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A questão presente em todas as páginas deste livro é: como es- capar da representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze (1925-95) analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon (1909-92), não é apenas por considerá-lo um dos maiores pintores contemporâ- neos. É sobretudo por encontrar no pintor irlandês um exercício do pen- samento que pretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. Guiado por essa temática, Deleuze situa Bacon na história da pintura, privilegiando Cézanne como aquele de quem mais se aproxima pela im- portância que a sensação tem em suas obras. Mas também apresenta a origi- nalidade de Bacon em relação a duas tentativas contemporâneas de ultra- passar a representação nas artes plás- ticas: a pintura abstrata de Mondrian e Kandinsky – que rejeita a figura- ção clássica, privilegiando as formas abstratas – e o expressionismo abstra- to, a Action Painting de Pollock – que dissolve todas as formas. A singularidade de Bacon – pintor que não pretende representar obje- tos, histórias, personagens, mas faz questão da figura – é apresentar uma figura não figurativa, desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. Assim, ao explicar a na-

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Gilles Deleuze

FRANCIS BACONLÓGICA DA SENSAÇÃO

A questão presente em todas aspáginas deste livro é: como es-

capar da representação na pintura?Pois se o filósofo Gilles Deleuze(1925-95) analisa detalhadamente aobra de Francis Bacon (1909-92),não é apenas por considerá-lo umdos maiores pintores contemporâ-neos. É sobretudo por encontrar nopintor irlandês um exercício do pen-samento que pretende neutralizar anarração, a ilustração, a figuração.

Guiado por essa temática, Deleuzesitua Bacon na história da pintura,privilegiando Cézanne como aquelede quem mais se aproxima pela im-portância que a sensação tem em suasobras. Mas também apresenta a origi-nalidade de Bacon em relação a duastentativas contemporâneas de ultra-passar a representação nas artes plás-ticas: a pintura abstrata de Mondriane Kandinsky – que rejeita a figura-ção clássica, privilegiando as formasabstratas – e o expressionismo abstra-to, a Action Painting de Pollock – quedissolve todas as formas.

A singularidade de Bacon – pintorque não pretende representar obje-tos, histórias, personagens, mas fazquestão da figura – é apresentar umafigura não figurativa, desfigurada,deformada por forças invisíveis quevêm de fora. Assim, ao explicar a na-

tureza da violência na pintura deBacon, e mostrar, por exemplo, por-que ele pinta o grito, mais que o hor-ror, Deleuze chama a atenção para ofato de ele ser um pintor da força, daintensidade, ou para a preeminênciaexistente em sua obra da força sobre aforma. Além disso, defende que, aoapresentar esse trabalho de deforma-ção no próprio curso de sua realização,fazendo-se ao vivo, Bacon pinta não sóforças, mas também o próprio tempo.

Francis Bacon: Lógica da sensação,no entanto, não é apenas um livrosobre Bacon ou mesmo sobre pintu-ra. Ao expor os procedimentos em-pregados por ele para livrar-se da re-presentação, Deleuze estabelece umaaliança entre esse grande pintor eliteratos como Kafka, Artaud, Beckette vários outros que se notabilizarampelo mesmo projeto. Isso torna estaobra esclarecedora de um dos proce-dimentos principais utilizados porDeleuze na criação de seu própriopensamento filosófico: a transforma-ção em conceitos de elementos nãoconceituais – perceptos e afetos –oriundos da literatura e das artes.

RO B E RTO MAC H A D O

Departamento de Filosofia, UFRJ

Ilustração da capa: Francis Bacon, Três estudos para umauto-retrato, 1979.

Aquestão presente em todas as páginas deste livro é: como escaparda representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze

analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, não é apenas porconsiderá-lo um dos maiores pintores contemporâneos. É sobretudopor encontrar no pintor irlandês um exercício do pensamento quepretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. ...

A singularidade de Bacon ... é apresentar uma figura não figurativa,desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. ...Deleuze chama a atenção para o fato de ele ser um pintor da força,da intensidade, ou para a preeminência existente em sua obra daforça sobre a forma. Além disso, defende que, ao apresentar esse tra-balho de deformação no próprio curso de sua realização, fazendo-seao vivo, Bacon pinta não só forças, mas também o próprio tempo.

