto pelo real que nos convida a descobrir.

N a fantasia, o sujeito promove, conserva e protege uma espécie de identificação fun­damental; m im etiza um objeto que — este sim — seria uma espécie de resposta para a indeterminação que paira sobre o desejo do O utro. Tudo o que o remete à dúvida, à in­certeza, à divisão ou à desorientação é res­pondido por meio dela. A fantasia é, assim, uma resposta construída para a pergunta fundamental: o que o Outro quer de m im ?. Se o sintoma é feito de um a articulação entre verdade e saber, ela é mais um a arti­culação entre verdade e crença. É por isso que podemos agir em conform idade com o que sabemos, mas em descompasso com

A psicanálise é uma experiência radical de desalienação e separação que permite ao analisante dissolver a neurose de transferêncianossas crenças, e vice-versa. A fantasia tem o papel psíquico de encruzilhada. Ela p re­serva, como um a espécie de guardiã, nossa solução própria para o enigma do prim eiro confronto com o desejo do O utro : aquele se dá no in terio r do complexo de Edipo e, mais especificamente, no nó crucial form ado pelo complexo de castração. Ela localiza o sujei­to do lado hom em ou mulher, articulando o problem a im aginário da eleição de gênero, com o simbólico da escolha de objeto e o real da inscrição prevalente de gozo.

O ra, o problema central do trabalho de construção da fantasia, que se dá ao longo de todo o tratamento, é que o objeto definido por essa fantasia (objeto a, causa de desejo) vai se infiltrando na transferência. Ele é a fonte da influência e o que dá consistência ao sujeito suposto saber, que, por sua vez (como vimos), fornece a forma lógica e dialética da transfe­rência. Para funcionar como fonte doadora de

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sentido, a fantasia em si não pode ter nenhum sentido. Isso é passível de se manifestar ao modo de um imperativo, de uma ordem coer­citiva ou intrusiva para o sujeito.

Por exemplo, um paciente de Freud sen- tia-se m isteriosam ente com pelido a esco­lher m ulheres que se revelavam a ele como tendo um m isterioso brilho no nariz. O exame da estru tu ra significante dessa esco­lha de objeto, ao qual o sujeito se encon tra ­va fixado (na ficção de sua fantasia), m os­trou que ele tinha sido educado por um a babá inglesa, sendo o inglês seu idiom a primeiro. H avia então um equívoco entre as línguas, em que o desejo inconsciente se apoiava: o G lanz a u f die Nase (brilho, em alemão, no nariz) tin h a sido transferido do Glance a u f die Nase (olhar, em inglês, o n a ­riz). Exemplificamos assim as duas fases da fantasia, relativam ente disponíveis ao sujei­to. N a prim eira, ele o lha o brilho (G lanz) no nariz de um a m ulher, na segunda é o lha­do (Glance) p o r esse brilho que o fascina. O que precisa ser constru ído é o terceiro tem po da fantasia, este sim recalcado. Em nosso exemplo, ele seria o equivalente da proposição: se fa zer olhar para o outro.

D uran te m uito tem po Lacan se dedicou a criticar as p ropostas de tra tam en to psi- canalítico que se orientavam para a id en ­tificação com o analista, ou com seu ego, ou ainda com seu superego. Para o autor, a psicanálise é um a experiência radical de de- salienação e separação, perm itindo ao ana­

lisante fazer — de form a regrada e m etódica— um grande lu to . O u seja, dissolver a n eu ­rose de transferência p o r m eio da travessia das identificações unificadas pela fantasia fundam ental. Essa dissolução equivaleria a um a separação en tre o sujeito suposto saber e o objeto a, causa de desejo. D essa m aneira, o sujeito poderia separar-se da influência e s tru tu ran te do pai (na condição de saber servir-se dele), recuar d iante de ideais que cultivam a com pletude, o am or concluído e a não dependência (com o falso sinônim o de au tonom ia) e p rosseguir sua jo rn ad a tran sfo rm ando seu sin tom a, que no início da análise se apresentava como queixa, e que no meio dela se exprim ia com o dem anda, no que Lacan cham ou de sinthoma (com "th"). E ste é algo como um sin tom a depois de analisado, ou seja, um a nova posição d ian te do conflito que ele re ­presen ta , do traço de gozo que ele realiza e do potencial de angústia que induz.

