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A EDUCAÇÃO CTS E A DILUIÇÃO DE SEUS TEMAS EM UMA EXPERIÊNCIA DE
GEORREFERENCIAMENTO E MONITORAMENTO DE NASCENTES EM
ARAÇUAÍ - MG FELIPE MAMMOLI ANDRADE1
RENATO DAGNINO2
Resumo: A introdução da abordagem CTS no circuito formal de educação tem encontrado
grandes desafios. Cada vez mais, as propostas seguem no sentido da reestruturação, tanto dos
currículos, quanto das práticas pedagógicas, explicitando a distância entre a abordagem CTS e
a educação convencional. Portanto, mostra-se oportuno identificar novas práticas pedagógicas
em experiências de educação não formal que possam abrigar a temática CTS. A partir desta
reflexão, o trabalho explora uma experiência de educação não formal, a Fabriqueta de
Software em Araçuaí-MG e seu projeto de Georreferenciamento e Monitoramento de
Nascentes. Metodologicamente, a observação participante e a análise documental, permitiram
acessar as práticas cotidianas e pedagogias do grupo e a construção do percurso histórico da
organização. A análise contribuiu para compreender como são articulados as temáticas CTS
em um espaço onde os limites entre ensino e o trabalho são compreendidos de outra forma.
Aliado a crítica à neutralidade da tecnociência, a análise abre portas para conceber outros
espaços para o debate CTS, ressaltando a potencialidade de ambientes menos segmentados.
Assim, a pesquisa contribui para delimitar como experiências de educação não formal podem
contribuir na construção de espaços que contemplem a complexidade da relação ciência,
tecnologia e sociedade.
Palavras-chave: educação CTS; educação não formal; neutralidade da tecnociência;
INTRODUÇÃO
A educação tem historicamente se pautado em uma visão internalista da ciência,
definindo o método científico como universal, objetivo, separado de conflitos sociais, como
ferramenta para a busca da verdade e caminho inexorável do desenvolvimento. Essa
concepção, baseada no mito da neutralidade da tecnociência (DAGNINO, 2008), é objeto de
estudo e crítica do campo dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que propõe,
de forma geral, a desmistificação da ciência, analisando a produção de fatos científicos como
dinâmicas sociais assim como tantas outras, com história e consequências. A abordagem CTS
na educação formal vai no sentido de repensar as dinâmicas de ensino e aprendizagem
tecnocientífica tanto no conteúdo das disciplinas quanto no formato e a incorporação da
abordagem nos currículos, sejam eles de ensino fundamental, médio ou superior, enfrenta
diversas barreiras. Neste sentido, olhar para experiências de educação não formal e identificar 1Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT),
Brasil. E-mail: [email protected]. 2Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT),
Brasil. E-mail: [email protected].
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como as temáticas CTS circulam nesses ambientes, pode favorecer a discussão e fomentar
novas estratégias para o avanço do campo como um todo.
Assim, o objetivo deste trabalho é identificar como estão presentes os temas e
discussões da educação CTS em uma experiência de educação tecnocientífica não formal,
especificamente, num projeto de gestão participativa de recursos naturais na cidade de
Araçuaí/MG, na região do médio Vale do Jequitinhonha. O projeto foi desenvolvido pelo
grupo Fabriqueta de Software (FS), uma cooperativa de desenvolvimento de software que tem
como objetivo a profissionalização de jovens de 16 a 21 anos na área de informática através
do desenvolvimento e comercialização dos softwares produzidos por eles.
Neste sentido, o texto a seguir apresenta uma análise inicial sobre a presença da
temática CTS no desenvolvimento do projeto “Georreferenciamento e Monitoramento de
Nascentes” pela FS e em algumas práticas do grupo, tendo como base a crítica sobre a
formação de engenheiros em Fraga (2007) e Dagnino, Novaes e Fraga (2013), as intersecções
entre educação CTS e a filosofia educacional freireana em Nascimento e Linsingen (2007) e a
análise sobre a neutralidade da tecnociência em Dagnino (2008). A pesquisa é exploratória e
tem caráter qualitativo, a metodologia tem como base a análise documental de mídias e
documentos institucionais, a observação participante de práticas de atividades do grupo e
entrevistas semiestruturadas com membros da organização em questão.