Lógica da sensação é uma obra esclarecedora de um dos procedimen-tos principais utilizados por Deleuze na criação de seu próprio pensa-

mento filosófico: a transformação em conceitos de elementos nãoconceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e das artes.

RO B E RTO MAC H A D O

LE I A N A M E S M A C O L E Ç Ã O:

Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller

Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi

Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”,Roberto Machado (org.)

O nascimento do trágico, Roberto Machado

Introdução à tragédia de Sófocles, Friedrich Nietzsche

DeleuzeF

RA

NC

ISB

AC

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GIC

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capa bacon fim 6/27/07 5:09 PM Page 1

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Gilles Deleuze

FRANCIS BACONLÓGICA DA SENSAÇÃO

A questão presente em todas aspáginas deste livro é: como es-

capar da representação na pintura?Pois se o filósofo Gilles Deleuze(1925-95) analisa detalhadamente aobra de Francis Bacon (1909-92),não é apenas por considerá-lo umdos maiores pintores contemporâ-neos. É sobretudo por encontrar nopintor irlandês um exercício do pen-samento que pretende neutralizar anarração, a ilustração, a figuração.

Guiado por essa temática, Deleuzesitua Bacon na história da pintura,privilegiando Cézanne como aquelede quem mais se aproxima pela im-portância que a sensação tem em suasobras. Mas também apresenta a origi-nalidade de Bacon em relação a duastentativas contemporâneas de ultra-passar a representação nas artes plás-ticas: a pintura abstrata de Mondriane Kandinsky – que rejeita a figura-ção clássica, privilegiando as formasabstratas – e o expressionismo abstra-to, a Action Painting de Pollock – quedissolve todas as formas.

A singularidade de Bacon – pintorque não pretende representar obje-tos, histórias, personagens, mas fazquestão da figura – é apresentar umafigura não figurativa, desfigurada,deformada por forças invisíveis quevêm de fora. Assim, ao explicar a na-

tureza da violência na pintura deBacon, e mostrar, por exemplo, por-que ele pinta o grito, mais que o hor-ror, Deleuze chama a atenção para ofato de ele ser um pintor da força, daintensidade, ou para a preeminênciaexistente em sua obra da força sobre aforma. Além disso, defende que, aoapresentar esse trabalho de deforma-ção no próprio curso de sua realização,fazendo-se ao vivo, Bacon pinta não sóforças, mas também o próprio tempo.

Francis Bacon: Lógica da sensação,no entanto, não é apenas um livrosobre Bacon ou mesmo sobre pintu-ra. Ao expor os procedimentos em-pregados por ele para livrar-se da re-presentação, Deleuze estabelece umaaliança entre esse grande pintor eliteratos como Kafka, Artaud, Beckette vários outros que se notabilizarampelo mesmo projeto. Isso torna estaobra esclarecedora de um dos proce-dimentos principais utilizados porDeleuze na criação de seu própriopensamento filosófico: a transforma-ção em conceitos de elementos nãoconceituais – perceptos e afetos –oriundos da literatura e das artes.

RO B E RTO MAC H A D O

Departamento de Filosofia, UFRJ

Ilustração da capa: Francis Bacon, Três estudos para umauto-retrato, 1979.

Aquestão presente em todas as páginas deste livro é: como escaparda representação na pintura? Pois se o filósofo Gilles Deleuze

analisa detalhadamente a obra de Francis Bacon, não é apenas porconsiderá-lo um dos maiores pintores contemporâneos. É sobretudopor encontrar no pintor irlandês um exercício do pensamento quepretende neutralizar a narração, a ilustração, a figuração. ...

A singularidade de Bacon ... é apresentar uma figura não figurativa,desfigurada, deformada por forças invisíveis que vêm de fora. ...Deleuze chama a atenção para o fato de ele ser um pintor da força,da intensidade, ou para a preeminência existente em sua obra daforça sobre a forma. Além disso, defende que, ao apresentar esse tra-balho de deformação no próprio curso de sua realização, fazendo-seao vivo, Bacon pinta não só forças, mas também o próprio tempo.

Lógica da sensação é uma obra esclarecedora de um dos procedimen-tos principais utilizados por Deleuze na criação de seu próprio pensa-

mento filosófico: a transformação em conceitos de elementos nãoconceituais – perceptos e afetos – oriundos da literatura e das artes.

RO B E RTO MAC H A D O

LE I A N A M E S M A C O L E Ç Ã O:

Kallias ou Sobre a beleza, Friedrich Schiller

Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi

Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”,Roberto Machado (org.)