ÉTICA DA PSICANÁLISE

Freud d izia que a psicanálise era um tra ­tam en to que se fazia pela via de levare: ela apenas re tira algo que está a mais no su ­je ito , seu sin tom a, sofrim ento e m al-estar. As psicoterapias baseadas na sugestão, ao contrário , operam pela via de porre, ou seja, elas acrescentam algo: na form a de um sa­ber, de um a regra de ação ou de um a disci­

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plina. Segundo essas categorias da estética de L eonardo da Vinci, a psicanálise estaria para a escultura (em que a pedra é lap ida­da para dela se ex trair um a figura), assim como a sugestão estaria para a p in tu ra (em que o a rtista acrescenta tin ta sobre a tela). C ontudo , dois reparos devem ser feitos. N em toda psicoterapia se baseia no ideal de um reto rno a um estado an terio r de saú­de nem prom ete, po r meio da subm issão a um saber p ré-constitu ído , mais do que se poderia esperar da condição existencial do hom em . Lacan, po r sua vez, m ostrou, a partir de um a crítica sistem ática, que a psicanálise não estava isenta de incorporar ideais adaptacionistas e conform istas nem de in troduz ir um a posição de poder ques­tionável com relação ao paciente.

Por isso, in troduziu um a série de con­ceitos que visavam fundam entar a ação do psicanalista para além de um procedim en­to técnico. Ele argum entava que o conjun­to de problem as habitualm ente tidos como técnicos em psicanálise deveria ser tratado como ético. N esse m ovimento, ele fez um a curiosa separação entre ética (como reflexão sobre a relação entre ju ízos e atos) e moral (como conjunto de valores que se expressam coercitivamente em práticas). Assim, a for­ma como se acolhe um paciente, a m aneira como se intervém sobre seu sofrim ento, o campo no qual se justificam os procedim en­tos, as intervenções e o próprio horizonte da cura não são sim plesm ente objetos de con-

Lacan costumava argumentar que, em psicanálise, o conjunto de problemas habitualmente tidos como técnicos deveria ser tratado como éticosenso a serem seguidos, mas de ponderação no que se costum a cham ar de "particularida­de e contingência do caso”.

Em geral, entende-se que a quantidade de relatividades envolvidas nos tratam entos psicológicos é tão grande que não se pode nunca justificar as razões e decisões clínicas de m odo a que elas aspirem a alguma univer­salidade e assim possam ser transm itidas p u ­blicam ente ou de form a racionai. É verdade que a decisão de até onde prosseguir em uma psicanálise ou em um a psicoterapia depende sem pre de um acordo entre os envolvidos. É correto que a avaliação de m elhora ou p io­ra dos sintom as é de difícil comparação, de paciente a paciente. A intensidade do sofri­m ento, a qualidade do m al-estar e a diversi­dade dos sintom as são tam anhas, bem como a ligação deles com a história de cada pessoa em seu conjunto único de encontros é tão pouco eliminável, que as estatísticas tendem

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a focalizar generalizações incongruentes ou de pouca utilidade. Psicanalistas têm m o- dos m uito distintos de proceder e justificar suas ações; basta acom panhar as discussões sobre casos clínicos para reconhecer como, nessa matéria, governa o dissenso.

D ian te da especificidade do p rob lem a e da precariedade das soluções, Lacan o p to u por um a estratégia não habitual. D esde os prim órdios da m edicina, a clínica firm ou-se como um tipo de saber derivado da obser­vação do doente em seu leito. Foi p o r essa via que se p roduziram as prim eiras h ip ó te ­ses etiológicas, p o r meio das quais pod ia- se passar dos sinais clínicos às descrições e agrupam entos diagnósticos estáveis das doenças para daí inferir ações terapêuticas de eficácia regular. A razão em pírica p ro ­cede po r indução, ou seja, generalizações progressivas do conhecim ento consoante àquilo que se repete de form a regular nos casos particulares. Isso está presente desde o início da m edicina, especialm ente na tra ­dição oral conhecida com o clínica.

Essa confiança na razão em pírica che­gou até Freud, que a expressou inúm eras vezes quando se tratava de justificar o t r a ­tam ento psicanalítico. Lacan, p o r sua vez, percebeu que essa confiança na observação se tornava mais p roblem ática do que p o d e ­ria parecer, um a vez que o terreno no qual o tratam ento se desenvolvia era a linguagem . A observação dela difere da dos fenô m e­nos do corpo e dos órgãos. C om o observar,

pela utilização dos sen tidos, audição e vi­são, po r exemplo, o que um paciente quer d izer com seu silêncio ou equívoco de pa­lavras? C om o reconhecer que às vezes ele d iz o contrário do que fala, ou que fala, m as não diz, ou ainda que escolha term os de m aneira abso lu tam en te p róp ria e idios­sincrática? O s fenô m enos de linguagem re­querem um m étodo de descrição diferente dos naturais. Seu en tend im en to deve ser tan to indutivo, afinal o sen tido das palavras depende de seu uso e do seu contexto de em prego, como tam bém dedutivo, pois a linguagem depende das contingências do sujeito falante e das exigências form ais da língua (sintaxe, gram ática, linearidade e sistem aticidade). O fato m ais óbvio é que quando falamos as regras da linguagem nos são inconscientes.

