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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA INDÍGENA: A CIDADANIA E A
EMANCIPAÇÃO INDÍGENA EM QUESTÃO.
KEROS GUSTAVO MILESKI
MARINGÁ
2013
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA INDÍGENA: A CIDADANIA E A
EMANCIPAÇÃO INDÍGENA EM QUESTÃO.
Dissertação apresentada por KEROS GUSTAVO
MILESKI ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual de Maringá,
como um dos requisitos para a obtenção do título
de Mestre em Educação.
Área de Concentração: EDUCAÇÃO.
Orientadora:
Prof.a Dr.ª: Rosangela Célia Faustino.
MARINGÁ
2013
KEROS GUSTAVO MILESKI
A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA INDÍGENA: A CIDADANIA E A
EMANCIPAÇÃO INDÍGENA EM QUESTÃO.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Profa. Dra. Rosangela Célia Faustino (Orientadora) – Universidade
Estadual de Maringá
______________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Antonio Deitos. Universidade Estadual do Oeste
do Paraná – UNIOESTE – Cascavel-PR
______________________________________
Profa. Dra. Rosângela Aparecida Mello – Universidade Estadual de
Maringá UEM
______________________________________________________
Profª Drª. Elma Julia Gonçalves de Carvalho – Universidade
Estadual de Maringá - UEM
2013
À todos aqueles que lutam pela Revolução
Socialista e superação do Capitalismo
À Janice Carina Groth (in Memorian).
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família por compreender o momento de dedicação aos estudos em que
me encontro e, sobretudo, por compreender que os sacrifícios e ausências por tal dedicação
exigidos não me afastam do amor a eles dedicados.
Agradeço à professora Rosangela Célia Faustino, pela dedicação e exemplo de seriedade
com que leva seu trabalho, pela sabedoria, paciência, orientação e amor que dedica a cada
um de nós, seus orientandos. Pelo estímulo e força compartilhados nos momentos de
inquietações e dúvidas, e de necessária resistência frente à luta contra o sistema capitalista
injusto e opressor.
Aos professores Roberto Antonio Deitos, Rosângela Aparecida Mello, Elma Julia
Gonçalves de Carvalho que compuseram a banca, cujas correções e críticas contribuíram
grandemente à condução deste trabalho.
Aos professores do corpo docente do Programa de Pós Graduação em Educação da
Universidade Estadual de Maringá.
Ao Hugo Alex da Silva e à Márcia Galvão da Motta Lima.
Ao professor Lúcio Tadeu Mota, pela sabedoria e entendimentos compartilhados e que são
imprescindíveis ao nos aproximarmos das populações indígenas, pelo exemplo de
dedicação aos estudos e à causa indígena.
À Telma Adriana Pacífico Martineli pela amizade e companheirismo nos estudos, pelas
conversas, orientações e críticas que ajudaram direta e imensamente minha formação
acadêmica e a construção desse trabalho.
À Maria Simone Jacomini Novak pela amizade e companheirismo nos trabalhos
desenvolvidos no laboratório, pelas conversas, orientações que me ajudaram ao longo do
trabalho com as populações indígenas.
Aos colegas de laboratório Aluízio, Paulo, Vanessa, Mariana, Marcella, Jefferson, Luciana
e Rita, Irineu, Sônia, Eliane, Wilson e Marcos, pelo companheirismo nas atividades diárias
realizadas.
Aos amigos do Grupo de Leituras do Capital, em especial à Rosângela Aparecida Mello e
ao Ademir Quintilio Lazarini.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pelo financiamento que
possibilitou a pesquisa.
Aos amigos Kleverson, Ronaldo, Tiscianne, Glauco, David, Renan, Alex, Flávia e Vanda
minha caminhada neste mundo é impar ao lado de vocês.
