A educação Classica Perene

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A Educação segundo a Filosofia Perene Décimo Capítulo - Perspectiva Teológica - Texto disponível para Download no site de Introdução ao Cristianismo segundo a obra de Santo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor http://www.terravista.pt/Nazare/1946/ 1

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Filosofia e Educação

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A Educao segundo a Filosofia PereneDcimo Captulo- Perspectiva Teolgica -Texto disponvel para Download no site deIntroduo ao Cristianismosegundo a obra de Santo Toms de Aquino e Hugo de S. Vitorhttp://www.terravista.pt/Nazare/1946/

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XPerspectiva Teolgica.1. Introduo.Nos captulos precedentes deste trabalho expusemos a relao entre a contemplao e a educao segundo os textos filosficos de Santo Toms de Aquino. Consideramos filosficos aqueles textos de Santo Toms em que h argumentos cuja validade no depende de algum princpio que s possa ser conhecido atravs da Revelao. Segundo este critrio, tornam-se filosficos no somente os textos dos Comentrios a Aristteles, mas tambm aqueles que esto contidos em trabalhos tradicionalmente considerados teolgicos, mesmo que citem as Sagradas Escrituras, desde que a validade de suas concluses no dependa necessariamente de princpios conhecidos apenas atravs da Revelao. Por outro lado, segundo este mesmo critrio, no devem ser considerados teolgicos apenas textos que citem as Sagradas Escrituras ou reportem diretamente o contedo da Revelao. Santo Toms de Aquino, no Comentrio ao Livro dos Nomes Divinos, diz que a Cincia Sagrada no a mesma coisa que a Revelao, mas algo que se estende a partir dela:"Observa-se, diz Toms de Aquino, que nas cincias os princpios e as concluses pertencem ao mesmo gnero.Ora, os princpios de que a Cincia Sagrada procede so aqueles que foram aceitos por revelao do Esprito Santo e esto contidos nas Sagradas Escrituras.Por conseqncia, tudo quanto possa ser deduzido a partir dos princpios contidos nas Sagradas Escrituras no alheio Teologia, ainda que no esteja nas Sagradas Escrituras" .Segue-se daqui que a sabedoria contida nos trabalhos de S. Toms de Aquino no apenas aquela que provm da filosofia, esta procedendo, em ltima anlise, de princpios conhecidos pela luz natural da inteligncia . H tambm, nas obras de Toms, uma outra sabedoria, que procede de outra cincia, a qual toma sua origem de princpios conhecidos no pela luz natural da inteligncia, mas de uma cincia superior, que a cincia divina , a qual diz respeito a coisas que so conhecidas apenas por Deus, das quais algumas Ele quiz comunicar aos homens pela Revelao .Seria de se esperar, portanto, que nos trabalhos teolgicos de S. Toms de Aquino se encontrassem, e de fato se encontram, outros e mais profundos conhecimentos sobre Deus, sobre a contemplao e sobre suas relaes para com a educao que ultrapassam as limitaes da abordagem filosfica, e que, no podendo ser alcanadas por esta, muito tenham a acrescentar ao nosso assunto. Por esta razo, o pensamento completo de S. Toms de Aquino sobre o papel da contemplao na educao somente poderia ser exposto levando-se em conta seus trabalhos considerados teolgicos, no apenas naquilo que eles contm de filosfico, mas tambm de propriamente teolgico, conforme j comentamos no incio deste trabalho. A Cincia Sagrada, porm, o melhor da obra de S. Toms de Aquino. Seria de se esperar, portanto, que para expor convenientemente o tema da contemplao e da educao luz da Cincia Sagrada tal como exposta por S. Toms, fosse necessrio no apenas mais um captulo, mas um outro livro, at maior do que o presente. Uma exposio completa do mesmo, por conseguinte, ultrapassaria com certeza os limites de nossa dissertao. Por este motivo, restringiremos este captulo final a apontar diretivas gerais para uma melhor compreenso das limitaes da abordagem conduzida at o momento. Entretanto, mesmo assim, para que o assunto possa ser abordado dentro do mbito de um s captulo, teremos que introduzir nele dois outros modos de proceder dos quais no fizemos uso nos captulos anteriores.O primeiro que, embora o tema da contemplao e educao luz da Cincia Sagrada possa ser tratado exclusivamente com os textos de S. Toms de Aquino, para que estes pudessem ser compreendidos do modo como so apresentados na obra de Toms, seramos obrigados a exposies muito longas, to longas que deveriam se tornar captulos independentes. Isto ocorre porque, embora os argumentos de S. Toms em si considerados em si mesmos sejam bastante claros, eles somente emergem com sua verdadeira fora quando so levados at os seus ltimos fundamentos ao serem inseridos dentro do restante do conjunto de sua obra, quando ento emergem com toda a sua evidncia. Por este motivo, no presente captulo, em vez de nos restringirmos apenas aos textos de S. Toms de Aquino, faremos uso de toda a tradio crist, onde ela se expressar com mais clareza com menos necessidade de argumentao; mostraremos, em seguida, como estas mesmas concluses se encontram nas obras de S. Toms de Aquino. Deste modo, no fugimos ao que nos tinhamos proposto originalmente neste trabalho; trata-se apenas de um recurso que nos permitir abreviar a apresentao, perdendo algo da profundidade daquelas justificaes que vo at os ltimos fundamentos, no, porm, a clareza da exposio.O segundo modo de proceder conseqncia da mesma necessidade que motivou o anterior. O conhecedor do assunto perceber que no daremos as razes profundas de muito do que vai ser apresentado no presente captulo; algumas concluses tero que ser apontadas at sem maiores justificativas, e outros assuntos correlatos que deveriam ter sido abordados sero omitidos. A razo que nossa inteno ser mais a de mostrar as limitaes da abordagem filosfica ao tema da contemplao do que fazer uma abordagem teolgica completa do mesmo; proceder diferente seria escrever outro livro. Este, ademais, o motivo pelo qual ao presente captulo se deu o ttulo apenas de perspectiva teolgica.2. A contemplao na Cincia Sagrada.Na Cincia Sagrada encontramos descrito um outro modo de contemplao alm daquele exposto pelos filsofos, mais elevado e para o qual a contemplao dos filsofos serve de preparao. Tentaremos a seguir expor suscintamente o que seja este outro modo de contemplao. Para isto, porm, deveremos tratar primeiro brevemente de um outro assunto.3. A virtude da f.Consideremos, primeiramente, o que seja a f, aquela virtude sem a qual, dizem as Sagradas Escrituras," impossvel agradar a Deus".Heb. 11,6As Sagradas Escrituras do a entender que a f um modo de conhecimento. De fato, na Epstola aos Hebreus pode-se ler que"pela f conhecemos que o Universo recebeu a sua ordem de uma palavra de Deus, de modo que as coisas visveis no provieram das coisas sensveis".Heb.11,3A mesma coisa tambm afirma S. Toms de Aquino:"Pela f se inicia em ns a vida eterna, pois a vida eterna nada mais do que conhecer a Deus. De fato, diz o Senhor no Evangelho de S. Joo:`Esta a vida eterna, que te conheam a Ti, nico Deus verdadeiro'.Ora, este conhecimento de Deus se inicia em ns pela f" .De onde se deduz que, segundo o modo de falar das Sagradas Escrituras e o pensamento de S. Toms de Aquino, a f um modo de conhecimento.Dizemos, porm, que a f um modo de conhecimento para diferenci-la de outros modos possveis de conhecimento que no so f. De fato, continua Toms de Aquino, a f importa num assentimento do intelecto quilo que se cr . Mas h duas maneiras do intelecto assentir a algo:"De um primeiro modo, o intelecto pode assentir a algo sendo movido pelo prprio objeto conhecido, ou porque ele conhecido por si mesmo, como no caso do intelecto dos primeiros princpios das demonstraes, ou por meio de outro conhecimento, como ocorre no conhecimento das concluses, conhecidas a partir dos princpios de que foram demonstradas, que o que ocorre nas cincias.H, porm, outro modo pelo qual o intelecto pode assentir a algo, que por uma eleio voluntria declinando-o a uma parte mais do que a outra. Se isto for feito mantendo todavia a dvida e a possibilidade de que a outra parte esteja correta, teremos a opinio; se, porm, se faz de modo certo e sem receio de erro, teremos a f" .Deduz-se, destas palavras, que a f de fato um conhecimento, mas que difere dos demais conhecimentos porque no alcanado atravs da evidncia da prpria coisa conhecida, mas por um assentimento movido pela vontade que aceita algo ser verdade porque Deus assim o revela . Aos demais conhecimentos somos movidos pela prpria inteligncia, por alguma evidncia intelectiva imediata ou por reduo a elas atravs do raciocnio; o conhecimento da f, porm, difere de todos estes por no ser alcanado por uma evidncia da prpria inteligncia, mas por um movimento da vontade. muito importante ressaltar este ponto, porque ainda h outros elementos pelos quais a f, como conhecimento, difere dos demais conhecimentos, e que tm grande relevncia para o tema que estamos abordando da contemplao.Todos aqueles que tm f conhecem como que naturalmente esta primeira diferena de que estamos falando, ainda que no a tenham estudado. Quando algum se refere posse de outros conhecimentos que no o da f, sempre se referir a eles utilizando expresses tais como "sei" ou "entendo tal ou qual coisa". Quando se trata, porm, de algo conhecido pela f, no dizemos mais "eu sei", mas sim "eu creio", embora sejam tanto em um caso como em outro modos de conhecimento; ainda que quem assim se expresse possa no t-lo percebido, a escolha diversa de expresso se d porque quando algum diz "eu creio" est incluindo na significado desta expresso, alm do prprio conhecimento, um ato da vontade. por isto que no conseguimos nos utilizar daquelas outras expresses como "eu sei" quando queremos descrever o conhecimento da f; a expresso "eu sei" descreve uma forma de conhecimento que no implica em ato algum da vontade. Desta maneira, da f participam tanto a inteligncia quanto a vontade. Sendo um conhecimento, porm, embora para que se realize tenha que haver uma participao da vontade, a f pertence de modo prprio inteligncia. Crer , de modo imediato, diz Toms de Aquino na Summa Theologiae, um ato da inteligncia, porque o objeto de seu ato a verdade, que algo que pertence de modo prprio ao intelecto, e no vontade .A f enquanto conhecimento tem como objeto a Deus e as coisas que se ordenam a Deus, assim como o objeto do conhecimento que a Medicina a sade e as coisas que se ordenam sade .Diz tambm Hugo de So Vtor que"As duas coisas em que maximamente consiste a f so o mistrio de Deus e do Verbo Encarnado" ,porque pela f se inicia no homem a vida eterna, e, conforme a palavra de Cristo no Evangelho de So Joo, "Nisto consiste a vida eterna, que te conheam a ti, nico Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo".Jo. 17,34. Crescimento da f.As Sagradas Escrituras afirmam, ademais, que a f pode crescer e admitir graus de grandeza.De fato, quando os apstolos no conseguiram curar um jovem luntico que lhes tinha sido apresentado, vendo depois que Jesus o tinha curado, perguntando-lhe porque no o haviam conseguido, ouviram