Como resultados, o que foi encontrado é que os temas da educação CTS aparecem de
forma diluída em diversas práticas dos grupos, especialmente na educação ambiental e na
percepção da degradação ambiental e social que o modelo de desenvolvimento colonial
capitalista deixou como legado para a região. Porém, apesar do ambiente contemplar diversas
das recomendações da educação CTS, como maior equilíbrio entre teoria e prática,
contextualização social, política e ambiental das tecnologias, e a promoção de um ambiente
interdisciplinar, a visão predominante dos membros do projeto sobre a tecnociência continua
sendo uma visão instrumentalista, pautada na concepção de neutralidade da tecnociência. A
observação interessante é que a reflexão sobre a neutralidade da tecnociência não ocorre de
forma homogênea: alguns conjuntos e temas como as tecnologias da agroindústria ou da
mineração são profundamente questionadas, enquanto as novas tecnologias de informação e
comunicação (TICs), por exemplo, são tidas como neutras, apenas ferramentas que
demandam um uso ético.
REFERENCIAL TEÓRICO
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Em Fraga (2007), a autora desenvolve uma análise do currículo do curso de graduação
da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UNICAMP (FEA) e tece uma crítica à formação
do engenheiro com base na crítica CTS à educação convencional. Sem muitas surpresas,
como observa a autora, a análise revela um currículo essencialmente tecnicista, com clara
divisão entre teoria e prática, foco na indústria e pouco aberto para sugestões e participação
dos alunos.
Fraga (2007) busca na crítica CTS à educação convencional categorias que contribuam
para identificar, no currículo da FEA, posicionamentos, práticas e artefatos que perpetuam a
visão de neutralidade da tecnociência. Baseada nas “visões distorcidas da tecnociência”, que a
educação convencional propaga, presente em Gordillo e Galbarte (2002), e nas “dicotomias”
que que a educação CTS precisa superar, presente em Gordillo, Osório e Lopéz Cerezo
(2000), Fraga (2007) retoma a taxonomia do currículo analisado e identifica categorias
sintomáticas, como a cisão entre teoria e prática. O argumento final vai no sentido de propor
que a visão de neutralidade da tecnociência é em grande medida responsável por propagar a
tecnociência convencional capitalista como único modelo possível e que a tecnociência deve
ser ensinada por meio de suas controvérsias, para que seja possível acessar sua dimensão de
disputa social (DAGNINO, 2008; DAGNINO, NOVAES e FRAGA, 2013).
Ao final da análise, Fraga (2007) propõe três recomendações para o avanço da
discussão CTS na educação tecnocientífica. São eles: 1) tornar público o Programa
Pedagógico dos cursos e tornar sua construção mais participativa; 2) pensar uma maneira
alternativa de ensinar tecnociência, sem a separação a priori entre teoria/prática e
conhecimento básico/aplicado (essa recomendação muito nos interessa, como será mostrado
posteriormente, pois dialoga diretamente com o formato do espaço da Fabriqueta de
Software); e ao final, 3) construir uma metodologia que desloque o engenheiro de seu lugar de
detentor e responsável pelo conhecimento tecnocientífico para um local de mediador de
processos de solução de problemas tecnocientíficos, ou seja, construir metodologias
participativas onde o engenheiro tenha seu poder diluído, mas minimamente garantido pela
sua formação, frente a uma multiplicidade de outros atores interessados no processo.
No âmbito da relação entre ensino não formal e educação CTS, mais especificamente
sobre as práticas pedagógicas não convencionais e sua relação com a educação CTS,
Nascimento e Linsingen (2006), chamam atenção para alguns aspectos centrais na articulação
entre os dois campos propondo três categorias para pensar essa intersecção, são elas: i) a
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abordagem temática e a seleção de conteúdos e materiais didáticos, onde a seleção de
conteúdo é feita por meio da identificação de “situações problemas”(NASCIMENTO e
LINSINGEN, 2006: 108) que trazem temas que perpassam a realidade cotidiana dos
educandos, que dialogam e estão presentes em sua experiência e representam uma
identificação com seu local e modo de vida; ii) a perspectiva interdisciplinar do trabalho
pedagógico e o papel da formação de professores, que ressalta a importância de uma formação
interdisciplinar para o professor para que ele tenha condições de criar espaços pedagógicos
menos segmentados e mais participativos, mas também de qualidade técnica; e iii) o papel do
educador, onde os autores observam que o educador precisa assumir um outro tipo de posição,
deslocado da relação de poder professor/aluno. Esse educador precisa ser “catalisador” do
processo de aprendizagem e não o fornecedor de conhecimento, precisa promover espaços
horizontais e contribuir para a produção de conhecimento que dialogue com as pessoas e com
o lugar.