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS ............................................................................................................ 10
RESUMO ............................................................................................................................ 12
ABSTRACT ........................................................................................................................ 13
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 14
1.1 A pesquisa .................................................................................................................. 20
2. EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL: BREVE
CONTEXTO HISTÓRICO. ................................................................................................ 24
2.1 A organização da sociedade nascente das entranhas do mundo feudal: o contexto da
constituição da escola para todos ..................................................................................... 26
2.2 A educação física e seu contexto histórico moderno: a importância de compreendê-la
a partir do materialismo histórico .................................................................................... 32
2.3 A expansão capitalista e as populações indígenas no Paraná .................................... 41
2.4 A educação escolar indígena no Brasil ...................................................................... 46
2.5 Crises econômicas, mundialização financeira do capital e os ajustes políticos da
década de 1990 ................................................................................................................. 52
3. DELINEAMENTOS POLÍTICOS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO
BRASIL: A RETÓRICA DOS DOCUMENTOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS. . 58
3.1. O Referencial Curricular Nacional Para As Escolas Indígenas ................................ 58
3.2. O Relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização das
Metas de Desenvolvimento do Milênio ......................................................................... 103
3.3. Relações do RCNE/Indígena e do Relatório O Esporte para o Desenvolvimento e a
Paz: em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio: o discurso das
agências internacionais .................................................................................................. 115
4. A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA EDUCAÇÃO FÍSICA: A PRODUÇÃO
CIENTÍFICA DO CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE (2001 a
2011) .................................................................................................................................. 124
4.1 A temática indígena na produção científica do CONBRACE ................................. 125
4.2. Síntese geral dos artigos: natureza indígena, emancipação e educação.................. 157
4.3. O Multiculturalismo e a Interculturalidade como fundamentos de uma educação para
a diversidade: o contexto histórico que não se relata ..................................................... 166
4.4 Escola indígena e a formação para a Cidadania e Emancipação ............................. 168
5. CONSIDERAÇOES FINAIS ........................................................................................ 183
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 190
ANEXO ............................................................................................................................. 201
1. Referências dos artigos analisados ............................................................................ 201
2. Referências utilizadas pelos autores analisados e extraídas de seus artigos .............. 202
APÊNDICES ..................................................................................................................... 205
LISTA DE SIGLAS
AEE Atendimento Educacional Especializado
BM Banco Mundial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CBCE Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONBRACE Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte
CONICE Congresso Internacional de Ciências do Esporte
CPF Cadastro de Pessoa Física
CPI-AC Comissão Pró-Índio do Acre
EDUFESC Educação Física Escolar e Formação de Professores
EDUFESC-ESTE Educação Física e Marxismo
FMI Fundo Monetário Internacional
FUNAI Fundação Nacional do Índio
GTT Grupo de Trabalho Temático
LAEE Laboratório de Arqueologia Etnologia e Etno-história
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MARXLUTTE Grupo de estudos e pesquisas marxistas Lúdico, Trabalho e Tempo
Livre
MEC Ministério da Educação
OEA Organização dos Estados Americanos
OIT Organização Internacional do Trabalho
OMS Organização Mundial da Saúde
ONG Organizações Não Governamentais
ONU Organização das Nações Unidas
PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais
PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil
RCNE/Indígena Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
SIL Summer Institut of Linguistics
UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS
UNDP Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
UNESCO Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNHCR Agência das Nações Unidas para Refugiados
UNODC Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
UNV Programa de Voluntários das Nações Unidas
Mileski, Keros Gustavo. A educação física na escola indígena: a cidadania e a
emancipação indígena em questão. 206f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Dra. Rosangela Célia Faustino. Maringá,
2013.
RESUMO
As reformas da educação escolar indígena acompanharam reelaborações propostas pelos
organismos internacionais nas últimas décadas do século XX, e, desde então, a temática
indígena adquiriu grande relevância sendo amplamente discutida nos círculos políticos,
sociais e acadêmicos, atingindo diversas áreas da produção do conhecimento mundial e da
sociedade brasileira. Esta dissertação se propõe a discutir a educação física escolar
indígena no âmbito dos documentos que referenciam a educação e a educação escolar
indígena, tendo como objetivo compreender como os delineamentos efetuados pelos
organismos financeiros e humanitários, que formulam tais documentos chegam à prática
escolar via produção científica. A pesquisa, de abordagem qualitativa, contextualiza
historicamente alguns dos aspectos do contato da sociedade capitalista em expansão e os
povos indígenas no Brasil, bem como seus desdobramentos sobre a educação escolar
indígena e a educação física. Visando compreender as impactantes mudanças ocorridas na
política educacional destinada às populações indígenas, investigamos, no contexto de
reestruturação neoliberal do último quarto do século XX, as propostas para a educação
escolar indígena e para a educação física, utilizando dois documentos: o Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNE/Indígena - (BRASIL, 1998),
proeminente na área da educação escolar indígena; e um documento das Nações Unidas,
Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em direção à realização das Metas de
Desenvolvimento do Milênio (NAÇÕES UNIDAS, 2003). Por fim, realizamos um
levantamento bibliográfico da temática indígena nos artigos científicos publicados no
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), procurando compreender os
conceitos presentes nestes artigos que os articulam aos projetos educativos destinados aos
povos indígenas.
