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Maria Lcia Caldas Santana de Castro

A EDUCAO DA ALMA: O TRABALHO VOLUNTRIO NA CEA-AMIC ONDE EST TEU CORAO, EST TEU TESOURO (*) UM ESTUDO DE CASO

DISSERTAO apresentada como condio parcial obteno do ttulo de MESTRE em EDUCAO na rea de Concentrao EDUCAO, CONHECIMENTO, LINGUAGEM e ARTE, comisso julgadora da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas SP, sob a orientao do prof. Dr. Joo Francisco Rgis de Morais.

2003(*) Em analogia a frase de Jesus no Evangelho de Mateus, 6:21 In BIBLIA Traduo Ecumnica, 2a Ed., Edies Loyola, S.Paulo, Brasil, 1994.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

A EDUCAO DA ALMA: O TRABALHO VOLUNTRIO NA CEA-AMIC ONDE EST TEU CORAO, EST TEU TESOURO-UM ESTUDO DE CASO Autora: Maria Lcia Caldas Santana de Castro Orientador: Prof. Dr. Joo Francisco Rgis de Morais

Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida por Maria Lcia Caldas Santana de Castro, e aprovada pela Comisso Julgadora. Data:........./............./.............. Assinatura: ...................................................

Comisso Julgadora:............................................................................ ............................................................................. ............................................................................ .............................................................................

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by Maria Lcia Caldas Santana de Castro, 2003.

Catalogao na Publicao elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMPBibliotecrio: Gildenir Carolino Santos - CRB-8/5447

Castro, Maria Lcia Caldas Santana de C279e A educao da alma e o trabalho voluntrio na CEAC AMIC onde teu corao est teu tesouro : um estudo de caso / Maria Lcia Caldas Santana Castro. -- Campinas, SP: [s.n.], 2003. Orientador : Joo Francisco Rgis de Morais. Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Participao social. 2. Vida comunitria. 3. Valores morais. 4. Ontologia. 5. Religiosidade. I. Morais, Joo Francisco Rgis de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo. 03-024-BFE

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RESUMO A partir de 1990, cresce em todo o mundo o nmero de organizaes cunhadas pelo nome de Privadas, Porm Pblicas, por Rubens Csar Fernandes, em 1994 que emergem do corao da sociedade civil, agregando em torno de si, uma significativa quantidade de trabalhadores voluntrios, de variadas idades, etnias, credos, grau de escolaridade, nvel scio-econmico, etc. Esses indivduos congregam-se espontanemente, para ocupar-se especificamente, de assuntos que at poucas dcadas, eram considerados pela sociedade civil, como da responsabilidade quase que nica do Setor Pblico, como a fome, os menores em situao de risco, a degradao ambiental, a violncia etc. Essa pesquisa um estudo de caso, do trabalho voluntrio, como realizado em uma dessas organizaes a AMIC que o rgo social da Casa do Esprito Amigo CEA, uma instituio esprita-kardecista. Se prope a contribuir para caracterizar as particularidades agregadas ao trabalho voluntrio, quando praticado - como Caridade - nas instituies espritas-kardecistas sob a gide da mxima FORA DA CARIDADE NO H SALVAO. Abstract Since 1990, increases the number of organizations all over the world - coined with the name of Privatade, but Publics, by Rubens Csar Fernandes, in 1994 that emerge of the heart of civil society, joining around itself, a significant amount of voluntary workers, with diferents ages, ethnicals origin , beliefs, education degree, social-economic level, etc. Those individuals, spontaneosly congregate, to ocuppy themselves specifically, with subjects, that to few decades, they were considared by the civil society, as of the responsability almost that only of the Gonerment, as the hunger, the children in risk situatios, the environmental degradation, the violence, etc. This researche, is a case study, of the voluntary work, as accomplished in one of those organizations - AMIC that is the social organ of Espirito Friends House , one institution spiritist -kardecist . Its intends to contribute to characterize, the particularities joined to the volunty work, when practiced - as Charity in the instituitions espiritistkardecist, under the aegis SALVATION. of the maxim: OUT OF CHARITY, THERE IS NO

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Agradecimentos Foram tantas as mos que me ampararam, e que, ao longo da vida, me guiaram os passos, partejando a minhalma, com palavras firmes, e ternos abraos. Foram tantos os olhos, que me fizeram entrever, no cintilar das estrelas, e no raiar da aurora, horizontes infinitos de esperana, anunciando o amanhecer. Foi tanta ternura, tanto amor, tanto zelo, tanto, tanto, que mesmo todo encanto, toda gratido, todo desvelo, seria pouco para testemunhar, a todos que me tm construdo, pais, irmos, marido, filho e amigos, professores, irmos de caminho, meu pai espiritual, meu protetor querido, aqueles a quem no agrado e at meus inimigos, a paz que afinal encontrei, quando meu corao aprendiz, consagrei, ao singelo ofcio, de aprender a amar, sobre todas as coisas, a Deus amar, a cada outro e a mim mesmo, sobretudo amar, amar e amar, a cada dor, amar, amar e amar, a cada pequenino detalhe da vida, infinitamente, o Divino amor, amar, amar e amar.

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O desenho da pagina seguinte, bem como, os das pginas 1, 7, 39, 157, 199, 281, foram realizados, por uma entidade espiritual, atravs da mediunidade de Eliana Luiz dos Santos, na Casa de Orao F e Amor, Campinas-SP

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Prossegui pois o vosso caminho em Cristo [..] transbordantes de gratido. Cl,2:6-8

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A EDUCAO DA ALMA: O TRABALHO VOLUNTRIO NA CEA-AMIC ONDE EST TEU CORAO, EST TEU TESOURO UM ESTUDO DE CASO

SMARIOCENA INICIAL INTRODUO Introduo ao tema ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... 3 9 9 25 41 45 45 52 63 67 77 78 86 97 107 108 127 135 144 148 159 171 188 192

Introduo pesquisa ................................................................................................... CAPTULO I . Distintos Olhares .............................................................................. 1.Olhar scio-histrico ................................................................................................ 1.1.Sobre o Trabalho Voluntrio.................................................................................... 1.2 Um pouco de histria .............................................................................................. 1.3.Nas Instituies Espritas........................................................................................ 1.4.Momento atual......................................................................................................... 2. Olhar teolgico ....................................................................................................... 2.1 A Caridade proposta pelo cristianismo................................................................. ... 2.2. A Caridade proposta pelo espiritismo-kardecista................................................... 2.3.A Caridade proposta pela espiritualidade dirigente da CEA-AMIC ...................... 3. Olhar Psicotico ..................................................................................................... 3.1.Sobre o desenvolvimento do senso moral .............................................................. 3.2.Sobre a prtica desse caminho ............................................................................... 3.3.Sobre as condies necessrias para praticar esse caminho ................................... 4.Olhar Antropolgico .............................................................................................. 5.Olhar Educacional .......................................................................................... ...... CAPTULO II . Palavras e Atos: A CEA-AMIC atravs de sua obra .................. 1.Memrias de uma voluntria .................................................................................... 2. Ritual de acolhimento do Voluntrio ...................................................................... 3. De voluntrio a trabalhador da CEA-AMIC ............................................................

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CAPTULO III .Tirando o vu: A Pesquisa com os Voluntrios ............................ 1. Construo e aplicao do questionrio...................................................................... 2. O Voluntrio da CEA-AMIC (dados do questionrio)............................................... 2.1.O Voluntrio da CEA-AMIC, e o Voluntrio Brasileiro.......................................... 2.2. As atividades do Voluntrio Brasileiro e do Voluntrio da CEA-AMIC ........ ....... 2.3. Caracterizao dos Voluntrios da CEA-AMIC .................................................... 2.4. A Histria Social dos Voluntrios da CEA-AMIC ................................................ 2.5. A Histria Associativa dos Voluntrios da CEA-AMIC ....................................... 2.6. Motivos apontados pelos Voluntrios como Condutores para a CEA-AMIC ...... 2.7. Motivos apontados pelos Voluntrios para a Permanncia na CEA-AMIC ......... 3. O trabalho voluntrio na CEA-AMIC (dados do questionrio)................................. 3.1. Tempo entre conhecer e se integrar como Voluntrio na CEA-AMIC ................. 3.2. Relevncias encontradas pelos Voluntrios no trabalho da CEA-AMIC............... 3.3.Participao dos Voluntrios da CEA-AMIC nas Atividades (1991-1999)............ CAPTULO IV . Consideraes no Caminho ......................................................... 1. Acerca de uma compreenso scio-espiritual dos fatos sociais ................................. 3. Acerca do trabalho voluntrio realizado na CEA-AMIC............................................ REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... ANEXOS ......................................................................................................................

201 204 205 206 217 222 229 236 243 249 260 260 262 268 283 283 293 328 333

2. Acerca da natureza scio-espiritual do vnculo dos voluntrios e a CEA-AMIC........ 288 4. A prtica da Caridade e da Educao da Alma no mundo contemporneo .................. 298

1. Carta de Stefano Benni................................................................................................... 334 2. Lei do Voluntariado........................................................................................................ 336 3. Questionrio................................................................................................................... 337 4. Principais Pesquisas sobre o Setor sem fins Lucrativos ............................................. 5. Entrevista com entidade espiritual, dirigente da CEA-AMIC, hoje COFA-AMIC .... 338 339

6. O Homem de Bem ....................................................................................................... 347 7. Entrevista com Eliana Santos, presidente da CEA-AMIC, hoje COFA-AMIC............ 349 8. ndice de Grficos e Tabelas ....................................................................................... 9. Smbolo da AMIC/ Endereos para contato ............................................................... 352 357

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Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei. Ningum tem maior amor do que aquele que se despoja da vida por aqueles que ama. Joo, 15:12,13

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CENA INICIAL So seis horas da manh de um dia frio de inverno. A neblina reina soberana por sobre o Vale das Garas, imediaes onde se localiza a sede da Associao dos Amigos da Criana, a AMIC, rgo social da Casa do Esprito Amigo,1 a CEA. No Rancho da Luz, um barraco grande de pau-a-pique, onde a AMIC recebe seus scios,2 as labaredas do fogo danam por entre as bocas do fogo de lenha, convidando as pessoas a se aquecerem no calor que dali se espalha; e elas, pouco a pouco, se aproximam. Tambm quase impossvel resistir ao aroma do caf recm coado e ao aconchego e calor humano que ali palpitam. Alguns scios mais velhos da AMIC chegam bem cedo, e ficam ali no rancho, ajudando a receber os que vo chegando, com um caf quentinho, uma prosa amiga, um sorriso franco e aberto. Na vida da AMIC mais um dos ltimos domingos de cada ms, dia de distribuio, quando seus scios que esto precisando de ajuda material, bem como as pessoas novas que chegam, vm buscar alimentos, roupas, remdios e, especialmente, atitude fraterna e amiga. Todas elas so pessoas em condies de extrema necessidade, vindas dos mais distintos arredores de Campinas e que procuram a AMIC em busca de socorro emergencial para suas dificuldades e privaes. Aos poucos, outro grupo de scios vai chegando e assumindo suas tarefas nos diversos setores da distribuio. So alunos da Escola Emmanuel3 que trabalham como voluntrios nos dias de distribuio. Da beira do fogo onde me encontro, meu olhar acompanha os voluntrios que caminham em direo ao Rancho da Luz e, por alguns instantes, uma certa particularidade que se expressa atravs da postura corporal, dos movimentos e da emisso da fala, cativa a minha ateno, e me convida observao. De modo geral, trazem no semblante uma certa expresso, que poderamos chamar de boa-vontade; o corpo exala uma certa disponibilidade e bem-estar. Parecem oriundos de distintos grupos tnicos, pois tm caractersticas fsicas bem diferentes entre si. possvel que tenham nascido e/ou tenham vivido em diferentes estados, cidades e at pases, pois falam - a lngua Portuguesa - com sotaques bem distintos. Contudo, o jeito como se vestemInstituio esprita-kardecista, orientada pela Doutrina dos espritos. Scios da AMIC tanto as pessoas que procuram a Instituio em busca do alimento material, quanto aquelas que a procuram em busca do alimento espiritual e se integram ao trabalho Assistencial da Instituio. 3 Escola Emmanuel: Escola de Evangelizao que prepara os mdiuns, que trabalham na CEA-AMIC.2 1