Essas três categorias propostas por Nascimento e Linsingen (2006), em conjunto com
as categorias propostas em Fraga (2007), oferecem uma base conceitual para analisarmos a
experiência da Fabriqueta de Software no desenvolvimento e operação do Sistema de
Georreferenciamento e Monitoramento de Nascentes no que toca a circulação de temas da
crítica CTS à educação convencional. É importante deixar claro que não pretendemos aqui
avaliar se o projeto pode ser classificado em educação CTS ou não. O esforço vai no sentido
de construir um diálogo entre a experiência empírica e o campo de estudo, e observar como
ela pode contribuir para repensar alguns aspectos sobre a como os temas da crítica CTS
circula nos diferentes espaços de formação tecnocientífica.
METODOLOGIA
A coleta de dados foi realizada por meio da análise documental de material
institucional fornecido pela Fabriqueta de Software, da observação participante das práticas
pedagógicas e formativas e das entrevistas semiestruturadas com membros chave da
organização. A observação participante foi escolhida por ter capacidade de ultrapassar o
discurso institucional e acessar as práticas cotidianas dos membros da organização pesquisada
(ATKINSON e HAMMERSLEY, 1994; FORESYTHE, 1999), pois “o que as pessoas fazem
nem sempre é igual ao que elas dizem que fazem” (FORESYTHE, 1999: 128, tradução livre).
O trabalho de campo contemplado neste texto foi realizado durante dez dias consecutivos
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entre os dias 04/04/2016 e 10/04/2016, onde participei de diversas atividades da ONG, em
especial de uma parte do processo de desenvolvimento do software de georreferenciamento na
FS e uma visita a Chapada do Lagoão para coletar dados sobre algumas famílias que residem
no local.
RESULTADOS
A FS possui atualmente sete membros e um coordenador, sendo que dois são
cooperados (a retirada é proporcional a produção) e cinco são bolsistas (recebem uma bolsa
do CPCD e trabalham apenas no contra turno escolar). A FS foi implantada em 2008 em
Araçuaí/MG como uma iniciativa do CPCD, com o objetivo de desenvolver atividades de
aprendizagem voltada para a profissionalização de jovens a partir do ensino de informática.
Na fabriqueta os jovens desenvolvem projetos de software, banco de dados, programas, jogos,
websites, logomarcas, identidades visuais, etc., oferecendo serviços digitais, para a região de
Araçuaí, para o próprio CPCD e para outros clientes3. Hoje a FS faz parte da Cooperativa
Dedo de Gente, um aglomerado de estruturas parecidas com a FS, ligadas ao CPCD e que
atuam em diferentes ramos, como artesanato e cinema4.
O projeto de Georreferenciamento e Monitoramento de Nascentes da Chapada do
Lagoão está intimamente ligado com as características geográficas da região, em especial a
falta de água. O projeto foi desenvolvido como uma forma de garantir a segurança hídrica da
região e atua em 139 nascentes localizadas na Área de Preservação Ambiental (APA) do
Lagoão, que ocupa 10,78% da área total do município de Araçuaí e abriga, cerca de 400
famílias dependentes das atividades de extrativismo e agropecuária de subsistência, (CAIRES
e SOUSA, 2011).
A chapada é fundamental para a segurança hídrica do município, pois durante os
períodos das chuvas ela acumula a água em suas lagoas e vai liberando aos poucos,
alimentando as nascentes da chapada e suas encostas. Essas águas que nascem na chapada,
descem a encosta e formam os rios que compõe a bacia hidrográfica do Araçuaí, em especial
o Calhauzinho. Neste sentido, a Chapada do Lagoão é o berço das águas de Araçuaí e
fundamental para a manutenção da bacia, (CAIRES e SOUSA, 2011).