Palavras chave: Educação Escolar Indígena; Educação Física; RCNE/Indígena;
Organismos Internacionais;
Mileski, Keros Gustavo. Physical education in Indigenous school: Indigenous
citizenship and emancipation in question. 206f. Dissertation (Master in Education) –
State Univercity of Maringá. Supervisor: Dra. Rosangela Célia Faustino. Maringá, 2013.
ABSTRACT
The reforms of the indigenous education followed the reworks proposed by the
international organisms (World Bank, IMF) in the last decades in the twentieth century
and, since then, the indigenous subjects are extensively discussed in the political, social
and academics circles, in many different areas of the world knowledge and the Brazilian
society. This study propose to discuss indigenous school physical education inside the
documents that refer to education and the indigenous education, pointing to understand
how the plan made by the financial and humanitarian agencies who formulate that
documents reach the school by scientific practice. The survey, a qualitative approach,
contextualizes historically some issues of the contact of capitalist society in expansion and
natives in Brazil, as well as it implications on indigenous education and physical
education. Searching to comprehend the impingement changes in educational policy
intended for indigenous people, we investigate, in the context of neoliberal restructuring of
the last quarter of the twentieth century, the proposals for indigenous education and
physical education, using two documents: the Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas - RCNE/Indígena (National Curricular Reference for Indigenous
Schools) - RCNE / Indigenous - (BRAZIL, 1998), prominent in the area of indigenous
education, and a document of the United Nations, Sport for Development and Peace:
Towards Achieving the Millennium Development Goals (UN, 2003). Lastly, we lead a
bibliographic survey of indigenous issues in scientific papers published in the Congresso
Brasileiro de Ciências do Esporte (Brazilian Congress on Sport Sciences) (CONBRACE), willing the concepts presented in these papers that articulate the
educational projects for indigenous peoples.
Key-words: Indigenous Education; Physical Education; RCNE/Indigenous; International
Organisms;
1. INTRODUÇÃO
Marcam época, na história da acumulação primitiva, todas as
transformações que servem de alavanca à classe capitalista em
formação, sobretudo aqueles deslocamentos de grandes massas
humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de
subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de
proletários destituídos de direitos. A expropriação do produtor
rural, do camponês, que fica assim privado de suas terras, constitui
a base de todo o processo. A história dessa expropriação assume
coloridos diversos nos diferentes países, percorre várias fases em
sequência diversa e em épocas históricas diferentes (MARX,
1982b, p. 831).
Foi em 2005, durante o primeiro ano da graduação em educação física, que me
deparei pela primeira vez com a leitura do referido texto de Karl Marx (1818-1883). A
disciplina de Fundamentos da Educação Física1 tinha como objetivo permitir aos alunos o
entendimento das bases filosóficas da ciência que nortearam o desenvolvimento da
educação física enquanto disciplina escolar. Ao se estudar as bases da transformação social
que ocorrera na transição do mundo feudal para o mundo capitalista e as demandas sociais
criadas no momento da formação social capitalista nascente, tinha-se o objetivo de
entender a constituição da educação física tal qual ela se configura nos dias atuais.
Entretanto, mais que compreender a educação física e os seus fundamentos teóricos
e objetivos, enquanto disciplina constante do currículo escolar, pôde-se, inicialmente,
compreender as origens do atual sistema mercantil e suas contradições imanentes. Fora
possível perceber um arcabouço teórico que explica as diferenças de classe e a raiz dos
atuais problemas sociais: a pobreza, a exclusão, a violência, o preconceito, dentre outros.
Os estudos ao longo da graduação permitiram, ainda, compreender o movimento em que a
educação física se desenvolve enquanto produto da realidade humana e resultado das
transformações sociais (MELLO, 2009).
Naquele esforço inicial para compreender a educação física como um fenômeno
social, desenvolvemos, em 2006, durante a graduação, um projeto de pesquisa intitulado A
produção científica em teses e dissertações sobre a formação profissional em Educação
Física de 1987 a 20042. Buscamos, ali, compreender, para além da educação física escolar,
1 Essa disciplina constava do então currículo de Licenciatura Plena em Educação Física da Universidade
Estadual de Maringá. 2Esse projeto fora desenvolvido em forma de Programa de Iniciação Científica – PIC, pelos acadêmicos
Alexandre Paio e Keros Gustavo Mileski, orientados pela professora Me. Telma Adriana Pacífico Martineli,
15
a questão da formação em nível superior e a pós-graduação em Educação Física, assim
como as relações com as condições sócio históricas. Ainda nesse período, iniciamos a
participação no grupo de pesquisa “Educação Física e Marxismo”3 (EDUFESC-ESTE),
que vem desenvolvendo estudos e investigações no âmbito da educação em geral e, em
especial, da educação física, pesquisando a formação inicial e continuada de professores, o
currículo e a prática pedagógica, sob o enfoque do Materialismo Histórico. Nesse grupo,
estudamos autores como: Duarte (2001; 2006), Tonet (2005), Netto e Braz (2007), dentre
outros, visando à compreesão da educação em geral, e, em especial a educação física.