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e o jeito como se comunicam verbalmente, tm algo que se assemelha. O que os aproxima, que os envolve nesse halo de semelhanas, e o que os diferencia entre si, e os individualiza? Se considerarmos como referncia apenas os signos externos, parece que fazem parte dos chamados extratos mdios da populao. Contudo, se observarmos mais atentamente as expresses gestuais tanto do corpo como da face, bem como a articulao do discurso, encontramos alguns discretos sinais que sugerem que, alguns dentre eles vieram de diferentes extratos sociais e que, provavelmente, viveram trajetrias bem diferenciadas para chegarem at a CEA-AMIC e aqui se encontrarem. Pelas trocas constantes que fazem entre si, acerca de suas experincias e descobertas pessoais, dentro do trabalho da CEA-AMIC, parece haver algumas buscas e interesses em comum. Da forma como se referem - quando conversam entre si - a esse trabalho voluntrio do qual participam e ao que nele aprendem, parece que nele vivem, experincias que consideram valiosas e significativas para suas vidas. Por algum motivo - que sempre me pergunto acerca de sua natureza, seu sentido e significado - parecem haurir da participao nesse trabalho um alimento sutil, que sugere ser algo especialmente fecundo para suas vidas. Me vejo a perguntar, a mim mesma e, ao infinito, que alimento seria esse? Continuamente, esto trocando entre si acerca do processo de crescimento interior que esto vivendo experincias de auto-conhecimento, instrues espirituais e tambm acerca das transformaes ntimas pelas quais esto passando - na prtica da Caridade4 (como chamado o trabalho voluntrio realizado pela CEA-AMIC). Essa troca informal de experincias acerca do crescimento interno, entre os voluntrios, feita com um certo gosto e uma certa entrega e profundidade reflexiva, que chama especialmente a minha ateno mesmo sendo uma profissional atuante na rea de Educao Anmica, h mais de 25 anos e, tambm voluntria5 na AMIC desde o comeo de 1995. Essa qualidade de comunicao e troca humana, na qual as mscaras, os mecanismos defensivos do Ego, so pouco mobilizados, e se apresentam rarefeitos, pouco encontrada nos ambientes naturais de relao e de trabalho. Via de regra, para que se alcance essaCaridade, in Kardec, 2000, p.67: sentimento de benevolncia, de justia e de indulgncia relativamente ao prximo, baseado no que quereramos que o prximo nos fizesse. 5 A pesquisadora psicloga, psicoterapeuta e tambm voluntria desde 1994 na CEA-AMIC, onde uma das tarefas com a qual tem se ocupado como voluntria, a de ajudar os voluntrios quando necessrio, no processo de auto-conhecimento e de educao anmica.4

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qualidade relacional, em um grupo, necessrio que se faa um rduo trabalho de alfabetizao anmica, ou seja, de aprendizado de como no cair no automatismo dos mecanismos psquicos de defesa do Ego, que muito comumente afloram nas inter-relaes humanas, como, por exemplo, racionalizao, negao, projeo, deslocamento, etc. necessrio tambm, um contnuo investimento de energia na construo dos olhos de ver, ou seja, a habilidade de enxergar com os olhos permeados pelas qualidades do esprito um pouco de eternidade e infinitude no olhar para no ser tragado pelos prprios papis temporais desempenhados no aqui e agora. A partir desse espao anmico, liberado tanto dos mecanismos defensivos do Ego, quanto da compulso de repetir automaticamente alguns papis socialmente aprendidos - redutores da experincia de si mesmo como um ser eterno - necessrio construir a capacidade de colocar-se, no dia a dia, como um agente e, ao mesmo tempo, como um observador de sua prpria atuao no mundo, em outras palavras, como um esprito eterno, vivendo na temporalidade. Aos poucos possvel, ento, ir deixando de agir automtica e reativamente frente trama na qual a prpria vida est envolvida, tornando-se uma testemunha do seu prprio caminhar em retorno a uma vida em unidade com a Presena de Deus, no recndito do corao. Esse processo de desautomatizao da ao e potencializao da expresso do ser de cada um dos voluntrios, constutui-se portanto, em uma condio necessria, para o xito desse tipo de trabalho voluntrio, praticado como Caridade. Nesse sentido, chama sobremaneira a minha ateno, o fato de que a troca experiencial entre os voluntrios, feita de um modo intimista, sensvel e permeada por um certo encantamento, que se aproxima muito daquele estado, que normalmente encontramos nos apaixonados e nos poetas, quando falam do seu amor. Contemplo mais uma vez essa cena, que se repete todo ltimo domingo de cada ms: os scios da AMIC chegando para a distribuio. E a cada ms essa cena me toca mais intimamente: vejo ali, uma encantadora faceta do humano, antiga e nova ao mesmo tempo, alis novssima, no sentido da concretizao no social de uma experincia tica e esttica, permeada pelas qualidades do esprito. Esse conjunto de imagens e signos, ali encarnados, me cativa e me convida reflexo. Conheo de perto e por dentro apenas a minha histria,6 sei o que me trouxe at aqui, o que encontrei na CEA-AMIC, por que fiquei e, por6

Mais informaes, vide Cap. II, item 1.

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que, com o passar do tempo, sinto meu compromisso interno e externo com o trabalho que aqui se realiza cada vez mais permeado por um gosto de maturidade e regado com um perfume de eternidade. Sei tambm que foi medida que o trabalho da CEA-AMIC foi crescendo tanto qualitativa como quantitativamente - que cresceu em mim, junto com ele, a compreenso do sentido e do significado desse trabalho que aqui feito Caridade material e espiritual tanto para quem o faz, como para aqueles que dele se beneficiam. Muitas vezes me encontro a indagar s estrelas: Que mistrio aproximou e uniu esse grupo de almas? Que propsitos se ocultam por trs desses encontros? Que horizontes de experincias humanas tm nesses encontros, sua manjedoura e seu regao? Que histrias de vida guarda cada uma dessas pessoas que se vinculou a esse trabalho, como voluntria? Como cada uma delas foi biograficamente sendo conduzida at a CEA-AMIC? O que aqui encontrou? Por que permaneceu? O que movimenta cada uma dessas pessoas por dentro, para escolher estar trabalhando voluntariamente em momentos que, normalmente, so dedicados ao lazer e ao descanso, no grupo social a que parece pertencer? Que experincias esse trabalho proporciona a cada uma dessas pessoas que chega CEA-AMIC e permanece trabalhando como voluntria? O que cada uma delas encontrou de significativo nesse trabalho voluntrio, nesse lugar e nessa forma de prestar ajuda ao prximo, chamada Caridade?

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... pois no podemos deixar de falar

nas coisas que vimos e ouvimos. Atos dos Apstolos,4:20

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INTRODUO Sentimos a necessidade - a exemplo de dois afluentes que alimentam um rio com suas guas grvidas de distintas paisagens - de introduzir esse trabalho em duas vertentes: - a primeira delas, que aqui chamamos de introduo ao tema, faz uma espcie de mapeamento geopoltico do tema, situando o leitor quanto s particularidades do territrio o trabalho voluntrio - dentro do qual nos moveremos; - a segunda delas, que aqui chamamos de introduo pesquisa, faz uma espcie de mapeamento do processo, situando o leitor acerca do percurso e dos recursos atravs dos quais nos movimentamos dentro do tema; Na introduo ao tema situaremos, ento, o leitor com breves pinceladas acerca da paisagem na qual ele vai adentrar, ou seja, a paisagem do trabalho voluntrio no mundo contemporneo e, dentro dela, a Caridade. Na introduo pesquisa situaremos o leitor acerca dos caminhos internos e externos - que percorremos para retratar essa paisagem, de modo a tornar mais visvel certas particularidades dela, a exemplo de um pintor que escolhe retratar de certos ngulos a paisagem, uma vez que eles evidenciam melhor a atmosfera que lhe tocou a sensibilidade e, que ele deseja tornar visvel a outros. Alguns momentos, s vezes delicados, s vezes dramticos - do encontro entre a luz e aquele recanto da terra - que seus olhos viram e seus ouvidos ouviram, e que ele, o pintor, deseja testemunhar atravs das tintas e do pincel. Introduo ao Tema Elegemos ento, como tema para essa pesquisa, o trabalho voluntrio, tal como realizado pelo espiritismo-kardecista7 em que ele praticado como Caridade,8 sob a gide da

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In KARDEC, (2000 p.36), 255 a Ed. O Espiritismo a nova cincia que vem revelar aos homens, provas irrecusveis, a existncia e a natureza do mundo espiritual, e suas relaes com o mundo corporal;ele no-lo mostra, no mais como uma coisa sobrenatural, mas ao contrrio, como uma das foras vivas e incessantemente ativas da Natureza, como a fonte de uma multido de fenmenos incompreendidos, at ento atirados, por essa razo, ao domnio do fantstico e do maravilhoso. 8 In KARDEC, (2000, p.144) 225 a Ed. Amar o prximo como a si mesmo: fazer para os outros o que queramos que os outros fizessem por ns a mais completa expresso da caridade, porque resume todos os deveres para com o prximo.

