A Doce Vida Na Umbria - Marlena de Blasi

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Marlena de Blasi

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Ttulo original: The Lady in the PalazzoCopyright 2007 por Marlena de BlasiCopyright da traduo 2012 por GMT Editores Ltda.Publicado mediante acordo com Algonquin Books of Chapel Hill, umadiviso da Workman Publishing Company , Nova York.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode serutilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorizaopor escrito dos editores.

    traduo: Livia de Almeidapreparo de originais: Rachel Agavinoreviso: Ana Grillo, Ana Kronemberger e Ana Lcia Machadoprojeto grfico e diagramao: Marcia Raedcapa: Raul Fernandesimagem de capa: Jonathan Ross / Spaces Images / Corbis / Corbis (DC) / Latinstock

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    D337dDe Blasi, Marlena

    A doce vida nambria [recursoeletrnico] / Marlenade Blasi [traduo deLivia de Almeida].Rio de Janeiro:Sextante, 2012.

    recurso digital

  • recurso digitalTraduo de: Lady in

    the palazzoFormato: ePubRequisitos do

    sistema: AdobeDigital Editions

    Modo de acesso:World Wide Web

    ISBN 978-85-7542-835-1 (recursoeletrnico)

    1. De Blasi,Marlena -Residncias e lugareshabituais - Umbria(Itlia). 2. Umbria(Itlia) - Descries eviagens. 3. Umbria

  • viagens. 3. Umbria(Itlia) - Usos ecostumes. 4. Livroseletrnicos. I. Ttulo.

    12-5396 CDD: 945.65 CDU: 913(450.55)Todos os direitos reservados, no Brasil, por GMT Editores Ltda.Rua Voluntrios da Ptria, 45 Gr. 1.404Botafogo 22270-000 Rio de Janeiro RJTel.: (21) 2538-4100 Fax: (21) 2286-9244E-mail: [email protected]

  • Per lamore mio, Fernando Filiberto MariaIl gran bel gentiluomo di Venezia

    Per Alberto RomiziIl gran bel gentiluomo di Perugia

    Per Chuck AdamsIl gran bel gentiluomo di Chapel Hill

    Per Alberto BettiniIl gran bel gentiluomo di Savigno

    Per Rosalie SiegelLa gran bella donna di Pennington

    Per Edna TromansDolcezza con occhi blu

  • SUMRIO

    Parte Um: A prxima casa1. Uma vida bem vivida anda para trs2. A verdade, dura e quente, tem seus prazeres3. De vez em quando, deixe a vida se moldar sozinha4. A vida vivida em eras

    Parte Dois: Esperando por um salo de baile5. a mbria que est l fora6. H um trao de glria em todos os lugares de Orvieto7. Bombastes voltou para a cidade8. A mbria a Itlia sem misturas9. Ela diz que as pessoas precisam ficar juntas tanto quanto precisam comer

    10. No fundo, todos eles tm algo de paspalho, Chou11. Preferi uma valsa com uma beldade a uma vida inteira com uma mulher menos rara12. Espere at a meia-noite, se puder13. Durmam bem e acordem cedo com a abundncia dos sinos14. A maioria de ns reside em runas15. Gostaria de ficar com o cabelo da cor de fios de cobre desencapados16. E tenham cuidado com Edgardo dOnofrio17. Os orvietani18. Vamos morar num salo de baile, Fernando. No a coisa mais maravilhosa que voc j

    ouviu?19. Brahms s oito horas, do outro lado do vicolo

    Parte Trs: Via del Duomo20. De onde venho, convidamos os vizinhos e amigos para jantar21. Smokings e vestidos bonitos22. A senhora gostaria de uma valsa?

    O BanqueteReceitas

    Peras de inverno passadas na panela com pecorino e focaccia de nozesUmbrichelli com olivadaPernil de porco assado em fogo baixo com vinho tinto e ameixasPolenta de castanha assadaGelato de acar mascavo com laranjas sicilianas carameladasFriturinhas de sambuca

  • Era o aniversrio de Don Paolo e todas as pessoas da aldeia estavamreunidas na piazza para festejar. A banda tocava, as crianas danavam,vinho era servido e, quando ele ficou sozinho por um momento sob aprgula, uma menininha se aproximou do sacerdote to querido.

    Don Paolo, voc no est feliz? perguntou-lhe. Claro que estou feliz garantiu ele para a menina. Ento por que voc est chorando?

  • Parte Um

    A prxima casa

  • A1

    Uma vida bem vivida anda para trs

    s linguias haviam sido assadas no forno mais cedo, neste mesmo dia. Agora, rolias ecrocantes, ainda nos tabuleiros rasos de metal, so mantidas aquecidas sobre uma das bocas dofogo lenha, seu aroma perfumando a piazza e abrindo o apetite. Perto dali, em outra mesa, huma grande panela sobre um fogareiro a gs, cheia de litros e litros de vinho tinto produzido naregio. Laranjas inteiras, espetadas com cravos, flutuam no lquido arroxeado e uma mulhercom chapu de pele e um casaco sobre o avental, de p em cima de uma escada, mistura ovinho com uma longa colher de pau. Quase todo mundo que passa lhe diz a mesma coisa:

    No deixe ferver, Mariuccia. Per carit, non farla bollire. Pelo amor de Deus, no deixeferver!

    Mariuccia cuida de sua infuso com cime, sem deixar de conversar com o homem dapolenta, do outro lado da piazza, cujo caldeiro de cobre, surrado e escurecido, est penduradoem uma armao de ferro sobre uma pilha de brasas vermelhas e brancas que ardem dentro deum pequeno crculo de pedras. Um longo avental branco cobre a cala jeans e apenas umacamiseta do U2 o protege naquela tarde no final de janeiro, o algodo fino esticando-se contra opeito enquanto ele bate sua papa apetitosa com um cabo de vassoura, mexendo sempre namesma direo. Misturar a polenta no sentido anti-horrio flertar com a calamidade. Qualquerpessoa que more na mbria pode lhe garantir isso.

    Polenta incatenata stasera diz ele a Mariuccia.Polenta acorrentada esta noite. Ele aponta para uma grande tigela cheia de feijes-brancos

    que vai misturar farinha de milho quando ela estiver grossa e lisa. Em algum sculo passado,uma pessoa muito criativa deve ter achado que os feijes-brancos em meio espessa pastaamarela lembravam uma corrente. Para os mbrios, saber como uma coisa aconteceu importamenos do que o fato de esta coisa ter sido preservada, por isso o prato ser para sempre chamadode polenta acorrentada.

    Um dos lados da piazza cercado por um muro de pedra no qual h uma porta baixa demadeira. Cruzando a porta e descendo meio lance de degraus ngremes chega-se a um grotto,uma espcie de adega transformada em cozinha comunitria, completa, com gerador e luzes.Um pedao de mrmore apoiado em cavaletes serve de bancada de trabalho e encontra-secoberto de farinha. leo borbulha em duas panelas fundas colocadas sobre um fogo lenha.Esta noite, a cozinha o cenrio onde mulheres misturam, amassam e fritam massa de po.Todas usam o uniforme local avental florido, xale ou blusa de l e esto paramentadas para oinverno com gorros ou cachecis de tric. Essas mulheres moram a poucos metros da piazza,algumas nos apartamentos dentro dos palazzi localizados bem na praa. Mas em vez decozinharem sozinhas cada uma em sua casa , preferem se reunir e preparar os banquetes daaldeia, fazer compotas com frutas que acabaram de cair das rvores ou com uma fartura detomates, colocar seus queijos para amadurecer e pernis para marinar. E possvel sentir que,para elas, a cozinha tambm tem outro propsito, algo mais simptico, como um clube, um bar

  • ou uma sala de carteado para seus maridos. Duas das mulheres entram nesse instante, dividindo opeso de um saco de farinha. Outras duas saem, cada uma segurando um dos lados de um caixotede vinho repleto de pes chatos chamados tortucce, que acabaram de sair da frigideira. Ummomento depois, outra mulher sai da cozinha. Ela leva um caixote cheio de pes equilibrado deforma singular sobre a cabea, e vai balanando os quadris largos em meio multido. O velhocasaco azul, que ela usa aberto, revela seios dignos da deusa Juno, macios e morenos, explodindodos confins do vestido. Ela provoca gritos de alegria. Um homem morde a lateral do dedo, umsinal de desejo e admirao.

    Ciao, bellezza. Ciao, Miranda, bella mia gritam eles.Miranda coloca os pes perto das linguias e ento, para o divertimento de todos, faz com que

    um dos homens mais baixos se levante e promete queim-lo at a morte, caso ele no secomporte. Miranda tem quase 70 anos e o homem com quem ela brinca j passou dos 80. Osdois diro que esto mais jovens agora que envelheceram, que uma vida bem vivida anda paratrs. Assim como o fato de que h apenas uma forma correta de mexer a polenta, essa outraverdade da mbria. A verdade nmero dois.

    E assim se apronta o jantar de celebrao de Santo Antnio. O santo o padroeiro destepovoado e, para estas pessoas, sua presena e sua imagem so to familiares quanto a de um tioquerido. Sentem-se to vontade com o sagrado como uns com os outros, os dois tipos derelacionamento so mistrios que no precisam de soluo. E comeo a achar que essa deve sera verdade nmero trs da mbria.

    Agora, todas as cozinheiras vo para a piazza, esfregando as mos nos aventais, fechando oscasacos, se embrulhando mais nos xales, juntando-se centena de pessoas que anda de um ladopara outro trocando cumprimentos e expectativas. Os poucos, como ns, que vieram de povoadosvizinhos, tanto da mbria quanto da Toscana, so recebidos com prazer, levados para l e parac pela piazza para conhecer os outros. O ar est carregado. Est quase na hora. H suspense atmesmo na luz, como se uma pea antiga de cetim tivesse sido esticada demais pelo cu e o solpoente penetrasse pelas partes esgaradas, derramando um grande e clido esplendor sobre afestividade, paralisando-a por um momento e sem dvida captando-a para a eternidade, como odisparo de uma cmera antiga ou os traos de um pincel mergulhado em tinta dourada. Amultido parece formada por crianas ansiosas para que as portas se abram e a festa comece.Uma igreja cheia de gente aguardando a noiva. Esperam pelo santo e pelo fogo que vai honr-lo.Mas agora, sem o sol, faz mais frio e a espera comea a parecer longa demais.

    A salvao chega dos fundos da praa. Trs homens se aproximam segurando bem alto feixesde galhos, como se fossem espadas desembainhadas. So trs geraes de uma famlia umhomem ladeado pelo pai e pelo filho. Os trs se chamam Antnio. Vindo de outra direo, umhomem pequeno, vestido com trajes prpura, com a cabea descoberta e brandindo uma tochaacesa, caminha at eles. o bispo. Como coroinhas, os trs Antnios se ajoelham nas pedras docalamento, diante dele. O bispo beija o topo de suas cabeas abaixadas, acende cada um dosfeixes com sua tocha e, num movimento rpido e coreografado, os quatro arremessam suaschamas em uma grande pirmide de madeira cepos de carvalho, partidos e encharcados comgasolina, empilhados uns sobre os outros. um totem primitivo e terrvel. Tem 18 metros dealtura, porm parece ainda maior agora que o fogo, turbulento, lambe a casca negra e oleosa damadeira. A multido tomada por um fascnio primal e, a no ser pela ausncia do cordeiro ou

  • da virgem de pele clara para o sacrifcio, as chamas ritualsticas no so muito diferentes das deseus antepassados. So como uma tribo pag recitando salmos, a uma nica voz desafiadora, nafumaa vermelha da fogueira de Santo Antnio. As pessoas lembram a si mesmas e s outrascomo todos ns somos pequenos diante do mundo. E essa a verdade nmero quatro da mbria.