do Cristo a seguinte resposta:"Por causa de vossa pouca f".Mt. 17,20De onde se deduz que, se a f pode ser pouca, porque ela tambm pode ser muita.De modo semelhante, quando Pedro caminhou sobre as guas do mar ao encontro de Jesus, e, percebendo a fora do vento, teve medo e comeou a afundar, Jesus o repreendeu:"Homem de pouca f, por que duvidaste?"Mt. 14,31Mas, ao contrrio, quando encontrou uma mulher canania que lhe suplicava a cura do filho, Jesus lhe disse:" mulher, grande a tua f".Mt. 15,28E ainda, em outra ocasio, os apstolos, percebendo quo pequena era a f que os animava, pediram ao Cristo:"Aumentai a nossa f".Lc. 17,5De passagens como estas conclui-se que inteno das Sagradas Escrituras ensinar que a f seja algo que possa aumentar no homem.No De Sacramentis Fidei Christianae, Hugo de S. Vitor faz uma afirmao intimamente relacionada com a questo do crescimento da f. Ele afirma que h duas coisas de que feita a f:"O conhecimento, e o afeto, isto , a constncia e a firmeza no crr" .Esta passagem no significa que a f seja um afeto; ao contrrio, a f um conhecimento; este conhecimento, entretanto, dotado de duas qualidades que lhe so distintivas, a constncia e a firmeza. Ambas estas qualidades pertencem ao conhecimento, e, portanto, esto na inteligncia como em seu sujeito, mas so causadas pela vontade, que no De Sacramentis Hugo designa pelo nome de afeto.Com isto j temos trs caractersticas do conhecimento que a f e que a distinguem dos demais conhecimentos. A primeira o ser movido pela vontade para alcanar o seu objeto; as duas restantes so uma constncia e uma firmeza peculiares f devido ao fato desta proceder da vontade.Se assim, porm, a f pode crescer de dois modos, isto , pelo conhecimento, quando lhe so ensinadas mais coisas sobre a Revelao ou a Cincia Sagrada, ou segundo a constncia e a firmeza no crer:"A f de alguns grande pelo conhecimento, mas pequena pela constncia e firmeza.J a de outros grande pela constncia e firmeza, e pequena pelo conhecimento.Outros, finalmente, h em que a f grande ou pequena em ambas as coisas" .Ora, no Evangelho Jesus compara a f com um gro de mostarda (Lc. 17,6) e acrescenta:", na verdade, a menor de todas as sementes, mas, crescendo, a maior de todas as hortalias, e faz-se rvore de modo que as aves do cu vm pousar nos seus ramos".Mt. 17,32Desta comparao, Hugo de S. Vitor deduz que"na verdade, a constncia e a firmeza na f so mais louvveis do que a quantidade do seu conhecimento, pois o Senhor o manifestou claramente quando comparou a f ao gro de mostarda, que, se pela quantidade pequeno, no o , todavia, pelo fervor" .Isto no significa, conforme veremos mais adiante, que o crescimento da f no conhecimento seja algo cuja importncia deva ser desprezada; tais afirmaes querem apontar uma caracterstica distintiva da f enquanto conhecimento, isto , que a f uma forma de conhecimento tal que, mesmo que pequena em quantidade, admite por natureza uma possibilidade de crescimento extraordinrio no encontrvel em outras formas de conhecimento. No se quer dizer com isto que o crescimento da f segundo o conhecimento seja irrelevante; ao contrrio, diz Toms de Aquino que quando este conhecimento posterior vontade de crer isto sinal de maior mrito da f:"De fato, quando o homem tem uma vontade pronta f, ama a verdade crida, e, meditando sobre ela, acolhe as razes da mesma, quando estas podem ser encontradas. Quanto a isto, a razo humana no exclui o mrito da f, ao contrrio, sinal de maior mrito, assim como as paixes que se seguem s virtudes morais so sinais de uma vontade mais pronta virtude, e no vice versa" .De qualquer modo, embora a f possa brilhar pela quantidade do conhecimento, isto, quando ocorre, costuma lhe advir como consequncia; a f brilha, entre os demais conhecimentos, em primeiro lugar, pela firmeza e pela constncia. isto o que encontramos tambm escrito por S. Toms de Aquino:"A perfeio do intelecto e da cincia excedem o conhecimento da f quanto manifestao, no, todavia, quanto mais certa adeso" .Nas Sagradas Escrituras encontramos numerosas referncias tanto firmeza como constncia da f. firmeza da f refere-se com particular insistncia o prprio Jesus Cristo, como nesta passagem:"Em verdade eu vos digo, se algum disser a este monte:-Ergue-te e lana-te no mar,e no hesitar no prprio corao, mas acreditar que acontea o que diz, isso lhe ser feito.Por isso eu vos digo, tudo o que pedirdes na orao, crede como j alcanado, e vos ser concedido".Mc. 11, 23-24A mesma doutrina Cristo ensinava quando fazia seus milagres; quando um centurio romano veio pedir-lhe que curasse um de seus servos, Jesus, vendo a sua f, lhe respondeu:"Em verdade vos digo que no encontrei ningum em Israel com to grande f. Vai, faa-se segundo a tua f".Ao que o Evangelho acrescenta:"E naquela mesma hora o servo ficou curado".Mt. 8,13Na maioria das vezes em que concedia um milagre, Jesus tambm respondia ao que lho tinha pedido:"Levanta-te e parte; a tua f te salvou";Lc.17, 19ou ento:"A tua f te salvou; vai em paz".Lc. 8, 48No Evangelho de S. Mateus ele acrescenta:"Se tiverdes f como um gro de mostarda, podereis dizer a este monte:-Muda-te daqui para ali,e ele se mudar; e nada vos ser impossvel".Mt. 17, 20No final do Evangelho de S. Marcos, ao despedir-se pela ltima vez dos apstolos, Jesus acrescenta esta promessa:"Aos que crerem, acompanh-los-o estes milagres: em meu nome expulsaro demnios, falaro novas lnguas, pegaro em serpentes e, se beberem algum veneno mortfero, no lhes far mal, imporo as mos aos doentes, e eles recobraro a sade".Mc. 16, 17-18Mas no Evangelho de S. Joo, quando da ocasio da ressurreio de Lzaro, Jesus fez uma promessa ainda mais impressionante:"Aquele que cr em mim, ainda que venha a morrer, viver; e todo aquele que vive e cr em mim no morrer jamais".Jo. 11, 26Esta ltima promessa para a f to mais importante que as anteriores que, quando no incio de sua pregao, Jesus tinha enviado alguns discpulos para pregarem em outras cidades, e eles voltaram alegrando-se pelos milagres que tinham realizado, Jesus lhes comentou:"No vos alegreis pelo fato de os espritos se submeterem a vs, mas alegrai-vos por estarem os vossos nomes inscritos no cu". Lc.10, 20Vimos, pois, com estes exemplos, como Jesus insistia na firmeza da f. J quem insiste de um modo especial na constncia da f o apstolo So Paulo. Na epstola aos Glatas ele cita o profeta Habacuc, segundo o qual "o justo viver da f" (Gal 3, 11). Na epstola aos Romanos ele repete a mesma citao (Rom 1, 17). Na epstola aos Hebreus a estende um pouco mais e diz:"O justo viver da f, diz o Senhor, mas, se retroceder, no ser aceito minha alma". Heb.10,37Na epstola aos Colossenses, ele fala novamente da constncia da f com as seguintes palavras:"J que ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, pensai nas coisas do alto, no vos interesseis pelas terrenas, j que vs morrestes, e vossa vida est escondida com Cristo em Deus". Col. 3, 1-3Nesta passagem da Epstola aos Colossenses S. Paulo no menciona a palavra f; mesmo assim, no entanto, a passagem como um todo se refere vida da f, o que no-lo atesta Hugo de S. Vitor quando afirma que"H um gnero de homens para os quais crer significa apenas no contradizer a f, aos quais denominamos fiis mais pelos costumes da vida do que pela virtude de crer.De fato, dedicados apenas s coisas que passam, nunca elevam a mente ao pensamento das coisas futuras; embora recebam os sacramentos da f crist juntamente com os demais fiis, no atentam para o que significa ser cristo ou que esperana h na expectativa dos bens futuros.Estes, embora sejam ditos fiis pelo nome, de fato e em verdade esto longe da f" .5. Pureza da f.Vimos, pois, que a f um conhecimento que alcana seu objeto movido pela vontade; distingue-se por uma especial firmeza e constncia, causados no entendimento pela vontade, que podem crescer de um modo incomum a outras formas de conhecimento. Mas, alm destes atributos, a f se distingue tambm por uma pureza particular. Tal como a firmeza e a constncia, a qualidade da pureza est tambm no entendimento, mas difere destas por no ser causada pela vontade.Entre as diversas formas de conhecimento, a contemplao da sabedoria tambm se distingue pela pureza. De fato, S. Toms de Aquino afirma no Comentrio ao X da tica que "a filosofia possui na contemplao da sabedoria deleitaes admirveis quanto pureza. A pureza de tais deleitaes provm de serem acerca de coisas imateriais" .Nesta passagem S. Toms afirma que a contemplao da sabedoria um conhecimento puro porque diz respeito a coisas imateriais; ele associa a pureza imaterialidade.O mesmo pode-se dizer do conhecimento da f, pois a f diz respeito principalmente a coisas que so maximamente imateriais, isto , a Deus e s coisas que se ordenam a Deus.Ademais, a Sagrada Escritura diz que a f "o argumento das coisas que no se vem". Heb. 11, 1Toma-se aqui a palavra argumento pelo efeito do argumento; de fato, atravs da argumentao que a inteligncia levada a aderir a alguma verdade; por isto a firme adeso da inteligncia verdade da f chamada pela Sagrada Escritura de argumento .Mas o mais importante desta definio a sua segunda parte, segundo a qual a f diz respeito quilo que no se v. A f argumento daquilo que no se v no porque por alguma circunstncia qualquer no foi visto, mas porque, por sua prpria natureza, no pode ser visto. E precisamente nisto que consiste a grandeza da f e a sua pureza. Sendo de coisas que por natureza no podem ser vistas, a f obriga a inteligncia a se elevar a objetos que esto alm das possibilidades dos sentidos, a objetos que, por sua prpria natureza, so maximamente inteligveis. No , pois, por um simples capricho ou pelo prazer de testar continuamente o homem que Deus pede para que ele creia e viva da f no que ele no pode ver, acrescentando que, "se ele se afastar, no lhe ser mais do seu agrado"(Heb. 10,38). Ao contrrio, Ele faz isso para o nosso prprio bem, conforme mais adiante o atesta tambm a mesma carta aos Hebreus:"Nossos pais nos educaram segundo a sua prpria convenincia; Deus, porm, o faz para o nosso bem, para nos comunicar a sua santidade" Heb. 12, 10Pois, de fato, no so os fatos narrados nas Sagradas Escrituras que so o objeto principal da f, isto , aquilo em que Deus quer que o homem principalmente creia e viva desta f; estes fatos histricos foram de natureza tal que puderam ser vistos pelos homens quando aconteceram. por isso que Hugo de S. Vitor se pergunta:"Como pde S. Pedro ter tido f na paixo de Cristo, se ele a viu com os seus prprios olhos e a f de coisas que no se vem?Deveramos dizer que ele teve o conhecimento da paixo de Cristo e no a f?Ou poderamos dizer abusivamente: Creio no que vem os meus olhos?"Ao que ele prprio responde, logo a seguir:"O mrito de S. Pedro no foi o de ter visto a paixo de Cristo, mas o de ter acreditado ser Deus aquele homem que viu pendendo na cruz.A f sobre que se alicera o edifcio espiritual sempre de coisas que no se podem ver" .Se o homem pudesse, portanto, ver com os olhos as coisas que so objeto da f, supondo que com isto tudo lhe seria mais fcil, em vez disto ajudar o homem, faria ao contrrio com que perdesse toda a pureza que a f capaz de trazer