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mxima, Fora da Caridade no h salvao.9 O trabalho voluntrio, assim realizado, agrega a si algumas particularidades das quais nos ocupamos nessa pesquisa, tentando, ao mesmo tempo, situ-lo frente s caractersticas mais constantes agregadas ao trabalho voluntrio, quando realizado nos outros contextos, nos quais ele contemporaneamente praticado. Seja o trabalho voluntrio realizado em outras instituies religiosas, ou o trabalho voluntrio realizado em contextos recm configurados, como quele vinculado s ONGs e Filantropia Corporativa Empresarial. O fato de que o primeiro ano do sculo XXI foi dedicado internacionalmente ao voluntariado explica, por si mesmo, o grau de importncia que o trabalho voluntrio vem assumindo no mundo contemporneo. Ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de estudos e pesquisas que ajudem na compreenso das mudanas sociais subjacentes uma tendncia de crescimento apresentada pelo trabalho voluntrio no mundo como um todo. Essa tendncia de crescimento apresentada pelo trabalho voluntrio, revelou-se tanto no sentido quantitativo, como no sentido qualitativo, uma vez que nesse fim de sculo, ele apareceu com novas roupagens, at ento no conhecidas. Quando se fala no crescimento do trabalho voluntrio, fala-se portanto, ao mesmo tempo, no crescimento de um conjunto de organizaes socialmente emergentes, dentro das quais o trabalho voluntrio vem sendo realizado em nossos dias. Apesar de serem distintas quanto a tamanhos, rea de atuao, clientela, e princpios orientadores da sua prtica, essas organizaes, tm algumas caractersticas em comum, que conforme Fernandes (1994, p.11), so: o fato de serem todas elas privadas; no visarem lucro; atuarem na esfera pblica em iniciativas que no so realizadas pelo Estado; e envolverem cidados, de modo espontneo e voluntrio em aes que visam o interesse comum. Ou seja, se orientam por uma lgica que envolve categorias como: pensar no outro, no conjunto, nas suas necessidades, no bem maior, coisas que at pouco eram deixadas a cargo do Estado ou das Igrejas. Esse crescimento, tanto quantitativo, quanto qualitativo, tornou-se mais intenso nas trs ltimas dcadas, ou seja, de 1970 em diante, conforme ressalta Salamon (1993, apud Fernandes 1994, p.17), ao apresentar os seguintes ndices de diversos pases:

In KARDEC, (2000 p.203), 255 a Ed. Meus filhos na mxima: Fora da Caridade no h salvao, esto contidos os destinos dos homens na Terra e no Cu.

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Tabela 1- Dados sobre o crescimento do Setor sem fins lucrativos Pais Dado quantificador Tipo de Organizao Localizao tempo EUA 65% Organizaes no lucrativas criadas depois de 1960 Fonte: Survey realizado em 16 comunidades norte-americanas Frana 54.000 Associaes criadas em 1987 Em contraste com 10.000 a 12.000 criadas por ano na dcada de 60 Inglaterra 221% da arrecadao Organizaes Filantrpicas entre 1980 e 1986 Dados recentes registram 275.000 charities na Gr-Bretanha, movimentando 4% do PNB Itlia 40% Organizaes Voluntrias criadas depois de 1977 Pesquisas indicam forte impulso na formao de Org. Voluntrias nos anos 70 e 80Fonte: Salamon, Lester (1993 apud Fernandes 1994, p.17)

Alguns dados sobre os recursos financeiros movimentados, segundo as reas de atuao das organizaes do Terceiro setor nos Estados Unidos, tambm podem nos dar uma idia do intenso crescimento apresentado por essas organizaes nas ltimas dcadas, e nos levar a pensar acerca das possveis conseqncias sociais dessa expanso. Tabela 2 - Distribuio dos recursos segundo a rea de atuao das organizaes do Terceiro Setor nos Estados Unidos Recursos Quantia (em bilhes de dlares) 70,0 25,52 13,2 5,4 2,6 116,4

rea de Atividade das Organizaes Sade Educao/Pesquisa Servios Sociais Desenvolvimento Comunitrio Cvico Arte/Cultura TOTAL

% do total 60 22 11 5 2 100

Fonte: The Federal Budget and Nonprofit Sector, (Washington, D.C.: The Urban Institute Press,1982), p.15, Salaman, Lester e Abramson, Allan J., (apud Coelho 2000, p. 17)

Chama a nossa ateno o montante de recursos financeiros movimentado pelas organizaes do Terceiro Setor nos Estados Unidos, especialmente as organizaes com prticas na rea de Sade, e em seguida, as organizaes com prticas na rea de Educao/Pesquisa. Essa concentrao de recursos do Terceiro Setor, na rea de Sade e Educao/Pesquisa, sugere que est em curso um processo de transferncia de responsabilidades

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do Estado para os Setores Privados no cumprimento das polticas pblicas, com um conseqente aumento na percentagem de participao dos setores privados sem fins lucrativos, na prestao desses servios populao. Por sua vez, esse aumento de participao de setores privados sem fins lucrativos, nas reas de Sade e Educao/Pesquisa, traz como conseqncias maior participao indireta da comunidade na formulao de polticas pblicas, maior controle da comunidade acerca do tipo e da qualidade dos servios oferecidos, maior descentralizao nos servios oferecidos populao e mais oportunidades de trabalho para os extratos mdios da populao, uma vez que esses servios exigem, em grande parte, mo de obra qualificada. Grfico 1- Mdias brasileira, latino americana e de 22 pases *, das fontes de recursos para o Setor Sem Fins Lucrativos, 1995 *Excluda a rea da religio.80 60 5015,5 73,8 74 49,4 10,7 10,4

70

30 20 10 0 Governo

15,5

40

40,1

Brasil

Amrica Latina

Mdia dos 22 pases

Doaes Privadas

Brasil

10,5

Amrica Latina

Mdia dos 22 pases

Receitas Prprias

Brasil

Amrica Latina

S1Mdia dos 22 pases

Seqncia1

Fonte: As organizaes sem fins lucrativos no Brasil : ocupaes, despesas e recursos. Landim, Leilah, 1999, p.49, apud Pesquisa Comparativa Jonhs Hopkins/ISER/ Brasil , Landim, Beres and Salamon, em Globo Civil Society, Salamon et alii, 1999.

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Contudo, se observarmos as mdias brasileira, latino americana e de 22 pases, das fontes de recursos para o Setor Sem Fins Lucrativos, chama a nossa ateno, por exemplo, a diferena significativa encontrada entre as mdias das fontes de recursos para o Terceiro Setor, oriundas do governo e das receitas prprias, para os pases da Amrica Latina e para o Brasil, bem como a semelhana entre essas mesmas mdias, para os 22 pases estudados por essa pesquisaA hiptese avanada para esses autores, diante dos resultados da pesquisa comparativa, de que a sustentao das voluntrias atravs da gerao de recursos prprios naturalmente mais pronunciada onde a doao privada limitada e h pouca disponibilidade de financiamento governamental por razes polticas ou outras. ...Esses autores apontam tambm para os problemas en volvidos nessa tendncia atual mercantilizao do terceiro setor, a qual teria, como conseqncia, srias limitaes e distores quanto natureza e os objetivos das prticas desenvolvidas por essas organizaes.10

Segundo Landim, (1999, p. 51) a grande proporo de receitas prprias no financiamento das Organizaes Sem Fins Lucrativos no Brasil, est diretamente ligada predominncia das reas de Sade e Educao (67%) na composio do Terceiro Setor. Mais especificamente, essas receitas que tm um peso econmico, so derivadas das mensalidades e taxas pagas pelos servios, tanto de Sade quanto Educacionais, prestados por essas organizaes. Na prtica, essa peculiaridade agregadas ao Setor Sem Fins Lucrativos no Brasil, segundo Landim, (ibidem, p.52), acarretam distores ao Setor ao incluir [nele] organizaes que se comportam como empresas lucrativas, embora no assumam todas as responsabilidades sociais, previstas numa economia capitalista, como pertinentes ao lucro. Podemos tambm visualizar a expanso da prtica do trabalho voluntrio neste fim de sculo, atravs dos ndices de participao do Setor sem Fins Lucrativos no total da mo-de-obra ocupada em vrios pases do mundo.

10

In LANDIM, Leilah, (1999, p. 49 e 50).

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Grfico 2- Participao do Setor sem Fins Lucrativos no total de pessoal ocupado, segundo pases, em 1995M x ic o B ra s il u s tr ia E spanha M d ia F ra n a A le m a n h a

0 ,4 2 ,2 4 ,5 4 ,5 4 ,8 4 ,9 4 ,9 6 ,2 7 ,2 7 ,8 9 ,2 1 0 ,5 1 1 ,5 1 2 ,5 5 1 0 1 5

1 G r -B re ta n h a A u s tr lia E E U U Is ra e l B lg ic a Irla n d a H o la n d a

0

Fonte: As organizaes sem fins lucrativos no Brasil : ocupaes, despesas e recursos Landim, Leilah e Beres, Neide (1999, p. 30)

Para Landim, (ibidem, p.31), pode-se afirmar que, apesar da taxa de participao do Setor Sem Fins Lucrativos no total de todo o pessoal ocupado no Brasil ser de 2,2% e, portanto, abaixo da mdia mundial, que de 4,8%, esse conjunto de organizaes criou, proporcionalmente, mais empregos do que o crescimento observado para o conjunto da economia brasileira comparando-se os anos 1991 e 1995. Pode-se, portanto, considerar que essa expanso proporcionalmente maior do mercado de trabalho, vinculado ao Terceiro Setor da Economia, em um pas onde o desemprego crnico, traga conseqncias sociais significativas, alm de atuar positivamente no sentido da legitimao social dessas organizaes. Vrias denominaes vm sendo usadas para designar esse novo grupo de organizaes que tm emergido no seio da sociedade civil, dentre elas: organizaes sem fins lucrativos, organizaes voluntrias, terceiro setor e organizaes no governamentais (ONGs). Contudo, os contornos da ao social qual esses nomes se referem, bem como suas parti -

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cularidades, ainda no esto totalmente visveis e diferenciados das prticas existentes antes da dcada de 1970, no que concerne ao trabalho voluntrio. As prticas do trabalho voluntrio e da doao existiram desde o incio da sociedade brasileira11 - a primeira Santa Casa de Misericrdia se instalou no Brasil em 1540 no entanto, elas raramente se constituram em uma questo social, da forma como est sendo construda e levada a pblico agora, como atestam, por exemplo, as freqentes matrias na mdia sobre iniciativas individuais exemplares, campanhas de doao, pginas de internet de oferta e procura de voluntrios, cursos de capacitao ou promoo do voluntariado empresarial entre funcionrios, e lanamento de cartes de crdito de entidades no governamentais. Apesar disso, conforme nos informa Landim (2000, p.12) o interesse pelo estudo desse tema, no Brasil, s apareceu no final dos anos 90 quando se iniciou uma discusso sobre o trabalho voluntrio e a doao individual, que se desenvolveu quase que totalmente fora do espao acadmico. Esse debate aconteceu prioritariamente no campo fronteirio ao das instituies privadas de ao social, algumas agncias governamentais, incluindo tambm grupos do setor privado envolvidos com a criao do investimento social empresarial. Recentemente, entretanto, algumas iniciativas tomadas pelas instncias oficiais - ao transformar a questo do trabalho voluntrio em objeto de regulao legal, criando, em 18/02/98, a A Lei do Voluntariado12 - atuaram com grande peso de legitimao social para essa prtica do trabalho voluntrio um campo at ento carente de reconhecimentos e, em conseqncia, o tema, doao de tempo e dinheiro, foi colocado no centro do debate do espao pblico, conforme nos relata Landim (2000, p.12). Esse processo de legitimao social do trabalho assistencial, realizado pela sociedade civil para e/ou com a populao desvalida, continuou seu caminho de consolidao, ganhando visibilidade e importncia social atravs da promulgao, pelo Estado, de Decre -

Ver Cap.I, item 1.2, para mais informaes sobre a histria do trabalho voluntrio. A Lei do Voluntariado, sancionada em 18 de Fevereiro de 1998, traz uma definio oficial do que considera-se servio voluntrio: a atividade no remunerada, prestada por pessoa fsica a entidade pblica de qualquer natureza ou instituio privada de fins no lucrativos, que tenha objetivos cvicos, culturais, educacionais, cientficos, recreativos ou de assistncia social, inclusive mutualidade. (Lei n0 9608, Dirio Oficial da Unio). Para ler a Lei do Voluntariado na ntegra, ver Anexo 2.12