    Ti piacciono, heh? Gosta disso? pergunta o padeiro para um homem que atacadespudoradamente um sanduche suculento, gotejante, feito de linguia e po frito. Le hoarrostite io. Fui eu que as assei.

    Ma, io le ho preparate. Mas foram feitas por mim reclama o aougueiro. Ma, guardate, ragazzi, sono io che ho ammazzato il maiale. Ora, rapazes, fui eu quem matou

    o porco diz o fazendeiro, provocando uma srie de tapinhas nas costas e imprudentes batidas decopos.

    Como um relicrio num templo, h uma roda de queijo arrumada sobre uma mesa comtoalha branca, flanqueada por velas. Pecorino ignorante, como o chamam. Trata-se de queijode leite de ovelha feito moda antiga, o que significa que foi feito ignorando-se as modernasleis sanitrias. Na verdade, um pecorino ilegal, feito da maneira como deve ser, diz o pastorque o produziu, tamborilando com o n dos dedos naquela forma, procura de uma rachaduranatural. Do mesmo modo como um escultor tenta se familiarizar com uma pedra.

    Por que sempre se imagina que um pastor tenha certa idade, seja desdentado, embrulhado empeles, com um chapu pontudo enfiado at a testa? Este talvez tenha 30 anos, com olhos verdes eclaros como azeite recm-prensado, bem separados no rosto em forma de corao. Com umsuter de gola rul cor de creme e um belo par de botas, ele faz parte da sexta gerao de umafamlia de criadores de ovelhas e produtores de queijo e mora com seus parentes em uma casade pedra do sculo XVIII, cercada por brejos e campinas onde seus rebanhos pastam. Anda emuma Harley -Davidson, mas a deixa em um abrigo nos limites de sua propriedade, para noincomodar as ovelhas. Seu queijo uma roda de trs quilos embrulhada em folhas de tabaco,envelhecida durante dois anos em uma urna de terracota que uma relquia de famlia desfaz-se em farelos cor de bronze quando ele parte a casca com uma faca de paleta e um martelinho.As pessoas fazem fila para pegar o queijo, cada uma segurando um copo de papel contendo melnegro. Uma delas reclama seu pedao e, antes de mord-lo, mergulha-o no mel e come como sefosse o nico alimento do mundo. Queijo ignorante, de fato.

    Outra mesa est posta, com nove ou 10 verses de azeite de oliva e de bolo perfumado porflor de laranjeira. Cada um tem a aparncia e o gosto um pouquinho diferente dos outros, deacordo com a mo e a alma de quem o preparou. A maioria das pessoas, rendendo-se educao e gula, prova de todos. Enquanto isso, Mariuccia ainda est empoleirada na escada,realimentando sua panela com vinho frio antes do primeiro sinal de uma borbulha e Miranda-dos-Seios-Fartos fala dos milagres de Santo Antnio para um grupo de crianas que soluam e seengasgam enquanto brigam para ver quem tem o direito de ficar com um balo prateado.

    Soubemos dessa festa de Santo Antnio por causa dos cartazes escritos mo em letras deimprensa enormes presos em todos os postes e debaixo de todas as pontes junto da estrada que

  • segue pela margem do lago: FESTA DI SANT ANTONIO ABATE, 17 GENNAIO. Viu aquele cartaz? hoje. a noite de SantAntonio. Voc quer ir? arrisquei-me a

    perguntar, apesar da boca de meu marido estar curvada para baixo, de haver matizes raivososem suas bochechas e de ele bater ritmadamente as mos no volante. Estvamos voltando paraSan Casciano depois de outro dia perdido em busca de uma casa. A prxima casa, como dizBarlozzo.

    Com o tempo, a gente acaba ficando imune enganao, ao deslumbramento, ao delicadoassovio de desdm que podem ser caractersticos do negcio de compra e venda ou mesmo delocao de algo to subjetivo quanto paredes e o espao entre elas. Mas o dia de hoje foi s dezombaria. Assim, quando Fernando no respondeu minha pergunta sobre a festa, fiquei emsilncio. Compreendi que ele estava determinado a afastar seus pensamentos homicidas de umcerto corretor de barba ruiva.

    O tal corretor havia nos levado para ver o que ele chamava de casa de campo em uma dascomunas que cercam a deslumbrante cidade de Todi, na colina. Durante todo o tempo quepassamos no carro com Barba Ruiva, ele teceu comentrios entusiasmados sobre a espantosasuavidade da luz e como, a qualquer hora do dia, ela tomava conta da casa que iramos ver.

    Luminosissima, a mais clara das luzes dizia, enquanto nos aproximvamos do lugar.E era mesmo, uma vez que no havia qualquer coisa parecida com um telhado. Ah, sim, o telhado. J foi providenciado estamos s esperando pelos permessi, as licenas,

    do Comune, a prefeitura. Vocs sabem que essas coisas no esto sob nosso controle, mas nosgarantiram que a obra pode comear dentro de uma semana. Vai ser concluda em questo demeses.

    Quantas vezes ouvimos a ladainha dos permessi, quantas vezes nossas perguntas eperplexidades foram silenciadas pela absolvio automtica dada a um corretor graas simplesmeno de Il Comune?

    Enquanto isso, olhem: h mais dois aposentos na adega disse ele, empurrando a portaapodrecida, que se abriu para uma caverna ftida atulhada com ferramentas e vasos, resquciosde dias melhores.

    Senti-me subitamente exausta, querendo no ter mais nenhuma ligao com o Barba Ruiva oucom os permessi. No que dizia respeito ao grande conceito de Il Comune, bem

    Vocs tm de admitir, signori, que o sonho de todos os estrangeiros, no ? prosseguiuBarba Ruiva. Viver sob o sol italiano.

    Disse aquilo enquanto arrancava ptalas secas de um arbusto de hortnsias, at ele cansadodemais para a encenao. Contrariado e silencioso, levou-nos de volta ao centro da cidade,desenroscando um belo cachecol verde do pescoo no caminho. Um ator despindo o figurino.Mas Barba Ruiva fora apenas o desfecho daquele dia. O espetculo havia comeado s oito damanh.

    A primeira parada foi uma visita a un appartamento in affitto, centro storico di Todi; terzopiano di un palazzo prestigioso del Settecento, restaurato in modo pittoresco: apartamento paraalugar no centro histrico de Todi, terceiro andar de um famoso palcio do sculo XVIII,restaurado de forma pitoresca. Ao chegarmos ao endereo, j ficamos inebriados ao passar peloportone e entrar em um ptio. H um longo corredor mal iluminado, com runas de mrmorequebrado colunas em cor de vinho e castanho-avermelhado espalhadas por toda parte, inertes

  • e lustrosas sob a luz empoeirada.Com os coraes disparados, sorrindo um para o outro por conta de nossa sorte, subimos os

    degraus rasos, mal tocando no cordo de veludo do corrimo, mal tocando nos prprios degrausda escada em curva, que sobe por trs andares at terminar abruptamente diante de um par degrandes portas de madeira entalhadas, chanfradas, decoradas com cornijas, brilhantes comouvas negras e maduras. Fao uma pausa para recuperar o flego. Duas cabeas de mouro emlato servem de aldrava. Bato com fora uma, duas, trs vezes. Recuo espera do momento deentrar em minha nova casa, alisando o casaco, ajeitando o chapu para que ele fique exatamenteacima de minhas sobrancelhas. Onde est Fernando? Bufando, ele completa a ltima curva assimque a porta aberta pelo signore Luca, da imobiliria. As mesuras e os apertos de moacontecem diante da porta.

    Apenas a soleira separa o sublime do pitoresco. Tetos rebaixados, paredes de gessoperfeitas, quebra-luzes espinhosos em branco leitoso sobre lmpadas de alta voltagem e pisos deborracha compem a essncia do salone, todo ele clinicamente estrangulado, vandalizado detodos os vestgios arquitetnicos e culturais, temas e sentimentos do Renascimento. Mas comcerteza vai melhorar, digo a mim mesma. Sei que o corretor e meu marido gracejam atrs demim, mas no escuto nada alm de meu prprio rosnado rabugento. Abro e fecho uma porta demadeira oca aps outra, a princpio devagar, depois cada vez mais depressa, at ter tocado emtodas e constatar que o massacre foi completo. Os seis quartos so cubos ps-modernos,quadrados com menos de trs metros de lado. H duas banheiras com gabinetes metlicos para ochuveiro, apertadas contra um minsculo vaso sanitrio infantil. A cereja do bolo uma cozinhapr-fabricada jogada em um canto sombrio por trs de uma meia parede de plstico amarelo-escuro com relevos. Fernando, mais educado do que eu diante da maior parte dos horrores, ouveo signore Luca, recitando, com um ar sonso, o potencial do apartamento.

    Ele diz que poderamos alugar quartos para estrangeiros que vm a Todi estudar italiano, fazercursos de msica ou pintar e esculpir. Melhor ainda, podemos estabelecer alguma espcie derapporto eufemismo para propina com a gerncia do teatro local, para que nos enviematores, astros de rock e tcnicos. Ns temos ideia de quantos tcnicos de iluminao e som sonecessrios para realizar o mais simples espetculo? Tudo o que precisamos fazer manternossas tarifas mil ou 2 mil liras abaixo do valor praticado pelo hotel mais barato e estaremosfeitos, afirma ele, sacudindo os braos e jogando a cabea para trs, como se estivesse regendouma execuo da Appassionata de Beethoven. Nem passou pela cabea do signore Luca queestivssemos procurando um apartamento para uso pessoal e que no manifestamos, para elenem para ningum, o menor desejo de manter uma hospedaria para msicos itinerantes.

    De um cubculo detrs de uma porta em um dos quartos, surge o coadjuvante dessaencenao, Adolfo. Os dois esto determinados a alugar este lugar. Nesta manh. Para ns oupara qualquer um dos 12 eu contei outros visitantes impressos em fonte Book Antiqua, corpo22, numa pgina presa agenda de couro de Luca. Fernando continua a demonstrar seu interessecorts e fingido, a cabea inclinada de forma encantadora, pensativo, sem demonstrar reaoquando belisco com fora seu brao. O gato e a raposa querem assinaturas, depsitos,carimbagens repetidas do cartrio em pelo menos 300 pginas de formulrios impressos ereunidos segundo as normas do Estado, que esperam apenas o preenchimento dos dados pessoaisdo locatrio. Querem tudo isso antes da hora do almoo.

  • Aproveito a deixa de Fernando. Paro com os belisces e com minhas repeties nem to asotto voce de xingamentos em ingls, francs e espanhol. Tambm inclino a cabea. Se isso vainos tirar daqui mais rpido do que xingamentos cochichados, o que farei. Tudo o que desejo descer correndo as escadas majestosas, atravessar aquele ptio esplndido e sair para o friocrepitante do inverno da mbria. Depois, gostaria de tomar um espresso.

    Estamos sentados em um caff, as xcaras vazias afastadas para o lado. Sei que meu marido seprepara para fazer uma declarao, em voz baixa, sobre postura cultural.

    Aqui, deixe-me ler o anncio para voc outra vez. o que ele faz, com sua voz astuta. E, no mesmo tom, explica que cada uma daquelas

    palavras verdadeira. O apartamento no fica no centro histrico de Todi? No se encontra noterceiro andar de um famoso palcio do sculo XVII? E, uma vez que estilo algo subjetivo,podemos aceitar que a restaurao do espao foi feita de forma pitoresca. Pitoresco, enquantoexpresso, no promete que uma coisa ser pitoresca para ningum alm do restaurador.