inteligncia e lhe destruiria os prprios alicerces sobre que se fundamentam suas possibilidades de crescimento espiritual.Na verdade, S. Didoco, bispo de Fcia no sculo V, fez uma das afirmaes mais impressionantes que j apareceram sobre a f. A f, dizem as Sagradas Escrituras, diz respeito s coisas que no se vem; mas S. Didoco, como um daqueles justos que vivem pela f, percebeu pela sua experincia pessoal uma conseqncia que no estava imediatamente contida naquela expresso; de fato, diz S. Didoco, no apenas a f das coisas que no se vem, mas, mais ainda,"a f ensina a desprezar as coisas que se vem" .De fato, as coisas que se vem so aquelas que podem cair sob o domnio da imaginao; se a f ensina a desprezar as coisas que se vem, porque ensina a desprezar o uso da imaginao, fazendo com que a inteligncia se eleve pureza da abstrao das coisas inteligveis.6. Crescimento da f na pureza.O ser no se diz do mesmo modo de todos os entes. J vimos que h entes mais e menos imateriais, e os mais imateriais participam mais plenamente do ser do que os menos imateriais.Da mesma maneira, h diversos graus de apreenso do ser por parte da inteligncia; quanto mais abstratamente a inteligncia apreende o ser, tanto mais puro o conhecimento que ela tem do ser.O conhecimento das coisas divinas, que primam pela imaterialidade, portanto, no puro no homem apenas por parte da imaterialidade do objeto, mas admite gradaes de acordo com a maior ou menor participao deste conhecimento da natureza de seu objeto.Da que a f, sendo conhecimento das coisas divinas, pode crescer no apenas pela firmeza e pela constncia, mas tambm pela pureza; e desta pureza tambm vive o justo que vive pela f.Para crescer em pureza, a f conta com o auxlio de alguns elementos de que no dispe o filsofo; um deles so os prprios dados da Revelao, que nos instruem sobre muita coisa que est alm das possibilidades de investigao do filsofo, como o mistrio da Trindade. Partindo destes dados como de princpios provenientes de uma cincia superior filosofia, a f pode chegar a um conhecimento das coisas divinas mais puro do que o da filosofia.Temos na tradio crist um belssimo exemplo da pureza do conhecimento da f no tratado sobre a Santssima Trindade escrito por Ricardo de So Vitor, um conjunto admirvel de seis livros, conhecido apenas como De Trinitate . Embora ele se baseie, como em seu princpio e fundamento ltimo, nos dados da Revelao, no obstante isso geraes de cristos prepararam na verdade esta obra, assim como geraes de filsofos prepararam as de Aristteles; ela , em primeiro lugar, um prolongamento do VII do Didascalicon de Hugo de S. Vitor ; esta obra de Hugo de S. Vitor, por sua vez, se baseia no De Trinitate de Santo Agostinho , que foi o ponto culminante de todo o aprofundamento sobre a questo trinitria havido nos quatro primeiros sculos do cristianismo e em que estiveram envolvidos os dois primeiros conclios ecumnicos da Igreja. Tudo isto convergiu em Ricardo de So Vitor para uma das mais sublimes exposies da vida divina que jamais se escreveram, mas que Ricardo de So Vitor afirma ter sido escrita para mostrar em que sentido os justos so ditos viver da f:"`O meu justo vive da f'", diz Ricardo de S. Vitor no incio do prlogo do De Trinitate, citando ao mesmo tempo nesta frase ao apstolo Paulo e ao profeta Habacuc."Esta sentena, continua Ricardo, ao mesmo tempo apostlica e proftica.O apstolo diz o que o profeta prediz, pois o justo vive da f; e se assim , ou melhor, porque assim , devemos nos elevar com frequncia aos mistrios da nossa f.Sem a f, de fato, impossvel agradar a Deus. Pois onde no h f, no pode haver esperana. Onde no h esperana, no pode haver caridade. Pela f, portanto, somos promovidos esperana, e pela esperana progredimos caridade. Qual seja, porm, o fruto da caridade, poders ouvi-lo da prpria boca da verdade:`Se algum me ama, ser amado pelo meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a ele'. Jo. 14Do amor, portanto, provm a manifestao, da manifestao a contemplao, e da contemplao o conhecimento. Quo aplicados, pois, no nos convm ser f, da qual procede o fundamento de todo bem e atravs da qual se alcana o firmamento?Se somos filhos de Sio, levantemos aquela sublime escada da contemplao, tomemos asas como de guia pelas quais nos possamos destacar das coisas terrenas e nos levantar s coisas celestes. Pensemos nas coisas do alto, no nas coisas da terra, onde Cristo est sentado direita do Deus; para isto de fato Cristo nos enviou o seu Esprito, para que conduzisse o nosso esprito de tal modo que para onde o Cristo ascendeu com o corpo, ascendamos ns pela mente" .Ascendamos pela mente, diz Ricardo de S. Vitor; quem ascende ascende para o alto, que Deus, o qual sendo maximamente ser, maximamente imaterial e puro. Portanto, Ricardo de S. Vitor nos convida aqui a crescermos na pureza da f. medida em que esta pureza cresce, diz Toms de Aquino, tambm se estende s demais potncias da alma, pois, segundo ele, a pureza da f causa a pureza do corao:"as coisas que esto na inteligncia so princpios das coisas que esto no afeto, na medida em que o bem do intelecto move o afeto; de onde que a purificao do corao um efeito da f" .Disto tambm testemunha So Pedro, quando, nos Atos dos Apstolos, falando aos judeus a respeito dos pagos, assim lhes disse:"Deus no fz distino alguma entre eles e ns, pois purificou os seus coraes pela f". Atos 15, 97. F e graa.Pelo que j expusemos sobre a f, apesar de tratar-se de um conhecimento que alcana seu objeto movido pela vontade, pode-se perceber nela notveis semelhanas com a contemplao da sabedoria descrita pelos filsofos. Diferenas mais marcantes comeam a aparecer quando, examinado mais atentamente o contedo do que proposto pela f, somos levados a concluir que apenas a vontade no suficiente para mover a inteligncia ao assentimento da f; de fato, se dependesse apenas da vontade, a f seria impossvel.Vimos que a f diz respeito a objetos que primam pela sua imaterialidade e que, por isso mesmo excedem o alcance dos sentidos e da imaginao, somente podendo ser alcanados pela abstrao da inteligncia. Examinando, porm, melhor o seu contedo, verificamos que a f igualmente nos revela coisas a respeito deste objetos que esto para alm do alcance da evidncia no s dos sentidos, mas tambm da inteligncia humana, ainda que ela possusse o hbito da sabedoria to perfeito quanto possvel. Ora, se a inteligncia o que h de principal na natureza do homem, segue-se daqui que a f diz respeito a coisas que ultrapassam a barreira do que conatural ao homem, por mais que se leve a sua natureza aos limites de sua perfectibilidade.Uma coisa , de fato, que depois de anos de estudo se chegue firme certeza de que existe um ser inteligente e imaterial que a causa do ser de todas as coisas e que excede na perfeio de seu prprio ser a tudo quanto existe alm dele; que a felicidade do homem consiste em assemelhar-se a esta causa primeira; e que ela disps todas as coisas de modo a favorecer aqueles que assim procedem. Outra coisa muito diferente, porm, so as afirmaes da f segundo a qual somos amados pela causa primeira como seus filhos; que quando oramos a causa primeira nos ouve como um pai; e que ela nos espera aps o trmino desta vida como a um ente querido para nos fazer felizes por toda a eternidade. No h nmero de anos de estudo que sejam suficientes para se chegar evidncia de afirmaes como estas. Ao contrrio, quem quer que tenha verdadeiramente considerado a natureza do ser da causa primeira tal como nos reporta a metafsica, diante da impossibilidade de se produzir uma evidncia filosfica para estas afirmaes, no pode deixar de se surpreender pela certeza com que so formuladas pela f.De fato, que o ser humano diante da imensido do Universo que no precisamos descrever? menos do que um gro de poeira. E o que o Universo inteiro diante da perfeio da causa primeira? Menos ainda do que o homem diante do Universo. Certamente a causa primeira sustenta todas as coisas no ser e sabe, por ser inteligente, que existem as coisas de que ela causa; mas da para a afirmao de que quando oramos a causa primeira nos ouve como um pai vai uma diferena descomunal. Que dizer, ento, de afirmaes segundo a qual Jesus Cristo era a causa primeira, crucificada por ordem de Pncio Pilatos? Ou daquela segundo a qual na causa primeira, perfeitamente una, subsistem desde toda a eternidade trs pessoas que compartilham uma s divindade, que se conhecem e se amam com uma felicidade que supera o alcance de qualquer entendimento? Que esta causa primeira nos ame a ponto de ter se deixado crucificar pelos homens e que esteja nos esperando aps o trmino desta vida no apenas para fazer nos felizes levando as possibilidades de nossa natureza intelectiva aos limites de sua perfectibilidade, mas comunicando-nos uma outra felicidade, no a mxima que possvel nossa inteligncia, mas a sua prpria, aquela que h nela mesma em virtude da Trindade de suas pessoas, algo muito maior e mais extraordinrio do que se um homem qualquer, de um momento para outro, soubesse que tivesse herdado o Reino da Inglaterra ou mesmo o mundo inteiro. No h, porm, vontade humana capaz de, sozinha, fazer a inteligncia assentir a afirmaes desta natureza com a firmeza e a constncia que as Sagradas Escrituras atribuem f. Ningum, por mais que o queira, a no ser que se trate de um louco, mas neste caso a sua f no lhe trar nenhum proveito, ser capaz de acreditar firme e perseverantemente ter herdado o Reino da Inglaterra se no tiver alguma evidncia adicional de que tal fato realmente se deu. As afirmaes da f, entretanto, esto alm dos sonhos mais extraordinrios que o homem possa conceber, muito alm da herana do trono da Inglaterra. necessrio, portanto, para crer realmente nestas coisas, algo a mais do que o simples movimento da vontade. Alm da vontade humana, a coerncia da doutrina sagrada e os milagres operados pelos profetas e por Cristo como confirmao destes ensinamentos, embora venham nisto em auxlio do homem, tambm no so suficientes: de fato, diz Toms de Aquino, "dos que vem um mesmo milagre e ouvem o mesmo ensinamento, um cr e o outro no" . No o que acontece diante de um teorema de matemtica ou de uma lio de Histria. Este algo mais que necessrio para crer verdadeiramente nestas coisas, diz Toms de Aquino, o auxlio da graa:"Deve-se colocar uma outra causa interna, que move interiormente os homens a assentir interiormente s coisas que so da f. Esta causa no pode ser apenas o livre arbtrio do homem, porque como o homem, assentindo s coisas que so da f, se eleva sobre a sua natureza, necessrio que isto lhe ocorra por um princpio sobrenatural movendo-o interiormente, que Deus. E por isso a f, quanto ao assentimento, que o principal ato da f, provm de Deus interiormente movendo pela graa" .Desta maneira, no apenas a vontade que move a inteligncia para alcanar o conhecimento da f; alm da vontade, diz Toms de Aquino, necessrio tambm o "instinto interior de Deus que convida" .A estas palavras de S. Toms aplicam-se perfeitamente estas outras de Hugo de S. Vitor:"Nestas coisas o conselho do homem, sem o auxlio divino, enfermo e ineficiente. necessrio, portanto, levantar-se orao, e pedir