A EDUCAÇÃO DE MULHERES ENCARCERADAS

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Educação na prisão.

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  • A EDUCAO DE MULHERES ENCARCERADAS

    S devassamos o mistrio na medida em que o encontramos no cotidiano.

    Walter Benjamim

    Rosilene Amorim dos Anjos1

    Resumo: Este artigo baseia-se numa experincia profissional por ns vivenciada no Presdio Feminino de Florianpolis durante o ano de 2003. Ele revela as mltiplas dificuldades que enfrentamos para proporcionar oportunidades de aprendizagem s dezenas de mulheres que se encontravam presas espera de julgamento. Entre estas, a principal que desencadeia todas as outras, a inoperncia do sistema penitencirio para resgatar indivduos atravs de uma reeducao. Indivduos estes que so no presdio feminino, na sua grande maioria, mulheres pobres e de pouca escolaridade, que esto marginalizadas dentro da atual sociedade capitalista. Palavras Chaves: Mulheres. Presdio. Educao. Marginalizao.

    Abstract: This article is based on a professional experience in the Women's Prison of Florianopolis during the year 2003. It reveals multiple difficulties that we faced in providing learning opportunities to dozens of women waiting for trial. Among these difficulties, the most important one, which is the source of the others, is the penal system lack of attitude in order to "rescue" individuals through re-education. Individuals who are in jail are maily poor women with almost no education, who are marginalized in modern capitalist societies. Key-Words: Women. Prison. Education. Marginalization.

    No presdio feminino da Penitenciria de Florianpolis, em 2003, estvamos com

    uma superlotao de reclusas. O nmero de mulheres detentas girava em torno de 30 e passou

    para 70, acima do nmero que a estrutura fsica comporta.

    So mulheres de vrias partes do Brasil, principalmente do interior do Estado de

    Santa Catarina, alm de mulheres paraguaias e tambm uma italiana. Algumas foram presas

    juntas, ou por causa de crimes cometidos junto com seus parceiros. Muitas destas pararam os

    seus estudos porque juntaram-se com um parceiro e sentiam-se com novas obrigaes, porm,

    enquanto estavam ss, conseguiram continuar os estudos.

    Fizemos alguns levantamentos, entre eles o nvel de escolaridade, antes de

    iniciarmos o trabalho como educadora de 1a 4a srie. Na medida em que fazamos a

    entrevista com cada detenta para obtermos dados que nos auxiliariam no conhecimento da

    realidade com a qual iramos desenvolver o trabalho, fomos tambm estimulando-as a

    1 Possui graduao em Pedagogia Orientao Educacional pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2001) e graduao em Pedagogia Sries Iniciais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2003). Atualmente Pedagoga da Prefeitura Municipal de Florianpolis.

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    retornarem aos estudos, tentarem a possibilidade de ir se graduando enquanto permanecessem

    dentro do presdio.

    Contudo, observamos num levantamento de dados que havia um nmero

    considervel de pessoas que concluram o Ensino Bsico (de 1a 4a srie), tendo um nmero

    maior de pessoas que tinham parado seus estudos entre a 5a e 8a srie incompleta. Sendo

    assim, pela primeira vez, tentamos desenvolver, alm do trabalho de alfabetizao e o

    integrado (como denominamos as turmas de 2a, 3a e 4a srie, que so trabalhadas num mesmo

    grupo), o supletivo do Ensino Fundamental e o Ensino Mdio. Estes nveis tinham, at o

    momento, inscries para as provas supletivas realizadas pelo Estado, entrega de alguns

    materiais quando solicitados pelas detentas e aules (parecidos com as aulas finais de

    cursinhos pr-vestibulares) prximos do dia das provas, com professores de rea que

    trabalhavam na Penitenciria, com ateno prioritria aos homens do regime fechado e semi-

    aberto. Montamos um quadro de dias e horrios para atender todas as detentas que disseram

    estar interessadas em estudar, incluindo aquelas que haviam terminado seus estudos na 5a

    srie em diante; mas, continuaramos com uma nica professora no presdio feminino.

    Avistamos, no entanto, em pouco tempo de trabalho, alguns problemas que no cotidiano

    ficam claros.

    No incio do ano, j estavam ocorrendo desistncias. Algo estava errado, algumas

    moas desistiram sem mesmo comear as aulas, outras foram desistindo na primeira semana.

    Investigamos e ficamos sabendo que isto era comum, principalmente no presdio feminino.

    Observamos uma rotatividade expressiva das detentas, alm de uma grande ansiedade

    espera do julgamento, que decidiria por uma condenao ou pela liberdade;

    conseqentemente, tivemos uma baixa no nmero de alunas na escola logo aps as inscries.