O projeto é uma consequência de um outro projeto anterior denominado Caminho das
Águas, financiado pela Petrobras Ambiental, que teve início em 2007 e fim em 2012, e que
3 Retirado do site institucional do CPCD, mais informações: http://www.cpcd.org.br/fabriqueta-de-softwares/ 4 Retirado do site institucional do CPCD, mais informações: http://www.cpcd.org.br/fabriquetas/
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tinha como objetivo uma série de atividades para mapear as nascentes e disseminar a cultura
da conservação de mananciais para as comunidades da Chapada do Lagoão, com o objetivo
final de criar condições de permanência para a população local para que o município deixasse
de ser um polo dispersor de mão de obra para o corte de cana.
Em entrevista com o coordenador da FS, realizada no dia 15/04/2016, me foi contado
a história de como surgiu o sistema, enquanto ele me apresenta o protótipo, a qual reconto de
forma resumida a seguir.
De acordo com o entrevistado, a ideia surgiu quando o coordenador geral da ONG
propôs a obtenção via satélite das nascentes onde o projeto Caminho das Águas atuou, para
acompanhar mais de perto a evolução das atividades e da evolução da conservação. A
primeira tentativa de aquisição de imagens foi conseguir imagens aéreas da região pelo
Google Maps, porém ele não oferecia imagens de alta resolução da região e a foto mais
recente era de 2008. A segunda tentativa foi adquirir imagens da região através do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, porém o grupo também não teve sucesso na
iniciativa. Sobre essa tentativa de relação com o INPE, o entrevistador não deixou muito claro
quais foram os empecilhos nem como foi o processo dessa tentativa, mas ao que parece a
dificuldade de se obter e trabalhar as imagens de sensoriamento remoto, que consiste
basicamente em baixar as imagens pelo portal do INPE e consolidá-las no software SPRING,
impôs um grau de complexidade elevado demais para ser executado pela FS, fazendo com que
outra alternativa fosse buscada.
Para chegar a um desenho da solução que contemplasse a captura de imagens aéreas
periódicas e um sistema de consolidação de coordenadas geográficas, o grupo aplicou o MDI
- “Maneiras diferentes e inovadoras de…”, que é uma “tecnologia social” desenvolvida pelo
CPCD para solução de problemas e funciona da seguinte forma. As cadeiras são organizadas
em roda de modo que todos se vejam, o membro que trouxe o problema para o grupo expõe a
questão, os membros vão dando contribuições de alternativas para a solução do problema e
essas alternativas vão sendo debatidas por todos da roda. O exercício se encerra quando existe
um consenso de que já foram levantadas alternativas o suficiente. Ao final é produzido um
documento que sistematiza a discussão de forma esquemática, contendo, a pergunta, ex. “De
quantas maneiras diferentes e inovadoras podemos monitorar as nascentes? ”, seguida das
atividades levantadas na roda para a solução do problema, uma data e um responsável pela
atividade.
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A atividade de roda descrita anteriormente é chamada de “pedagogia da roda” pelos
membros do CPCD, e é tida como o principal mecanismo organizacional produzido e tem por
objetivo criar um espaço horizontal de aprendizagem. “A roda serve pra tudo”, como diz a
coordenadora pedagógicas da Dedo de Gente em entrevista no dia 05/04 em Curvelo, e ela é
usada desde de resolver conflitos pessoais, até para reunião de planejamento anual. A
“pedagogia da roda” perpassa todos os projetos do CPCD e define um formato unificado de
organização para os diversos projetos.
A redução do problema em atividades concretas chegou produziu o seguinte resultado,
que corresponde ao processo de georreferenciar e monitorar uma nascente: 1) é preciso tirar
coordenadas geográficas das nascentes, 2) é preciso plotar esses pontos em um mapa geral da
região, 3) é preciso tirar fotos aéreas das nascentes periodicamente, 4) é preciso associar essas
fotos aos pontos georreferenciados. Como conclusão foi definido que era preciso um
instrumento técnico específico para tirar dados de coordenadas, uma câmera móvel para tirar
fotos periódicas das nascentes e um software para manter a série histórica de fotos em relação
a cada nascente georreferenciada.