o seu auxlio, sem o qual nenhum bem poder ser alcanado.Isto , necessrio pedir a sua graa, a qual, para que tivesses chegado at aqui para pedi-la, era ela que j te iluminava, e daqui para a frente ser quem haver de dirigir os teus passos para o caminho da paz, e de cuja nica boa vontade depende que sejas conduzido ao efeito da boa operao.No sers obrigado por ela, sers ajudado.Se apenas tu operares, nada realizars; se apenas Deus operar, nada merecers.Aquele que corre por esta via, busca a vida" .A graa, diz Toms de Aquino, pode agir no homem de diversos modos. A que suficiente para crer aquela descrita na Prima Secundae da Summa Theologiae:"No uma qualidade infundida na alma por Deus, mas apenas um movimento da alma, na medida em que a alma do homem movida por Deus para conhecer ou querer alguma coisa" .Neste texto S. Toms afirma que a graa pode agir no homem tanto movendo a inteligncia como a vontade. Resta saber em qual destes movimentos consiste a graa necessria para crer.Nas Sagradas Escrituras temos testemunhos no apenas de que a graa pode mover a vontade, mas tambm iluminar a inteligncia do homem. Aps a ressurreio, Jesus caminhou longo tempo pela estrada de Emas conversando com dois apstolos sem que estes o reconhecessem; depois de terem entrado em casa, durante a ceia, quando Jesus abenoou o po, diz a Escritura que"seus olhos se abriram e o reconheceram; Ele, porm, desapareceu diante de seus olhos". Lc. 24, 31Mais ainda do que nesta passagem, diz S. Paulo na Epstola aos Corntios:"O que os olhos no viram, os ouvidos no ouviram, e o corao do homem no percebeu, isso Deus preparou para aqueles que O amam. A ns, porm, Deus o revelou pelo seu Esprito, pois o Esprito sonda todas as coisas, at mesmo as profundidades de Deus. Quem, pois, entre os homens conhece o que do homem seno o esprito do homem que est nele? Da mesma forma, o que est em Deus, ningum o conhece, seno o Esprito de Deus. Ns no recebemos o esprito do mundo, mas o Esprito de Deus, para que conheamos os dons da graa de Deus". I Cor. 2, 9-12Entretanto, a iluminao direta e intensa da prpria inteligncia pela graa parece ser mais caracterstica dos que j vo crescidos na f do que daqueles que nela se iniciam. Naqueles que principiam na f, a inteligncia ilustrada principalmente pelo que proposto exteriormente e a graa move, pelo menos de modo principal, mais diretamente a vontade do que a inteligncia.Isto concorda tanto com a expresso de que se utiliza Toms de Aquino quando descreve a graa de crer como aquele "instinto interior de Deus que convida", pois quem convida mais se dirige vontade do que inteligncia, como com um texto de Hugo de S. Vitor em que ele descreve o crescimento da f:"Segundo o crescimento da f", diz Hugo de S. Vitor, "encontramos trs gneros de pessoas que crem.H alguns fiis que alegam crer apenas pela piedade, os quais todavia no compreendem se se deve crer ou no crer pela razo; nestes, apenas a piedade faz a eleio.H outros que aprovam pela razo o que crem pela f; nestes a razo acrescenta sua aprovao.Outros, finalmente, pela pureza do corao e da conscincia j comeam a saborear interiormente aquilo que crem pela f; nestes a pureza da inteligncia apreende a certeza" .Com isto concordam tambm as palavras de Dionsio Areopagita que descrevem as disposies necessrias para receber o Batismo e principiar a praticar os mandamentos divinos:"Qual o ponto de partida", diz Dionsio, "para a prtica dos mandamentos divinos? este: Preparar nossas almas para ouvir a palavra sagrada, acolhendo-a com a melhor disposio possvel;estar aberto atuao de Deus;desejar o caminho que nos leva at a herana que nos aguarda no Cu,e receber a regenerao sagrada (do Batismo)" .Este texto de Dionsio Areopagita no fala da f, mas do Batismo. Entretanto, as Sagradas Escrituras associam o Batismo com a f: "Quem crer e for batizado, diz Jesus, ser salvo" (Mc 16,16); "Os corntios que ouviam Paulo, dizem os Atos dos Apstolos, abraavam a f e recebiam o Batismo" (At. 18,8). De modo que as disposies para receber o Batismo tm grandes afinidades com as disposies para receber a f, operadas em ns pela graa. Ora, as disposies descritas por Dionsio Areopagita so principalmente disposies mais da vontade do que da inteligncia.O que no significa, porm, que a graa, movendo a vontade, no cause por redundncia tambm a iluminao da inteligncia. O homem, de fato, quando ouve a verdade da f, o mais das vezes costuma estar cego tambm para o entendimento de verdades que no esto acima das possibilidades da luz natural da inteligncia; este obscurecimento lhe causado no por um defeito da inteligncia, mas pelas paixes e hbitos adquiridos pela vontade. Deste modo, movendo-se a vontade, a inteligncia se abre para o entendimento de verdades de ordem natural que antes ela no via, e com isto dispe-se para o assentimento das verdades da f, por causa da grande coerncia que as verdades da f possuem para com as verdades da ordem natural. por isto que a este efeito,podem-se aplicar as seguintes palavras das Sagradas Escrituras:"O Sol,que antes estava entre nuvens,apareceu radiante". II Mac 1,22Comentando esta mesma passagem, assim se expressa S. Toms de Aquino:"O Sol, isto , a inteligncia do homem, est entre nuvens quando est entregue s coisas terrenas; refulge e resplandece, porm, quando for afastado e removido do amor do que terreno" .E diz muito significativamente Toms, que a inteligncia do homem refulge e resplandece no quando for afastada do que terreno, mas do amor do que terreno.Num sentido oposto, assim se manifesta o apstolo S. Paulo :"Manifestamos a verdade, e com isto nos recomendamos conscincia de todos os homens diante de Deus. Mas se, (apesar disto), o nosso Evangelho permaneceu encoberto, ficou encoberto para aqueles a quem o deus deste mundo obscureceu a inteligncia, a fim de que no vejam brilhar a luz do Evangelho". II Cor.4,2-3Do que se pode deduzir que, quando move a vontade, a graa pode causar por redundncia uma iluminao da inteligncia, que usualmente se encontra obscurecida nos homens por muitas causas que no so de natureza intelectiva. Deste modo, a atuao da graa na vontade no se resume apenas a convid-la a produzir o assentimento da inteligncia, mas tambm a fazer com que a vontade se mova de um tal modo que se produza por redundncia uma iluminao da inteligncia, num efeito que o inverso do que descreve o apstolo Paulo. por isso que o mesmo apstolo acrescenta, duas linhas adiante:"De fato, o Deus que disse luz que brilhasse no seio das trevas, brilhou Ele prprio nos nossos coraes para fazer brilhar o conhecimento de sua glria". II Cor. 4,6De modo geral, pois, nos princpios da vida espiritual a graa move a f mais agindo sobre a vontade do que diretamente sobre a inteligncia; um dos efeitos deste movimento uma espcie de consolao, que uma deleitao conseqente ao repouso da vontade no objeto da f. medida em que a vida espiritual progride e a graa passa a iluminar mais intensa e diretamente tambm a inteligncia, manifesta-se igualmente sob o aspecto de uma especial pureza, que da inteligncia se estende s demais faculdades da alma. Diz a Escritura, porm, que o Esprito Santo "sopra onde quer" (Jo 3,8); e, portanto, se assim o quiser, pode mover intensamente a inteligncia atuando diretamente sobre ela mesmo no princpio da vida espiritual. Neste caso, o que ocorre no mais das vezes que a inteligncia se abre para a percepo do estado lastimvel em que se encontra a prpria alma; isto nela conseqncia de uma fagulha de entendimento das coisas divinas, produzida pela graa. Produzem-se com isto aquelas converses que causam to profunda impresso nos homens, como a do apstolo S. Paulo. Esta profunda impresso que tais converses causam provm da energia com que repentinamente o homem parece estar disposto a lutar contra si mesmo e romper com seu pecado. Isto, por sua vez, ocorre por ter sido a inteligncia iluminada diretamente, e no por redundncia de um movimento da vontade; a inteligncia passa com isso a entender coisas que os hbitos adquiridos da vontade mais prefeririam que no tivessem sido entendidos, e o homem passa a ter que imp-las sobre as faculdades apetitivas.Menos geralmente, os que no incio da vida espiritual so movidos intensamente pela graa tambm atravs do entendimento so pessoas que, por algum motivo bastante especial, j conduziam uma vida de virtude, como o foram, no incio do Cristianismo, muitos entre os judeus e tambm, posteriormente, vrios dos filsofos gregos que aceitaram a f crist; nestes casos a graa move diretamente a inteligncia a um maior entendimento da profundidade dos mistrios da f, embora, para estas pessoas, na expresso de Hugo de S. Vitor, "antes que elas tivessem chegado at aqui, a graa j os iluminava". Deve ter sido este o caso dos magos que vieram do Oriente, guiados por uma estrela, at Belm, adorar Jesus nascido no prespio (Mt. 2,1-12). Foi este o caso, tambm, no Brasil recm descoberto da segunda metade dos anos 1500, de um ndio que surgiu, repentinamente, j no fim de sua vida, prximo s praias do litoral paulista. As circunstncias deste fato, e o modo como este ndio veio a receber o Batismo das mos do bem aventurado Jos de Anchieta, um dos primeiros missionrios que aportaram no Brasil colnia, foram registradas por Pero Rodriguez, provincial jesuta contemporneo de Anchieta:"Indo o Padre Jos uma vez por esta praia",-diz Pero Rodriguez-, "se desviou do caminho, sem ocasio alguma, mas como que levado por outrem, e se meteu um pouco pelo mato. Encontrou com um ndio velho, assentado ao p de uma rvore, o qual primeiro armou a prtica, dizendo:`Acaba j de vir, Padre, que muito tempo h que aqui te estou aguardando'.Perguntou-lhe o padre pelo nome, terra e aldeia. Respondeu que sua aldeia estava sobre o mar, e outras coisas das quais claramente entendeu que aquele ndio no era natural da comarca de S. Vicente, nem de toda a costa do Brasil, mas que viera ter ali, trazido por brao mais que humano, da parte do Oeste, da contra costa da provncia do Brasil.Perguntou-lhe mais a que viera, e o que era que dele queria, pois o estava ali aguardando; respondeu o ndio que vinha ouvir a vida boa, pois esta a frase dos ndios com que significam a Lei de Deus e o caminho da salvao.Examinou a padre miudamente a sua vida e achou que no tivera muitas mulheres, que nunca fizera guerra seno para se defender, pelas quais coisas e outras semelhantes julgou que nunca pecara mortalmente contra a lei natural, e que tinha muito conhecimento natural das coisas e do autor da natureza.Quando o padre lhe ia declarando os principais mistrios da nossa f, o ndio respondia:`Assim entendia eu no meu corao, mas no o sabia declarar'.Finalmente o padre o instruiu bastante, e o batizou com gua da chuva, que se conservava nas folhas dos cardos montezinhos, e lhe ps o nome de Ado, que tanto se viu regenerado em Jesus Cristo, pelo santo Batismo, com as mos postas e os olhos no cu, deu muitas graas a Deus, com semblante mui alegre. Agradeceu tambm ao padre a caridade que lhe fizera, e como quem no esperava mais do que esta ditosa hora, nem tinha mais que negociar na vida, deu sua bendita alma a Deus nas mos do mesmo padre, e se foi para o Cu, cujo