O nascimento do trágico, Roberto Machado

Introdução à tragédia de Sófocles, Friedrich Nietzsche

DeleuzeF

RA

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GIC

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capa bacon fim 6/27/07 5:09 PM Page 1

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Francis BaconLógica da Sensação

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Gilles Deleuze

Francis BaconLógica da Sensação

Equipe de tradução:

Roberto Machado (coordenação)

Aurélio Guerra NetoBruno Lara Resende

Ovídio de AbreuPaulo Germano de Albuquerque

Tiago Seixas Themudo

Rio de Janeiro

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Título original:

Francis Bacon: Logique de la sensation

Tradução autorizada da edição francesa,

publicada em 2002 por Éditions du Seuil, de Paris, França

Copyright © 2002, Éditions du Seuil

Uma primeira edição desta obra foi publicada em 1981

por Éditions de la Différence

Copyright da edição brasileira © 2007:

Jorge Zahar Editor Ltda.

rua México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJ

tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800

e-mail: [email protected]

site: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.

A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura francês —

Centro Nacional do Livro

Projeto gráfi co e composição: Susan Johnson

Capa: Miriam Lerner

Ilustração da capa: © The state of Francis Bacon, Três estudos para um

auto-retrato, 1979, licenciado por Autvis, Brasil, 2007 /

© Coleção particular / Connaught Brown, Londres /

The Bridgeman Art Library

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Deleuze, Gilles, 1925-1995

D39f Francis Bacon: lógica da sensação / Gilles Deleuze; equipe de tradução,

Roberto Machado (coordenação)... [et al.]. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

(Estéticas)

Tradução de: Francis Bacon: logique de la sensation

ISBN 978-85-378-0025-6

1. Bacon, Francis, 1909-1992. 2. Pintura – Filosofi a. I. Título. II. Série.

CDD: 700.1

07-2451 CDU: 75.01

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Sumário

Advertência 9

Nota à tradução brasileira 10

[01] A área redonda, a pista 11

A área redonda e seus análogos * Distinção entre a Figura e

o fi gurativo * O fato * A questão dos matters of fact * Os três

elementos da pintura: estrutura, Figura e contorno * Papel das

grandes superfícies planas (aplats)

[02] Nota sobre as relações da pintura antiga coma figuração 17

A pintura, a religião e a fotografia * A respeito de dois con-

tra-sensos

[03] O atletismo 20

Primeiro movimento: da estrutura à Figura * Isolamento *

O atletismo * Segundo movimento: da Figura à estrutura * O

corpo escapa: a abjeção * A contração, a dissipação: pias, guar-

da-chuvas e espelhos

[04] O corpo, a vianda e o espírito, o devir-animal 28

O homem e o animal * A zona de indiscernibilidade * Carne e

osso: a vianda (viande) desce dos ossos * A piedade * Cabeça,

rosto e vianda

[05] Nota de recapitulação: períodos e aspectos de Bacon 35

Do grito ao sorriso: a dissipação * Os três períodos sucessivos

de Bacon * A coexistência de todos os movimentos * As fun-

ções do contorno

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[06] Pintura e sensação 42

Cézanne e a sensação * Os níveis de sensação * O fi gurativo e a

violência * O movimento de translação, o passeio * A unidade

fenomenológica dos sentidos: sensação e ritmo

[07] A histeria 51

O corpo sem órgãos: Artaud * A linha gótica de Worringer * O

que quer dizer “diferença de nível” na sensação * A vibração *

Histeria e presença * A dúvida de Bacon * A histeria, a pintura

e o olho

[08] Pintar as forças 62

Apresentar o invisível: problema da pintura. A deformação,

nem transformação nem decomposição * O grito * O amor

pela vida em Bacon * Enumeração das forças

[09] Pares e trípticos 70

Figuras acopladas * A luta e o acoplamento de sensação * A

ressonância * Figuras rítmicas * A amplitude e os três ritmos *

Dois tipos de matters of fact.