    O fato de voc ter ficado louca com o que fizeram com o apartamento no significa queestavam tentando engan-la. Foram suas expectativas que a frustraram. Algum, algum dia, vaichegar e achar que aquele lugar absolutamente satisfatrio. As decises sobre a arquitetura deexteriores so o domnio dos planejadores urbanos, dos guardies do patrimnio. Mas o que umproprietrio faz no interior de seu imvel no interessa aos administradores municipais. Oconceito de restauraes abusivi se aplica apenas fachada de um palazzo. Esquadrias dejanelas, inclinao de telhado ou a altura de uma chamin: nenhum detalhe exterior pode serajustado de uma forma minimamente evidente ou invasiva. Mas o interior, do ponto de vistaarquitetnico, uma tela em branco. Se aceitar isso como verdade absoluta, a procura de umacasa nessa parte do mundo se tornar mais fcil para voc. Ele encerra o discurso com ummovimento horizontal das mos. Como se estivesse puxando um caramelo. Sinal de que no hmais nada a ser dito. Pelo menos, por mim.

    Fico ali sentada, assimilando o que posso do discurso, juntando os fragmentos de verdadesobre o mercado imobilirio italiano com os quais me conformei muito tempo antes dessamanh. De fato, a coerncia nacional maior com relao aos imveis do que em qualqueroutro setor da cultura italiana. No pas inteiro a mesma coisa. Pode-se comprar uma runa e arestaurar, ou alugar uma antiga runa restaurada, com amor e dedicao, por outra pessoa que jno pode arcar com as despesas, mas que detestaria se desfazer da casa. No entanto, a maioriadas propriedades que recaem nesta ltima categoria s est disponvel para locaes sazonais. cada vez mais raro encontrar um lugar restaurado de forma honrada para se alugar a longoprazo. Os melhores apartamentos, casas na cidade ou no campo e villas so alugados no veropor valores exorbitantes, que diminuem apenas um pouco em outras pocas do ano. Nossaexperincia dessa manh uma variao sobre o tema do que est disponvel para aluguel delongo prazo, no apenas em uma cidade nas colinas da mbria ou da Toscana, mas em toda aItlia.

    No entanto, at o racionalidade de Fernando se desgasta com o passar das horas, dissolvendo-

  • se finalmente sob a luz de janeiro. Barba Ruiva havia embolsado o que restava da boa vontade doveneziano. Agora ele est agitado, faz as curvas com mais velocidade do que deveria,vilipendiando a pennsula inteira com toda a sua populao. No tento reconfort-lo. Ele italianoe o dia lhe forneceu todos os motivos maravilhosamente legtimos para estar atormentado. Vai seenfurecer e praguejar na privacidade do carro, tendo somente a mim como plateia. H alegriano sfogo, desabafo, e ele ter a sua, sem interrupes. Fernando desfrutou dos acontecimentos dodia com prazer, ou pelo menos quis que todas as testemunhas acreditassem nisso, sem que suabella figura boa imagem apresentasse um vinco sequer. Eu, porm, reagi da maneira comome sentia, invocando a figuraccia imagem ruim a cada passo. Fernando se preocupa com aforma como os outros o veem. Eu me importo com o que sinto. Sei que vai haver pelo menosmais uma pancada no volante, com a mo espalmada. E talvez haja tempo para outra jura devendetta. Ento me pergunto se ele no estaria pronto para uma fogueira e um pouco de linguiaassada, uma taa de vinho quente temperado com especiarias. Ele estava. Assim, o fogo e acomida, o vinho quente de Mariuccia, a gentileza de desconhecidos, tudo isso contribuiu paraacalm-lo. Mais uma vez, Fernando est apaixonado por seu pas e por seus conterrneos.

    Sem suas roupas oficiais prpura, substitudas agora por calas de veludo cotel e colete, o bispopede ateno. Est chegando a hora de sortear o prmio da noite. Um carrinho de mo ummodelo preto e reluzente, emprestado pela loja de ferramentas est forrado com umadesbotada toalha de mesa amarela muito bem passada. Dentro dele, empilhados de formaprecria, h salame, prosciutto e queijo, fieiras de figos secos e folhas de louro, roms, caquisainda em seus galhos, sem as folhas. Massas caseiras embrulhadas em toalhas de cozinhadividem espao com massas secas, em caixas de papelo. Pes, bolos, tortas de geleia e biscottiderramam acar sobre tudo. E h jarros e mais jarros de vinho caseiro. Cada item foi doadopor um aldeo, sua tarifa pela noite. Alm disso, cada um compra um bilhete da rifa, que custa5 mil liras, mais ou menos 2,50 dlares. A renda da venda dos bilhetes entregue s mulheres daaldeia, que usam o dinheiro, quando necessrio, para bancar o festival e, com o que sobra, graas sua parcimnia, podem realizar um ou outro jantar improvisado. Gosto do fato de nada nocarrinho de mo estar separado, do modo como a fruta fica sobre o queijo desembrulhado, comoos bolinhos cambaleiam vontade, como todo o conjunto um estudo natural sobre aabundncia.

    Outro estudo natural sobre a abundncia o vencedor. um menino pequeno, gorducho, comgrandes olhos castanhos e manchas avermelhadas nas bochechas morenas. A princpio, parecetmido, puxando a mo de sua me, querendo a companhia dela quando vai reivindicar o prmio.Percebendo sua hesitao, o bispo empurra o carrinho para o garoto e a multido urra em sinalde aprovao. As mos do menino, cobertas por luvas marrons, assumem o carrinho e, depois deconsultar rapidamente a me, ele o empurra pela piazza. Aps decidir dividir suas riquezas com amultido, pede s pessoas que escolham o que quiserem. s vezes, o garoto para e explica comocozinhar alguma coisa, como fati-la ou servi-la. Com frequncia, revira os olhos ante o delriocausado por suas descries e sugestes.

  • Pergunto me envaidecida qual a idade do menino. Vai completar 10 anos em breve. Elaest corada e com os olhos marejados, ajeitando o agasalho, passando a mo nos cachos de seucabelo negro e cheio. Ningum, muito menos ela, vai falar a respeito do crculo de generosidadeque acabou de se fechar com seu filho aqui, numa cidadezinha da mbria, sob a luz do fogo deSanto Antnio.

    H danas acontecendo no salo da igreja. Num palco improvisado uma mesa precariamenteequilibrada, enfeitada com papel vermelho para a ocasio , um acordeonista e um tecladistatocam de olhos fechados, entoando palavras diferentes. No h lugar ali em cima para otrombonista, que desliza e bufa embaixo deles. Tocam uma espcie de polca caribenha e tenhovontade de danar. Fernando diz que tudo de que ele precisa para encerrar o dia ter queaguentar minha dana. Falo para ele no olhar.

    As pessoas, em sua maioria crianas e mulheres mais velhas, giram e galopam comsobriedade, arriscando-se a estalar os dedos de vez em quando. O resultado uma espcie debeguine arrastado. Fico no cantinho, perto dos danarinos, esperando ser convidada, mas quandoningum me chama, pego a mo de uma mulher, que, sem perder o ritmo, me puxa para dentrodo grupo. Imito o que eles fazem por algum tempo, depois, aos poucos, comeo a criar meusprprios passos. E ento eles repetem o que estou fazendo, at que camos todos na gargalhada enos juntamos para um ltimo rodopio.

    Encontro Fernando fora do salo, com um dos cotovelos apoiado na parede de um palazzo. Eletem no rosto um sorriso torto e balana a cabea de um jeito que parece dizer eu no acreditoque voc fez isso, mas fico feliz que tenha feito. Depois, d uma tragada no cigarro e junta oslbios em um beijo. Caminho at ele. Fernando me puxa para junto de si e ficamos ali,observando. Penso em como essas pessoas so revigoradas tanto pela fragilidade quanto pelaeternidade das coisas. Penso de novo na verdade nmero quatro da mbria: lembrar a si mesmoe aos outros de como somos pequenos diante dos grandes planos do mundo. Humildes mestres daperspectiva, eles encenam espetculos caseiros no para esquecer, mas para lembrar.

    As mulheres da cozinha esto desfilando juntas, uma espcie de cortejo da vitria diante damultido. Miranda-dos-Seios-Fartos diminui o ritmo ao passar por ns, para e nos pergunta seestamos gostando da festa. Como se este fosse nosso plano desde o incio, comeamos acaminhar com ela, atrs das heronas de avental. Miranda nos conta que da cidade de Orvieto,na colina, viva de um homem do povoado, onde morou por 20 anos. Quando o marido faleceu,ela voltou para Orvieto para cuidar dos pais idosos.

    Eles j se foram h quase 10 anos diz , mas continuei em Orvieto. No estou pronta paraabrir mo da casa onde passei a infncia, que tambm foi onde minha me e a me delacresceram. No consigo me desvencilhar de toda essa histria. Venho aqui visitar os amigosquase todos os domingos, ma io sono nata orvietana e morir orvietana. Mas nasci em Orvieto eem Orvieto morrerei.

    Diz que uma tuttofare, empregada para todo tipo de tarefa, que trabalha para a famlia paraquem a me cozinhou durante 50 anos e de cujo jardim o pai cuidou por mais tempo ainda.

  • Aperta nossas mos, nos olha como se quisesse dizer mais alguma coisa, talvez fazer umapergunta, mas apenas sorri e sai para se reunir s amigas.

    Gosto dela. Se um dia eu abrisse minha pequena taverna com uma nica mesa de 12lugares, ia querer convid-la para trabalhar comigo digo para Fernando, enquanto observoMiranda rebolando em meio multido.

    No vai haver nenhuma taverna em nossas vidas. Pelo menos, no to cedo. Primeiro,precisamos encontrar um lugar para morar.

    E por que o lugar onde vamos morar no pode ser tambm nosso lugar de trabalho? Porque existem coisas como autorizaes, zoneamentos e regulamentaes. Todas aquelas

    chatices que no tm o menor interesse para voc. Mesmo assim, a menor infrao traria afinanza direto para a nossa porta.

    Eu abriria a porta e os convidaria para jantar. At homens que carregam pistolas e usambotas de cano longo sentem fome. Todo mundo lhes d dinheiro. Eu lhes daria po de milho comnozes quentinho e um ensopado escuro, com vinho.

    O que realmente me assusta sobre suas ideias que so quase to brilhantes quantoinsolentes. A maioria delas provavelmente funcionaria.

    No digo mais nenhuma palavra, guardo os comentrios para outra ocasio. Ele tambm ficaquieto, acho que desgostoso por sua pequena concesso. As nuvens e o fogo baixo agora deramos braos e, quando o vento sopra, folhas tremulam e estrelas aparecem como cristaispendurados na noite. Mas h um novo perfume vindo da cozinha. Alguma coisa est sendo frita eaucarada. Deve ser s minha imaginao. Estamos prontos para pegar a estrada sinuosa devolta para casa, mal nos lembrando do Barba Ruiva ou da casa sem telhado. Estamos dizendoat logo, obrigado quando uma das mulheres da cozinha oferece um saco quente,decorado com delicadas manchas de leo.

    Ciambelle di SantAntonio diz.Parece que Santo Antnio tambm tinha um fraco por rosquinhas.

  • Q2

    A verdade, dura e quente,tem seus prazeres

    uase um ano se passou desde a morte de Floriana. Vivemos esse tempo em paz, embora deuma forma um tanto solitria, em nossa antiga casa na colina. Como se reservssemos um lugar mesa para Elias, estamos sempre em casa quando batem as badaladas das quatro horas, para ocaso de Barlozzo aparecer. Quando ele vem o que raro e a intervalos cada vez maiores ,sorri, bate em nossos ombros, diz que estamos com tima aparncia. Continua indiferente. Passaquase todo o tempo trabalhando nas runas que finalmente comprou, transportando escombros deum lado para outro, substituindo telhas quebradas, consertando fiaes eltricas. Est replantandoum vinhedo. A princpio, ns o seguamos at l, prontos para sermos teis, prontos para darcontinuidade aos planos que ele havia nos apresentado. Mas Flor era o centro desses planos eagora assim como tantas coisas, sem ela eles parecem fragmentos, irrecuperveis. Eletrabalha pelo simples movimento, a inquietao a forma de seu luto. Em vez de construir umlar, ele arruma pedaos de desespero.