corpo enterrou o padre, cobrindo-o com areia.Caso por certo raro e digno de admirao, e matria para dar muitos louvores ao Criador e Redentor dos homens" .8. F e caridade.No Evangelho segundo S. Marcos, quando um estudioso da Lei de Moiss perguntou a Jesus qual fosse o maior de todos os mandamentos, Jesus sequer parou para pensar; apesar de tanto ele insistir sobre a necessidade da f, insistncia manifestada de um modo todo especial no mesmo Evangelho de S. Marcos, respondeu que o maior de todos os mandamentos no era o da f, mas o da caridade para com Deus:"Amars o Senhor teu Deusde todo o teu corao,com toda a tua alma,com toda a tua mente,com todas as tuas foras". Mc. 12, 28Este o maior e o primeiro mandamento, diz ainda Jesus(Mt.22, 38).A caridade a mais excelente entre todas as virtudes, diz tambm Toms de Aquino ; assim como a f, a caridade tem tambm a Deus como objeto, que se estende tambm ao prximo ; mas, ao contrrio da f, cujo ato est no intelecto , a caridade est na vontade como em seu sujeito .Ora, j mostramos que a f um conhecimento que alcana seu objeto movido pela vontade; seria de se esperar, portanto, que a presena da caridade no vontade venha a ter uma considervel influncia no ato da f, fazendo-a crescer mais intensamente. De fato, isto assim , primeiramente, pela coincidncia dos objetos da f e da caridade e pela intensidade da caridade.A f tem a Deus por objeto, e movida pela vontade; a caridade tem tambm a Deus por objeto, e aquela virtude pela qual a vontade se move ao amor de Deus "com todas as suas foras". Pelo mandamento da caridade a Escritura"No apenas preceituou que amssemos a Deus, nem que amssemos apenas a Deus, mas que o amssemos o quanto pudssemos. A tua possibilidade ser a tua medida" .Assim tambm, na primitiva regra franciscana, S.Francisco de Assis exortava seus primeiros irmos a"que todos removam todos os obstculos e posterguem todos os cuidados e solicitudes, para, com o melhor de suas foras, servir, amar, adorar e honrar de corao reto e mente pura o Senhor nosso Deus, pois isso o que Ele deseja sem medida" .Pode-se daqui concluir que se a vontade, animada pela virtude da caridade, se move para Deus de um modo to intenso, isto far com que a f, virtude pela qual a inteligncia alcana a Deus, mas que tambm movida para tanto pela vontade, cresa at excelncia.Este um dos motivos porque a Sagrada Escritura afirma que"a f opera pela caridade", Gal. 5, 6e tambm que"a f, sem as obras (da caridade), morta". Tg. 2, 17A f, diz Toms de Aquino, vive pela caridade , e, atravs dela, torna-se uma realidade perfeita . Ao que acrescenta Hugo de S. Vitor que no h mais de uma f, uma morta e outra viva, mas, ao contrrio,"no so duas, mas a mesma aumentada, pelo que diz o Evangelho de So Lucas: `Aumentai a nossa f' Lc. 17,5" .H, entretanto, uma outra razo para que a f se torne, atravs da caridade, uma realidade perfeita. De fato, diz Toms de Aquino que a caridade no apenas amor, mas um modo especial de amor, um amor que possui natureza de amizade:"A amizade um amor com benevolncia, isto , um amor pelo qual amamos algum querendo-lhe o bem.Se no queremos o bem das coisas amadas, mas o bem delas que queremos para ns, como quando dizemos que algum ama o vinho, este no um amor de amizade, mas de concupiscncia. ridculo, de fato,dizer que algum tenha amizade para com o vinho.Porm, nem mesmo apenas a benevolncia suficiente para a natureza da amizade; requer-se tambm o amor mtuo,porque o amigo para o amigo, outro amigo.Ora, esta mtua benevolncia se fundamenta sobre alguma comunicao.Como h alguma comunicao entre Deus e o homem na medida em que Deus quer nos comunicar a sua prpria felicidade, necessrio que sobre esta comunicao se estabelea alguma amizade.O amor fundamentado sobre esta comunicao que dito ser a caridade" .Isto significa que o amor de caridade no apenas aquele pelo qual o homem cumpre o mandamento de amar a Deus com todo o seu corao, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com todas as suas foras, mas este mesmo amor pressupe o amor pelo qual o homem amado primeiro por Deus. De fato, assim se encontra escrito na Epstola de S. Joo:"Nisto consiste a caridade: no fomos ns que amamos a Deus, mas Ele que nos amou primeiro". I Jo. 4, 10Ora, diz Toms de Aquino, h uma diferena entre o amor de Deus e o amor dos homens:"A vontade do homem movida pelo bem pr existente nas coisas, de onde que o amor do homem no causa totalmente a bondade da coisa, mas a pressupe em parte ou mesmo totalmente.No caso do amor de Deus, porm, como todo bem da criatura provm da prpria vontade divina, do amor de Deus que quer o bem da criatura procede o bem existente nas criaturas.Deste modo, h o amor geral de Deus por todas as criaturas, segundo o qual Ele ama a todas as coisas que existem, conforme diz o Livro da Sabedoria (Sab. 11,25). Segundo este amor Deus concede s coisas criadas o ser natural.Outro o amor especial segundo o qual Deus traz a criatura racional acima da condio de sua natureza participao do bem divino; segundo este amor Deus quer o bem eterno da criatura, que o prprio Deus.Como efeito deste amor algo sobrenatural acrescentado no homem proveniente de Deus" ."Porque no conveniente que Deus proveja menos queles que Ele ama para a aquisio do bem sobrenatural do que s criaturas que Ele ama apenas para conduz-las aquisio do bem natural.s criaturas naturais, porm, providenciou de modo que no apenas as movesse aos seus atos naturais, mas tambm lhes concedesse formas e virtudes que fossem princpios dos seus atos para que se inclinassem por si mesmas a tais movimentos, de tal maneira que os movimentos pelos quais as criaturas so movidas por Deus se lhes tornem fceis e conaturais, segundo diz o Livro da Sabedoria: "Disps a tudo com suavidade" Sab. 8, 1Muito mais infundir Deus algumas formas ou qualidades sobrenaturais queles que Ele move para conseguir o bem sobrenatural e eterno, segundo as quais sejam movidas suave e prontamente por Deus para alcanar o bem eterno" .Esta forma ou qualidade sobrenatural infundida por Deus na alma daqueles a quem Ele ama, aos quais, segundo o Evangelho de Joo, Jesus diz:"No fostes vs que me escolhestes, mas eu que vos escolhi; no mais vos chamo de servos, mas de amigos", Jo. 15, 15-16no mais, diz Toms de Aquino, "um auxlio divino pelo qual a alma movida por Deus a conhecer, querer ou operar algo" , "mas um dom habitual infundido por Deus na alma" . " uma luz da alma" , "um esplendor da alma, que lhe uma qualidade, assim como a beleza o para o corpo" , "uma participao da natureza divina" , infundida por Deus no na inteligncia nem na vontade, mas na prpria "essncia da alma" , pela qual a prpria "natureza da alma participa, segundo uma certa semelhana, da natureza divina, por uma certa regenerao ou nova criao" .Por conseguinte, diz Toms de Aquino, a caridade, "que uma certa amizade entre Deus e o homem fundamentada sobre a comunicao da felicidade eterna, excede as faculdades da natureza" , e pressupe esta graa que no mais, como no caso da f, apenas um movimento da inteligncia ou da vontade, mas este esplendor da participao da natureza divina infundida na essncia da alma. Ora, continua S, Toms, "aquilo que excede as possibilidades da natureza no pode ser nem natural nem adquirido pelas potncias naturais, porque os efeitos naturais no transcendem a sua causa. De onde que a caridade no pode existir em ns apenas em virtude da natureza, nem adquirida pelas foras naturais, mas infundida em ns" por Deus."Aquele que ama a Deus", -diz ainda S. Toms-,"tem em si prprio a maior prova de ser amado por Deus, porque ningum pode amar a Deus se Deus no o amar primeiro, pois o prprio amor pelo qual ns amamos a Deus causado em ns pelo amor com que Deus nos ama" .Ora, tudo isto tem conseqncias notveis sobre a f; pois, conforme dissemos, a f no apenas movida pela vontade, mas tambm pela graa. Mas a graa que a f, considerada apenas em si mesma, pressupe, to somente um movimento da inteligncia ou da vontade; a graa, porm, que a caridade pressupe, uma participao da natureza divina infundida na prpria essncia da alma. A caridade, portanto, no apenas faz a f viver movendo mais intensamente a vontade para Deus, mas trazendo a alma para uma vida da graa que apenas a f no conseguiria alcanar. Por isso que diz So Paulo na primeira epstola aos Corntios:"Ainda que eu tivesse tivesse toda a f, a ponto de transportar as montanhas, se no tivesse a caridade, eu nada seria". I Cor. 13, 2Esta passagem particularmente notvel porque parece admitir a possibilidade da existncia de uma f suficientemente grande a ponto de operar prodgios; no entanto, destituda da caridade para com Deus que se estende tambm ao prximo, a Sagrada Escritura afirma que esta f de nada vale. " como o bronze que soa, ou como o cmbalo que tange" (I Cor. 13, 1), diz S. Paulo na mesma passagem, isto , algo que embora faa barulho ou mesmo que tenha uma sonoridade melodiosa que encante os ouvidos, seu contedo no condiz com o que aparenta, no passando de uma casca de metal.9. F e contemplao.A tradio crist fala de um outro modo de contemplao cuja diferena para aquela que descrita pelos filsofos pode, para alguns, parecer no incio uma questo de sutilezas; mas medida em que ela se aprofunda, a distino torna-se cada vez mais evidente e inconfundvel. Antes de serem semeadas, h muitas sementes que parecem praticamente idnticas; quando germinam, porm, ficam evidentes todas as diferenas que se escondiam em cada uma delas j desde o incio.Esta contemplao de que nos fala a tradio crist algo que pertence ao domnio da inteligncia; diferena da contemplao dos filsofos, porm, ela nasce da virtude da caridade. Apenas a caridade, porm, no poderia caus-la. Este modo de contemplao se inicia quando a uma f firme, constante e pura se acrescenta uma caridade intensa; sua causa mais a caridade do que a f. Da existncia deste modo de contemplao temos os mais diversos testemunhos na tradio crist.No sculo V S. Didoco de Fcia abre os seus Captulos sobre a Perfeio Espiritual com a seguinte afirmao:"Toda contemplao espiritual precedida, como por condutores, pela f, pela esperana e pela caridade, mas principalmente pela caridade. De fato, a f e a esperana nos ensinam a desprezar as coisas que se vem. A caridade, com elas, une a alma s virtudes divinas, investigando, por um certo sentido da mente, as coisas que no podem ser vistas" .Do mesmo modo, no prlogo do Cntico Espiritual, S. Joo da Cruz nos fala deste outro modo de contemplao que nasce da caridade:"Embora falte a Vossa Reverncia o exerccio da Teologia Escolstica com que se entendem as verdades divinas, no lhe falta o da Mstica, que se sabe por amor, e em que no somente se sabem, mas juntamente se gostam" .Nesta passagem, Joo da Cruz fala claramente de um conhecimento que causado no pelo exerccio da prpria inteligncia, como seria o caso da Teologia Escolstica, nem mesmo pelo exerccio da f, que tambm reside na inteligncia, mas de algo que reside na vontade, que o amor ou a caridade. Entretanto, em outro de seus escritos faz afirmaes de que se depreende no ser suficiente apenas a caridade para produzir este modo de contemplao, sendo necessria tambm