Em 2007, ingressamos também no MARXLUTTE4, grupo de estudos e pesquisas
marxistas - Lúdico, Trabalho e Tempo livre vinculado ao Departamento de Educação
Física da Universidade Estadual de Maringá-PR, Brasil. Nos estudos e pesquisas
desenvolvidos, buscamos interagir os conhecimentos e refletir sobre a dimensão lúdica e
suas relações com o “modo de produção e reprodução da vida humana”.
Após a graduação, tivemos o contato com as questões indígenas quando do ingresso
como pesquisador, em 2010, no Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações
vinculado ao Laboratório de Arqueologia Etnologia e Etno-história (LAEE)5 da
Universidade Estadual de Maringá. Os estudos e trabalhos desenvolvidos no LAEE
permitiram contato com acadêmicos indígenas, com algumas comunidades indígenas no
território paranaense e, sobretudo, investigações na área da educação escolar indígena cuja
base teórica é a Teoria Histórico Cultural desenvolvida na União Soviética pós-
revolucionária por L. S. Vigotski (1896 – 1934), A. R. Luria (1902 – 1977), de A. Leontiev
(1903 – 1979) e outros.
Processo nº 2736/2006, Registro º 1596 – PES, Livro nº 001/2003, finalizado no ano de 2007, na
Universidade Estadual de Maringá. 3 O grupo “Educação Física Escolar e Formação de Professores” - EDUFESC foi constituído em 2004 por
professores do Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá com o objetivo de
ampliar os estudos e pesquisas. Em 2009, sob a liderança da professora Dra. Rosângela Aparecida Mello, o
grupo passou a intitular-se “Educação Física e Marxismo” – EDUFESC-ESTE, e vinculou-se ao programa
Estudos do Trabalho e Educação (ESTE-UEM). O grupo é cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq, http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. 4 O MARXLUTTE originou-se do projeto de ensino “Consolidação e Implementação da Ludoteca” (criado
em 1995), desde 2009 está cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. 5 O Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações - Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-
História (LAEE), fundado em 1997 na Universidade Estadual de Maringá, abriga diversos projetos voltados
ao estudo das populações do Brasil meridional e áreas adjacentes, que recobrem as regiões banhadas pela
Bacia do Rio da Prata (atuais Mato Grosso do Sul, Oeste de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande
do Sul, Uruguai, Paraguai e províncias do Norte da Argentina). O programa tem uma característica
interdisciplinar, abrangendo diferentes áreas do conhecimento, e há mais de 10 anos vem desenvolvendo
pesquisas bibliográficas/documentais e de campo, as quais possibilitam intervenções pedagógicas em
diferentes Terras Indígenas no Paraná.
16
Nesse mesmo período, ingressamos no curso de pós-graduação, ofertado na
modalidade de educação à distância pela Universidade Estadual de Maringá,
especialização em Atendimento Educacional Especializado (AEE), um projeto financiado
pelo MEC – Ministério da Educação - onde se pôde aprofundar6 estudos sobre o
atendimento a pessoas com deficiências. Foi durante o curso desses estudos e a
participação nas pesquisas do LAEE que muitas indagações surgiram, especialmente
quanto às legislações que, elaboradas, principalmente, a partir da década de 1990, período
de importantes ajustes do sistema capitalista, tratam da educação, da educação escolar
indígena e do Atendimento Educacional Especializado. A síntese desses estudos resultou
em um texto monográfico apresentado como trabalho de conclusão de curso7.
O LAEE possibilitou, ainda, estudos de trabalhos já realizados por pesquisadores
do Laboratório, e de textos relacionados à temática indígena (TOMMASINO, 1995;
MOTA, 1998; FAUSTINO, 2006; NOVAK, 2007; MOTA e NOVAK, 2008; MOTA e
ASSIS, 2008; MOTA, 2009; BURATTO, 2010; FAUSTINO, 2010). Esses estudos,
levantamentos e pesquisas realizadas em Terras Indígenas, visitas às escolas, o contato
com professores indígenas de diferentes etnias, nos evidenciaram a necessidade de
compreender melhor as políticas pensadas e elaboradas para essas populações.