    Como nenhum de ns tem um telefone, deixamos recados na Centrale: 6 de junho Voc vemjantar hoje? Carne assada com pur de feijo-branco. Sem sobremesa. 20h30. Com amor, Chou. Osistema falho, diante das imprevisveis idas e vindas de Barlozzo. Fica dias na runa, dormindona caminhonete ou ao lado da lareira, na cozinha de vero, onde est reconstruindo um fogo lenha. Uma fera tristonha recolhida em sua toca. Trabalha at ficar cansado demais para voltar aSan Casciano, ou at mesmo para comer ou se despir. Cansado demais para sentir falta dela. Obanho no um problema para o velho duque. Em mais de uma manh, sem ter notcias dele,contornamos, desnorteados, as curvas que se inclinam sobre o lago Corbara, passando pelasguas matinais do Tibre, de um dourado reluzente cappuccino esfriando num copo de papel,po e presunto num saco , para encontr-lo, enrolado em posio fetal, ainda adormecido, emmeio a cobertas e almofadas fedidas, bens herdados do antigo proprietrio. Como se a partidadela o estivesse consumindo, ele agora essencialmente ossos, cobertos por uma camada de peleplida e esticada, fina como o luar. Tudo o que sobrou so seus olhos, grandes e negros, ondeflutua a prata. E, mesmo quando ri, a dor ainda ruge ali, no lugar em que a viso dela, noobscurecida, permanece viva. Flor partiu, mas no totalmente.

    Ela no vai embora, Chou. Tento apagar seu rosto, mas quando ouso olhar outra vez, ela estde volta como uma teia de aranha. Ento s vezes acordo no meio da noite e no consigoencontr-la, no consigo juntar todas as partes de seu rosto e acho que a perdi para sempre. E a pior. Escute, no sou a melhor companhia para vocs agora. E no sei se vou voltar a ser tocedo, nem se isso vai acontecer algum dia. O que sei que este o momento certo para vocssaltarem dessa ponte onde esto morando.

    Suas metforas sempre me pegam desprevenida e, por um momento, tento pensar ondeficaria a tal ponte. Enquanto isso, percebo que a voz dele tambm est diferente nos ltimostempos. A grgula que havia nele foi embora. Fala como se cantasse: alto e baixo, alto e baixo,

  • suave e depois forte, gutural, desesperado, at que a voz desaparece em um sussurro quando eleperde o flego. Quando recomea, sua voz est mais jovem, quase tmida. E toda a cantilena serepete.

    Na verdade, isto tudo o que a vida em San Casciano devia ser: uma ponte de Veneza para,sei l, o prximo lugar. Mas estou preocupado que vocs fiquem por minha causa. Ou que eucomece a querer que faam isso. Amo voc, Chou. Voc e aquele seu marido. O sangue aparte menos necessria do amor e vocs so meus filhos. por isso que quero que partam.Vocs j superaram este lugar. E acho que isso quer dizer que vocs tambm me superaram.Pelo menos a parte fsica, cotidiana, do que somos uns para os outros. Se ficarem demais, novo conseguir partir. Vo acabar se tornando aquele casal excntrico que mora l em cima, nacurva Celle. Vocs tiveram sucesso em escapar do banco e das lagunas, tm uma coleo delembranas gorduchas e doces como ameixas de setembro. Peguem-nas e fujam. San Cascianoest mudando e no do jeito que vocs querem. A reconstruo do velho spa dificilmente atrairdamas em saias rodadas, que chegaro em carruagens adornadas com luz de gs cintilando. Oque vai haver sero grandes carros pretos cheios de mulheres e homens queimados de sol,usando sapatos de 700 dlares, sem meias. Sabe o que quero dizer; aqueles homens que parecemter gastado todo o dinheiro nos sapatos, sem que sobrasse nada para as meias. So eles que vofrequentar o lugar. Tomaro conta de tudo como Anbal. Uma invaso opulenta de guerreirosque acreditam que lama quente e champanhe gelado vo dar conta do recado, seja l qual for orecado que quiserem, mas vai ser uma invaso de qualquer maneira. Se ficarem, vo ter quemudar de estilo, Chou. Voc vai precisar acompanhar os tempos ou ser confundida com umabizantina.

    Eu sou bizantina.Seus olhos comeam a rir, mas ele se recupera rpido como a lngua de uma serpente. Todo comerciante vai querer enriquecer, os preos das casas vo quadruplicar e at os

    farrapos do passado que temos mantido de uma gerao para outra e chamado de tradio, ateles, caso vocs no tenham reparado, esto se esfarelando em suas mos. Sabe o que eu acho?Que vocs aproveitaram o melhor. O final do melhor, quer dizer. Est na hora de partir. Alm domais, vocs esto pagando um aluguel muito mais caro do que este lugar vale. Acho que os Lucciainda ficam sentados beira de sua nobre lareira, com a borra de seu nobre vinho e riem devocs.

    J lhe disse que voc a criatura mais exagerada da minha vida? pergunto a ele,levantando dos degraus dos fundos, onde estvamos sentados ao sol. Quero ficar de p diante deBarlozzo, olhar para ele. Voc no est indo um pouquinho depressa demais? San Casciano novai desaparecer da noite pro dia s porque o spa vai ser reaberto. Algumas das mudanas podemser boas. Por que voc faz parecer que precisaremos levantar acampamento e nos refugiar nomato? Eu no tenho muito medo de grandes carros pretos e de homens sem meias.

    Mas voc no tem receio de ficar alm do tempo em que sero bem recebidos? O que voc quer dizer? Bem recebidos por quem? Por voc? No. No por mim. Refiro-me quela recepo calorosa que vocs sentiram ao chegar. O

    que aconteceu com o seu elegante senso de timing? De saber a hora de chegar e de partir? Vocsentiu falta de um final, Chou, um final natural, que podia ter sido essa manh ou h um ano. Notenho certeza. O que sei que voc j ficou demais. Mesmo sem o maldito spa. Simplesmente

  • no consigo acreditar que este o ltimo lugar para vocs dois. No h razo para que fiquem.Ele me cutuca como se eu fosse um braseiro, e tenta reavivar as chamas. Tenta me fazer

    danar. No entendo digo. Voc pode comear explicando que objetivo existe em qualquer

    coisa. E quem disse que era o ltimo lugar? Fernando e eu nunca pensamos em passar o resto denossas vidas no Palazzo Barlozzo. Mas ainda parece bom ficar por aqui, no estamos nosescondendo nem fingindo. No estamos aqui por sua causa. Estamos aqui por nossa causa. E porvoc. Digo a ltima frase com a voz mais baixa, olhando para ele com intensidade.

    Faz tempo que no temos uma boa briga, Chou. A verdade, dura e quente, tem seusprazeres. Senti sua falta. Mas no estou sugerindo que voc se mude para a Tasmnia. Estoufalando de um apartamento, uma casa, em uma cidade minimamente maior, uma cidadetoscana, se essa for a sua vontade, algum lugar em que haja mais.

    Mais o qu? Mais gente, mais estmulos, mais possibilidades, imagino. E, depois de um par de invernos

    vivendo sem ele, acho at que voc gostaria de ter aquecimento. E uma cozinha. Gosto da minha cozinha. Voc se acostumou com sua cozinha. E o que vocs dois tm feito em relao a tudo o que

    h de errado naquela casa. E nessa vida. Vocs se acostumaram com tudo.Talvez ele tenha razo. E se tiver? O que h de errado em se adaptar? Compensar? Morar aqui

    parece bom. Voc est escrevendo?Ele nunca me pergunta sobre o trabalho ou sobre os pequenos progressos, se terminei um livro

    ou estou comeando outro. Nem sobre o tipo de programa que estamos planejando para nossosconvidados, nem mesmo se temos convidados. Por isso sou pega desprevenida. A resposta quase taquigrafada.

    Segundo livro quase pronto para ser enviado. Meus editores falam sobre um livro dememrias, a seguir. A histria de meu encontro com Fernando. Sobre como foi deixar umacultura, uma vida. Como foi abandonar o barco, vender a casa, deixar para trs tudo que erafamiliar, me juntar a um desconhecido na beira do mar Adritico. Esse tipo de coisa.

    Pelo que sei, esses livros de culinria que voc escreve no so bem livros de culinria,esto mais para livros de memrias. No vai ser necessria uma mudana muito grande, noacha?

    Como sempre, ele me surpreende com seu preciso conhecimento de coisas que no foramconversadas. No reveladas.

    E o dinheiro? Voc est comendo regularmente? E Fernando, como ele est?Apenas balano a cabea, de forma afirmativa. Ele fica em silncio por um momento e acho

    que est recuperando o flego, at que compreendo que so as palavras que ele no consegueencontrar.

    Quando estiver pronto, por favor me diga o resto peo. O que voc acha que vai ser o resto? Acho que talvez seja alguma coisa sobre voc. Apenas sobre voc.Outro silncio. Queria ter feito o que voc fez sussurra. Queria ter amado algum mais do que a mim

  • mesmo. Eu que, com o tempo, no conseguia mais me diferenciar da minha tristeza. Como sefosse feito de tristeza e no adiantasse tentar mudar isso. Assim, me acostumei a ela. Passei aapreci-la. Como se obedecesse a um rei, eu a segui por onde ela me levou. Achei que precisavaproteger o passado. Mant-lo vivo a todo custo. Uma fogueira na chuva. A no ser por Flor epela bela trgua que ela representou, minha vida foi feita pelas vidas de outras pessoas. Queriater feito o que voc fez e reivindicado uma vida para mim mesmo. por isso que estou lhedizendo que proteja a sua, que lhe d forma e a dirija com a mesma coragem que teve quandodeixou Veneza. No se acomode, Chou. Voc se lembra do perigo que vem do comodismo?

    Acho que foi a que comeou a conversa sincera entre mim e Fernando sobre sair de SanCasciano. Com certeza um de ns dois j havia tocado no assunto antes de Barlozzo. Nossonovssimo negcio caseiro, em que guiamos visitantes de lngua inglesa aqueles propensos, deforma exuberante, a comer e beber enquanto atravessam as cidades nas colinas , prospera aospoucos e de forma constante. Mas San Casciano em si, at a reabertura do spa, parececorresponder pouco ao sonho toscano dos viajantes, que exige mais do que pedras antigas de umvilarejo medieval pisadas por agricultores que cuidam de sua vida rural. Por isso, usamos comobase para nossas viagens uma ou outra das cidades mais sedutoras das colinas, acomodandonossos convidados em belos palazzi no interior de seus muros ou em villas localizadas nasimediaes. Entre outros lugares, nossos convidados querem estar em Montepulciano,Montalcino, Pienza, Siena, San Gimignano, Volterra, nos povoados vincolas da regio de Chianti e todos ficam um tanto distantes de San Casciano. Sabemos que seria melhor morar e trabalharno mesmo lugar e que, se consegussemos arrumar nossas vidas desse jeito, teramos condiesde oferecer mais intimidade a nossos hspedes, quase como se os convidssemos para ficar nanossa casa. Do jeito que as coisas esto, ns tambm somos viajantes, mesmo quandoprecisamos percorrer apenas uns 50 quilmetros de estrada pela montanha.

    Mas, se nosso trabalho um motivo para partir, o duque um motivo para ficar. Ou era o quepensvamos at agora, at a conversa incisiva dessa manh que incluiu pontes, finais naturais,mulheres expostas ao sol e o casal excntrico da colina. ltima casa. Prxima casa. Talvez sejahora de partir.