a f; de fato, na Subida do Monte Carmelo ele repete sem cessar que a f no apenas um pressuposto da caridade, isto , apenas um meio de se chegar caridade, mas que tambm ela, isto , a f, juntamente com a caridade, e no apenas atravs dela, um"meio prximo e proporcionado para que a alma se una com Deus" .A existncia de um modo de contemplao que procede do amor algo particularmente difcil de ser aceito por aqueles que se habituaram ao estudo e aprenderam a conhecer as coisas apenas atravs do exerccio da inteligncia. Quando o aceitam, porm, pode tambm acontecer de com isto passarem ao extremo oposto, isto , o de buscarem um conhecimento que procede unicamente do amor; entretanto, se este fosse o caso, isto , se a contemplao de que fala a tradio crist no procedesse tambm de algum componente intelectivo importante, no haveria to numerosas insistncias no Evangelho a respeito da f, mais at, provavelmente, do que a respeito da caridade, embora fique claro que a caridade mais importante e que sem ela a f morta e de nada vale. Se a contemplao crist proviesse apenas da caridade, e a f fosse somente um pressuposto da caridade, teria bastado que o Cristo tivesse apenas mencionado a f uma vez ou outra, sem necessidade de insistir tanto e a todo momento no assunto.So Bernardo, monge cisterciense no sculo XII, tambm nos fala da contemplao que nasce da caridade ao escrever uma carta a Henrique Murdach, um professor que estava indeciso se ingressaria para o Mosteiro de Claraval. So Bernardo lhe faz ver o modo de vida que conduziam os monges em Claraval por contraposio vida apenas de estudo que o professor conduzia na Inglaterra:"Que importa", -diz S. Bernardo-, "que flutueis na oscilante corrente da fortuna, se no conseguis firmar o p no rochedo?Se tomsseis uma resoluo definitiva, compreendereis o que est escrito:`"Os olhos no viram, Deus, alm de Ti, que coisas preparastes para os que Te amam'. I Cor. 2, 9Dizem-me que estudais os profetas; mas eu vos pergunto, julgais compreender realmente o que ledes? Em caso afirmativo, decerto no ignorais que quem desejar alcanar Cristo ser melhor sucedido seguindo os seus passos do que lendo as seu respeito. Por que devereis procurar na pgina escrita a Palavra que agora se oferece vossa contemplao visivelmente?Se provsseis aos menos uma vez o belo trigo com que o Senhor inundou Jerusalm, com que satisfao abandonareis ento aos judeus amadores da escrita estas migalhas duras com que eles se contentam! Prouvera a Deus que fsseis meu condiscpulo na escola do amor divino em que Jesus o mestre! Com que agrado partilharia convosco o po celestial que, ainda quente, fumegante e tenro do forno, Cristo oferece freqentemente aos seus pobres! Acreditai em quem pode falar pela experincia. H muito mais que gostaria de dizer-vos; porm, como necessitais agora mais de preces do que de instruo, que o Senhor vos abra o corao na sua Lei e nos seus mandamentos e vos mande em paz. Adeus" .No muito diferente desta carta o dilogo travado entre Cristo e o estudioso da Lei de Moiss quando da controvrsia sobre o mandamento da caridade. Basta para ver isto examinar mais atentamente o texto do Evangelho de S. Marcos.Fizeram a Jesus uma pergunta a respeito da ressurreio dos mortos. Um dos escribas que havia ouvido a discusso, diz S. Marcos, "reconheceu que Jesus respondera muito bem; aproximou-se, ento, de Jesus, para submeter outra pergunta". Mc. 12, 28O estudioso da Lei de Moiss, portanto, no se aproximou de Jesus levianamente, levando-lhe uma pergunta para passar o tempo, como quando Pilatos perguntou ao Cristo o que era a verdade, e foi tratar de outros assuntos sem sequer esperar que Jesus respondesse (Jo. 18, 38). Ao contrrio de Pilatos, foi o respeito motivado pelas respostas muito boas de Jesus que levou o estudioso a submeter-lhe a sua pergunta; nestas circunstncias costumamos perguntar aquilo que, para a nossa alma, so as questes mais importantes e com que mais nos preocupamos.Ento o estudioso perguntou a Jesus:"Qual o primeiro de todos os mandamentos?" Mc. 12, 28Sendo este homem um estudioso da Lei de Moiss, esta pergunta tinha um sentido bem definido, que freqentemente escapa ao leitor moderno do texto dos Evangelhos. O estudioso da Lei de Moiss, de fato, no est perguntando qual o primeiro de todos os mandamentos possveis, mas qual o maior de todos os mandamentos mencionados nos cinco primeiros livros da Bblia, isto , Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio, conhecidos entre os rabinos judeus apenas como Tor, ou Lei, ou ainda Lei de Moiss. A Lei, para os judeus, no eram as tbuas dos dez mandamentos, mas todo o Pentatuco, isto , os cinco primeiros livros das Sagradas Escrituras. Ora, do texto do Pentatuco podem ser extrados mais de seiscentos preceitos diversos. Moiss, porm, jamais tinha feito meno de qual fosse o maior de todos. O que o estudioso queria saber de Jesus era, ento, qual entre aquela multido de mais de seis centenas de preceitos dados por Moiss fosse o mais importante de todos, uma questo com que provavelmente ele deveria ter se ocupado durante anos de longas reflexes. Para a surpresa do estudioso, porm, Jesus, que sabia-se no ter sido um estudioso da Lei, no demorou sequer um instante para refletir antes de responder; ele afirmou que o maior de todos os preceitos era aquele que estava contido no captulo seis verso quatro do Deuteronmio; no mencionou de fato a numerao de captulo e versculo porque naquela poca esta numerao no tinha ainda sido codificada, mas citou precisamente a passagem:"O primeiro de todos os mandamentos o seguinte:`Ouve, Israel, o Senhor teu Deus o nico Deus, e amars o Senhor teu Deus com todo o teu corao, com toda a tua alma, com toda a tua mente, e com todas as tuas foras'.Este o primeiro mandamento". Mc. 12, 30A esta resposta Jesus acrescentou qual fosse o segundo mandamento, coisa que o estudioso da Lei no lhe tinha perguntado. Jesus encontrou o segundo maior de todos os mandamentos no livro do Levtico (Lev. 19, 18):"O segundo mandamento semelhante ao primeiro:`Amars o teu prximocomo a ti mesmo'. No h nenhum mandamento maior do que estes dois", conclui Jesus. Mc. 12, 31Porm o mais extraordinrio desta histria que ela no termina aqui. O estudioso da Lei, ouvindo esta resposta de Jesus, resolvendo um problema de Teologia Mosaica to intrincado de um modo to seguro e to brilhante, ficou extremamente maravilhado. Provavelmente tratava-se de um judeu bastante sincero, no apenas ouvinte da Lei, mas tambm praticante da mesma; anos de estudo e de virtude devem te-lo conduzido aos poucos, seno mesma resposta que Jesus tinha dado, a alguma outra muito prxima da dele. Quando ouviu Jesus responder deste modo, aps ter ouvido antes outras respostas bem dadas por Jesus a outros de seus colegas, deve ter sido tomado de um visvel contentamento. Elogiou ento a Jesus, no por adulao, mas como evidente sinceridade:"Muito bem, mestre, disseste a verdade, porque um s Deus e no h outro alm dele, e am-lo de todo corao, com toda a inteligncia e com toda a fora, e amar o prximo como a si mesmo algo maior do que todos os holocaustos e todos os sacrifcios".Mc. 12, 32-33Jesus, ento, vendo o entusiasmo do comentrio do estudioso, percebendo que ele tinha assim respondido no para agrad-lo, mas porque de fato assim o havia entendido e j havia comeado a entend-lo antes mesmo do encontro que estava havendo entre ambos, deu-lhe esta outra impressionante resposta:"Tu no ests longe do Reino de Deus". Mc. 12, 34Ora, Jesus no era algum de contradizer-se. Ele j havia afirmado no episdio de Marta e Maria que a contemplao era a "melhor parte, aquela que jamais nos ser tirada, na verdade, a nica coisa necessria" (Lc. 10, 38-42). No Sermo da Montanha ele tinha exortado os homens a "buscarem em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justia, e todo o restante lhes seria acrescentado" (Mt. 6, 33). Agora ele dizia que o maior de todos os mandamentos era amar a Deus, e que aquele homem que tinha compreendido isso no estava "longe do Reino de Deus". Nestas trs ocasies, portanto, Jesus est se referindo a uma mesma realidade.10. A contemplao e o Esprito Santo.H, pois, um outro modo de contemplao que est alm daquele descrito pelos filsofos gregos, o qual se produz quando f se une a caridade. Este modo de contemplao no se d sem a f, mas mais produto da caridade.Entretanto, examinadas mais atentamente, a Revelao e a Tradio Crist afirmam que do encontro da caridade com a f se produz apenas um princpio deste outro modo de contemplao. medida em que ela progride, surge um fato novo.De fato, dizem as Escrituras,"o caminho dos justos como a luz da aurora, que vai clareando at o pleno dia". Prov. 4, 18Ora, quem somente conhecesse a noite e apenas tivesse visto a luz da Lua e das estrelas, ao ver surgir palidamente os primeiros brilhos da aurora, no poderia pensar que o Sol do pleno dia fosse to brilhante. Assim tambm, seguindo um curso comparvel luz da aurora, para o justo que persevera em seu caminho chega o momento em que a caridade comea a operar nele de um modo mais manifestamente excelente e intenso do que este supunha ser possvel, mesmo levando em conta as possibilidades de crescimento prprio das virtudes e o auxlio da graa. assim que o justo passa aos poucos a se ver cada vez mais manifestamente conduzido, no operar da caridade, por um princpio de natureza superior. A diferena pode ser comparada ao calor produzido por um cobertor e o calor produzido por um incndio, e com razo as Sagradas Escrituras comparam este modo de operao da caridade ao fogo. Este modo superior de operao da caridade um dos temas fundamentais do Evangelho. a ele que Jesus se referia quando afirmou, no Evangelho de S. Lucas:"Vim espalhar um fogo sobre a terra, e que mais desejo eu, seno que se ascenda?" Lc. 12, 49 a isto tambm que Joo Batista se referia, quando, como que resumindo em uma s frase os propsitos do Cristo que estava para vir, assim o anunciava:"Quanto a mim", -dizia Joo Batista-,"eu vos batizo com gua, para vos mover ao arrependimento; mas depois de mim vem algum, que maior do que eu, que vos (purificar) com o Esprito Santo e com fogo". Mt. 3, 11Para expressar no apenas a intensidade, mas tambm a superabundncia da caridade que assim opera, Jesus em outra ocasio se utilizou de uma comparao com a gua:"Quem crer em mim", -disse Jesus-,"de seu seio correro rios de gua viva. Dizia isto Jesus do Esprito Santo, que haveriam de receber os que nele cressem". Jo. 7, 7Nesta passagem a Sagrada Escritura diz o Esprito Santo ser recebido porque se trata de uma caridade superabundante manifestamente acima da capacidade humana, mesmo contando com o auxlio da graa; algo assim no se pode dizer que proceda do prprio homem; ao contrrio, advindo-lhe de fora, deve, portanto, ser dito recebido. Diz ainda a Sagrada Escritura que quem recebido o Esprito Santo, uma das trs pessoas da Santssima Trindade, no porque seja o Esprito Santo, com excluso das demais pessoas da Santssima Trindade, que move a alma humana a uma vivncia superior da caridade, mas porque se trata de um movimento produzido por Deus em nossa alma que desempenha um papel anlogo ao do Esprito