Recentemente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE divulgou os
resultados do censo demográfico realizado em 2010 apontando em seu relatório
Características gerais dos indígenas: resultados do universo (2010) que, segundo “[...]
os resultados do Censo Demográfico 2010 provenientes do quesito cor ou raça, 817,9 mil
pessoas se declararam indígenas, representando 0,4% da população total do Brasil” (IBGE,
2010, p. 54). Em relação à língua, o Relatório aponta que “[...] para as pessoas indígenas
de 5 anos ou mais de idade, foram contabilizadas 274 línguas indígenas faladas no
Território Nacional” (IBGE, 2010, p. 90). Ao falarmos, portanto, de povos indígenas no
Brasil, estamos tratando de imensa diversidade cultural e linguistica. “Os povos indígenas
apresentam configurações particulares de costumes, crenças e língua, de formas de
6Aprofundar porque também no Curso de Graduação em Educação Física se teve uma disciplina chamada
Educação Física Adaptada, na qual estudamos as diferentes causas de deficiências, as prevenções, e ainda as
implicações e possibilidades de atuação da educação física no atendimento a alunos com deficiência. 7 O trabalho intitulado A educação física e atendimento educacional especializado nos documentos e na
política educacional para as populações indígenas foi defendido em janeiro de 2012, no Núcleo de Educação
a Distância da Universidade Estadual de Maringá, como um dos requisitos para a obtenção do título de
Especialista em Atendimento Educacional Especializado.
17
inserção com o meio ambiente, de história de interação com os colonizadores e de relação
com o Estado nacional brasileiro” (IBGE, 2010, p. 15).
Assim, tendo em mente a imensa diversidade com que nos deparamos ao tratar dos
povos indígenas, recorremos ao estudo de documentos legais, referenciais, relatórios
(BRASIL, 1996; BRASIL, 1998; DELORS, 1996) e desenvolvemos essa pesquisa com o
objetivo de compreender quais objetivos e concepções norteiam os documentos propostos
pela UNESCO e pelo Estado brasileiro relativo à educação escolar indígena? Com base
nesses documentos, quais os entendimentos sobre educação física?
A partir da década de 1980, com a ampliação de cursos de pós-graduação stricto
sensu, a produção científica brasileira apresentou significativo aumento no debate sobre a
educação de forma geral, a educação física e, em relação à educação escolar indígena o
período caracteriza-se pela realização de eventos e pesquisas. Fomentado pela inserção de
professores e pesquisadores provenientes de diversas áreas do conhecimento, esse debate
abrange particularidades, por exemplo, a educação física escolar, o conteúdo disciplinar, a
prática pedagógica, o currículo escolar entre outros.
Divulgada e financiada por organizações governamentais e não governamentais,
instituições missionárias, agências multilaterais, os resultados de algumas dessas pesquisas
foram socializadas por meio de encontros, seminários, congressos científicos, periódicos,
livros e capítulos de livros.
Na área da educação física, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, maior
entidade científica do país, promove, bienalmente, o Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte (CONBRACE). Este evento8 está em sua 17ª edição e congrega pesquisadores e
estudantes provenientes de diferentes áreas do conhecimento e campos acadêmicos.
Propomos como um dos objetivos desta pesquisa, apresentar e analisar a produção
científica do CONBRACE em suas edições de 2001 a 2011. Buscamos apreender se as
concepções de educação física presentes nesta produção convergem com a perspectiva
proposta nos documentos dos organismos internacionais e nacionais que referenciam a
educação escolar indígena no Brasil.
8 O CONBRACE se constitui um dos principais eventos da área da Educação Física. É realizado bienalmente,
desde 1978, pelo Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, a maior entidade científica do país no campo da
Educação Física, constituída em sua estrutura por Secretarias Estaduais e Grupos de Trabalhos Temáticos
(GTTs). Os GTTs são, atualmente, em número de 12 (doze): atividade física e saúde; comunicação e mídia;
corpo e cultura; epistemologia; escola; formação de professores e mundo do trabalho; memórias da Educação
Física e esportes; movimentos sociais; pessoas portadoras de necessidades especiais; políticas públicas;
recreação e lazer; treinamento esportivo.
18
Para tanto, julgamos ser de fundamental importância para entendermos as atuais
políticas educacionais, compreender o contexto histórico do final do século XX. Nesse
período, no Brasil, foram elaborados diversos documentos e diretrizes para a educação
nacional com vistas às reformas educacionais que sobrepujaram as fronteiras nacionais e
apresentaram-se moderadas pela agenda neoliberal9, propagada pelos organismos
multilaterais.
Num movimento que não acontece de forma isolada, essas reformas educacionais
brasileiras acompanharam as reelaborações da política para as minorias étnicas em todo o
continente latino-americano (FAUSTINO, 2006), bem como, a conjuntura mundial de
reestruturação capitalista que ocorreu no plano da economia, da política e das reformas
sociais.