Ao enfatizar que a experiência do tra ­tam en to está baseada n a linguagem , Lacan lançou um program a de justificação cientí­fica da psicanálise, do tad o de características um tan to diferentes das que encontram os em Freud. N o en tan to , isso não significa form alizar toda experiência do tratam ento . É possível que as d iferentes form as de psi­canálise se definam p o r proporções d is tin ­tas e com prom issos particu lares entre téc­nicas psicoterapêuticas, m étodos clínicos e éticas de cura.

Só assim podem os en tender por que a verdade, um a categoria inicialm ente estra­nha ao cam po da ciência m oderna, pode

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ter algum a im portância para Lacan. M uito antes de ser um a noção epistemológica, que recai sobre fatos do m undo e proposições, a verdade era considerada um a experiência ética a partir de um a relação de fala entre duas ou mais pessoas, que tem como ponto de partida a dim ensão traum ática da exis­tência hum ana. O desam paro, o desencon­tro entre os sexos, a angústia, a loucura, a ex­periência da m orte e da finitude, bem como a insuficiência da felicidade, não são sin to ­mas nem apenas contingências indutoras de sofrim ento, mas figuras de nossa liberdade e condição hum ana. D esde a antiga trad i­ção grega do cuidado de si — que se opõe à tradição do conhecim ento de si — especula- se sobre a possibilidade de alguém dizer a verdade sobre o próprio desejo e de colocar em palavras seu m al-estar no m undo. É nes­sa perspectiva que a psicanálise seria, para Lacan, um a experiência equivalente àquela antiga cura sui (cuidado de si).

M as, além de um a aventura com a ver­dade, a psicanálise é um a clínica. Ela tem razão diagnostica específica, semiologia própria e uma teoria das causas compatível com o reconhecimento da im portância da linguagem e das dim ensões simbólica, im a­ginária e real do ser hum ano. D izer que a psicanálise é um a clínica é reconhecer que ela provém tanto da reflexão ética ocidental, quanto da tradição de cuidado aos doentes procedente da medicina. A histeria é defini­da pela presença de sintom as e pela aptidão

Além de ser uma aventura com a verdade, a psicanálise é uma clínica com razão diagnostica, semiologia e teoria etiológica específicaspara produzi-los: deformações no m odo de apreender as form as corporais, dores e anes­tesias, conversões e amnésias. O mesmo se diria da obsessão e da compulsão, das fobias, do pânico, das alucinações, das inibições de aprendizagem , das disfunções sexuais, das im pulsões e assim por diante. A diferença entre psicose, perversão e neurose pode ser traçada em função da causação diferencial de sintom as, entendidos como modos de de­fesa específicos. Estes têm um a apresentação clínica regular, de tal forma que podem os reconhecer sua presença ao longo do tem po e das culturas. A clínica psicanalítica, como vimos, começa e term ina pela atualização desses sintom as na relação com o psicana­lista. D aí que o tratam ento seja ao mesmo tem po dos sintom as e destes tornados tran s­ferência (neurose de transferência).

P or fim, devem os reconhecer que a psi­canálise p rocura dirim ir o sofrim ento nas

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suas mais diferentes form as. O lu to pela perda de um ente querido, os im passes da vida am orosa, a desorientação d ian te da vida e do desejo, a solidão e o preconcei­to, as form as de vida sentidas com o in a ­dequadas ou esvaziadas, a dor de existir, a exclusão e a inclusão social são exem plos de sofrim ento que não são expressões de n o s­sa lim itação universal. Em que pese o fato de estarem ligados a sintom as, ao m odo de queixas ou de tipos de personalidade, esses tipos de sofrim ento são acessíveis pela p s i­coterapia, principalm ente po rque são p a to ­logias do reconhecim ento — seja ele de si, do outro, pelo ou tro ou do desejo.

O sofrim ento é um a condição que afeta formas de vida, que tem gram ática e sem ân­tica próprias, por meio das quais o sujeito aspira a fazer-se reconhecer (o que F reud examinou principalm ente com os concei­tos de narcisismo, m asoquism o e supereu).Daí que en tender e tra ta r o sofrim ento é operar por atos de reconhecim ento. Se res­tringirm os a psicoterapia a essa acepção, por certo a psicanálise de orientação laca- O a u t o r niana é tam bém um a form a psico terapêu- tica. N esse caso, ela enfatizará a estratégia de passar do desejo de reconhecim ento ao reconhecim ento do desejo.

CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER é psicanalista, gradua­do em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em psicologia experimental, com livre

docência em psicologia clínica pela USP e pós-doutorado

pela Manchester Metropolitan University. Atualmente é professor do Instituto de Psicologia da USP (Departamento

de Psicologia Clínica). É analista membro (AME) da Escola

de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano e autor de

Lacan e a clínica da interpretação (Hacker) e O cálculo

neurótico do gozo (Escuta).