A solução encontrada para construir esse sistema repleto de interações complexas foi
reduzir a complexidade da tarefa de desenvolvimento montando uma assemblage de sistemas
já prontos e adaptar o que for necessário. Neste pensamento de montagem - bastante
recorrente no software livre -, o grupo comprou um GPS para tirar as coordenadas, traduziram
um software livre indiano de georreferenciamento, usaram o Google Maps como mapa geral e
compraram um drone para tirar fotos aéreas periódicas de alta resolução.
O processo de monitoramento das nascentes é dividido em três etapas básicas: 1)
realizar as medições geográficas e topológicas da área da nascente, 2) fotografar a área de
recuperação da nascente com o drone, 3) inserir os dados obtidos do campo no software de
georreferenciamento. A etapa de coleta de dados no campo é realizada hoje quase que
exclusivamente pelo coordenador da FS e por outro o membro da ONG responsável pela
comunicação com as comunidades da chapada do lagoão.
O resultado final deste processo é uma tela interativa com o mapa do Google Maps
centralizado na região do município de Araçuaí com 139 marcações na região da Chapada do
Lagoão, onde cada marcação representa uma nascente. Ao clicar em uma marcação aparece
uma série histórica de fotos da nascente, onde é possível visualizar a evolução e o crescimento
das mudas e da área verde, e visualizar o crescimento e expansão da vegetação. A lógica de
georreferenciamento e monitoramento periódico feito por fotos dos drones foi difundida pela
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ONG em quase todos os projetos e hoje o sistema tem mais de 1000 pontos georreferenciados
e com fotos no Brasil inteiro. Quase todos os pontos geográficos onde a ONG atua têm
georreferenciamento e fotos aéreas, desde praças revitalizadas até o prédio de uma de suas
sedes administrativas em Curvelo/MG.
A experiência descrita acima dialoga com diversas categorias propostas pelos autores
anteriores, como um ambiente menos segmentado entre Teoria e Prática, uma pedagogia mais
horizontal, a contextualização social, ambiental e política da tecnociência e a distribuição de
legitimidade entre o leigo e o técnico, em Fraga (2007), além das três categorias de
intersecção em Nascimento e Linsingen (2006). Assim, a seguir são destacadas algumas
categorias sobre as práticas da FS e do projeto de Georreferenciamento e Monitoramento de
Nascentes.
Sobre Teoria vs. Prática: o estudo na FS é guiado principalmente pelos problemas
que surgem nos projetos que o grupo está desenvolvendo em um dado momento.
Diferentemente da FEA, onde a teoria vem antes da prática (FRAGA, 2007), na FS o que
acontece é um movimento inverso, o estudo teórico é apenas o necessário para que seja
resolvido o problema prático pontual. No caso do uso do uso do GPS por exemplo, o grupo
teve de estudar sobre coordenadas geográficas e precisão, e também técnicas agroecológicas
de recuperação de áreas degradadas, como quais plantas são nativas da região, qual espécie
deve ser plantada mais próxima da nascente, qual mais longe etc. Esse baixo
comprometimento teórico tem um efeito interessante, quase como uma
promiscuidade/anarquismo tecnológico, onde a pertinência dos artefatos para o conjunto é
completamente contingente. Apesar de uma característica interessante, e que pode ser
explorada mais a fundo em outra ocasião, ela é a outra face da visão instrumentalista da
tecnociência e da não reconhecimento da “política do artefato” (WINNER, 1980)
Sobre Leigo vs. Técnico. Os limites do conhecimento técnico e leigo não são muito
claros nas práticas da FS, e isso é reflexo direto da constituição horizontal das práticas
pedagógicas do grupo, como o MDI e a roda, e do constante trabalho em projetos que
dialogam com saberes tradicionais, como o de recuperação das nascentes e outros. No
momento da roda, é dito que “todo mundo é educador, sempre tem algo pra contribuir”
(ENTREVISTA I, 2016). Esse constante deslocamento da legitimidade do saber contribui
para romper algumas fronteiras sobre a concepção de quem detém o melhor conhecimento
para um problema específico e produz uma dinâmica de valorização da diversidade. A
formação técnica fragmentada dos membros do grupo, que fica bastante explícita nas escolhas
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feitas ao longo do projeto de Georreferenciamento e Monitoramento, também contribui para
não criar grandes barreiras, mas acaba afetando a capacidade de execução de projeto, uma vez
que nenhum deles tem uma formação convencional na área que atua.