11

15

tos, Portarias e Resolues13 complementares, destinadas regulao legal da sua ao, incluindo nela a regulao dos mecanismos para captao dos recursos financeiros a ela destinados, seja atravs de dotaes oramentrias, isenes fiscais, doaes ou de financiamentos de projetos por Instituies Internacionais de Ajuda. Vrias pesquisas comparativas vm sendo feitas em vrios pases acerca do desempenho dessas organizaes, haja vista a extensa bibliografia disponvel sobre o tema no contexto internacional. No Brasil, contudo, o tema do trabalho voluntrio com os contornos com os quais ele tem sido praticado de 1970 em diante - foi pouco estudado, a ponto de, como nos relata Landim (1993, apud Fernandez, p. 29), os fichrios existentes nas seis principais bibliotecas do Rio de Janeiro nessa poca [1993], organizados por assunto, no inclurem palavras como filantropia, no governamental, sem fins lucrativos, Fundaes ou voluntrio. Tal situao tambm foi encontrada por ns, nos fichrios da biblioteca da Unicamp no ano 2000, embora existissem nesses mesmos fichrios uma longa lista de ttulos sobre a categoria caridade e Servio Social. Os primeiros estudos e pesquisas sobre o tema, no Brasil, comearam com o Pro jeto Filantropia e Cidadania, realizado pelo Instituto Superior de Estudos da Religio ISER, sob a Coordenao de Leilah Landim e com a colaborao de vrios pesquisadores, entre 1993 e 1996. Nesse projeto14 quinze pesquisas foram realizadas, acerca de diferentes grupos religiosos - catlicos, protestantes, espritas etc. e de distintas formas de organizaes da sociedade civil como, Ao da Cidadania contra a Misria e pela Vida, ONGs etc. nos quais o trabalho voluntrio era praticado. Foi tambm realizada, em seguida, a pesquisa sobre As organizaes sem fins lucrativos no Brasil: ocupaes, despesas e recursos, atravs de uma parceria entre o ISER e o Institute for Policy Studies da Johns Hopkins University, sob a Coordenao de Leilah Landim e Neide Beres, e publicada em 1999. No ano 2000 tivemos a primeira publicao de uma pesquisa no Brasil que se ocupava no das instituies que realizavam trabalho voluntrio, mas das doaes, tanto de

13

SZAZI, 2000, Ed. Fund. Peirpolis. Ver coletnea de toda a Regulao do Terceiro Setor existente no pas at sua publicao: textos oficiais das leis, decretos, portarias e resolues relativas regulao da ao das organizaes da sociedade civil na assistncia social, bem como dos mecanismos de captao dos recursos financeiros para sua realizao. 14 Relao detalhada das pesquisas realizadas no Projeto Filantropia e Cidadania no Brasil, ver anexo 4.

16

bens, dinheiro, quanto do trabalho voluntrio. Foi a pesquisa - Doaes e Trabalho Voluntrio no Brasil - realizada por Leilah Landim e Maria Scalon, e publicada no Rio de Janeiro pela Viveiros de Castro Editora Ltda. Essa pesquisa se ocupou da sistematizao dos dados, tanto sobre doaes feitas em dinheiro e em bens, quanto sobre as caractersticas dos doadores brasileiros:Se voc passou dos 40, est na faixa dos que mais se predispem a fazer donativos (em dinheiro, porque no caso dos bens a idade no influi). ...Quanto maior a escolaridade, mais propenso tm os indivduos para fazer donativos tanto em dinheiro, como em bens. ...quanto maior a freqncia a cultos religiosos maior a propenso a se fazerem doaes, tanto em bens como em dinheiro. ...os espritas-kardecistas, com sua doutrina em que a caridade ocupa posio central, so os mais propensos a fazer doaes para instituies, tanto em dinheiro, como em bens.15

Trouxe tambm luz, pela primeira vez, algumas caractersticas das pessoas que doam tanto seu tempo, quanto bens e dinheiro, permitindo assim, a formulao de um primeiro perfil do voluntrio brasileiro tpico, bem como alguns dados acerca do prprio trabalho voluntrio doado s instituies:A nica caracterstica, que se mostrou significativa, quando consideramos o perfil dos que doam tempo do seu trabalho para instituies, foi a freqncia a cultos religiosos. Fora isso, em tudo o mais, o perfil do voluntrio o do brasileiro mdio, do cidado comum. Pessoas de diversas idades, rendas, nveis educacionais e religies se oferecem para doar seu tempo nenhuma dessas variveis demonstrou ser significativa na diferena entre pessoas que fazem ou no fazem trabalho voluntrio.16

Encontrou, ento, uma relao significativa entre freqncia a cultos religiosos e doao de algum tempo para trabalho voluntrio:

15 16

In LANDIM, (2000, p. 74,75,76) In LANDIM, ( 2000, p. 60)

17

Tabela 3 - Trabalho voluntrio para instituies por freqncia a culto religiosoFreqncia a cultos No participa / no freqenta Algumas vezes por ano Uma vez por ms Duas ou trs vezes por ms Uma vez por semana Mais de uma vez por semana Trabalhou No trabalhou 0,5 7,2 9,3 25,1 9,3 13 16,4 13,4 26,8 22,5 37,7 18,6

Grfico 3 - Trabalho Voluntrio para Instituies por freqncia a culto religioso40 35 30 25 20 159,3 9,3

25,1

26,8

Trabalhou No trabalhou

22,5

37,7 16,4

0

No participa / Algumas vezes no frequenta por ano

0,5

5

7,2

10

Uma vez por Ms

13

Duas ou trs Uma vez por vezespor ms semana

13,4

Mais de uma vez por semana

Fonte: Doaes e Trabalho Voluntrio. Landim, Leilah, 2000, p.61, Ed. 7 Letras

Atravs desses dados fica bem visvel que medida que aumenta a freqncia ao culto religioso, aumenta tambm o percentual de pessoas que doa seu tempo para o trabalho voluntrio. Pena que nesse relato, dos resultados dessa pesquisa, a autora no informe dados acerca da percentagem de participao de cada culto religioso distinto, para um total de 95,5% das pessoas que freqentam cultos religiosos, apresentando nveis distintos de adeso religiosa, e que doam parte do seu tempo realizando algum trabalho voluntrio. Nessa pesquisa, (ibidem, p.54 e 55), constatou-se tambm, que do nmero total de horas de trabalho voluntrio aferidas, 58,7% so realizadas em instituies religiosas e 16,7% em instituies de assistncia social (comumente chamadas obras sociais, ou instituies filantrpicas), que, via de regra so rgos sociais de instituies religiosas. Contudo, nesse 18

18,6

relato de pesquisa, no esto especificados, as instituies religiosas nas quais esses voluntrios doam seu tempo, ou seja, com qual percentagem cada instituio religiosa, ou cada religio, participa neste total de horas de trabalho voluntrio. Tabela 4 -Tempo de trabalho voluntrio, segundo rea de atividades% em horas reas de Atividades Instituies Religiosas Assistncia Social Educao Desenv.e Defesa de Direitos Sade Associaes Profissionais Outras Total 58,7 16,7 8,9 7,9 6,5 0,4 0,9 100

Grfico 4 - Tempo de trabalho voluntrio, segundo rea de atividades

7% 8%

1%

In s t it u i e s R e lig io s a s A s s is t n c ia S o c ia l E ducao D e s e n v .e D e fe s a d e D ir e it o s Sade A s s o c ia e s P r o f is s io n a is O u tra s

9%

58% 17%

Fonte: Doaes e Trabalho Voluntrio, Pesquisa do ISER, 1998, Landim, Leilah, 2000, p.54/55, Ed. 7 Letras

19

Se olharmos mais particularmente para o trabalho voluntrio, tal como praticado as instituies espritas-kardecistas17 - o tema da nossa pesquisa - veremos que est todo ele alocado nas reas de atividades, nominadas pela pesquisa de Landim (2000, p. 54/55) como Instituies Religiosas e Assistncia Social, que perfazem, respectivamente, um total de 56,7% e 16,7% de todo o trabalho voluntrio doado no pas. Embora no se tenha publicado, os percentuais de participao do espiritismo-kardecista em todo o montante de trabalho voluntrio doado no pas, segundo Giumbelli (1995, p.7), existe uma tradio academicamente reconhecida, quanto a participao ativa do espiritismo- kardecista no total de todo trabalho voluntrio realizado no pas. Contudo, afirma Giumbelli (ibidem., p. 7) que no Projeto Filantropia e Cidadania18

foi o responsvel pelo estudo das instituies espritas-kardecistas - apesar de j se

encontrar na literatura acadmica um reconhecimento da importncia, da participao das instituies espritas na rea da assistncia social, esse trabalho foi muito pouco estudado at o momento e quase nada se conhece das suas particularidades, da sua forma de organizao institucional e das peculiaridades da sua atuao no campo da assistncia social. importante ressaltar que essa participao significativa do espiritismo-kardecista no total de todo trabalho voluntrio realizado no pas, uma condio peculiar do Brasil, onde o mesmo se expandiu sobremaneira, e que merece ser pesquisada e melhor compreendida, uma vez que no acontece em outros pases, muito menos no seu pas de origem, a Frana. Segundo dados do IBGE,19 colhidos no censo Demogrfico 2000, o espiritismokardecista, conta com 2 337 432 adeptos, sendo que destes, 1 417 752 esto situados na regio sudeste. Segundo dados da Federao Esprita Brasileira, o espiritismo-kardecista, conta hoje com 8 milhes de adeptos,20 e 30 milhes de simpatizantes, incluindo nesse total aqueles que, embora no se declarem espritas-kardecistas - ao responderem perguntas sobre religio, especialmente frente a rgos oficiais - freqentam as casas espritas, em busca de ajuda espiritual para seus momentos de dor. Segundo a antroploga Cres de Carvalho17

Que se orientam pelos ensinamentos trazidos pelos espritos. Esses ensinamentos foram codificados em cinco obras bsicas por Allan Kardec a partir de 1857. No Brasil temos no sc. passado uma profuso de ensinamentos complementares, especialmente atravs da psicografia de Chico que publicou 418 ttulos em vida. 18 Projeto Filantropia e Cidadania, que estudou as organizaes civis dedicadas ao social no Brasil, realizado pelo ISER (Instituto de Estudos da Religio), financiado pela Fundao Interamericana e Coordenado por Leilah Landim, entre 1993 e 1996, Rio de Janeiro. 19 In www.ibge. net/home/estatstica/popuilao/censo2000/tabulao_avancada/tabel.... 20 In. www.aculturaonline.hpg.ig.com.br.espiritismo.htm.