[10] Nota: o que é um tríptico? 79

A testemunha * O ativo e o passivo * A queda: realidade ativa

da diferença de nível * A luz, reunião e separação

[11] A pintura antes de pintar... 91

Cézanne e a luta contra o clichê * Bacon e as fotografi as * Ba-

con e as probabilidades * Teoria do acaso: as marcas acidentais

* O visual e o manual * Estatuto do fi gurativo

[12] O diagrama 102

O diagrama segundo Bacon (traços e manchas) * Seu caráter

manual * A pintura e a experiência da catástrofe * Pintura abs-

trata, código e espaço óptico * Action Painting, diagrama e espa-

ço manual * O que não convém a Bacon nesses dois caminhos

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[13] A analogia 113

Cézanne: o motivo como diagrama * O analógico e o digital *

Pintura e analogia * O estatuto paradoxal da pintura abstrata *

A linguagem analógica de Cézanne e a de Bacon: plano, cor e

massa * Modular * A semelhança redescoberta

[14] Cada pintor resume à sua maneira a história da pintura... 123

O Egito e a apresentação háptica * A essência e o acidente * A

representação orgânica e o mundo táctil-ótico * A arte bizan-

tina: um mundo ótico puro? * A arte gótica e o manual * A luz e

a cor, o ótico e o háptico

[15] A travessia de Bacon 135

O mundo háptico e seus avatares * O colorismo * Uma nova

modulação * De Van Gogh e Gauguin a Bacon * Os dois aspec-

tos da cor: tom vivo e tom matizado, grande superfície plana e

Figura, superfícies e fi letes

[16] Nota sobre a cor 144

A cor e os três elementos da pintura * A cor-estrutura: as

grandes superfícies planas e suas divisões * Papel do preto * A

cor-força: as Figuras, os fi letes e tons matizados * As cabeças

e as sombras * A cor-contorno * A pintura e o gosto: bom e

mau gosto

[17] O olho e a mão 155

Digital, táctil, manual e háptico * A prática do diagrama * Re-

lações “bem diferentes” * Michelangelo: o fato pictural

Notas 163

Lista de quadros de Francis Bacon citados no texto 178

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Advertência

Cada uma das rubricas a seguir considera um aspecto dos

quadros de Bacon, numa ordem que vai do mais simples ao

mais complexo. Mas essa ordem é relativa e só vale do ponto

de vista de uma lógica geral da sensação.

É evidente que todos os aspectos coexistem. Eles con-

vergem na cor, na “sensação colorante”, que é o ápice dessa

lógica. Cada um dos aspectos pode servir de tema para uma

seqüência particular na história da pintura.

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Nota à tradução brasileira

A lista dos quadros de Francis Bacon mencionados por

Deleuze, e indicados por números na margem, está no fi nal

do livro, com os títulos em inglês e em português. As repro-

duções podem ser encontradas com facilidade em vários

sites da Internet, catálogos e livros sobre Bacon.

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[01] A área redonda, a pista

A área redonda delimita freqüentemente o lugar onde

está sentado o personagem, quer dizer, a Figura. Sen-

tado, deitado, inclinado ou em outra posição. A área

redonda ou oval pode ocupar maior ou menor espa-

ço: pode transbordar pelas laterais do quadro, estar

no centro de um tríptico etc... Muitas vezes ela é au-

mentada ou substituída pela área redonda da cadeira

na qual o personagem está sentado, pela área oval da

cama na qual está deitado. Ela se expande nas pasti-

lhas que cercam uma parte do corpo do personagem

ou nos círculos giratórios que rodeiam os corpos.

Mas até mesmo os dois camponeses só formam uma

Figura com relação a uma terra envasilhada, conti-

da estritamente na área oval de um vaso. Em suma,

o quadro comporta uma pista, uma espécie de circo

como lugar. É um procedimento muito simples, que

consiste em isolar a Figura. Há outros procedimentos

de isolação: pôr a Figura em um cubo, ou melhor, em

um paralelepípedo de vidro ou vitrifi cado; colocá-la

num trilho, numa barra estirada, como no arco mag-

nético de um círculo infi nito; combinar todos esses

meios, a área redonda, o cubo e a barra, como nos

estranhos sofás avolumados e arqueados de Bacon.

São lugares. De todo modo, Bacon não esconde que

tais procedimentos são quase rudimentares, apesar

[3, 4]

[14, 17]

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[22]

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Francis Bacon: Lógica da sensação12

das sutilezas de suas combinações. O importante é que eles

não forcem a Figura a se imobilizar; pelo contrário, devem

tornar sensível uma espécie de itinerário, de exploração da

Figura no lugar, ou em si mesma. É um campo operatório.