Santo na Trindade divina:"Deve-se saber", diz Toms de Aquino, "que as coisas que existem em ns se reduzem em Deus como em sua causa eficiente e exemplar; em sua causa eficiente, na medida em que pela virtude operativa divina algo causado em ns; em sua causa exemplar, na medida em que aquilo que em ns provm de Deus de algum modo algo que imita a Deus.Ora, como a virtude do Pai, do Filho e do Esprito Santo a mesma, assim como a mesma essncia, necessrio que tudo o que Deus produz em ns seja, como de uma causa eficiente, simultaneamente proveniente do Pai, do Filho e do Esprito Santo.O amor, porm, pelo qual ns amamos a Deus, representativo prprio do Esprito Santo. Assim, a caridade que h em ns, ainda que seja efeito do Pai, do Filho e do Esprito Santo, todavia, por uma razo especial, dita estar em ns pelo Esprito Santo" .Conforme j vimos acima, a caridade, qualquer que seja seu grau de crescimento, s pode existir no homem infundida pela graa divina; por causa disso, correto dizer que qualquer homem que ama a Deus pela caridade recebeu em sua alma ao Esprito Santo, conforme o faz S. Toms de Aquino:"A caridade no pode existir naturalmente em ns, nem ser adquirida pelas foras naturais, mas apenas pela infuso do Esprito Santo" .No entanto, no melhor de suas passagens, a Sagrada Escritura e os primeiros santos padres reservavam a expresso do dom do Esprito Santo para designar aquela superabundncia da caridade, manifestamente sobrehumana, que infundida no homem alm de todas as suas expectativas, quando ele se entrega "com todo o seu corao, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com todas as suas foras" quela contemplao que procede da f e da caridade. assim, por exemplo, que Santo Anto, o iniciador da vida monstica no deserto do Egito nos sculos III e IV, se refere ao Esprito Santo em suas cartas:"Meus filhos, tomai este corpo de que estais revestidos, fazei dele um altar, e sobre este altar colocai os vossos pensamentos, e sob o olhar do Senhor, abandonai todo mau desgnio, elevai as mos de vosso corao a Deus e pedi-lhe que vos conceda aquele grande fogo invisvel que sobre vs descer do Cu e consumir o altar e suas oferendas. Compreendei bem o que vos digo e vos declaro: se cada um de vs no chega a odiar o que da ordem dos bens terrestres e a isso renunciar de todo corao, bem, como a todas as coisas que da dependem, se no chega a elevar as mos e o corao ao Cu para o Pai de todos ns, no para si a salvao. Mas se fazeis o que acabo de dizer, Deus vos enviar um fogo invisvel, que consumir vossas impurezas, e devolver vosso esprito sua pureza original. O Esprito Santo habitar em vs, Jesus permanecer junto de ns, e poderemos adorar a Deus como devido" .Do Esprito Santo disse tambm S. Didoco, bispo de Fcia no sculo V:"Uma a caridade natural da alma, outra aquela que pelo Esprito Santo lhe infundida. Aquela que est em ns, quando queremos, se move com moderao pelo afeto de nossa vontade; por esta razo no difcil para os espritos malignos, a no ser que nos defendamos com fortaleza, que nos seduzam para os seus propsitos. A divina, porm, incendeia de tal forma a alma caridade divina, que vence e une entre si, por uma infinita simplicidade e sinceridade do afeto, todas as partes e a faculdades da alma na bondade do desejo celeste. A alma se torna uma fonte profunda de caridade e de alegria como que grvida da graa celeste e da virtude do Esprito Santo" .S. Didoco distingue neste texto uma caridade que ele chama de natural de outra que infundida pelo Esprito Santo. Esta distino no significa que apenas a segunda seja sobrenatural, nem que a primeira no seja tambm infundida pelo Esprito Santo; na verdade, ambas so sobrenaturais e infundidas pelo Esprito Santo; entretanto, a segunda excede de tal maneira a primeira, to manifestamente sobrenatural e infundida pelo Esprito Santo que ela , que perto dela a primeira d uma impresso de ser algo conatural ao homem, embora de fato no o seja.Do mesmo modo, embora todos os que nasceram para a vida da graa pela caridade sejam filhos de Deus, pois pela graa j participam da natureza divina, as Sagradas Escrituras chamam de filhos de Deus de modo especial queles que receberam o Esprito Santo neste grau to eminente; de fato, diz So Paulo na epstola aos Romanos que"Todos aqueles que so conduzidos pelo Esprito de Deus, so filhos de Deus. O prprio Esprito Santo atesta ao nosso esprito que somos filhos de Deus". Rom. 8,14-16E o Evangelho de S. Joo diz que foi para isso que Jesus veio ao mundo:"A quantos o receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus, aos que crem em seu nome, e que no pelo sangue nem pela vontade humana, mas de Deus nasceram. De sua plenitude, todos ns recebemos, graa sobre graa". Jo. 1, 12Esta afirmao equivale que faz S. Toms de Aquino quando, respondendo pergunta a respeito de em que consiste o Evangelho, ou a Nova Lei, responde que o Evangelho consiste, de um modo especial, na graa do Esprito Santo:"Cada coisa parece ser aquilo que nela h de principal, conforme diz Aristteles no IX livro da tica.Aquilo, porm, que principalssimo na Lei do Novo Testamento, e no qual consiste toda a sua virtude, a graa do Esprito Santo, que nos dada pela f em Cristo.Portanto, a Nova Lei principalmente a prpria graa do Esprito Santo, que dada por Cristo aos fiis.Secundariamente a Nova Lei consiste tambm nos preceitos escritos, que dispem o homem para a graa do Esprito Santo, como so as coisas que so necessrias saber para manifestar a divindade e a humanidade de Cristo, e as coisas que pertencem ao desprezo do mundo, atravs das quais o homem se torna capaz da graa do Esprito Santo.De fato, o mundo, diz a Sagrada Escritura, isto , aqueles que amam o mundo, no podem receber o Esprito Santo (Jo. 14, 17)" .Dissemos anteriormente que a Sagrada Escritura descreve um outro modo de contemplao que est alm daquele descrito pelos filsofos gregos, que proveniente principalmente da caridade. Dissemos, ademais, que do encontro da caridade com a f se produzia apenas um incio deste outro modo de contemplao. Devemos agora dizer que este modo supereminente de vivncia da caridade que a causa prxima desta outra contemplao, descrita pela cincia sagrada e que difere to notavelmente daquela descrita pelos filsofos gregos.De fato, no Evangelho de S. Joo, Jesus prometeu aos que seguissem os seus preceitos o conhecimento da verdade:"Se permanecerdes nas minhas palavras", -diz Jesus-, "sereis verdadeiramente meus discpulos; conhecereis a verdade, e a verdade vos tornar livres". Jo. 8, 31Ora, a verdade algo que pertence inteligncia, algo que objeto de contemplao.Mais adiante, porm, ele diz que se os apstolos o amassem, deveriam guardar os seus mandamentos, e com isto ele lhes mandaria o Esprito Santo, a quem aqui ele chama, porm, de Esprito da verdade:"Se me amardes, guardareis os meus mandamentos; e eu pedirei ao Pai e Ele vos dar outro consolador, para estar convosco para sempre, o Esprito da verdade, que o mundo no pode receber". Jo. 14, 15-17Portanto, o prmio da prtica dos mandamentos a prpria graa do Esprito Santo, que aqui recebe o nome de Espirito da verdade.Mais adiante, Jesus volta a falar sobre o assunto e diz que chama ao Esprito Santo de Esprito da verdade porque ele ensinar a verdade aos apstolos:"Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas por agora no estais em condies de as compreender. Quando, porm, ele vier, o Esprito da verdade, vos ensinar toda a verdade". Jo. 16, 12-13O sentido de todas estas passagens o seguinte: h uma verdade, capaz de produzir a libertao do homem, objeto de uma contemplao superior descrita pelos filsofos, qual somos introduzidos por um modo supereminente de vivncia da caridade produzido em ns pela graa do Esprito Santo. Aqueles que se esforam em seguir os mandamentos de Jesus recebem esta graa do Esprito Santo, vivem pelo Esprito e so por Ele introduzidos nesta verdade.Desta verdade Jesus disse diante de Pilatos:"Para isto que eu nasci, e para isto que vim ao mundo: para dar testemunho da verdade". Jo. 18, 37Mas Pilatos no entendeu nada; no percebeu o alcance das palavras de Jesus; perguntou-lhe simplesmente:"O que a verdade?", Jo. 18, 38mas no esperou para ouvir a resposta. Feita a pergunta, dizem as Sagradas Escrituras, Pilatos "sau novamente l fora para falar aos judeus" (Jo. 18, 38).Na primeira epstola a Timteo, S. Paulo tambm fala da verdade, afirmando que"Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade". I Tim. 2, 4O sentido primrio da palavra verdade nesta passagem, entretanto, no inteiramente o mesmo que em Jo. 8. Por comparao com outros lugares paralelos das epstolas paulinas, S. Paulo parece querer se referir quando aqui fala da verdade ao conjunto dos ensinamentos da f tais como eram aceitos pelos homens que, movidos pela graa, abraavam o Cristianismo. A verdade admite estas nuances de significado, sendo este um caso de analogia idntico ao da analogia do ser j descrita anteriormente neste trabalho. No so significados inteiramente distintos, mas graus de uma mesma significao que uma idntica palavra denota, que existem inclusive dentro do prprio Evangelho de Joo. De fato, em Jo. 17 Jesus diz, orando ao Pai,"Manifestei teu nome aos que me deste, e eles guardaram a tua palavra. Dei-lhes a tua palavra; santifica-os, (agora), na verdade. A tua palavra a verdade". Jo. 17; 6, 14, 17Nesta passagem a verdade a pregao da f que Jesus havia feito aos apstolos. Dizendo ao Pai que havia dado aos apstolos a "tua palavra", Jesus diz que a pregao da f a palavra do Pai. Mas ele tambm diz ao Pai:"Todas as minhas coisas so tuas, e todas as tuas coisas so minhas", Jo. 17, 10de modo que, segundo Jesus, a palavra do Pai tambm a palavra do Filho.Ora, em Jo. 8 lemos:"Dizendo Jesus estas coisas, muitos creram nele. Disse pois Jesus aos que creram nele:`Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discpulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornar livres'". Jo. 8, 30-31Nesta outra passagem Jesus fala a pessoas que creram nele e que permanecem em sua palavra. Segundo Jo. 17, portanto, estas pessoas j deveriam possuir a verdade, pois ali se diz que a sua palavra a verdade. Mas aqui, em Jo. 8, Jesus promete queles que permanecem na sua palavra que, se perseverarem, viro a conhecer a verdade no futuro, de onde que se deduz que Jesus toma, mesmo dentro do Evangelho de Joo, a mesma expresso em duas significaes diferentes. No so, entretanto, significaes inteiramente distintas, pois a verdade que Jesus promete em Jo. 8 como coisa a ser conhecida no contm algo que j no estivesse contido na verdade de Jo. 17. , porm, da verdade de Jo. 8 que Jesus afirma que tornar os homens livres, coisa apenas imperfeitamente insinuada no contexto de Jo. 17.Assim, quando fala da verdade, e que Deus quer que todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade, S. Paulo d a entender ter em mente um modo de ser da verdade que apenas em parte aquele de que fala Jo. 8. Isto, porm, no significa que as expresses de S. Paulo, que admitem como algo anterior e consumado a pregao do Evangelho, no suponham aquele significado mais profundo que pode ser percebido claramente quando