20

Medina, da PUC de So Paulo, autora da tese Antropologia e Religio, o nmero de espritas no Brasil est prximo a 12 milhes.21 Segundo a pesquisa da Johns Hopkins,22 em 1995, no Brasil havia cerca de 300 mil voluntrios engajados no Terceiro Setor (fundaes, associaes comunitrias etc.) e mais de 3 milhes espalhados por organizaes religiosas de todo tipo (espritas, pastorais da igreja etc). Giumbelli (1996,p.1) na Introduo sua pesquisa - Em nome da Caridade: Assistncia Social e Religio nas Instituies Espritas que se props a fazer a avaliao do significado e da expressividade das iniciativas assistenciais filantrpicas desenvolvidas por instituies filiadas ao espiritismo-kardecista, nos relata: Assim como outras confisses religiosas, o trabalho de muitas ONGs e as iniciativas de filantropia empresarial, as instituies espritas promovem atividades tecnicamente caracterizveis pela categoria assistncia social. Mesmo se definindo por uma filiao religiosa, tais atividades cobrem pblicos bem mais amplos de que os freqentadores de cultos e reunies espritas. Se considerarmos ento, a reconhecida participao dos espritas-kardecistas no trabalho assistencial realizado no pas, atravs da Caridade - como a concebido e praticado o trabalho voluntrio - esses dados, por si mesmos apontam a necessidade de se realizar estudos e pesquisas qualitativos, que possam contribuir para a compreenso das particularidades agregadas este, quando realizado sob a gide da mxima que tomam como lema: Fora da Caridade no h Salvao.23 Giumbelli, (apud Landim, p. 43) comenta, que os espritas-kardecistas, doutrina em que a caridade ocupa posio central, so os mais propensos a fazer doaes, tanto em dinheiro, como em bens. E a maior parte dessas doaes vai para entidades dedicadas assistncia social, e no aos centros religiosos se bem que, como alguns estudos tm demonstrado, h dificuldades particulares em se separar esses dois domnios, nessa tradio religiosa. No que se refere doao de bens e dinheiro, a pesquisa de Landim (ibidem, p.43), nos informa que, os espritas-kardecistas foram responsveis por 43,6% de todas as doaes de bens e 35,9% de todas as doaes em dinheiro feitas.

21 22

In www.terra.com.br/istoegente/143/reportagens/capa_espiritismo.htm In www.estado.com.br/editorias/2001/o6/18/eco745.html: Jorge, Miguel.Voluntariado e cidadania. 23 In KARDEC, (2000, p.197), 255A Edio.

21

Tabela 5 - Doao para instituio por religioDoou $ 19,8 35,9 19,6 33,3 20,4 Doou bens 34,5 43,6 28,1 16,7 24,1 No doou 45,8 20,5 52,3 50 55,6

Evanglica Esprita Catlica Outra No tem religio

Grfico 5 - Doao para instituio por religio

60 50 40 30 20 10 0

52,3

45,8

34,5

35,9

43,6

33,3

50

55,6

Doou $ Doou bens No doou

28,1

19,8

19,6

Outra

16,7

Evanglica

Fonte: Doaes e Trabalho Voluntrio. Landim, Leilah, 2000, p.43, Ed. 7 Letras

As instituies espritas-kardecistas, participam, portanto, atravs de seus membros - os espritas-kardecistas - com ndices significativos, nas doaes de bens e dinheiro, em comparao com os membros de outras religies (Evanglica, Catlica e Outras), uma vez que doaram, respectivamente, 43,6% e 35,95% de todos os bens e dinheiro doados para instituies que prestam ajuda a pessoas em dificuldades. O significativo crescimento dos espritas-kardecistas no Brasil nas ltimas dcadas, os altos ndices de participao destes no total de todos os bens e dinheiro doados no pas, bem como os indcios de que tambm so altos os ndices de participao destes no volume de todo trabalho doado no pas, nos levam a considerar necessria, a realizao de estudos e 22

No tem religio

Esprita

Catlica

20,4 24,1

20,5

pesquisas que possam contribuir para caracterizar o trabalho voluntrio realizado nas instituies espritas-kardecistas. O trabalho voluntrio realizado nas instituies espritas-kardecistas sob a gide da Caridade fundamenta sua ao na mxima Fora da Caridade no h Salvao que agrega ao trabalho voluntrio algumas particularidades, como: a prtica do cultivo cotidiano, por cada voluntrio, dos valores morais associados prtica da caridade que, para Kardec, so os sentimentos de benevolncia, de justia e de indulgncia relativamente ao prximo, baseado no que quereramos que o prximo nos fizesse.24 as motivaes conseqentes da vinculao entre a Caridade e a salvao da prpria alma, que perpassa essa prtica do trabalho voluntrio, como compreendida e praticada no ambiente esprita-kardecista O fato da presente pesquisa ter como objeto de estudo o trabalho voluntrio em uma instituio esprita-kardecista - que agrega sua prtica a nfase no cultivo de valores morais, tanto pelo voluntrio quanto pela instituio, ao mesmo tempo que vincula a ao de ajuda ao outro salvao da prpria alma - pode ajudar na compreenso das combinaes existentes entre religio e assistncia social, entre valores associados caridade e os associados lgica da cidadania. A lgica subjacente s formas de sociabilidade no polticas, emergente no seio das mais variadas iniciativas de cunho voluntrio e associativo, se constitui em um fenmeno que est a solicitar dos estudiosos, renovadas elaboraes conceituais para ser compreendida. No Brasil esse tema das formas de sociabilidade no polticas, s recentemente comeou a ser sistematicamente estudado, tendo como um dos trabalhos pioneiros o j citado Projeto Filantropia e Cidadania no Brasil, realizadp pelo ISER, sob a coordenao geral de Leilah Landim, entre 1993 e 1996. Consideramos ento, que pesquisar o trabalho voluntrio tal como praticado em uma instituio esprita-kardecista, pode trazer contribuies ao estudo do tema, no que se refere: - compreenso do fenmeno do trabalho voluntrio realizado a partir de referncias orientadas por valores espirituais, pois se trata de uma pesquisa realizada numa institui -

24

In KARDEC, (2000 pg. 67) 255a Ed.

23

o religiosa, esprita-kardecista, distinta, neste aspecto, dos trabalhos realizados por aqueles que estudam as ONGs ou Filantropia Empresarial, mais comumente pesquisados; - ampliao da compreenso do fenmeno do trabalho voluntrio, realizado sob a gide da mxima Fora da Caridade no h salvao, a qual vincula a ao de ajuda ao outro salvao da prpria alma, atravs do cultivo dos valores morais associados Caridade;25 - identificao de elementos que ajudem na compreenso da lgica das relaes sociais relativas s formas de sociabilidade no polticas, emergentes de iniciativas variadas de cunho voluntrio e associativo; - discusso acerca da institucionalizao e profissionalizao do trabalho voluntrio, pois aborda o trabalho voluntrio a partir de indivduos, na condio de voluntrios e no a partir das organizaes, como comumente o fazem aqueles que estudam o chamado Terceiro Setor. Tambm pode trazer alguma contribuio ao estudo do tema, o fato dessa pesquisa ser realizada a partir do ponto de vista do voluntrio - tentando compreender as particularidades do trabalho voluntrio a partir de indivduos, na condio de voluntrios - o que no o comumente encontrado nas pesquisas realizadas sobre o tema em questo, que, via de regra, se reportam tica das organizaes. As possveis contribuies ao estudo do tema, advindas do fato de se pesquisar o trabalho voluntrio sob a tica do prprio voluntrio, ficam ainda mais visveis, se levarmos em conta que, nesse momento, no Brasil, o trabalho voluntrio vem apresentando uma tendncia de crescimento em vrios aspectos: - no nmero de organizaes no Brasil, segundo Goldberg, (2001,p.10), baseado em dados da Receita Federal, em 1991 existiam 220.000 organizaes da sociedade civil voltadas ao bem pblico, embora existam indcios de que esse nmero tenha dobrado desde ento; - no nmero de pessoas envolvidas, segundo Landim (2000, p.52) as pessoas que doam alguma parte do seu tempo para aes de ajuda a alguma instituio ou pes-

25

In LANDIM, (1998, p.13). Descobrimos que a caridade dos espritas kardecistas, mais do que um princpio geral, teve um peso especial na afirmao social dessa orientao religiosa em nosso pas e que essa caridade crist, entre os espritas, nunca esteve distante de idias de cidadania.

24

soa fsica fora do seu crculo de proximidades, portanto, envolvidas com o trabalho voluntrio, chegam a 19.748.388, ou seja, 22,6 % da populao adulta; - no volume de recursos financeiros movimentados pelas instituies em relao ao volume de recursos financeiros movimentados no Brasil em 1995: o setor no lucrativo movimentou R$ 10,9 bilhes de reais, o que eqivaleu a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) da poca; - na variedade de organizaes que fazem trabalho voluntrio no momento atual, o trabalho voluntrio praticado no Brasil por instituies de origem religiosa, governamental, empresarial, bem como por instituies oriundas de distintos grupos organizados da sociedade civil, como ONGs, comunidades de bairro, grupos ecolgicos, polticos etc. Esses dados apontam para a necessidade de se ouvir o voluntrio, no sentido de compreender melhor suas motivaes e necessidades e tambm no sentido de compreender melhor o significado do vertiginoso crescimento desse tipo de sociabilidade humana, permeada por conceitos de solidariedade e fraternidade nesse momento da nossa histria contempornea. Introduo pesquisa O ato de tentar descrever atravs dessa pesquisa, o trabalho voluntrio, realizado na CEA-AMIC, instituio esprita-kardecista, onde o trabalho voluntrio praticado como Caridade, e de refletir sobre seu sentido e significado no mundo contemporneo, para mim antes de qualquer outra coisa, um pequenino tributo de gratido. Gratido primeiramente a Deus e aos seus Santos Espritos, por tudo e por tanto que tenho recebido ao longo da vida, e particularmente pela direo espiritual recebida, nesses 12 ltimos anos, atravs da Caridade Moral e Espiritual, praticada pela espiritualidade dirigente da CEA-AMIC. Ponho-me, s vezes, a meditar na infinitude das mos annimas, amorosas e amigas, que tm sustentado e alimentado incansavelmente ao longo dos evos, no invisvel e no visvel, esse recndito espao, no intimssimo sacrrio de cada corao humano - e no meu prprio - onde habita uma realidade incorruptvel: a saudade de amar o amor Divino. En -