    Muitas detentas no se animam a retornar aos estudos, existe a saudade; e para algumas, a

    preocupao com os filhos no as deixam em paz; esperam com ansiedade sua sada (j que o

    processo de julgamento lento); por tambm no verem mais significado no que a escola

    oferece para o que precisam no seu cotidiano. Sabemos que a escola trabalha seus contedos

    sem perguntar-se porque os ensina, simplesmente recebe pacotes e os trabalha sem muitas

    reflexes. No nos dada a educao que abre espao para o pensar e poder mudar, atuar na

    histria que construda por todos ns, estando consciente de seu papel como personagem

    que pode fazer diferena, imprimindo qualidade nas variadas cenas, mudando o roteiro. O

    sistema penitencirio, como dizia Foucault (2003, p.143), adestra as multides confusas,

    mveis, inteis de corpos e foras para uma multiplicidade de elementos individuais que serve

    de depsito, atuando como poder disciplinar, adestrando para se apropriar das foras dos

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    indivduos para que estes se incluam numa sociedade de desigualdades, o que nos faria

    refletir uma nova forma de atendimento educacional ao Presdio Feminino.

    Por isso, a educao teria que se fazer presente, mostrar sua existncia, conquistar

    seu espao, possibilitar uma chance, tentar romper barreiras. Apesar de a ascenso social via

    escolaridade hoje ser, de certa forma, uma iluso, , porm, uma iluso fecunda. A escola no

    vai garantir um futuro promissor, porm, potencializa as classes populares para a conquista de

    uma cidadania ativa, para autonomia, e busca de direitos igualitrios fazendo juz palavra

    democracia. Um dos principais motivos que as levou a priso foi a falta de oportunidade

    escolar, de encontro com o conhecimento sistematizado (sem desvalorizar outras formas de

    saber). Segundo Arroyo (2002), a escola, a educao e seu ofcio sofrero sempre as

    contradies da lgica capitalista. Desejando ver o direito de educao nas mos daquelas que

    um dia lhes foi tirado, busquei caminhos.

    Os educadores/as devem ser conscientizadores/as para se tornarem semeadores de

    justia social, uma vez que conscientizando, estaro dando poder. Quem conhece sabe o que

    quer e aonde vai, no manipulado feito marionete. Hoje, no entanto, quantas marionetes

    existem no Brasil e no mundo? Os nmeros podem falar, mas a violncia, a fome, o

    desemprego, o aumento de prises, a poltica suja que tm gritado mundo afora. Isto , nada

    mais, nada menos, a falta de conscientizao2 de um grande nmero da populao mundial.

    A conscincia do mundo e a conscincia de si crescem juntas e em razo direta; uma a luz

    interior da outra. Evidencia-se a intrnseca correlao entre conquistar-se, fazer-se mais si

    mesmo, e conquistar o mundo, faz-lo mais humano. (FREIRE, 2004, p.15) O acesso

    educao fundamental para haver a alternativa de se alcanar projetos sociais. Esta

    oportunidade tirada de vrias pessoas, as excludas, que no consomem, marginalizadas

    (que esto margem do rio, sem ter condies de prosseguir com ele) e portanto, continuaro

    s margens da sociedade.

    O primeiro semestre foi de conquista e estmulos para retornarem ao mundo dos

    estudos. J no segundo semestre, aps as frias do meio do ano, encontramos novos

    obstculos. O presdio feminino agora tinha muitas tarefas: trabalho com peas da Intelbrs,

    peas de grampo de roupa e a informtica. O trabalho com certeza iria benefici-las, j que

    precisam de dinheiro; estes trabalhos estavam explorando uma mo-de-obra barata porque era

    necessitada, o que no muito diferente do que ocorre no mundo fora dos muros do presdio.

    2 Conscientizao: segundo o dicionrio Houaiss, significa ato ou efeito de conscientizar-se, tomada de conscincia da natureza das relaes humanas dentro da sociedade em que se vive, da relao explorado/explorador, e de como atuar para modificar essa relao.