    Se pedssemos ao duque que nos ajudasse a procurar a prxima casa, a busca em si poderiafornecer uma forma de passarmos mais tempo juntos, de lev-lo conosco, do ponto de vistaemocional. Assim, nossos sbados agora so compostos, meio a meio, por artimanha e misso.

    Como nos velhos tempos, tomamos caf da manh juntos na Centrale, recolhemos um sacocheio de pizza branca do forno, due etti di prosciutto duzentos gramas de presunto , um pedaode pecorino fresco e partimos. Um sbado para Montalcino, o seguinte para Montepulciano.Aonde quer que vamos, o padro o mesmo. Uma visita ao escritrio do corretor de imveis,uma conversa sincera com um ou dois baristas, cada um dos quais tem uma cunhada ou um

  • primo que esto pensando em alugar um espao. Um vendedor de frutas que conhece umagricultor que tem uma casa maravilhosa na sada da cidade e que est disponvel. Quer dizer, seo filho decidir no se casar. Vamos trs semanas seguidas para Pienza, acreditando no corretorque diz em todas as ocasies que, mais uma vez, inconveniente para la padrona do apartamentoanunciado nos receber. Dispiaciuta, ela estava desolada, terribilmente dispiaciuta, garante ele. E,num sbado, tivemos certeza de ter encontrado o lugar perfeito em Siena.

    Ficava em uma rua escura e torta, no segundo andar de um grande palazzo com jeito trgico,do tipo que ficaria maravilhosamente lastimvel sob a chuva ou ao luar. Um aglomerado decorredores e de pequenos ptios nos conduziu porta do apartamento. Entramos direto em umsalone as paredes forradas em tafet verde-claro e eu estava pronta para assinar o contrato,abafando gritos de descrena diante dos pisos de mrmore negro que se espalhavam sob meusps velozes e diante dos tetos abobadados, cobertos de afrescos. Cada cmodo era concebido deforma magnfica e pensei que, com certeza, o dono devia ser o decorador de Aga Khan. Outalvez fosse ele mesmo um prncipe magiar. Havia uma lareira de mrmore vermelho nacozinha. Olhei de novo a lista de propriedades que tnhamos planejado ver naquela manh,conferindo o preo daquela. Custava por ms 200 mil liras menos do que pagvamos peloPalazzo Barlozzo. a nossa casa, falei. Barlozzo e Fernando ficaram em silncio uma espciede silncio de gato e lobo.

    Eu estava a ponto de comear a cantar, de me lanar sobre o peito coberto de caxemira docorretor para implorar por uma caneta, quando o duque disse:

    E a falta de janelas? Voc no acharia isso perturbador, Chou? Sei que o tafet ganha muitospontos com voc e sei tambm que voc se virou bem sem aquecimento e eletricidade, masvoc conseguiria mesmo viver numa casa sem janelas?

    O que voc quer dizer com sem janelas? Claro que temNo havia uma janela sequer. De uma forma astuciosa, o apartamento havia sido montado

    em um espao interno, talvez a partir de um ou dois amplos cmodos. No havia uma paredeexterna. Como aquelas bonecas russas que diminuem de tamanho, era um apartamento contidono interior de outro, um recurso arquitetnico egpcio, intencional ou ilcito. Comecei a fazerperguntas para o corretor, mas Fernando me afastou dali, agradecendo. Barlozzo j estava narua.

    Depois de mais de trs meses de jornadas aos sbados, o duque comeou a se ausentar dabusca, preferindo voltar a se dedicar, em tempo integral, a seu imprio arruinado entre videiras eovelhas.

    Mantenham-me informado pediu-nos. Com certeza, vocs logo vo encontrar algumacoisa. O nico lugar que falta visitar na Toscana Elba. Talvez Napoleo tenha deixado algo bompor l. Um lugar cheio de querubins e seda desbotada. Sigam em frente. Vocs vo saber quandotiverem encontrado. Alm do mais, sempre podem se mudar para c, para ficar comigo

  • M3

    De vez em quando,deixe a vida se moldar sozinha

    ais meses se passam at nos convencermos de que s falta tentar em Elba. Ampliamos a reade busca e, alm da Toscana, inclumos a mbria, a regio vizinha. Depois de Todi, de BarbaRuiva e da casa sem teto, houve Pergia e Spoleto. Houve Gubbio, Foligno, Bevagna, Spello eAssis. A esta altura, o ritmo da busca parece quase litrgico, cada acontecimento das manhs desbado j previsto. Dirigir at o centro storico, localizar a agenzia immobiliare, contar nossahistria para o corretor, que mal finge nos ouvir, balanar nossas cabeas exatamente no mesmoritmo enquanto ouvimos seu lamento, oferecer e aceitar cigarros, soltar fumaa pelo nariz numadepresso coletiva, tolerar suas tentativas de nos vender uma igreja desconsagrada ou de nosalugar alguns cmodos em um castelo que est sendo restaurado por um grupo de viciados emrecuperao um projeto penal do Estado que precisa de fundos. Recusamos e nos preparamospara sair. Ele ento vai dizer, como se fizesse uma orao, que acabou de se lembrar de algumlugar glorioso, que acabou de ser reformado de forma esplndida, sculo XVI ou XVII? Noimporta, um desses tesouros que s aparecem no mercado uma vez na vida de um corretor e vouprocur-los assim que daccordo?

    Daccordo, respondemos, pendendo perigosamente em direo derrota.Certa manh, o destino chega Centrale na forma de um holands. Um pintor que mora em

    Roma. Est acompanhado por uma inglesa, tambm pintora, e fizeram uma parada em SanCasciano esta amanh, a caminho do vilarejo de Castelviscardo, na mbria, onde acabaram decomprar uma fazenda. Jan se apresenta de forma espontnea, como os expatriados geralmentefazem entre si no pas que escolheram para morar. Sua companheira no to loquaz e estsentada folheando um London Sunday Times. quarta-feira.

    Quando mencionamos para Jan que tambm estamos procurando um lugar para morar, eleestufa o peito largo, engole o resto de sua cerveja das oito da manh e saca da carteira umimenso carto de visita.

    Samuele Ugolino. Meu corretor em Orvieto. a pessoa certa. Conhece tudo. Um condeMonaldeschi, alis. To honrado quanto podem ser os condes diz, iando suas formasvolumosas da cadeirinha do caff e erguendo a mo para se despedir.

    Mas agora sua companheira quer falar. No importa o que faam, no pensem em morar l no alto da pedra ordena, com o

    queixo praticamente apontado para o peito, os culos deslizando pela ponta do nariz. Alis, meunome Katherine.

    Marlena. Muito prazer digo, levemente intrigada por sua ferocidade. Se vocs vo conversar sobre Orvieto, vou tomar outra cerveja anuncia Jan ao convidar

    Fernando para se dirigir com ele a uma mesa no terrao. Fernando me encara, revirando osolhos.

    Vai levar s um momento digo. Voc j esteve em Orvieto? Katherine quer saber.

  • Sim, claro. linda, no ? Provavelmente a cidade mais bonita das colinas. Da Toscana e da mbria. Flutuando l no

    alto daquela grande rocha achatada, parece enfeitiada. E do ponto de vista demogrfico, bemcomo do espacial, de dimenses perfeitas. Grande o suficiente, mas pequena o bastante. Doponto de vista arquitetnico, bem raro que haja vestgios romanos entre os palcios medievais erenascentistas. Voc sabia que foi a segunda sede da nao etrusca? Pois . Seus indcios pr-romanos so insuperveis na Itlia central.

    No consigo dizer se seu lado artstico que est falando ou se ela aspira a um cargo naprefeitura. Depois de sua advertncia apavorante, eu no esperava tantos elogios.

    Eliminamos Orvieto de nossa lista digo a ela. Depois pusemos de volta e eliminamos denovo. Alm da beleza, tambm famosa por ser cara.

    verdade, mas no s isso que h de errado com ela. fechada, pretensiosa, una isolainfelice. Alugamos uma casa em uma das comunas rurais de Orvieto alguns veres atrs, depoisvoltamos para a mesma fazenda no inverno passado, quando estvamos procura de umapropriedade para comprar. Fomos cidade quase todos os dias para fazer compras e caminhar e,apesar de ser to linda, nunca me senti vontade. Sentia-me rejeitada, como Ester. S osvendedores sorriem. E s para aqueles que abrem as carteiras. A riqueza lubrifica o lugar. E temmuita gente tentando fazer com que ela cresa mais ainda, acumulando dinheiro sob suas camasdo sculo XV. Vou lhe dizer uma coisa, at nos mercados aquelas mulheres envoltas em casacosde pele pechincham como rabes. Imagine uma mulher vestida de lince at o calcanhar pedindoqualcosa in omaggio, qualquer coisa de graa, a uma outra que tenta se manter aquecida nocasaco do marido? Vivem em pequenas tribos familiares, e mantm suas portas fechadas; ssocializam nos bares ou na rua. Os orvietani so uma raa estranha. Morei em vrias partes dopas e posso garantir que eles no se parecem com outros italianos. Nem com os do Sul, nemcom os do Norte. Tambm no gostam de si mesmos. Preferem passar por cima de seu corpomoribundo a estender a mo. Essencialmente, Orvieto no passa de um prdio de contabilidademedieval.

    Com isso, e dando uma forte batida com seu jornal de trs dias atrs sobre a mesa, Katherineme deixa.

    A no ser pela parte medieval, Orvieto-segundo-Katherine parece muito com Santa Barbara.No me espanto mais com o vigor com que os expatriados condenam a Itlia. Todas as vezes queouo uma reclamao, me pergunto por que a pessoa continua aqui. Voltem para Cotswolds,para Berlim. Voltem para Nova York. E como uma pessoa que se estabelece em outro pas poderidicularizar ou desprezar a cultura desse lugar? A histria de Katherine a respeito das extorsesda orvietana com casaco de pele me faz lembrar de uma veneziana que conheci. Ela tambmdesfilava com sua riqueza.

    Ela tambm provocava os agricultores, saa da barraca de cada um deles com um punhado deervas dadas de presente, uma pera perfeita de casca marrom para o almoo, mais dois longos efinos alhos-pors para dar sabor sua sopa, alm daqueles pelos quais ela pagava. Era mais cruelcom os peixeiros. E tambm era ela com delicadeza que pagava para que mais de um deseus filhos estudasse violino com um professor em Pdua, ou conduzia a tortuosa rota dacandidatura de um deles a uma vaga no conservatrio Benedetto Marcello. Na verdade,apreciava tanto suas relaes do mercado quanto elas a apreciavam, cada lado demonstrando

  • afeto de uma forma aceita culturalmente. La Veneziana se comportava como esperavam que elase comportasse, tomando e oferecendo de acordo com os refinamentos da civilidade veneziana.Quando um forasteiro se escandaliza com o comportamento em outra sociedade porque fazuma comparao com seu prprio conjunto de expectativas culturais em geral idealizadas ,como se fossem universais. A nova sociedade precisa se adaptar a ele, e no o contrrio. Umaabordagem colonial, a arrogncia que nos mantm separados. As Katherines cuidam disso.

    Temos um encontro com o signore Ugolino no final da tarde, s seis. Jan marcou. Comcerteza no custa conversar com ele, no ?

    O que voc sabe sobre Santa Barbara? Apenas que ela a protetora dos marinheiros. Voc est se preparando para navegar? Touch. Fica em algum lugar da Frana?

    Mais um lance de escadas de mrmore at o escritrio de outro corretor. So seis da tarde emOrvieto. Samuele Ugolino abre a porta, com os olhos protegidos por culos escuros de aviador, asmos ajeitando cabelos desarrumados pelo sono, negros como azeviche, tnis Converse azuis decano alto, desamarrados. Tem um lugar perfeito para a gente. No h a menor dvida. Ele dizisso antes de termos falado uma palavra sequer. Antes da troca de cigarros, antes do lamento.Antes de tudo. Samuele diz que tem a nossa casa.