25

trar em contato vivencial com essa saudade de amar o amor Divino, atravs de uma peque nina fresta aberta no meu corao, pela Caridade Moral Espiritual recebida da espiritualidade amiga, fez-me transbordar de gratido. Como uma criana - que se sente plenamente ancorada no amor de seus pais, senti-me tomada por uma imensa vontade de contar a todos, quantos a vontade de Deus permita, que existe um lugar onde o cu sempre azul, nos faz sonhar, onde a vida consegue o sonho realizar. Apesar de no conhec-los pessoalmente, creio que existem muitos outros annimos lugares que a misericrdia divina espalhou pela Terra, onde a experincia da saudade de amar o amor divino despertada, cultivada e praticada, a exemplo das estrelas espalhadas no cu, guiando o viajor na escurido das noites. Com esse relato acredito que possa contribuir para que cada leitor - que com ele se afinar - possa recordar que no solo mais profundo do nosso corao, repousa intacta uma semente - da saudade da experincia do amor Divino - esperando que as chuvas cheguem, para brotar. Que essa saudade recordada possa ser, tambm, como um sopro sobre as cinzas que encobrem as brasas do amor ardente, escondidas nessas sementes da saudade da experincia do amor Divino. E que, aos poucos, ao longo da vida, essas brasas do amor ardente, reavivadas, possam nos conduzir a experienciar um crescimento real, na capacidade de amar o amor Divino, no cotidiano, atravs da ateno amorosa, aos simples e pequeninos detalhes do dia a dia. Hoje, com quase 52 anos, fazendo uma retrospectiva da minha vida pessoal, posso constatar que esses sentimentos, de saudade de amar o amor Divino, de estar em comunho com o amor de Deus, recordados inconscientemente, aqui e ali, atravs da ao contnua de inmeras mos amorosas e amigas, visveis e invisveis que mesmo sem que eu compreendesse claramente o que acontecia comigo ao longo do caminho - me conduziram para a experincia da prtica da Caridade. Pequeninas experincias de aproximao da prtica do amor Divino, foram sendo semeadas no territrio da minha alma, atravs das mais distintas mos: s vezes mos sofridas que pediam socorro, s vezes mos amorosas que me acolhiam ternamente nos meus momentos de dor, s vezes mos sbias e amigas, que do invisvel semeavam horizontes, auroras, pequenas douras e sonhos, para acalentar a alma em momentos ridos da travessia dos desertos de si mesma. Sinalizou-me uma vez, partejando minha alma em um momento

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delicado da minha existncia, uma dessas mos invisveis, que se identificava como um Esprito Amigo: Filha, os sonhos so como as asas dos anjos, so pedaos de Deus acordados dentro dos homens. Nunca deixes de sonhar e de levar os viajores sua volta, ao sonho sonhar. Vejo, hoje, que foi a sucesso desse conjunto de pequeninos sonhos, ao longo dos anos, que pouco a pouco foi me encaminhando at o encontro, face a face, com a prtica concreta da Caridade - tanto material, quanto moral- espiritual - Vaso Sagrado, de onde jorra em plenitude, o Amor vivo de Deus, entre os homens. Senhor, gratido eterna por essa invisvel e contnua ao dos teus Santos Espritos, as Vozes do Cu,26 que, como estrelas cintilantes, orientam o caminho do peregrino, na travessia dos desertos da alma, na escurido das noites do esprito. Essa gratido o lugar interno de onde nasceu a vontade para a realizao dessa pesquisa: um lugar grvido de reverncia e devoo a Deus e aos seus Santos Espritos. tambm o lugar de onde brotam alguns frutos dessa caminhada, em direo prtica da Caridade, feita atravs de um maravilhoso, encantado, e por vezes rduo trabalho de desvelamento sob a direo da espiritualidade amiga - de vus do egosmo, que, na interioridade da alma, encobrem essa verdade Eterna do Esprito, mantenedora da vida: a experincia viva do Amor de Deus na interioridade do corao. Uma verdadeira peregrinao na intimidade da alma, peregrinao educativa e regeneradora ao mesmo tempo, uma vez que ela foi penetrando lentamente a interioridade da alma, e pouco a pouco revelando: - tanto pequeninas paisagens, nas quais, as guas das memrias de luz, ali existentes escorriam pela paisagem, construindo singelos riachos cheios de harmonia sua volta, - quanto densas, sombrias, frias e inspitas paisagens, nas quais as guas das memrias de ausncia de luz, ali existentes, se mantinham estagnadas e criavam pntanos e alagadios onde os sentimentos de harmonia e paz, trazidos pela experincia de conexo com o amor de Deus, ainda eram completamente ausentes e desconhecidos. Parece no haver outro caminho para dessedentar a alma sedenta da experincia do

In KARDEC, (2000, p. 10) 255 a Ed. As instrues dos espritos so verdadeiramente as vozes do cu que vm esclarecer os homens e convid-los prtica do Evangelho.

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amor Divino, a no ser aquele que conduz essa alma a beber a gua da fonte da vida eterna, que no outra coisa, seno, a experincia viva do amor de Deus, na interioridade do corao. Contudo, para se chegar a essa Terra Prometida, onde habita, soberana, essa fonte da experincia viva do amor Divino, faz-se mister realizar uma delicada operao de travessia de si mesmo: a reforma ntima. Atravs dessa travessia de si mesmo, por meio da reforma ntima, possvel, ento, ir aos poucos, experimentando pequeninas vitrias, frente aos pntanos do egosmo. possvel, tambm, ir lentamente vencendo a imobilidade frente s montanhas de pedra do orgulho e aos lamaais da vaidade, que, no reconhecidos pela alma, impedem a descoberta das trilhas que conduzem at s plancies frteis da verdadeira Caridade, Terra Prometida, onde o Amor de Deus, como Sol fulgurante, resplandece a cada dia, no alvorecer de cada aurora da alma, nos horizontes lmpidos da reforma ntima. Esse se constitui, ento, num relato objetivo de uma experincia concreta da prtica da Caridade realizada na CEA-AMIC, feito a partir da experincia pessoal, vivida e contada pelos voluntrios. Nesse conjunto, inclui-se tambm a autora, que ter nessa pesquisa duas inseres: a de voluntria imersa na realidade descrita - e a de pesquisadora que observa essa realidade descrita. tambm uma espcie de testemunho vivo dos voluntrios, feito de prprio punho, de como essa prtica descrita seja Caridade Moral e Espiritual ou Caridade Material - constri mundos, tanto naqueles que a praticam como naqueles que so por ela beneficiados. A pesquisa tambm se prope a ser um olhar que observa esses testemunhos, procurando encontrar nas suas entrelinhas as regularidades que caracterizam os padres de sociabilidade encontrados nessa prtica da Caridade, como compreendida pelo espiritismokardecista, sob a gide da mxima Fora da Caridade no h Salvao, e como concretizada pelo trabalho assistencial da CEA-AMIC. Inspira-se, portanto, ao mesmo tempo, tanto nos modelos cientficos vigentes de apreenso da realidade, atravs de instrumentos objetivos de observao no caso um questionrio - quanto nos modelos qualitativos de apreenso da realidade - relato de prprio punho, em primeira pessoa - feitos por um conjunto de indivduos que, apesar das suas diferenas e idiossincrasias, tm em comum o fato de viverem uma experincia peculiar no que se refere aos padres de interao intra e inter grupos, atravs da prtica da Caridade.

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Para apreenso e descrio das particularidades dessa realidade especfica, vivida por esse conjunto de indivduos, essa pesquisa se permitiu o uso concomitante, tanto de conceitos e teorias expostas em textos considerados cientficos, pelos referenciais da cincia oficial da nossa poca, quanto de conceitos, princpios morais e valores descritos em textos escritos em linguagem filosfica, potica e teolgica que comumente no esto includos nas pesquisas cientficas. Essa pesquisa tem, portanto, em sua bibliografia, tanto textos considerados relevantes e significativos pela comunidade cientfica (Mauss, Bourdieu etc.), quanto textos de autores contemporneos ainda no plenamente conhecidos e integrados pela comunidade cientifica (Wilber, Leloupe etc.). A pesquisa adota tambm, como referncia para apreenso e descrio das particularidades da realidade em estudo, textos no comumente includos nas pesquisas consideradas cientificas na rea de Educao, tais como textos da teologia crist e esprita. So as epstolas e os evangelhos, bem como os textos organizados por Kardec, a partir da comunicao com os espritos, atravs de um mdium psicogrfico, ou psicofnico.27 Por ltimo, apiase ainda nos textos trazidos pelos espritos de Emmanuel e de Andr Luiz atravs da mediunidade de Francisco Cndido Xavier, e nos textos trazidos pelo Esprito Amigo entidade espiritual, dirigente dos trabalhos da CEA-AMIC, atravs da mediunidade de Eliana Santos, presidente da CEA-AMIC. Examina, portanto, o tema da Caridade a partir de vrios pontos de vista, ou seja atravs de vrios olhares : Scio-histrico, Teolgico, Psicotico, Antropolgico e Educacional, ao tempo em que se prope a reunir as contribuies desses vrios olhares para a reflexo acerca da Caridade - como concebida e praticada no espiritismo-kardecista e particularmente na CEA-AMIC ou seja, como um processo por excelncia, de Educao da Alma no mundo contemporneo. A concepo subjacente que orienta essa reflexo acerca da Educao da Alma, a de que a dinmica do mundo que cerca cada pessoa, grupos e instituies, bem como a que circunda a prpria humanidade em cada poca, apenas um reflexo do mundo interno, dos valores e princpios que orientam suas escolhas. Portanto, se no estamos contentes nem

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Mdium psicogrfico ou psicofnico que transmite a mensagem enviada pelos espritos atravs da escrita ou da comunicao verbal respectivamente.

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plenos com a paisagem que nos cerca - seja ela fsica, social, emocional, mental ou espiritual temos, como caminho possvel para transform-la, o ato de fazer novas escolhas, afinadas com as nossas necessidades de colheita. Para tal faz-se mister empreender um profundo processo de autoconhecimento, olhando para nossa interioridade com olhos de ver, identificando e trabalhando para reformar o que de dentro de ns mesmos mantm e sustenta essa paisagem, experienciada pelas fibras sensveis do nosso corao, como desarmoniosa e /ou catica. Nessa concepo, compreende-se que a reforma na paisagem ntima, reflete-se naturalmente na paisagem exterior, atravs de novas escolhas, novos atos, novos horizontes, tanto no que se refere vida pessoal, como vida social e espiritual. Para a realizao dessa pesquisa, levando em considerao todas as particularidades acima descritas, apoiamo-nos na emergncia das novas referncias paradigmticas para o ato do conhecimento, como as que emergiram do trabalho de Edgar Morin, Felix Guatarri e Ken Wilber, que enfrentam com inequvoca coragem os paradigmas reducionistas e simplificadores de nossa poca.28E no param a. Organizam referncias que partem do princpio bsico de que nada est isolado no universo e, se quisermos dar um passo adiante, temos que buscar as inter-relaes e interconexes presentes neles, estando atentos para o fato de que os mistrios nunca sero eliminados. Os paradigmas que esses autores constrem se fundamentam nas hipteses mais recentes, apresentadas pelas chamadas cincias da complexidade.29

Encontramos, ento, nos novos paradigmas emergentes, para o ato do conhecimento um amparo efetivo para a realizao dessa pesquisa, uma vez que alm de nosso objeto de estudo a Caridade como praticada pelo espiritismo-kardecista ter se revelado um assunto profundamente polmico no ambiente acadmico, e muito pouco estudado, um tema

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In Furlam, Vera Irm, Tese de Doutorado da Fac. de Educao da UNICAMP,1998., p.10. ibidem.