A relação da Figura com seu lugar isolante defi ne um fato: o

fato é... o que acontece... E a Figura, assim isolada, torna-se

uma Imagem, um Ícone.

Não apenas o quadro é uma realidade isolada (um fato),

não apenas o tríptico possui três painéis isolados que não se

devem, sobretudo, reunir numa única moldura, mas a própria

Figura também está isolada no quadro, pela área redonda ou

pelo paralelepípedo. Por quê? Bacon diz com freqüência: para

conjurar o caráter fi gurativo, ilustrativo, narrativo que a Figura

necessariamente teria se não estivesse isolada. A pintura não

tem nem modelo a representar, nem história a contar. Por

isso, possui como que duas vias possíveis para escapar do fi -

gurativo: em direção a uma forma pura, por abstração; ou em

direção a um puro fi gural, por extração ou isolamento. Se o

pintor faz questão da Figura, se toma a segunda via, será para

opor o “fi gural” ao fi gurativo.1 A primeira condição é isolar a

Figura. O fi gurativo (a representação) implica, com efeito, a

relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar;

mas implica também a relação de uma imagem com outras

imagens em um conjunto composto que dá a cada um o seu

objeto. A narrativa é o correlato da ilustração. Entre duas fi -

guras, há sempre uma história que se insinua ou tende a se

insinuar para animar o conjunto ilustrado.2 Isolar é, então,

o modo mais simples, necessário, embora não sufi ciente, de

romper com a representação, interromper a narração, impe-

dir a ilustração, liberar a Figura: para ater-se ao fato.

Evidentemente o problema é mais complicado: não ha-

veria outro tipo de relação entre as Figuras que não fosse

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A área redonda, a pista 13

narrativo, e do qual não decorreria nenhuma fi gura-

ção? Figuras diversas que levariam ao mesmo fato,

que pertenceriam a um mesmo fato único, em vez de

contar uma história e remeter a objetos diferentes em

um conjunto de fi guração? Relações não narrativas

entre Figuras, e relações não ilustrativas entre as Fi-

guras e o fato? Bacon não parou de fazer Figuras aco-

pladas que não contam história alguma. Além disso,

os painéis separados de um tríptico têm uma relação

intensa entre si, mesmo que esta relação nada tenha

de narrativa. Bacon reconhece com modéstia que a

pintura clássica conseguiu constantemente traçar

esse outro tipo de relação entre Figuras, e que essa

ainda é a tarefa da pintura por vir: “... evidentemente

muitas das maiores obras-primas foram feitas com

um determinado número de fi guras numa mesma

tela, e é natural que todo pintor queira muito fazer

isso. ... Mas a história que é contada de uma fi gura a

outra anula antes de mais nada as possibilidades que

a pintura tem de agir por si mesma. Há nisso uma

grande difi culdade. Mas um dia surgirá alguém capaz

de pôr diversas fi guras numa mesma tela.”3

Qual seria então esse outro tipo de relações en-

tre Figuras acopladas ou distintas? Chamemos essas

novas relações de matters of fact, por oposição às re-

lações inteligíveis (de objetos ou de idéias). Mesmo

se reconhecermos que Bacon já conquistou ampla-

mente esse domínio, é sob aspectos mais complexos

do que aqueles que consideramos agora.

Ainda estamos no aspecto simples do isola-

mento. Uma fi gura está isolada na pista, na cadeira,

na cama ou no sofá, na área redonda ou no parale-

[14, 17]

[5, 19]

[22, 25]

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Francis Bacon: Lógica da sensação14

lepípedo. Ela só ocupa uma parte do quadro. O que

preenche, então, o restante do quadro? Para Bacon,

algumas possibilidades estão excluídas, ou não têm

interesse. O que preenche o resto do quadro não será

uma paisagem, como correlata da fi gura, nem um

fundo do qual surgiria a forma, nem um informal,

claro-escuro, espessura da cor onde se moveriam as

sombras, textura onde se daria a variação. Mas ca-

minhamos rápido demais. Há, no início da obra, Fi-

guras-paisagens, como o Van Gogh, de 1957; há tex-

turas extremamente nuançadas, como Figura numa

paisagem ou Figura estudo I, de 1945; há espessuras e

densidades como a Cabeça II, de 1949; e há sobretudo

o suposto período de dez anos, que Sylvester diz ser

dominado pelo sombrio, o obscuro e a nuance, an-

tes de retornar ao preciso.4 Mas isso não exclui o fato

de que aquilo que é destino passa por desvios que

parecem contradizê-lo. Pois as paisagens de Bacon

são a preparação do que aparecerá mais tarde como

um conjunto de curtas “marcas livres involuntárias”