Sobre o engenheiro como mediador. Como já apresentado anteriormente, no caso da
FS não existe ninguém realmente qualificado – nos termos convencionais - na área de
atuação. Diferentemente da proposta em Fraga (2007), o que ocorre aqui é uma dinâmica
imediata - sem mediação - de produção de solução para problemas tecnocientíficos, que
muitas vezes está mais próxima da gambiarra do que da tecnociência. A proposta de uma
dinâmica imediata vai numa direção diferente da proposta de metodologia participativa e mais
no sentido de uma contribuição anárquica de diversos saberes, onde a legitimidade de
qualquer saber sobre um problema é absolutamente contingente. Neste sentido, a proposta
seria colocar o engenheiro não como mediador, mas como igual, lado a lado com o
conhecimento tradicional, indígena ou outro, algo muito mais próximo de uma ecologia de
saberes, do que um processo mediado pela tecnociência.
Das categorias em Nascimento de Linsingen (2007) temos:
i) A abordagem temática e a seleção de conteúdos e materiais. A escolha dos temas
e “situações problema” a serem abordados são muito dependentes das demandas dos clientes
da FS, especialmente das demandas do CPCD, que é o maior cliente do grupo. Normalmente,
o CPCD contrata o desenvolvimento de algum site ou alguma arte gráfica para um de seus
diversos projetos. No caso do projeto de Georreferenciamento e Monitoramento de Nascentes,
os temas trazidos para estudo e discussão se afastam da temática de desenvolvimento de
software e perpassam principalmente os conceitos de manejo sustentável dos recursos
naturais, como agroecologia e permacultura, e críticas ao modelo de desenvolvimento
capitalista, e seu aspecto de degradação. A escolha dos assuntos a serem discutidos é pouco
autônoma e os materiais de apoio são em grande parte desenvolvidos pela própria ONG ou
são buscadas informações dispersas na internet. Apesar disso, os assuntos normalmente se
relacionam de forma bastante próxima com a realidade dos membros da FS, pois todos os
membros são naturais da cidade e imersos na cultura organizacional da ONG, de modo que os
valores e práticas do CPCD são compartilhados pelos membros de seus projetos de forma
bastante intensa.
ii) A perspectiva interdisciplinar do trabalho pedagógico e o papel da formação
do professor. A formação dos educadores passa principalmente pela formação em
metodologias, tecnologias e pedagogias próprias do CPCD, sem muito diálogo com campos
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mais convencionais. A as habilidades técnicas, como programação no caso da FS, é resultado
do trabalho coletivo do grupo, com o educador como ponto de apoio metodológico, e de
algumas oficias e workshops esporádicos, ministrados por profissionais convencionais da área
contratados pelo CPCD para treinamento em algum tema pontual. Neste sentido, o
coordenador do projeto não necessariamente passa por uma vasta formação técnica na área em
que ele vai atuar, e tem sua base conceitual construída de outra forma, privilegiando os
espaços de diálogo e a construção horizontal de conhecimento. Essa “formação alternativa”,
cumpre o papel de tornar o educador capacitado em promover espaços interdisciplinares e
romper com lógica da “educação bancária”. Mas em contraponto, afeta diretamente a
capacidade técnica do grupo em produzir sistemas de qualidade mais próximas com a do
mercado e conhecimento que dialogue com os circuitos mais convencionais, como o espaço
acadêmico. Apesar disso, a própria especificidade das dinâmicas do grupo acaba por abrir
espaço nesses circuitos, vide a participação do grupo em uma mesa de debate sobre “TICs e
oportunidades na Economia Solidária” no ESOCITE 2015, (ESOCITE, 2015)
iii) O papel do educador. O papel do educador na FS, como já apresentado
anteriormente, é de fomentar o debate e garantir espaços horizontais e interdisciplinares.
Neste sentido, seu papel de “catalizador”, proposto em Nascimento e Linsingen (2007) é
cumprido razoavelmente. O que fica bastante claro é a necessidade da experiência pessoal
para desempenhar o papel de educador de forma mais efetiva. Os educadores mais velhos,
com mais anos de prática, apresentam uma habilidade muito mais elevada de condução dos
espaços pedagógicos do que os novos. Vale ressaltar aqui que muitos dos jovens que
passaram pela FS já participavam de projetos do CPCD há muitos anos, o que mostra uma
virada dupla, tanto na capacidade do coordenador educador, quanto na expectativa e conforto
dos educandos com as metodologias utilizadas. Essa junção propicia uma dinâmica onde
todos compartilham do entendimento sobre os funcionamentos do espaço e da lógica das
pedagogias.