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extremamente complexo. Rene no seu bojo um espectro ampliado de fenmenos que vo desde aspectos prticos e operacionais, at aspectos scio-histricos, antropolgicos, psicoticos, educacionais e teolgicos. Torna-se ainda mais intrigante a situao dessa pesquisa no que se refere ao paradigma de conhecimento utilizado, quando consideramos que seu objeto de estudo - a Caridade como praticada pelo espiritismo-kardecista foi originalmente proposto e cunhado pelos espritos, como nico caminho salvfico, utilizando, para esse intercmbio, dos dons medinicos. Notadamente, entramos em um territrio que, de fato, s possvel ser tratado atravs de um paradigma de conhecimento que considere como passveis de serem estudados fenmenos sutis que envolvam dimenses suprasensveis da existncia, e que, portanto, se mostram transracionais, transpessoais.A crise que estamos vivendo s poder ser superada se houver a possibilidade de aprofundarmos e expandirmos nossas atuais experincias para um nvel que, segundo Wilber, pode ser realizado no contexto transracional e transpessoal. Para isso, precisamos admitir e aceitar a possibilidade de experincias mais sutis, que incluem e transcendem a dos sentidos e as da mente que, praticamente, ainda so desconhecidas pela maioria das pessoas.30

Essa pesquisa manuseia, ento, um conjunto complexo de informaes, ou seja: - informaes objetivas, colhidas atravs de observao direta ou de algumas perguntas fechadas, atravs de questionrio; informaes subjetivas, colhidas atravs de perguntas abertas anexas ao questionrio; - relatos de experincias na Caridade, feitos em primeira pessoa; informaes colhidas dos espritos, tanto indireta - textos organizados por Kardec, textos psicografados por Francisco Cndido Xavier, e tambm textos psicofonados e psicografados por Eliana Santos - como diretamente colhidos por mim em conversas com os espritos dirigentes do trabalho da CEA-AMIC, atravs da mediunidade de Eliana Santos. Na tentativa de chegar a um todo harmonioso, organizamos, ento, esse conjunto heterogneo de informaes, do seguinte modo:

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In Furlam, Vera Irm, Tese de Doutorado da Fac. de Educao da UNICAMP,1998, p. 12

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Captulo I Distintos olhares : onde reunimos uma pequena gama de contribuies de distintas reas do conhecimento humano Scio-histrico, Teolgico, Psicotico, Antropolgico, Educacional - para nos ajudar a conhecer, mais profunda e amplamente, esse fenmeno da Educao da Alma atravs da prtica da Caridade, tal como praticada pelo espiritismo-kardecista, particularmente na CEA-AMIC .

Captulo II Palavras e Atos onde descrevemos a CEA-AMIC atravs de sua obra concreta no mundo, tanto na Caridade Material quanto na Caridade Moral Espiritual, descrevendo tambm esta entidade e seu trabalho, atravs do olhar de uma voluntria, ou seja, das impresses que ficaram das experincias vividas, pela pesquisadora enquanto voluntria ao longo do processo de tornar-se trabalhadora na CEA-AMIC.

Captulo. III Tirando o vu, em que fizemos a descrio do trabalho dos voluntrios da CEA-AMIC, atravs dos dados obtidos pelas respostas de um questionrio composto de 23 perguntas, das quais trs eram perguntas abertas (anexo 2).

Captulo. IV Consideraes no Caminho, onde refletimos sobre os dados obtidos pelo questionrio, a partir dos distintos olhares aqui organizados como instrumentos de reflexo.

Nos anexos, alm de informaes mais detalhadas acerca de dados citados no corpo da pesquisa, uma cpia do questionrio utilizado, o texto integral da entrevista - especificamente feita, para essa pesquisa - com a espiritualidade dirigente da CEA-AMIC e, ainda o texto integral de uma entrevista publicada no Correio Popular - com Eliana Luiz dos Santos, dirigente da CEA-AMIC. Colocamos tambm no anexo, na ntegra, o texto O Homem de Bem, do Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec, que contm uma descrio detalhada do homem que o espiritismo-kardecista se prope a formar. O fato de ser, ao mesmo tempo pesquisadora e voluntria, criou um desafio a mais para esse exerccio, ou seja, o de pesquisar um universo do qual se faz parte. Este desafio implica no compromisso de construir - atravs da objetivao da experincia - um olhar de distncia que permita enxergar esse grupo de voluntrios - no qual se integra como volunt32

ria - tambm como pesquisadora. Um olhar que estabelea alguma distncia entre a voluntria e o trabalho voluntrio em uma instituio esprita-kardecista, apesar deste ter sido originalmente apreendido pela pesquisadora e ento voluntria - atravs da experincia de imerso dentro deste universo, como parte dele. Objetivar a experincia apreendida por imerso est sendo tomado aqui, dentro do que foi definido por Louis Pinto (1996, p. 14 ), como sendo a tarefa de construir uma ponte entre a experincia vivida e a experincia objetivada dentro do rigor cientfico. Temos conscincia de que o fato de pesquisar um universo do qual se faz parte traz vantagens e desvantagens para a pesquisa. As vantagens poderiam estar na intimidade existente entre a voluntria e o objeto de pesquisa, que poderia permitir pesquisadora que conhece por dentro a realidade pesquisada e suas significaes - apreender particularidades da experincia vivida pela voluntria. Nesse sentido, fizemos a descrio da CEAAMIC atravs das memrias de uma voluntria - no caso a prpria pesquisadora - acerca do percurso por ela vivido. Nessa descrio privilegiamos o olhar de quem apreendeu esse universo por imerso, atuando como voluntria na CEA-AMIC. Uma descrio feita, portanto, a partir das lembranas remanescentes das experincias vividas enquanto voluntria da CEA-AMIC, a partir de fevereiro de 1995. A nossa proposta submeter esse breve memorial das experincias vividas como voluntria, e resgatadas pela lembrana, ao olhar da pesquisadora, que busca encontrar regularidades relevantes na atuao dos agentes do fenmeno estudado, no nosso caso, o trabalho voluntrio em uma instituio espritakardecista, a CEA-AMIC. A desvantagem em ser, ao mesmo tempo, voluntria e pesquisadora, poderia, ento, ser encontrada na dificuldade em ultrapassar o olhar de quem apreendeu essa realidade que agora objeto de pesquisa - de modo ingnuo e, portanto, no consegue deslocar-se da posio de imerso e olhar de fora e com distncia o seu objeto de pesquisa. Nesse sentido, ento, decidimos buscar recursos metodolgicos que nos ajudassem a construir as distncias necessrias entre o olhar da voluntria e o da pesquisadora, possibilitando, assim, a identificao das regularidades possveis de serem encontradas no nosso objeto de estudo - o trabalho voluntrio em uma instituio esprita-kardecista, a CEAAMIC por uma pesquisadora ento voluntria. 33

Com esse propsito, ento, levamos em conta o princpio durkheimiano de que devemos tratar os fatos sociais como coisas,31 as quais, para conhecermos, precisamos, inicialmente, observar e descrever objetivamente; e decidimos iniciar nosso trabalho, reunindo alguns elementos que pudessem nos ajudar a construir essa objetividade no olhar. Para tal, demos, inicialmente, os seguintes passos: - descrio dos vrios tipos de instituies que fazem hoje trabalho voluntrio no Brasil. Com esse objetivo, recolhemos na literatura disponvel sobre o assunto, dados que nos permitissem visualizar algumas de suas caractersticas, um pouco da histria dessas instituies e algumas pinceladas sobre o momento pelo qual est passando a prtica do trabalho voluntrio no Brasil e dentro do qual se insere a CEA-AMIC; - descrio da CEA-AMIC atravs da sua obra, ou seja, atravs dos dados objetivos que traduzem sua ao no mundo, descrevendo o tipo de ao realizada, as pessoas a quem cada ao destinada e sua abrangncia; - pesquisa com os voluntrios da CEA-AMIC atravs da aplicao de um questionrio, em um grupo de 81 alunos da Escola Emmanuel, que trabalham como voluntrios na CEA-AMIC. Atravs do questionrio, procuramos inicialmente colher algumas informaes que pudessem nos ajudar a compreender quem so as pessoas que se tornaram voluntrias na CEA-AMIC, ou seja o perfil que elas apresentam, no sentido da histria social por elas vivida e das experincias associativas que viveram, bem como os motivos condutores dessas pessoas at a CEA-AMIC. Em seguida, ainda atravs do questionrio, procuramos colher informaes que nos ajudassem a compreender o trabalho voluntrio como realizado na CEA-AMIC, fundamentadas no que os voluntrios relatam: acerca do que encontraram na CEA-AMIC, acerca do trabalho voluntrio do qual participaram na instituio, bem como dos motivos pelos quais permaneceram vinculados ao trabalho voluntrio. Nesse sentido, revelaram-se particularmente ricas, as informaes indiretas, ou seja aquelas encontradas nas entrelinhas das respostas dadas pelos voluntrios.In PINTO, Luis (1996, p.13 ). Esse sentido dado por Durkheim ao conhecimento sociolgico reflete a experincia peculiar de qualquer pesquisador que se esfora por substituir as impresses particulares por um corpo de conhecimentos to independentes quanto possvel de sua relao primitivamente estabelecida com o mundo social; e se as coisas do mundo fsico servem de modelo aos objetos do conhecimento sociolgico precisamente em razo do carter de exterioridade que elas possuem de forma imediata e tangvel.31

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medida que comeamos a manusear as respostas do questionrio, foi ficando cada vez mais visvel a importncia, para essa pesquisa, das particularidades agregadas a esse trabalho voluntrio, praticado sob a gide da Caridade,32 dentro de um contexto de busca de salvao da alma, como feito no espiritismo-kardecista e tambm na CEAAMIC. Algumas perguntas comearam a ficar muito presentes: - o que, ento, caracteriza e particulariza essa forma de prestar ajuda ao prximo, chamada Caridade, nas instituies espritas-kardecistas e, mais especificamente na CEA-AMIC; - que experincias esse trabalho de Caridade proporciona a cada uma dessas pessoas que chegou CEA-AMIC e permaneceu trabalhando como voluntrio, vrias delas h mais de 5 anos; - o que essa forma de prestar ajuda ao prximo, chamada Caridade, oferece de significativo para essas pessoas, e o que significa essa significncia? Buscamos, ento, encontrar nas respostas dadas pelos voluntrios, elementos que nos ajudassem a compreender esse contedo acerca da prtica da Caridade, relacionando as informaes sobre a histria social, as experincias associativas anteriores e os motivos condutores at CEA-AMIC, com as informaes que os voluntrios apontam: - acerca do que encontraram na CEA-AMIC; - acerca dos motivos que os levaram a permanecer como voluntrios; - acerca do trabalho voluntrio que realizaram; - acerca do tempo que trabalham como voluntrios na CEA-AMIC. Em seguida, pareceu-nos significativo tentar compreender um pouco mais acerca das relaes existentes entre esses dois universos, ou seja; esse trabalho assistencial voluntrio, realizado pela CEA-AMIC, sob a gide da Caridade, e essas pessoas - os voluntrios. Quem so? O que os aproxima, os rene e os mantm vinculados na prtica da Caridade? Algumas novas perguntas foram surgindo e orientando nossas reflexes a seguir, ou seja:

In KARDEC (1991, p. 342) 255 a Ed. A caridade, segundo Jesus, no est restrita esmola. Ela abrange todas as relaes que temos com nossos semelhantes, quer sejam nossos inferiores, nossos iguais ou nossos superiores.Ela nos ordena a indulgncia porque ns mesmos temos necessidade dela.