riscando a tela, traços assignifi cantes desprovidos de

função ilustrativa ou narrativa: daí a importância

da relva, o caráter irremediavelmente relvado des-

sas paisagens (Paisagem, 1952; Estudo de fi gura numa

paisagem, 1952; Estudo de babuíno, 1953; ou Duas fi -

guras na relva, 1954). Quanto às texturas, ao espesso,

ao sombrio e ao fl ou, eles já preparam o grande pro-

cedimento de limpeza local, com pano, vassourinha

ou escova, em que a espessura é estendida sobre uma

zona não fi gurativa. Ora, os dois procedimentos, o de

limpeza local e o de traço assignifi cante, pertencem

a um sistema original que nem é o da paisagem, nem

[1]

[7, 8]

[11]

[12]

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[2]

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A área redonda, a pista 15

o do informal ou do fundo (apesar de estarem aptos,

em virtude de sua autonomia, a “se fazer” paisagem,

fundo e até sombra).

O que ocupa sistematicamente o resto do qua-

dro são grandes superfícies planas (aplats) de cor

viva, uniforme e imóvel. Finas e duras, elas têm

uma função estruturante, espacializante. Mas não

estão embaixo da Figura, atrás ou para além dela.

Estão rigorosamente ao lado, ou melhor, em volta,

e são apreendidas por e em uma visão próxima, tá-

til ou “háptica”, assim como a própria Figura. Nes-

se estágio, não há relação alguma de profundidade

ou de distanciamento, nenhuma incerteza das luzes

e das sombras, quando se passa da Figura às gran-

des superfícies planas. Nem a sombra nem mesmo

o preto são sombrios (“tentei tornar as sombras tão

presentes quanto a Figura”). Se as grandes superfí-

cies planas funcionam como fundo, é sobretudo em

virtude de sua estrita correlação com as Figuras, é a

correlação de dois setores num mesmo Plano igualmente

próximo. Essa correlação, essa conexão, é dada pelo

lugar, pela pista ou pela área redonda, que é o limite

comum aos dois, o seu contorno. É o que diz Bacon

em uma importante declaração, à qual voltaremos

muitas vezes. Ele distingue na sua pintura três ele-

mentos fundamentais: a estrutura material, a área

redonda-contorno e a imagem. Se pensarmos em

termos de escultura, é preciso dizer: o suporte, o pe-

destal que poderia ser móvel, a Figura que passeia no

suporte com o pedestal. Se fosse preciso ilustrá-los

(e é preciso, de certo modo, como em Homem com

o cachorro, de 1953), diríamos: uma calçada, poças, [16]

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Francis Bacon: Lógica da sensação16

personagens que surgem das poças e fazem seu “pas-

seio cotidiano”.5

Só mais tarde poderemos procurar o que esse

sistema tem a ver com a arte egípcia, com a arte bi-

zantina etc. O que conta agora é a proximidade ab-

soluta, a co-precisão, da grande superfície plana que

funciona como fundo e da Figura, que funciona como

forma, no mesmo plano de visão próxima. É esse sis-

tema, essa coexistência de dois setores um ao lado do

outro, que fecha o espaço, que constitui um espaço

absolutamente fechado e giratório, muito mais do

que se procedêssemos com o sombrio, o obscuro ou

o indistinto. Eis por que há fl ou em Bacon, até mes-

mo dois tipos de fl ou, mas que pertencem ambos a

esse sistema da mais alta precisão. No primeiro caso,

o fl ou é obtido não por indistinção, mas, ao contrá-

rio, pela operação que “consiste em destruir a niti-

dez pela própria nitidez”.6 Por exemplo, o homem

de cabeça de porco, Auto-retrato, de 1973. Ou ainda

o tratamento dos jornais, amassados ou não: como

diz Leiris, os caracteres tipográfi cos são nitidamen-

te traçados, e é sua própria precisão mecânica que se

opõe à sua legibilidade.7 No outro caso, o fl ou é obtido

pelos procedimentos de marcas livres, ou de limpe-

za, que também pertencem aos elementos precisos

do sistema (haverá ainda outros casos).

[9]