Nos últimos anos do século XX, os países capitalistas periféricos e centrais
(ARRIGHI, 1979), viveram momentos de atendimento às condicionalidades dos
organismos internacionais, sobretudo do Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário
Internacional (FMI), (FONSECA, 1998; 2001). Tais organismos, dirigidos pelos países
capitalistas centrais, exigiram dos países, aos quais se concedia crédito, que esses
realizassem reestruturações sociais e políticas, cujo objetivo era a disseminação e
adequação da economia a um novo padrão de expansão capitalista necessário a sua
expansão, a chamada globalização. As políticas de estabilização econômica propagadas
mundialmente, e no Brasil, após esse período, estão alicerçadas no ideário neoliberal, cujo
discurso tem como base tornar a sociedade mais racional, inclusiva, eficiente e produtiva,
objetivando a manutenção o status quo capitalista.
Tais medidas afetaram diretamente as áreas sociais como a saúde e educação. E, em
relação à educação, para estes organismos, ela supostamente representa uma importante
ferramenta para combater a pobreza, formar o cidadão que irá ajudar a construir a paz e o
desenvolvimento, enfim coloca-se a escola a serviço da economia de mercado (DELORS,
1996; NAÇÕES UNIDAS, 2003). Ainda, no que se refere à educação, medidas de
ampliação e controle encontram-se inseridas em uma perspectiva mais ampla de reforma
do Estado, na qual as prioridades são baseadas especialmente na ideia de garantia da
educação básica para todos.
9 Trataremos mais adiante, nos itens 1.5 sobre o contexto do neoliberalismo, para tanto, nos
fundamentaremos em autores que estudaram o neoliberalismo, tais como Moraes (2001), Alves (2004),
Harvey (2003; 2011), Chesnais ( 2005), Netto e Braz (2007).
19
Tal perspectiva evidencia-se pela convocação da UNESCO – Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, da UNICEF – Fundo das Nações
Unidas para a Infância e do PNUD – Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento e do Banco Mundial, para a realização da Conferência Mundial de
Educação para Todos, em 1990, na qual se definiu esse nível de ensino como prioridade
para aquela década (UNESCO, 1998). Os países participantes da Conferência
estabeleceram compromissos visando “[...] à erradicação da pobreza via educação”,
criando, para isto, “[...] um consenso por parte das elites dirigentes [...], de que a prioridade
educacional dos países em desenvolvimento deva ser o investimento nesse nível de ensino”
(NOVAK, 2007, p.16). Estabeleceu-se, portanto, a educação para todos, priorizando a
educação de jovens entre sete e quatorze anos.
Ao analisar as propostas do Banco Mundial, Sguissardi (2002) nos informa sobre a
similaridade entre as recomendações e orientações que o Banco Mundial dirige aos países
periféricos e às reformas implantadas no Brasil na década de 1990, segundo as quais o
Estado “[...] não consegue atender com eficiência a sobrecarga de demandas e ele
dirigidas, sobretudo na área social” (BRASIL, 1995, p.10). O Plano Diretor de Reforma do
Aparelho do Estado10
, de 1995, expressa essa perspectiva de reformas, e enfatiza, como um
meio de assegurar o crescimento sustentado na economia, a necessidade de reformas do
Estado. Tem por princípios a chamada administração gerencial, dirigida à administração
pública, devendo esta ser reconstruída sob bases “modernas” e “racionais”.
Nesse contexto, as legislações e diretrizes educacionais de quase todos os países do
mundo (DELORS, 1996) são reformuladas e direcionadas ao atendimento das demandas e
condicionalidades daqueles organismos. Esse é um momento importante na academia,
quando as discussões se intensificam diante de temas que remetem às mais diversas
dimensões da vida humana, sobretudo no que diz respeito à educação, à formação de
professores, à educação física, à educação escolar indígena, entre outros.
A educação escolar indígena é um tema bastante complexo e existem diferentes
concepções sobre ela e seus desdobramentos. Em sua grande maioria as pesquisas, os
trabalhos científicos, não consideram o contexto da ampla reestruturação política e
econômica coordenados pela UNESCO e pelo Banco Mundial, que afetaram todas as
instâncias da vida humana, sobretudo a educação. As análises isolam a educação escolar
10
O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de 1995 foi elaborado sob a coordenação do MARE
(1995 – 1998) – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – que teve, como Ministro, o
economista e cientista social, Luis Carlos Bresser Pereira (BRASIL., 1995).