Jesus, dialogando com uma samaritana, fz afirmaes muito semelhantes s de S. Paulo. Falamos de um dilogo havido entre Jesus e uma mulher samaritana descrito em Jo. 4, em que ambos estavam conversando a respeito da gua de um poo que havia nas proximidades. Num certo momento do dilogo, porm, Jesus faz o seguinte comentrio que contm afirmaes quase idnticas s de S. Paulo, os termos, porm, sendo tomados segundo uma significao mais profunda:"Todo aquele que bebe desta gua de novo ter sede; mas aquele que beber da gua que eu lhe der nunca mais ter sede; antes, a gua que eu lhe der se tornar nele uma nascente de gua jorrante at a vida eterna. Aproxima-se a hora, mulher, e j estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adoraro o Pai em Esprito e em verdade, porque assim que o Pai quer os seus adoradores. Deus esprito, e os que O adoram devem ador-lo em Esprito e em verdade". Jo. 4; 13-14, 23-24.No outro o sentido deste dilogo e o de uma profecia de Jeremias em que, com sculos de antecedncia, este profeta anunciou o estabelecimento da Nova Aliana que se faria por intermdio do Cristo:"Eis que viro dias, -palavra do Senhor-, em que estreitarei uma nova aliana com a casa de Israel e com a casa de Jud. Esta ser a aliana que estreitarei com Israel depois daqueles dias, diz o Senhor:Porei minha lei nos seus coraes, e a imprimirei nas suas mentes; eles me tero por Deus, e eu os terei por meu povo. No necessitaro mais estimular-se uns aos outros, dizendo: "Conhecei o Senhor", porque todos me reconhecero, pequenos e grandes, diz o Senhor". Jer. 31, 31-34Quando, muito tempo depois, Jesus veio ao mundo e se iniciou o cumprimento desta profecia, Joo ento pode testemunhar:"Porque a Lei nos foi dada por Moiss, a graa e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo". Jo. 1, 1711. As bem aventuranas e a contemplao.Uma das passagens mais belas do Evangelho , sem dvida, o texto das bem aventuranas, reportado por S. Mateus:"Vendo Jesus as multides, subiu ao monte e sentou-se.Rodearam-no os discpulos, e ele ps-se a ensin-los, dizendo:Bem aventurados os pobres de esprito, porque deles o Reino dos Cus.Bem aventurados os mansos, porque possuiro a terra.Bem aventurados os que choram, porque sero consolados.Bem aventurados os que tem fome e sede de justia, porque sero saciados.Bem aventurados os misericordiosos, porque alcanaro misericrdia.Bem aventurados os puros de corao, porque vero a Deus.Bem aventurados os pacficos, porque sero chamados filhos de Deus". Mt. 5, 1-9Estas sete bem aventuranas no so elogios dispostos ao acaso; ao contrrio, pode-se facilmente ver que nelas foi descrito todo o itinerrio da vida espiritual. As duas ltimas bem aventuranas descrevem a vida contemplativa; nelas so descritos dois modos de contemplao. As trs primeiras descrevem as disposies iniciais daqueles que ho de chegar vida contemplativa.O Reino dos Cus daqueles que so pobres de esprito, diz a primeira bem aventurana. Acrescentando palavra pobre a expresso de esprito, Jesus quer dizer com isto que no est se referindo quela pobreza constituda pela falta de posses materiais. Os bens materiais e o dinheiro so bens corporais, no so riquezas do esprito; o esprito rico pelas virtudes e pelo conhecimento, coisas que, no mais das vezes, a maioria dos homens julga j possu-los suficientemente e por isso mesmo no se preocupa em busc-las.Com as riquezas materiais costuma acontecer o contrrio; a maioria dos homens, ainda que possua grandes fortunas, geralmente se julga ainda carente de bens materiais e procura avidamente obt-los em maior abundncia.Por mais pobres, porm, que sejam na alma, agem como se se julgassem suficientemente ricos de esprito.Os pobres de esprito, portanto, aos quais a primeira bem aventurana promete o Reino dos Cus, so aqueles que se reconhecem como tais. No podem ser aqueles que so apenas de fato pobres de esprito, pois a indigncia de bens da alma algo que, no dizer das Sagradas Escrituras, depois da queda do primeiro homem, se abateu sobre toda a humanidade:"Todos pecaram", -diz a Sagrada Escritura-,"e esto privados da glria de Deus; no h quem entenda, no h quem busque a Deus; todos se transviaram, todos se corromperam". Rom. 3,23; 3,11-12Apesar destas expresses se aplicarem a toda a humanidade, a maioria dos homens age como se elas se aplicassem apenas aos outros. Mas os pobres de esprito de que fala a primeira bem aventurana, diferena da maioria dos homens, so aqueles que conseguem reconhecer-se a si prprios nestas palavras. So pessoas que sabem que no sabem e sabem que no so virtuosos, e que, ademais, no podem ser convencidos facilmente do contrrio pelas iluses de que o mundo est repleto. Neste sentido, a pobreza de esprito a humildade diante da verdade. Desta humildade diz Hugo de S. Vitor que "O princpio de todo o aprendizado" ,e logo em seguida nos d uma descrio de como o homem que humilde diante da verdade:"No se envergonha de aprender de ningum;no querendo parecer sbio antes do tempo, no se envergonha de aprender dos demais o que ignora;aprende de todos de boa vontade o que desconhece;torna-se mais sbio do que os outros querendo aprender de todos;no despreza nenhum conhecimento, nenhuma escritura, nenhuma lei, se estiver disposio;se, com isto, nada lucrar, tambm nada ter perdido; humilde e manso,inteiramente alheio aos cuidados do mundo e s tentaes dos prazeres,solcito em aprender de boa vontade de todos;no presume de sua cincia,no quer parecer douto,mas deseja vir a s-lo;busca os ditos dos sbios,e tem ardentemente os seus vultos diante dos olhos da mente, como um espelho" .Quem assim, pode comear a buscar o Reino dos Cus; a primeira bem aventurana promete que o Reino dos Cus ser deles.Estas pessoas se posicionam diante da vida, das pessoas, do Universo e do prprio Evangelho, quando se lhes apresenta, como diante de um mistrio; elas percebem que em todas as coisas est contido algo que est alm da compreenso que elas podem ter. a atitude oposta da maioria das pessoas: todos sabem que no conhecem tudo o que h no mundo, no h quem seriamente afirme o contrrio; mas a quase totalidade das pessoas agem como se desconhecessem apenas os detalhes e que a essncia do Cosmos j tivesse sido perfeitamente bem compreendida por eles. assim que se sentem capazes de julgar e opinar sobre tudo quanto se lhes apresenta, e, ao fazerem isso, embora admitam diante dos outros que se trata apenas de sua opinio pessoal e que os demais tenham o direito de divergir, diante de si mesmos esto convictos de que aquela a verdade definitiva.Os pobres de esprito no so assim; quando lem aquela passagem de Isaas que diz"Os meus pensamentos no so os vossos pensamentos,nem os vossos caminhos so os meus caminhos, diz o Senhor.Quanto o cu sobe em elevao terra, tanto elevam-se os meus caminhos acima dos vossos,e os meus pensamentos acima dos vossos", Is. 55, 8-9eles apreendem imediatamente o seu alcance, e que se trata de algo que se aplica a eles prprios, embora ainda no entendam do que se trate.So pessoas, portanto, que desejam ardentemente aprender, no os detalhes, mas as essncias. assim que Santo Atansio, o primeiro bigrafo de Santo Anto de quem j fizemos citao, descreve os seus primeiros passos de sua ascenso a Deus:"Ele soube, ainda quando jovem, que havia na aldeia um ancio que desde a sua juventude levava na solido uma vida de orao.Quando Anto o viu, `teve zelo pelo bem', e se estabeleceu imediatamente na vizinhana da cidade.Desde ento, quando ouvia que em alguma parte havia uma alma esforada, ia, como sbia abelha, busc-la, e no voltava sem hav-la visto. S depois de haver recebido, por assim dizer, proviso para a sua jornada de virtude, regressava.Assim vivia Anto e era amado por todos.Submetia-se com toda sinceridade aos homens piedosos que visitava, e se esforava por aprender aquilo que em cada um avantajava em zelo e prtica religiosa.Observava a bondade de um, a seriedade de outro na orao; estudava a aprazvel quietude de um e a afabilidade de outro; fixava sua ateno nas viglias observadas por um e nos estudos de outro; admirava um por sua pacincia, e outro pelo jejuar e dormir no cho; considerava atentamente a humildade de um e a pacincia e a abstinncia de outro, e em uns e outros notava especialmente a devoo a Cristo e o amor que mutuamente se davam.Ento se apropriava do que havia obtido de cada um e dedicava todas as suas energias a realizar em si as virtudes dos outros.No tinha disputas com ningum de sua idade, nem tampouco queria ser inferior a eles no melhor; e ainda isto fazia de tal modo que ningum se sentia ofendido, mas todos se alegravam com ele.E assim todos os aldees e os monges com os quais estava unido viram que classe de homem era ele e o chamavam de amigo de Deus, estimando-o como a filho ou irmo" .Ao descrever deste modo o incio da vida asctica de S. Anto, Santo Atansio nada mais fz do que descrever as disposies a que se refere a primeira das sete bem aventuranas e o princpio da vida espiritual; sem estas disposies no se pode chegar ao Reino de Deus, promessa da primeira bem aventurana .A segunda bem aventurana tambm uma das disposies iniciais para se chegar ao Reino de Deus. A ela se promete a posse da terra. A posse da terra uma expresso tpica da Lei de Moiss; no livro do xodo narra-se como Moiss havia libertado, com o auxlio divino, o povo judeu do cativeiro do Egito; a esta libertao seguiu-se uma longa peregrinao atravs do deserto do Sinai, durante a qual Moiss freqentemente anunciava multido a posse de uma terra prometida por Deus, alm do rio Jordo, para a qual dirigia o povo judeu. As coisas do Velho Testamento, porm, so smbolos das coisas do Novo, e a terra prometida de que fala Moiss , na linguagem de Jesus, novamente um smbolo para o Reino dos Cus. A primeira bem aventurana era a humildade diante da verdade; a segunda bem aventurana, a dos mansos que possuiro a terra, o respeito diante do prximo, seja ele quem for. As pessoas mansas, de fato, so aquelas que no revidam as ofensas; imaginam primeiro o que pode ter levado o pensamento dos outros agresso. Seja o que os outros faam com elas, os mansos respeitam incondicionalmente as pessoas destes outros, ressaltando aquilo que nelas h de dignidade. Ainda que estes outros forem loucos, no desprezaro por isso de antemo o que disserem, mas examinaro antes o contedo do que dizem. Com isto esto em uma disposio excelente para aprenderem, porque freqentemente a verdade surge pela primeira vez na vida dos homens revestida das roupagens mais estranhas, e por isso mesmo costuma ser desprezada de antemo pelos homens. Aquele que, por esta razo, no for movido de antemo pelo respeito irrestrito a todos os homens, muito provavelmente desprezar junto com os homens a quem tiver desprezado a possibilidade de entrar na terra prometida.As pessoas que cumprem as disposies da primeira e da segunda bem aventuranas, quando se vem diante do Evangelho, no qual, para um esprito sincero, a primeira coisa que nos atinge sempre a parte moral, passam a chorar pelos pecados que cometeram em sua vida passada antes de terem conhecido os ensinamentos do Cristo. Choram e procuram emendar-se; com o passar do tempo, o esforo por se emen