No que tange a compreensão de que a tecnociência é fruto de um contexto social e
produz contextos - não é neutra - (DAGNINO, 2008), é interessante observar que as
tecnologias não são entendidas de forma homogênea pelo grupo. Como já observado
anteriormente, os modelos de mineração e de agropecuária industrial e com suas tecnologias
de degradação ambiental e social, são compreendidas pelos membros da FS como fruto de um
contexto específico, o modelo de desenvolvimento capitalista, e eles concordam que as
escolhas tecnológicas não são as que eles desejam e que o simples uso ético dessas
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tecnologias não é suficiente, é necessário desenvolver tecnologias alternativas baseadas em
outros valores. E mostra que a formação CTS é intimamente ligada com os debates políticos
sobre desenvolvimento, inclusive que o próprio debate CTS pode ser encontrado de forma
diluída na formação política dos sujeitos, como já proposto, em certa mediada, por
Nascimento e Linsingen (2007).
Sobre as novas tecnologias, especialmente as TICs, a reflexão feita não é a mesma.
Essa crítica à neutralidade não está presente, ela é vista como universal, possível de ser
apropriada para qualquer situação, basta um uso ético. A única reflexão que parece existir é a
preferência que os membros têm por softwares livres – o que já é um sinal de avanço da
discussão - e o compromisso de manter tudo que é produzido também como software livre,
para que sirva de material para outras pessoas. Essa crítica seletiva, que não abrange as TICs,
é curiosa e traz desafios tanto epistemológicos quanto operacionais para o formato da crítica à
visão da neutralidade da tecnociência e mostra a complexidade e extensão da visão
instrumentalista da tecnociência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar a experiência da FS no projeto de Georreferenciamento e Monitoramento
de Nascentes em busca de práticas e atividades que dialogam com a crítica CTS à educação
formal, fica claro que é possível compreender a distribuição dos questionamentos propostos
pela educação CTS de outra forma. A temática CTS, de compreensão do processo histórico e
social que produz um tipo específico de tecnociência e que ela tem suas consequências
específicas na sociedade, está presente nas escolhas e reflexões do grupo sobre as alternativas
técnicas e aspirações de um outro tipo de sociedade, porém as reflexões aparecem muito mais
diluída em atividades de formação pedagógica e política do que num formato de “disciplina”
ou de estudo do campo CTS propriamente.
A recomendação geral, de ensinar a tecnociência por meio de suas controvérsias, toma
aqui outro sentido, levando as controvérsias da sala de aula para a realidade experimentada
pelos sujeitos. E aliado ao contexto de escolher “situações problemas” pertinentes, é possível
acessar o aspecto principal da neutralidade, que diz haver apenas um único caminho, o da
tecnociência convencional. Mostrando que é possível sim pensar em conceber uma
tecnociência que compartilhe de outros valores e que não tenha como modus operandi a
degradação ambiental e social. O desafio que fica é como questionar a neutralidade das novas
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tecnologias, em especial as TICs, que apesar de reproduzirem e serem instrumentos de
controle, trazem consigo promessas de emancipação e empoderamento.
A concepção de neutralidade da tecnociência impõe que existe uma única alternativa
para um futuro melhor, que não interessa para onde queremos ir, é ela a locomotiva. O que a
crítica nos mostra e as experiência empíricas também, cada vez mais, é que, não só é
impossível pensar outro modelo de desenvolvimento com essa mesma base material e
epistemológica, mas que é sim possível pensar em outros modos de vida e construir outras
tecnociências, populares, sustentáveis e solidárias.
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de Gente. Entrevistadora: Felipe Mammoli Andrade. Curvelo, 2016. 1 arquivo .mp3 (68
min.).
B. Entrevista II. [ 15 abr. 2016] Entrevistado: Coordenador da Fabriqueta de Software.
Entrevistadora: Felipe Mammoli Andrade. Araçuaí, 2016. 1 arquivo .mp3 (49 min.).