20
indígena de seu contexto nacional e internacional, focam o seu avanço legal, em
comparação com essa modalidade de ensino, em períodos anteriores e se associam em sua
grande maioria a pressupostos relativistas do conhecimento (FAUSTINO, 2006, p. 20).
As posições relativistas de conhecimento se fundamentam no pensamento pós-
moderno. Essa corrente de pensamento não leva em conta as formas científicas de
sistematização e transmissão dos conhecimentos humanos, valoriza a tradição cultural e o
saber cotidiano em detrimento das totalidades e dos valores universais. (EAGLETON,
2005; DUARTE, 2006). O pós-modernismo em geral interessa-se pela linguagem, pela
cultura e pelo ‘discurso’, insiste na construção social do conhecimento e nas formas
relativistas, é cético a respeito da verdade, da unidade e do progresso, opõe-se ao que vê
como elitismo na cultura, às concepções gerais de igualdade, de classe e de emancipação
humana real (EAGLETON, 2005; WOOD, 1999).
Buscamos nos posicionar teoricamente na contramão das teorias pós-modernas que
refutam a totalidade e o contexto histórico dos fatos, segundo as quais seus objetos podem
ser compreendidos sem que se considere a realidade e as relações mais amplas nas quais
estão inseridos. (WOOD e FOSTER, 1999; EAGLETON, 2005). Portanto, seguimos em
nossa pesquisa um caminho teórico-metodológico que possibilitou uma aproximação à
compreensão do desenvolvimento histórico da totalidade econômica política e social que
envolve nosso objeto, buscando apreender a radicalidade das explicações, a natureza e a
função social da educação (TONET, 2002; 2005; 2007), e suas especificidades
(FAUSTINO, 2006, 2010; 2011; MELLO, 2009), fundamentando-nos em um
entendimento materialista histórico de explicação da realidade (MARX 1982a; 1982b;
2010; MARX e ENGELS 2007). Nossa preocupação volta-se, então, para a compreensão
da concepção que norteia os documentos elaborados pelos organismos internacionais e
pelo Estado brasileiro (MEC) para a educação indígena e seus desdobramentos para a
educação física.
1.1 A pesquisa
Apresentamos neste texto, a sistematização dos estudos desenvolvidos.
Considerando nosso objeto, a educação escolar indígena e a educação física nos
documentos produzidos a partir dos anos de 1990, dividimos essa dissertação em três (03)
seções. Na seção I - EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E EDUCAÇÃO FÍSICA NO
21
BRASIL: BREVE CONTEXTO HISTÓRICO nos dedicamos, fundamentalmente, a
compreender o processo histórico de desenvolvimento da sociedade capitalista como
totalidade que engendra as diversas instâncias da vida humana. A partir deste pressuposto,
buscamos compreender a educação, a educação física, e a educação escolar indígena.
Utilizamos para tanto autores como Marx (1982a; 1982b; 2011), Marx e Engels (2007),
Engels (2010), e ainda, Moraes (2001), Alves (2004), Harvey (2003; 2011), Chesnais
(2005), Netto e Braz (2007), para entender o contexto atual de expansão capitalista que
colocou os diferentes povos do mundo em maior contato, sobretudo o dos colonizadores
exploradores europeus e os povos indígenas no Brasil, especificamente no território
paranaense. Buscamos entender, também, o desenvolvimento histórico da educação escolar
indígena no Brasil, e da educação física em meio a esse processo.
Na seção II - DELINEAMENTOS POLÍTICOS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR
INDÍGENA NO BRASIL: A RETÓRICA DOS DOCUMENTOS NACIONAIS E
INTERNACIONAIS nos concentramos em apresentar em forma de síntese os dois
documentos que consideramos relevantes para os propósitos de nossa pesquisa: o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNE/Indígena –
(BRASIL, 1998), e o Relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: Em Direção à
Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio (NAÇÕES UNIDAS, 2003) e
suas articulaçoes com o relatório Educação: um tesouro a descobrir (DELORS, 1996).
Ao longo desse processo de exposição, apontamos alguns questionamentos que nortearam
nossas discussões.
Elencamos, portanto, esses questionamentos: os fundamentos gerais da Educação
Escolar Indígena, apresentados pelo RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), apoiados em
conceitos tais quais a multietnicidade, a pluralidade e a diversidade, os conhecimentos
indígenas, a educação na perspectiva intercultural, comunitária, específica e diferenciada,
estão sendo compreendidos e analisados em seus componentes históricos? Compreender
como esses fundamentos se expressam na concepção de educação do documento nos
fornece subsídios para compreender a totalidade do ideário que norteia a elaboração destas
políticas para a educação escolar indígena. Educar para a coesão social, utilizar o discurso
de paz e de um desenvolvimento humano que leve a paz, são estratégia de tais organismos
internacionais. Qual o objetivo da disseminação desse ideal de paz? Por que combater a
pobreza utilizando a educação como salvaguarda do desenvolvimento, do conhecimento do
outro e do respeito à cultura e ao outro?