    Mesmo que no faa mais nada, ele j revigorou nosso nimo; nos fez rir. Mas conte arespeito, mostre uma foto, a planta. Onde fica, qual o tamanho, de quando ? Quanto custa? paraalugar ou para vender? A cada pergunta ele reage com um leve aceno de sua cabea de corvo.Claramente, estamos nos comportando de forma impertinente. Precisamos apenas ficar calmose tudo vai se revelar. A impacincia o trabalho do diabo. Ele diz tudo isso com voz rouca, comose tivesse acabado de acordar. Porque ele de fato acabou de acordar. Convocando oindispensvel rapaz da indispensvel sala ao lado, Samuele lhe entrega duas chaves penduradasem um cordo preto uma delas longa e enferrujada como a de uma fortaleza e lhe diz paranos acompanhar pelos poucos metros que separam o escritrio do endereo na Via del Duomo,nmero 34. Nosso acompanhante se chama Nicola. Clios fartos como a crina de um pneiemolduram seus olhos castanho-claros e, na luz vacilante de uma tempestade que se aproxima,ele caminha entre mim e Fernando, oferecendo um canto de seus braos a cada um de ns. Otrovo murmura como um vidente.

    Um a tabac, uma pequena mercearia, uma joalheria artesanal, uma loja que vende pizzaspara viagem e uma trattoria compem o pavimento trreo do palazzo que se encontra no nmero34.

    Chama-se Palazzo Ubaldini diz Nicola. Originalmente, era a casa de veraneio de umafamlia de nobres romanos na Idade Mdia.

    Fernando e eu ficamos em silncio. Paramos e observamos a cena corriqueira de uma tardena Via del Duomo. As pessoas entram e saem de uma pequena capela a dois metros do PalazzoUbaldini. As portas esto escancaradas e o cheiro de incenso derrama-se pela rua, misturando-se

  • com o aroma de caf espresso e vinho que emana do minsculo bar ao lado. Sacos de verduraspendurados nos punhos, caixas de bolos presas por fitas de papel, os moradores de Orvieto estoreunindo partes do jantar. Alguns descansam em um banco para relatar ou ouvir as notcias dodia, ou esto de p no bar, tomando uma flte de Prosecco. Depois de nosso sonolento refgio nacolina, como seria viver no meio de toda essa agitao? No apenas estar na mesma cidade, nemvisit-la, mas morar no meio dela?

    Recitando rapidamente a histria do palazzo, Nicola abre as grandes portas arruinadas eentramos em um ptio. Escuro, mido. Levanto os olhos, passando por quatro andares at otelhado, uma abbada romana que se abre para o cu. Como prata batida, a chuva cai,salpicando as pedras quebradas. lindo. Uma beleza decadente, em desintegrao. Mas, mesmoassim, beleza. Nicola est falando com Fernando sobre caixas de eletricidade e magazzini, eexperimento as escadas que cansam as pernas. Assim que estou diante da porta do apartamentono piano nobile, grito por sobre a balaustrada, implorando para que se apressem.

    Nicola pega a longa chave de ferro, coloca-a contra a luz para determinar a posio correta ea enfia na fechadura.

    Por favor, espere um momento aqui, signora pede.Com a parte inferior do tronco firme, ele se inclina para dentro, com discrio. Ser que h

    algum l dentro?, me pergunto. Que fantasma ele acha que vai incomodar? Ele empurra umaparte da porta dupla para a direita, at a parede do interior.

    Ecco. Guarda, signora, guarda il tuo salone. A est! Olhe a sua sala de estar, senhora.Com uma linguagem corporal galante, ele agora me convida a fazer o mesmo que ele: me

    inclinar para dentro dos destroos. A no ser por algumas tbuas esquelticas, no h piso.Lembro-me da casa sem telhado, do apartamento sem janelas, mas isso totalmente diferente.O aposento enorme. Setenta, talvez 80 metros quadrados. As paredes esto nuas, mostrandotijolos medievais. Do lugar de onde, no passado, pendia um candelabro, uma corrente de ferrotrabalhada mo desce de uma cpula com seis metros, coberta de afrescos. Como a corda deuma forca. Fazendo um clculo tempestuoso do potencial, viro-me para Nicola e digo:

    Ficarei com ele.Fernando ainda est no ptio, ofegante. Finalmente sobe as escadas. Sem ar, azulado, com o

    cigarro mostrando trs centmetros de cinza preso aos lbios, ele projeta a parte superior docorpo para dentro do apartamento. Fica muito tempo assim. Ele se endireita e olha para mim.Curva-se de volta para dentro.

    Bem-vinda ao lar diz.Ainda de p diante da porta do apartamento, Nicola saca uma planta e a abre sobre a pintura

    marrom rachada da porta. Alm do salone, h trs quartos, dois banheiros, uma cozinha, umadespensa, um studiolo e dois pequenos terraos. O lugar grande. Ele garante que as obraspodem ser terminadas em dois meses, talvez trs. As licenas j foram concedidas e a equipe jfoi contratada.

    tutta una fesseria. s trabalho simples afirma.Fernando sabe que isso mentira, e eu sei tambm. Mas j vivi o suficiente entre cavaleiros

    latinos para compreender que Nicola diz isso porque quer nos ver felizes. Quer nossa felicidadeagora, neste momento. Por que deveria diminuir nossa alegria expondo as possibilidades de longoprazo, os inevitveis contratempos at a concluso da obra? Seus olhos cor de caramelo dizem

  • Perch no? E tambm que s os tolos hesitariam diante de um lugar to glorioso. Sei que seudesejo de nos ver felizes mais forte do que a necessidade de rabiscar estimativas e projees.Tambm sei que no est mentindo, mas contando a verdade em partes. Afinal de contas, a obrapoderia levar apenas trs meses, porm, se demorar mais, ele sabe que, nesse meio-tempo,vamos nos adaptar situao, no importa como ela se desenrole. Alm do mais, qual a alegriaque existe na prudncia? Ou na certeza? Mesmo se a certeza existisse. De vez em quando, deixe avida se moldar sozinha.

    Voltamos correndo pela Via del Duomo para dizer a Samuele que ele tinha razo.Estranhamente, ele ainda parece ter acabado de acordar. Abre um sorriso tmido e nos convida asentar. Tem coisas a nos dizer. Piccoli problemi em relao ao Palazzo Ubaldini. Agora vem oritual de oferecer e acender cigarros, de soprar fumaa pelo nariz. Dessa vez, sopramos no comdesespero, mas com expectativa. Samuele, porm, permanece tranquilo em meio densaexalao de seu Gitane sem filtro. Tntalo com cabelo desgrenhado.

    Naturalmente, sou eu quem quebra o silncio. Quanto custa? Ainda no entendi se est venda ou se aluguel. Acredito que sejam as duas coisas. Est venda. Em parte. E para alugar. Em parte.Talvez isso seja um jogo na mbria. Trago meu cigarro furiosamente, jogando a fumaa em

    Samuele e depois em Fernando. Sim, deve ser isso. Antes de Samuele comear a falar,precisamos parar de nos ver em meio nuvem de fumaa. Trago e espero, lembrando-me deque todas as coisas sero reveladas. O silncio parece impiedosamente longo e, enquantoSamuele acende outro Gitane, penso que ele ainda deve estar inventando a prxima parte donegcio. No final do segundo cigarro, ele comea a falar de una bega familiare, uma disputaancestral entre duas faces da famlia de proprietrios. O apartamento est abandonado h 13anos. A matriarca que morou ali at morrer, aos 107 anos, deixou o palazzo para as duas faces.Um cl napolitano e outro, romano. O cl romano quer vender, enquanto o napolitano queralugar. E, durante 13 anos, ningum fez nada.

    Ento, qual a parte que compramos e qual a parte que alugamos? E a obra que precisaser feita, quem vai pagar o qu?

    Ele tira os culos pela primeira vez, para melhor me demonstrar seu desdm. Novamente,estou indo rpido demais. Sou punida com outro silncio. Mais fumaa.

    Quando fala, a soluo que ele sugere parece rigorosamente medieval. Vai esboar umcontrato muito especial, com uma linguagem arcaica que dir que, apesar de no sermos osdonos da propriedade, ela pertence legitimamente a ns e a nossos herdeiros. Ele repensa. No,no. Vai ser melhor escrever que somos, de fato, os donos, mas que a propriedade devecontinuar no nome da famlia beligerante pelos prximos 100 anos. Ele garante que toda essaconfuso apenas uma questo de aparncias, que assim que os fundos forem transferidos, noouviremos mais falar de nenhum dos cls. Ele diz que a verdade que ambos querem vender eambos querem alugar, mas qualquer espcie de entendimento daria a ideia de rendio. E arendio to inconcebvel quanto a impacincia. Com as mos presas humildemente diante dopeito, encarno Santa Teresinha, a Pequena Flor, que ousa perguntar:

    Quanto custa o apartamento? Podemos fazer com que ele custe quanto quisermos.Quero desesperadamente roer as palmas das mos, mas prefiro tentar sondar:

  • Voc pretende que a famlia faa uma hipoteca? Que hipoteca? No vai haver hipoteca. Per se. Vocs vo, digamos, preencher um cheque

    de tot, que vai iniciar o longo e feliz relacionamento com a famlia. As famlias. Todos os meses,a partir de ento e at o fim de seus dias, vocs preenchero um cheque de tot. Podem chamarcomo quiserem, aluguel, hipoteca. Um cheque mensal.

    Mas o que estamos comprando? E quanto vai custar? E por que Fernando no diz uma palavra?E que diabo tot? Tudo isso eu pergunto apenas para mim mesma, temendo que dois silnciospor causa de minha impertinncia s possam levar a um terceiro. Sinto-me abafada,estrangulada, quando um Fernando sorridente se levanta, aperta a mo de Samuele, faz planospara um novo encontro amanh. Tambm me levanto, ofereo minha mo para ser tocada peloslbios perfumados de Gitane do conde. Seus olhos esto mais suaves agora, dizendo para eu nome preocupar. Stai tranquilla. Tenho certeza de que ele vai ficar tranquilo. Provavelmente vaivoltar direto para a cama. Mas Samuele no Barba Ruiva. No, ele no um patife. Aocontrrio, essa ltima hora foi marcada por seu refinamento italiano. O que a vida semsuspense e mistrio? Nossa partida, sem maiores esclarecimentos do que aqueles que ele,solenemente, compartilhou conosco, vai apenas inflamar nosso desejo de saber do resto. Comoum filme em srie das matins. Samuele entende que queremos a casa e, tambm, que vamosquer-la mais ainda amanh. Se hoje somos manteiga, amanh seremos creme. Ele usa outrotipo de artifcio, cuja forma no torta, mas sinuosa.

    Ento, voc vai me contar o que foi aquilo?Estamos descendo o Corso Cavour, quase correndo. No sei dizer se estamos indo na direo

    ou fugindo de alguma coisa. O que sei que Fernando est assimilando os acontecimentos comoum iniciado, e eu no.

    Ele me faz sentar num banco de pedra na Piazza della Repubblica. Acho que a situao a seguinte: ontem, quando Jan ligou para Samuele, eu o ouvi dizer que

    voc era chef de cozinha e escritora e que eu sou um bancrio aposentado, que moramos emVeneza e passamos os ltimos dois anos em San Casciano, que recebemos pequenos grupos deturistas, de tempos em tempos, gente que est particularmente interessada em comida e vinho.