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- por que o trabalho da CEA-AMIC agrega e mantm essas pessoas por vrios anos comprometidas com essa prtica de trabalho voluntrio a Caridade - enquanto comum encontrar no ambiente das instituies que fazem trabalho voluntrio, a questo da rotatividade dos voluntrios, como um dos problemas ainda no resolvidos? - o que ter significado para essas pessoas esse processo de se aproximar e permanecer vinculadas como voluntrio a esse tipo especfico de trabalho, realizado numa instituio esprita-kardecista, sob a gide da Caridade? - quais os aspectos da vida dessas pessoas, que foram envolvidos no processo de chegar, ficar, se integrar e permanecer como voluntrio no trabalho da CEAAMIC? - como esses voluntrios integraram s suas vidas esse trabalho de ajudar outras pessoas em uma instituio esprita-kardecista em que ele chamado de Caridade? - por qu e para qu essas pessoas permanecem aqui como voluntrias, nesse trabalho especfico, vinculado a uma instituio esprita-kardecista,e no em tantos outros que atendem mesma populao, inclusive vinculados a outras instituies religiosas? - a partir do qu, e como o trabalho da Caridade agrega e mantm essas pessoas vinculadas na prtica do trabalho voluntrio? - quanto queles que se aproximaram, ficaram algum tempo e no permaneceram, por que foram embora? medida que comeamos a manusear o questionrio, tendo essas perguntas como pano de fundo, foi ficando cada vez mais visvel, atravs das respostas, o lugar de importncia ocupado pela prtica da Caridade Pessoal ou Reforma ntima, a qual era apontada pelos voluntrios como motivo principal para a permanncia inicial na CEA-AMIC. Foi se delineando tambm um lugar de condicionalidade ocupado pela Caridade Pessoal ou Reforma ntima em relao prtica da Caridade para com o Outro na CEA-AMIC. Ao mesmo tempo em que a natureza condicional do vnculo entre a Caridade Pessoal ou Reforma ntima, e a Caridade para com o Outro na prtica da Caridade proposta na CEA-AMIC - foi ficando mais visvel, sentimos a necessidade de buscar elementos que nos ajudassem a compreender melhor o significado dessa particularidade, que se agregava ao 36

trabalho voluntrio, quando este era realizado sob a gide da Caridade, como compreendida pelo espiritismo-kardecista. Fez-se, ento, necessrio tornar mais claros esses princpios orientadores da Caridade Pessoal ou Reforma ntima, como concebidos pelo espiritismokardecista e praticados na CEA-AMIC. Aos poucos, foi ficando mais perceptvel que essa proposta da prtica da Caridade Pessoal, ou Reforma ntima, como condio para a prtica da Caridade para com o Outro, implicava em que o voluntrio revisse e adequasse os valores morais, orientadores da sua conduta na CEA-AMIC, aos valores cristos. Nesse momento, achamos necessrio buscar elementos que nos ajudassem a compreender um pouco mais acerca do processo subjacente prtica da Caridade Pessoal ou da Reforma ntima, no tocante a essa prtica de aperfeioa mento moral, com bases nos valores cristos. Com essas perguntas e essas relaes - que foram se configurando, medida que manusevamos as respostas dos questionrios visveis, comeamos a sentir a necessidade de buscar novos elementos que pudessem nos ajudar a compreender um pouco mais a natureza e a dinmica dessa rede invisvel que liga pessoas diversas, com objetivos diversos, histrias de vida diversas, em torno de um trabalho comum de ajuda s pessoas em dificuldades, dentro de uma instituio esprita-kardecista. Como toda instituio desta natureza, a CEA-AMIC realiza seu trabalho assistencial sob a gide da mxima Fora da Caridade no h salvao, vinculando a ao de ajuda ao prximo dos voluntrios - salvao da prpria alma, atravs da prtica da Caridade33 e do cultivo, dentro desta prtica, dos valores morais a ela associados. medida que fomos progredindo nessa busca de elementos que pudessem nos ajudar a ampliar nossa compreenso acerca do trabalho voluntrio, como praticado nas Ins tituies espritas-kardecistas - sob o nome da Caridade fomos constatando a complexidade que envolvia nosso objeto de pesquisa, que se expressava, por exemplo, atravs da relaes de condicionalidade que vinculava sua prtica reviso e adequao do voluntrio aos valores morais cristos. Comeamos, ento, a sentir a necessidade de tentar olhar para esse fenmeno a Caridade como concebida pelo espiritismo-kardecista, e como pra-

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In KARDEC (1991, p.341). O amor e a caridade so o complemento da lei de justia, porque amar o prximo fazer-lhe todo o bem que est ao nosso alcance e que gostaramos nos fosse feito a ns mesmos. Tal o sentido das palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros como irmos.

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ticada na CEA-AMIC - a partir de distintos pontos de vista, numa tentativa de ampliar nosso espectro de observao, e nossa possibilidade de apreenso das suas particularidades. Decidimos, ento, buscar em distintos referenciais de conhecimento, coexistentes em nossa poca nossa herana gnstica - elementos que nos permitissem olhar para o trabalho voluntrio, como praticado nas Instituies espritas-kardecistas - onde chamado de Caridade e particularmente na CEA-AMIC, a partir de diferenciados pontos de observao, atravs dos quais pudssemos tangenci-lo, como fenmeno complexo que , na amplitude e profundidade possvel de ser abarcada pela integrao desses distintos olhares.

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teus olhos so a lmpada do corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo ser luminoso; mas se

forem maus , o teu corpo ficar em trevas. Lucas, 11:3439

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CAPTULO I . Distintos olhares A necessidade dos distintos olhares, foi, ento, emergindo, pouco a pouco, medida que fomos nos aprofundando no tema e descobrindo as dificuldades implcitas em avanar na compreenso da prtica desse tipo de trabalho voluntrio - como praticado nas instituies espritas-kardecistas, onde chamado de Caridade que, alm de ter caractersticas bem peculiares, ainda muito pouco estudado at o momento. Tanto no Brasil, onde a prtica da Caridade como concebida pelo espiritismo-kardecista, encontrada com maior freqncia, quanto no mundo, onde ela pouco conhecida e pouco praticada como tal,34 esse tema foi muito pouco tomado como objeto de pesquisa. Ao fazermos, ento, a opo de estud-lo, como aqui nos propomos, ou seja, a partir do ponto de vista dos voluntrios, temos que arcar com o fato de comear, praticamente, do ponto zero, como atesta a bibliografia disponvel sobre o tema especfico. Decidimos, ento, buscar primeiramente elementos que nos ajudassem a localiz-la a Caridade - scio-historicamente, tanto em relao s demais nuanas com as quais o trabalho voluntrio vem sendo realizado na Terra Brasilis, desde os primrdios do seu descobrimento, quanto em relao ao que vem acontecendo com o trabalho voluntrio, no momento atual. medida que fomos avanando nessa localizao, foi ficando cada vez mais delineada a importncia agregada ao trabalho voluntrio, tal como praticado nas instituies espritas-kardecistas, sob a nome da Caridade e sob a gide da mxima Fora da Caridade no h Salvao - do aspecto religioso, no sentido de religare, religao com Deus, caminho de salvao da prpria alma. A partir desse momento, comeamos a sentir a necessidade de buscar elementos que nos ajudassem a compreender a Caridade, teologicamente, ou seja, como concebida e proposta na Doutrina esprita-kardecista. Com esse objetivo, comeamos a pesquisar a conceituao e a descrio da prtica da Caridade nos textos bsicos do Cristianismo, ou seja, nos Evangelhos - que so apontados por Kardec como fundamento para o espiritismoApesar do espiritismo-kardecista, ter sido fundado na Frana, em 1857, por Allan Kardec, ele cresceu sobremaneira no Brasil, onde, conforme dados do IBGE, a 3a religio do pas com cerca de 3 milhes de adeptos. Segundo Durval Ciamponi, presidente da Fed. Esprita de So Paulo O nmero de espritas brasileiros salta para 20 milhes se incluirmos todos os que vo a centros. In www.terra.com.br/istoe/1710/comportamento/1710_do_outro_lado_vida_2.htm34

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kardecista - e nas Epstolas. Estas so cartas de orientao espiritual, escritas pelos apstolos queles a quem eles tinham levado a Boa Nova, aps a morte de Jesus; nos textos revelados pelos espritos e codificados por Kardec, nos textos escritos pelo prprio Kardec, bem como nas prelees35 feitas pela espiritualidade dirigente36 da CEA-AMIC, atravs das quais feita uma detalhada reflexo sobre os princpios cristos, que orientam o trabalho de Caridade nesta Instituio. Atravs dessa pesquisa sobre a Caridade nos textos que fundamentam a Teologia esprita-kardecista-crist, fomos, ento, dando nome experincia por ns vivida, dentro da CEA-AMIC, e compreendendo que o trabalho voluntrio, como praticado no espiritismokardecista sob o nome de aridade, uma proposta de ajuda mtua e simultnea. Ou seja, medida que a pessoa presta uma ajuda amorosa ao outro - necessitado e desconhecido ela, na verdade, est, ao mesmo tempo, prestando uma ajuda a si mesma, ao expandir sua capacidade de amar e se aproximar da experincia do amor Divino concretamente, prtica que o espiritismo-kardecista chama de Cristianismo redivivo. Contudo, para que essa expanso na capacidade de amar o amor Divino concretamente acontea, necessrio que o voluntrio interessado em praticar esse tipo de trabalho voluntrio, como praticado nas Instituies espritas-kardecistas, sob o nome de Caridade - coloque o seu aperfeioamento moral como prioridade mxima, no dia a dia da sua vida. Essa priorizao, quando levada aos pequenos detalhes do cotidiano, funciona como mola propulsora para a expanso da sua capacidade de amar o amor Divino concretamente. Nesse sentido, ento, o aperfeioamento moral de cada voluntrio se transforma em uma questo central para a prtica da Caridade, como concebida pelo espiritismokardecista, tanto para o prprio voluntrio - no que diz respeito condicionalidade existente entre seu aperfeioamento moral, e seu avano na prtica da Caridade para com o Outro quanto para a prpria Instituio - no que se refere condicionalidade existente entre o avano moral dos seus voluntrios, e a possibilidade de expanso do seu trabalho de Caridade para o outro necessitado e desvalido. Dentro do ambiente da CEA-AMIC convive-se, cotidianamente, com o conceito de que primeiro Deus prepara o homem especialmente no sentido moral-espiritual - depois ele d o trabalho, e com a prtica do trabalho aparecem,35

Prelees na CEA-AMIC, prelees o nome dado s comunicaes psicofnicas feitas pelas entidades espirituais, atravs da mdium falante, Eliana Santos. 36 Espiritualidade Dirigente- entidades espirituais que dirigem espiritualmente o trabalho da CEA-AMIC.

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cada vez mais, as pessoas e as necessidades, s quais esse trabalho est destinado a atender, quanto os recursos para supri-las, se esse homem se mantm fiel ao seu mandato na Caridade. Decidimos, ento, pesquisar quais aspectos eram considerados pela Doutrina esprita-kardecista importantes nessa prtica de aperfeioamento moral, atravs da prtica da Caridade Pessoal ou Reforma ntima, sustentada nos ensinamentos morais trazidos por Jesus de Nazar, comentados pelos espritos e codificados por Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Com essa compreenso ampliada acerca do processo de aperfeioamento moral proposto pelo espiritismo-kardecista - atravs da Caridade Pessoal ou Reforma ntima buscamos elementos que nos ajudassem a localiz-lo, dentro das concepes