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    O problema principal, agora, residia no espao que tinha sido diminudo para a escola: espao

    fsico e temporal. Alm do mais, as religies que freqentam o presdio tambm ocuparam

    mais um pouco do nosso espao, s que o espao fsico principal, nossa sala de aula, no

    perodo vespertino (perodo de atendimento das alunas de 5a a 8a maioria). Agora, tnhamos

    que trabalhar em qualquer canto vago ou no ptio (descoberto). Assim, uma opo foi iniciar

    atendimento individual. Tambm, realizamos integrao com o grupo de informtica. As

    alunas faziam redaes, digitavam e depois amos para as correes juntas, verificando

    ortografia, estudando um pouco de gramtica e trabalhando questes individuais relacionadas

    escrita e leitura de texto e de mundo. Este trabalho individual foi muito importante, nos

    possibilitou verificar mais de perto as dificuldades de cada uma. Tentamos transformar os

    males em benefcios; era a persistncia nos fazendo companhia.

    Por outro lado, onde ficava a importncia que se deveria dar educao escolar?

    Quando conseguamos estudar em grupos, tnhamos sempre problemas do tipo

    Hoje no posso porque meu dia de limpar a cozinha, ou, o quarto.; Hoje eu vou para o

    dentista.; A assistente social est chamando a Fulana.; A psicloga quer conversar com a

    Ciclana.; Vou pro encontro ntimo.. Episdios deste tipo poderiam ser solucionados se

    antes das alunas serem chamadas para qualquer outra atividade pudesse ser visto o horrio de

    aula para verificar se no estavam em sala naquele momento.

    Por isso os instrumentos bsicos para trabalhar em um ambiente como o presdio

    so pacincia e perseverana para tentar ameniz-lo de todas as formas possveis, para que a

    escola seja atrativa por sua funo, seu ambiente fsico e sua harmonia e afeto atravs de

    quem est por trs deste trabalho de educao. Fizemos ento trabalhos que incluram no s

    as alunas como outras mulheres detentas, e registrados com anotaes e fotos, o que

    consideramos excelente, j que tnhamos como objetivo manter um nmero considervel de

    alunas na escola e atingir por outras formas aquelas que no estavam participando

    diretamente. Um trabalho muito prazeroso foi a pintura do espao da sala de aula. A

    organizao deste foi uma das formas que arrumamos para um maior envolvimento, e de fato,

    acabou se tornando um cantinho do cu como elas mesmas diziam. Outras formas foram:

    um concurso de poesias para o dia das mes; o primeiro jornal feito pelas prprias detentas,

    cujo ttulo, escolhido em votao por todas, foi VOZES DO SILNCIO, j que, ensinar

    exige compreender que a educao uma forma de interveno no mundo (FREIRE, 2003:

    p.98), e, mesmo detidas, deve existir formas de continuarem exercendo cidadania; a criao

    de uma biblioteca (no incio devia existir de 5 a 10 livros e umas enciclopdias bem velhas e

    sem uso algum, a no ser para os paranhos das aranhas) era o incio, e portanto ainda muito

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    simples, mas j havia revistas, textos atuais, dicionrios e livros de literatura. Tivemos a

    participao de alguns convidados que trabalharam biblioterapia, teatro, aulas de arte e

    palestras como visitantes. Era a educao sendo construda atravs dos interesses de alunas,

    tambm de outras mulheres, e despertando curiosidade e vontade de conhecer dentro do nosso

    processo educacional.

    O trabalho educacional, realizado no Presdio Feminino de Florianpolis em 2003,

    foi uma grande experincia. Pudemos sentir de perto algumas pequenas3 dificuldades de se

    fazer educao. Os Complexos Penitencirios, cujo propsito conceitual est em reeducar

    os detentos(as), na verdade tm demonstrado sua incapacidade de atingir a meta. Todavia no

    um sistema falido, pois adestra multides confusas para se apropriar das foras dos

    indivduos como diria Foucault, para que estes se incluam numa sociedade de desigualdades.

    Por isso, so oferecidos dentro do complexo subempregos, algumas vezes, e na maioria, o

    nada (para que os pensamentos atormentem os corpos presos, mas, com suas mentes ligadas

    ao sonho de liberdade). verdade que comida e religio no faltavam, mas prioridade

    educao... Afinal de contas, educao deve estar intrinsecamente ligada conscientizao.

    REFERNCIAS

    ARROYO, Miguel G. Ofcio de mestre: imagens e auto-imagens. 6. ed. Petrpolis: Vozes, 2002.

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. 27. ed. Petrpolis: Vozes, 2003.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 28. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2003.

    _____ . Pedagogia do oprimido. 38. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2004.

    Rosilene Amorim dos Anjos E-mail: [email protected]

    Recebido: 05/04/2004 Aprovado: 06/12/2005

    3 No nos referimos Direo, que tambm teve suas falhas, mas tambm auxiliou em pontos importantes. Estamos nos referindo principalmente ao sistema penitencirio como um todo.