    Ele disse isso tudo? Disse, claro. Jan tambm quer uma comisso. Queria que Samuele ficasse encantado

    conosco. E sabia exatamente as partes dos nossos currculos que o persuadiriam. Ento ele se esqueceu de mencionar que somos pobres, certo? Acho que no mencionei isso para Jan. Ento, Jan estava tentando persuadi-lo de qu? De que ramos, digamos, interessantes o suficiente para que ele cuidasse de ns e nos

    arranjasse alguma coisa. Cada vez que algum compra ou aluga uma propriedade na Itlia,torna-se uma espcie de olheiro. Jan cumpriu a funo de olheiro de Samuele. Assim, depois quese convenceu, Samuele partiu para convencer o representante dos Ubaldini e, juntos,estabeleceram alguns parmetros flexveis. Acho que os dois cls esto em busca de dinheiro

  • para pr o apartamento em ordem. Quando isso acontecer, at mesmo um cheque mensalrelativamente pequeno dever ser o suficiente. Lembre-se de que eles no tm nenhuma rendaproveniente daquele espao h 13 anos. Est claro que no podem, ou no querem, vender apropriedade imediatamente. De todo modo, ns nunca poderamos compr-la. Ento um bomnegcio. Na verdade, se tudo acontecer como estou pensando, acabamos de ser beijados pelaFortuna.

    Como voc pode pensar assim sem conhecer os tais parmetros flexveis? Quantodinheiro necessrio para pr o apartamento em ordem? Seja quanto for, mais do quetemos, ou tudo o que temos. O que os impede de pegar o dinheiro, fazer a reforma e nosdespejar dali seis meses depois?

    Algum precisa bancar o advogado do diabo. Absolutamente nada. A no ser o entendimento que tivemos com Samuele. Que entendimento? Todas as vezes que abri a boca fui punida como uma leiteira flagrada

    com um bigode branco. Entendimentos, acordos e at contratos nem sempre so apenas falados ou escritos. Samuele

    apertou minha mo e eu apertei a dele, e acredito que ele vai fazer o que for preciso para quepossamos morar naquela casa, at no querermos mais. Os proprietrios vo receber algumdinheiro para fazer a obra e ns vamos ganhar um maravilhoso apartamento com um aluguelmensal muito baixo ou sem pagamento nenhum at que nosso vamos chamar de depsitoseja amortizado. E mesmo ento, nunca vamos pagar o que o imvel vale no mercado. Isso ficouimplcito tanto no que Samuele disse quanto no que no disse. Ele gostou de ns. Voc no sentiu?Ele gostou a pelle. Uma questo de pele. Uma forma de instinto. E tambm gostei dele.

    Mas como voc pde depreender tudo isso de tanta fumaa, silncio e algumas frases sobrecls beligerantes e um intervalo de 100 anos at a transferncia de propriedade?

    Escute, a Itlia a nao mais corrupta da Europa. Como italiano, posso reconhecer isso.Mas quando esse tipo de arranjo acontece entre indivduos, ele se torna mais srio que contratoslegais. mais parecido com um juramento. As partes se unem em uma conspirao. Todos sejuntam do mesmo lado da mesa. De fato, essa talvez seja a nica forma de colaborao quepospera nesta terra de individualistas. Faz sentido para voc?

    Ainda no. No exatamente. O que me parece mais curioso um pintor holands telefonarpara um conde mbrio para falar de uma cozinheira americana e um ex-bancrio veneziano quedesejam morar em Orvieto e, de repente, o conde apresentar um plano confuso para que acozinheira e o ex-bancrio tomem posse de um apartamento que est abandonado h 13 anos.Exceto por essa parte que no consigo entender, est tudo bem. Voc acha que Samuele jexperimentou esse plano com outras pessoas?

    Talvez sim. Talvez no. Ele tem dzias de lugares como esse guardados em sua cabeaardilosa. Apartamentos, palazzi inteiros, villas, at um ou dois castelos, com certeza um mosteiroe um moinho. Todos precisando de restaurao, todos propriedade de pessoas que no tmcondies de reform-los e no conseguem justificar sua venda. Ento essas pessoas procuramalgum como Samuele para contar suas histrias. Samuele as arquiva at encontrar um clientemaduro e a fecha o negcio. Ningum tem pressa. O fato de uma propriedade passar mais 50 ou100 anos em estado de runa passiva no vai mudar muito a vida de seu dono. Ele passar opatrimnio para a prxima gerao. Para os italianos, a posse contnua das coisas importa mais

  • do que o que tais posses podem comprar ou produzir. Uma tentativa de imortalidade. Mais queum corretor, Samuele uma espcie de casamenteiro. Boa parte da passagem das chaves naItlia feita por gente como ele. Vamos deixar o negcio se desenrolar. Depois decidimos.

    Mas me diga uma coisa. Por que Nicola falou que as licenas j tinham sido obtidas e que ostrabalhadores foram contratados? Por que tudo isso foi providenciado antes de subirmos aquelasescadas esta tarde?

    Isso prova a falta de jeito de Nicola. Ele no queria nos perder. Alm disso, sabe queSamuele pode providenciar essas licenas e os trabalhadores num instante. No h filas longaspara o conde. O que voc pode estar esquecendo que fechei tantos negcios do banco em barese sales quanto no escritrio. Neste exato momento, Samuele compreende isso melhor que voc.

    A partir de ento, encontramos Samuele todos os dias e a cada vez, como pedacinhos de po paraas aves, ele apresenta outra parte do plano. Em uma ocasio, um arquiteto est presente,sacudindo projetos e plantas baixas, explicando os desejos e as vontades dos Ubaldini. O salone o nico aposento que precisa ser completamente restaurado, o resto s requer alguns consertos.Os banheiros e a cozinha carecem de acessrios e utenslios. Alguma fiao nova. No final dascontas, no uma tarefa muito difcil, diz. Os Ubaldini nos consultaro a cada passo da obra e nosconvidam a acompanh-la quanto quisermos. A obra pode comear quase imediatamente. Adata prevista para a concluso daqui a seis meses. Ningum falou de dinheiro ainda.

    Mas agora estou vacinada contra a clareza. O negcio um cavalo cego. E eu o monto, nemacovardada nem firme. Simplesmente monto. Quero falar com Barlozzo, pedir seu conselho, seuincentivo, mas temo que ele apenas chicoteie o cavalo e diga para eu me segurar. Afinal, at apalavra mbria deriva de ombra. Sombra. Alm do mais, o que foi mesmo que eu disse sobre oestrangeiro se adaptar nova sociedade, em vez de esperar que ela se adapte a ele?

    Certa tarde, usando um blazer de veludo preto abotoado sobre jeans, os tnis Converse de canoalto trocados por sapatos Ferragamo, Samuele nos cumprimenta com um sorriso aberto. Oprimeiro que vi em seu rosto. Vamos nos encontrar com os Ubaldini, conta-nos. Aperitivi no bardo hotel Palazzo Piccolomini. Mas por que ele no nos avisou?, pergunto-me. Eu teria escolhidooutro vestido. Para falar a verdade, teria escolhido outros pedaos de panos ou de cortinascosturados para dar forma a um vestido, em vez desses trapos de tafet marrom, sobras de umacolcha veneziana. E por que vamos nos encontrar com eles, afinal? Fao essas perguntas apenasa mim mesma, como j me acostumei. Descemos correndo as escadas e samos para o corso,Samuele e Fernando falando de futebol. Dois passos atrs deles, agito minha espada. Penso quepreferiria uma trapaa assumida no lugar dessa delicada falta de transparncia. Pensei que hmuito tempo tinha aprendido minhas lies de italiano com a astcia aucarada e dourada dosvenezianos. Talvez na pausa opalina de San Casciano eu tenha me esquecido das posturasessenciais. Mas Fernando conhece todas. Sou Cndido, in lapsus sendo conduzida pelo mundoantigo. Jogo minha longa trana negra sobre o ombro. Jogo-a sobre o outro ombro. J estoucansada dessa mbria.

    Guardo minha espada a tempo de ter minha mo beijada pelo napolitano e pelo romano. Com

  • mais de 70 anos, poderiam ser irmos gmeos. O cabelo perfumado cheira a limes, a pele delesfoi tostada at chegar cor das amndoas e, apesar de no querer, ronrono diante de suacortesia. Louras e delicadas, duas mulheres que estavam conversando com um grupo entradase aproximam de ns, com as mos estendidas como se fossem velhas amigas.

    Ah, la Chou-Chou. Finalmente ci incontriamo. Finalmente nos encontramos.Como uma amazona com um vestido para o ch da tarde e botas de trabalho, sinto-me grande

    e sem graa diante de sua elegncia diminuta. As duas usam suteres de caxemira sobrevestidinhos Armani e se equilibram em saltos altos e finos. No sei se devo fazer uma revernciaou apert-las contra o peito. Decido deleitar-me. Deixar de lado a sensao de ser rejeitadacomo Ester. Mas fico ligeiramente perplexa quando elas tambm se apresentam como Ubaldini,pois as italianas preservam os nomes de solteira a vida toda. O romano, que se chama Tommaso,aproveita meu breve momento de hesitao.

    Ah, sim, signora, somos todos Ubaldini. Lidia, minha esposa diz ele, atrs dela, com asmos pousadas carinhosamente sobre seus ombros.

    E eu sou Concetta, casada com Ciro diz a outra mulher, estendendo a mo para osorridente napolitano.

    Somos primos em primeiro grau, cada um nascido de um irmo Ubaldini. De Roma eNpoles, no vero, todos vnhamos a Orvieto nos reunir a zia Beatrice. Ah, tantas memrias quetemos do nmero 34.

    Com uma ruga maliciosa nos olhos azuis, Ciro se aproxima de mim e sussurra: Fomos todos Como posso dizer? Concebidos naquele palazzo. Sim, e acho que a maior

    parte dos meus filhos tambm.Encarregados de se aferrarem com fora s riquezas ancestrais, de s abrir as portas

    conjugais queles que poderiam ornamentar os cofres, os primos casaram-se entre si, prticabastante comum entre a nobreza. Assim, todos so Ubaldini. Todos nos encantam. Consolam-me.Quando eu e Fernando caminhamos de volta para o carro, ele arde de vontade de me contar oque perdi enquanto ouvia as histrias das mulheres sobre zia Beatrice a tia que morava noapartamento que agora ser seu, como no paravam de repetir.

    Ah, Beatrice era uma mulher singular dissera Concetta. ltima matriarca, era tobenevolente quanto severa. Embaixo do apartamento, onde hoje fica a joalheria, antigamentehavia um macellaio. Os animais eram abatidos ali mesmo. Beatrice tinha uma cestinha, acho queainda est em algum lugar do apartamento, que mandava l para baixo quando ouvia o golpe docutelo do aougueiro. Ela gritava: No me mande nada alm da melhor parte desse animal oujogo a porcaria toda em sua cabea feia. Algo assim. Apesar desses momentos selvagens, eladesfilava em vestidos de seda, recatada como uma rainha belga. A essa altura, estava com quase90 anos e a vida para a qual tinha sido criada havia se acabado muito antes. Depois da SegundaGuerra Mundial, a maior parte do dinheiro desapareceu. As pessoas comearam a viver delembranas e promessas. Uma conta aberta com o dono da mercearia, outra com o alfaiate.Ningum vendia muita coisa porque no havia dinheiro para comprar. Porm, a maior parte dasjoias se foi. Sempre existe mercado para a vaidade. Concetta passa os dedos em sua pulseira desafira.

    Lidia continuou a histria: E quando i nonni, nossos avs, faleceram, foi Beatrice que herdou o palazzo e tudo o que havia

  • sobrado, pois fora ela quem renunciara a sua vida para permanecer em casa com eles. E foi elaque, para sobreviver, dividiu o palazzo em apartamentos. Isso foi em algum momento dos anos1950, acho. Ainda ramos jovens, mas lembro como aquilo mexeu com ela. Envergonhada,enraivecida, da noite para o dia ela murchou como uma rosa asfixiada. Afinal de contas, opalazzo foi a residncia da famlia Ubaldini desde o incio dos anos 1500. Sentiu-se reduzida aopapel de estalajadeira. La locandiera, ela se chamava, arrumando o cabelo perfeito, tocando onico colar de prolas que lhe restara. Mas reservou para si o melhor andar. O apartamento quevai ser seu. Sabia que ele j foi um salo de baile? Seus 280 metros quadrados formavam umnico cmodo. Pense na histria que espera por vocs ali.

    Exaltada por aquelas histrias, sinto reavivar-se o primeiro encantamento que senti pela Viadel Duomo, 34. Seria um lugar maravilhoso para morar.

    Ento, o que voc acha? pergunta-me Fernando. Acho que so pessoas gentis. E que eu realmente adoraria morar na casa deles. Nossa casa.

    Ou seria um nossa no coletivo? Ser que Lidia, Concetta e todos eles ainda querem passar osveres ali? Por que no mudamos logo nosso sobrenome para Ubaldini? Eles no parecem estarpassando por dificuldades financeiras, nem estar brigando entre si.

    As coisas nem sempre so como parecem, no ? Pode ser que eles simplesmente prefiramno pagar pela restaurao. Ou talvez esta noite tenhamos testemunhado um caso de pura bellafigura. Podem ter se arrumado com seu nico conjunto de roupas caras. De qualquer maneira,conversamos sobre as estimativas de despesa da obra. Podemos arcar com isso.

    Fico em silncio. E os pagamentos mensais s comearo sete anos depois de tomarmos posse do

    apartamento. O valor ser estabelecido agora para evitar os humores da inflao. Voc selembra de quando o duque falou que estvamos pagando demais para os Lucci? Ele tinha razo.

    Sabe, nenhum deles muito jovem. E os herdeiros? Tratamos disso. Durante nossa vida, a casa nos pertence. Seus filhos se tornaro nossos

    herdeiros no que diz respeito ao apartamento. Mas por que um dos filhos no quer reformar o lugar e se mudar agora? Talvez nenhum deles queira morar em Orvieto. Lembre-se de que so romanos e

    napolitanos. Ou talvez eles no tenham dado essa opo aos filhos. Voc se intromete demais.Deixe rolar.

    Mas, se aceitarmos isso, seremos obrigados a ficar. Teremos que morar l por muito tempo,talvez para sempre. Como podemos ter certeza de que isso que queremos? Quer dizer, e se umdia tivermos vontade de nos mudar para Barcelona?

    Amore mio, podemos deixar Barcelona para outro momento? A fadiga fervilha etransborda em exasperao. Fernando senta-se e apoia o rosto nas mos. Parecia to alegre ques me preocupei com minhas dificuldades e no com as dele.

    Pego suas mos e as seguro. Barcelona foi apenas uma hiptese. Eu sei. Como a princesa cigana que , voc bem poderia ter dito Budapeste. E concordo que

    no podemos ter certeza de que a Via del Duomo o lugar onde vamos querer morar atmorrer. Tudo o que podemos saber com certeza que vamos estar juntos.

    Eu sei, eu sei. Deixe a vida se moldar sozinha. Mesmo assim, tudo to estranho.

  • Ah, e Samuele encontrou outra casa para ns. Um intervallo. Uma casa temporria,mobiliada, no p da ladeira do Duomo. Propriedade de um mdico. Diz que tem um belo jardimcom damasqueiros. E o doutor vai fazer um aluguel mensal. Podemos passar o vero l, ficar deolho no progresso da obra. Melhor do que ficar indo e voltando de San Casciano. Samuele nosofereceu um magazzino, onde podemos guardar todas as nossas coisas, enquanto isso. um planomuito bom. Podemos fazer a notificao aos Lucci amanh. Querida, voc quer o apartamento?Tudo o que fiz foi o que disse que faria: acompanhar o negcio. Agora chegou finalmente a horade decidir. Vamos pensar.

    Tudo bem. Voc sabia que o apartamento j foi um salo de baile? Vamos deixar umestbulo e nos mudar para um salo de baile.

    Vamos danar?

  • S4

    A vida vivida em eras

    im, vamos danar, dizemos. E o que fazemos. Autorizamos Samuele a dar sequncia a todosos trmites. Preenchemos um cheque. Ele prepara um contrato. Arrumamos o jantar numa cestae dirigimos at a runa para contar a Barlozzo que, em breve, teremos nossa prpria runa. Nodizemos a ele que o salone no tem cho ou que me deixei seduzir pelo beija-mo de nobres comperfume de limo. No contamos a ele sequer os detalhes do acordo que fechamos com osUbaldini. Sinto que suficiente para ele saber que est feito, que vamos deixar nossa antiga casa,a antiga casa dele, deixar o passado sozinho. E os Lucci espera do prximo casal de pombinhos.Como inspirador dessa libertao, sabendo agora que estaremos em segurana, longe, comodiz, sinto tambm que ele se sentir livre para se afundar ainda mais na solido. Seu trabalhocomo pai est encerrado.

    Vamos precisar da sua ajuda digo. Nem tanto com a mudana, mas assim quechegarmos l. Essa casa temporria tem um jardim que precisa ser cuidado e

    Pare de se preocupar, Chou. Pare de inventar tarefas para mim. Tudo o que posso fazer estaqui. No vou passar fome nem deixar que os camundongos durmam na minha barba. E no voumorrer. Voc no est me deixando mais do que eu estou deixando voc. Estamos apenascuidando de nossas vidas. Voc j me salvou, Chou. Flor, Fernando e voc j fizeram isso. Veja,quando eu morrer, no vou morrer sem nunca ter sido amado. Ento, estou em segurana. Parede se preocupar e de brigar comigo. Isso s me deixa nervoso. Estou bem, Chou, estou melhor.Mesmo.

    Embalamos o que cabe em caixas e pacotes e, mais uma vez, chamamos Gondrand paracarreg-los, para colocar a moblia no grande caminho azul. Meio que esperamos ver osalbaneses clandestinos que nos trouxeram de Veneza h dois anos, mas essa equipe detunisianos. Tambm clandestinos. Sob a luz fugidia, paramos nos degraus de entrada, observamoso motorista empurrar e fechar as portas do caminho e subir para a cabine. Ele levar tudodiretamente para o magazzino indicado por Samuele. As caixas que iro para a casa temporriacabem com folga no BMW. Entro na casa, percorro os aposentos, fingindo procurar algumacoisa esquecida. Mas no h nada. Nem a voz de Flor nem seus grandes olhos cor de topzio mefitando da cadeira perto da janela. Nem o menino que se tornou duque. Nem seu pai. Nem suame. Invocando o demnio, ouo a caminhonete de Barlozzo triturando o cascalho dos fundos.

    S queria mandar vocs para a Etrria com um vinho decente diz ele, abrindo a mala docarro, enfiando uma garrafa aqui, outra garrafa ali, entre as caixas.

    Ento voc vai jantar conosco no prximo sbado, certo? pergunto. Daqui a umasemana. Vou ligar para o bar e deixar um recado para lembr-lo, mas talvez a gente passe antespara visit-lo na runa. Fica a apenas uma hora de viagem Ele me aperta em seus braos

  • ossudos, a nica forma de me fazer ficar quieta. Pare de escrever um final.Comeo a subir de novo os degraus, dizendo que vou desligar as luzes que brilham em todos os

    aposentos. Mas o duque diz que no, que para deix-las, e no sei se um pequeno desrespeitopara com os Lucci ou se porque ele no quer que eu olhe para trs e veja a escurido.

    Podem ir, os dois. Podem ir, vou fechar tudo.Ele permanece ali, olhando para a casa, uma contemplao ancestral e fragmentada do

    garoto que foi. Sei que pode se ver, que pode v-la, assim como os outros, cenas que se sucedemcom rapidez: luz, frio, escuro, sussurros, gritos. E sei que , de fato, um final. A ltimaperambulao do duque pela velha casa. Comeo a compreender por que ele foi to categricoem relao a nossa partida. Era a nica forma de ele tambm conseguir partir.

    Pelas estradas secundrias que partem de San Casciano at a autostrada, em Fabro, a sada paraOrvieto fica a 36 quilmetros de distncia. No estamos indo para longe, mas, ainda assim, outro mundo, esta Orvieto. De um pequeno vilarejo sonolento na Toscana, cercado por pastos deovelhas, para uma grande ilha de pedra erguida por conta de alguma espcie de convulso antesdo incio da histria. Uma liteira que navega com lentido por um mar de neblina cor de mbar, o que este lugar parece. Depois de todas as vezes que subimos essa colina nas ltimas semanas,eu deveria estar acostumada com sua beleza improvvel. No estou. Esta noite, vamos ficar. Estanoite, vamos comear a morar aqui.

    Por alguma razo inesperada e no revelada ( claro), no podemos pegar as chaves da casatemporria at amanh. Samuele havia ligado para o Centrale para deixar este recado e tambmpara nos dizer que tinha uma surpresa. Poderamos passar em seu escritrio s sete? A boa evelha Vera, dos olhos cor de ostra, havia escrito isso em um guardanapo de papel, com seusrabiscos grandes e oblquos, e nos entregou como se fosse um mapa do tesouro. Em seguida,recitou a mensagem e nos pediu que repetssemos as palavras depois dela, como se fssemoscrianas saindo para comprar po. No nos despedimos dela nem de ningum do vilarejo,convencidos de que a distncia de 36 quilmetros insignificante. Vamos nos ver sempre, foi oque dissemos. E vocs vo nos visitar, tambm dissemos. Embora no tenhamos voltado aVeneza nesses dois anos. A vida vivida em eras.

    Quando deixamos o carro no estacionamento atrs da biblioteca comunale, em Orvieto, sinto-me exausta e triste, sentimentos que no so to sbitos assim, e no dou a mnima para asurpresa de Samuele.

    Ele nos espera no vicolo, em frente ao seu escritrio. Como eu esperava, ele no explica amudana dos planos em relao casa temporria. Em vez disso, nos conta que reservou umbelo quarto para ns, no Piccolomini, e um jantar tranquilo na trattoria La Grottina, que fica noVicolo Signorelli o estreito beco que sai da Via del Duomo no trreo do Palazzo Ubaldini.

    Ele nos acompanha at o restaurante, nos apresenta a Franco, um homenzinho frentico,embrulhado em um avental branco e engomado que cobre desde o peito vestido com camisaazul-clara at as pontas de seus sapatos de couro envernizado. Tem um cheiro forte de almscar e

  • de tomates cozidos por muito tempo e gosto dele de cara. Estava na cozinha explica que seucozinheiro est com dor de ouvido e tambm est servindo as mesas, pois o garom ainda nochegou. Os clientes sentam-se em apenas duas entre cerca de dez mesas, mas Franco umdervixe armado com uma faca que rodopia entre a tbua de po e um pernil de porco. Afasta ascortinas que do para a cozinha um heri de filme mudo ocupando o centro do palco batendopanelas, cantando Don Giovanni em falsete, irrompendo de novo pelas cortinas, com um prato demassa erguido como se fosse um clice, entregando-o com um floreio. Nunca fica em silncioou parado.

    O aposento pequeno, com as paredes brancas salpicadas por violentos murais prpura pagamento de um artista japons faminto, que perambulou por Orvieto alguns anos antes, conta-nos Franco. Em contraste com tal sobriedade, tudo o mais abundncia. H prateleiras de vinhopor toda parte; uma roda de Parmigiano, envelhecido at se esfarelar, cor de ouro velho, espetada por uma pequena faca de prata e colocada sobre uma coluna de mrmore. Anda-secom cuidado pelo aposento, entre cestos de pssegos e ameixas ainda presos aos galhos ealcachofras aninhadas em hastes folhosas de 30 centmetros, tudo espalh