22
Buscamos compreender, também, como o termo cidadania transposto no
RCNE/Indígena como cidadania indígena, se coloca como objetivo final de educação e
porque os documentos afirmam e reafirmam a importância da educação para cumprir essa
meta pois avaliamos que, examinar as legislações conquistadas, as elaborações jurídicas,
bem como o termo emancipação politica possibilita tal “igualdade de direitos”, é
importante para compreendermos o movimento indígena e como o Estado burguês permite
o atendimento às chamadas reivindicações indígenas nos documentos.
Discutimos como, a responsabilização que recai sobre o professor indígena, como
sendo aquele que precisa ser formado como “professor-pesquisador”, aquele que precisa
ensinar o gosto pelo estudo, o “aprender a aprender”, o professor que respeita o
conhecimento prévio dos alunos e prioriza “o processo de autoria, em que os alunos são
convidados a ter um papel ativo em todo o processo de aprendizagem” (BRASIL, 1998, p.
61). Estes conceitos estão diretamente relacionados à prática pedagógica escolar e a defesa
da participação ativa em comunidade, é um discurso que vem das reivindicações
indígenas? Podem ser identificados também no discurso dos documentos internacionais?
Na seção III - QUE CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
INDÍGENA ORIENTAM A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CONBRACE (2001 a
2011)? Buscamos compreender e analisar a concepção de educação, educação escolar e
educação física publicados na produção científica do CONBRACE. Verificamos se estas
concepções convergem com a perspectiva proposta nos documentos dos organismos
internacionais e entes nacionais que referenciam a educação indígena no Brasil.
A análise dos artigos revelou que, em linhas gerais, as discussões tratam das
manifestações corporais indígenas evidentes: nos Jogos dos Povos Indígenas
(CARVALHO e MONTEIRO, 2001; MONTEIRO, 2003; BANKOFF, DE MARCHI, et
al., 2005; LUCENA e BATISTA, 2005; ALMEIDA, 2009; GRANDO, AGUIAR e
OLIVEIRA, 2009; ALMEIDA, 2011); na construção do currículo do Magistério Indígena
(ABUQUERQUE, 2001); na ginástica como elemento da constituição de identidade étnica
(SILVA, PERINI e AGOSTINI, 2003); nas práticas corporais como espaços de mediações
e intercâmbios num contexto de Educação Intercultural (GRANDO, 2005); no estético
presente na arte, nos ornamentos, nos adereços e nos corpos (KOWALSKI e FERREIRA,
2005); na produção do conhecimento sobre as práticas corporais indígenas (ALENCAR,
2007); nos costumes e rituais e suas relações com cultura, lazer e cotidiano (SILVA e
23
CABRAL, 2007); no lazer e sua contribuição como construtor da identidade das crianças
Pataxós (COELHO, 2009).
A maioria dos estudos tece críticas à influência dos não-indígenas nos modos de
agir; ao consumo que os indígenas fazem dos produtos provenientes da sociedade
capitalista; demonstra-se preocupação com a autonomia, a alteridade, a manutenção dos
modos de vida indígena; deslocam a discussão da centralidade do trabalho para a
centralidade da cultura. Os estudos analisados entendem a cultura como um conjunto de
mecanismos simbólicos pelo qual o homem controla e expressa seu comportamento, sua
identidade, ou ainda suas práticas corporais; defendem uma educação intercultural que
respeite a diversidade e a pluralidade.
Partimos dessas concepções para discutir: o direito à diversidade, sob a forma de
participação cidadã nas decisões que concernem às políticas para as populações indígenas,
qual é a emancipação desejável aos indígenas? Bem como, que concepção de educação
pode ser pensada para educação escolar indígena e seus desdobramentos na educação física
escolar. Buscamos a contextualização histórica do multiculturalismo e da
interculturalidade, discutindo emancipação política e possibilidade real de cidadania e
garantia dos direitos indígenas, da possibilidade de emancipação real, bem como
explicitamos nossa compreensão de educação e as possibilidades da educação na
sociabilidade capitalista.
Por fim, apresentamos três apêndices onde constam: As referências dos artigos
publicados no CONBRACE, que tomamos como objeto de estudo; As referências em que
se fundamentam os autores dos artigos analisados; E, um (01) quadro que elaboramos para
evidenciar os grupos de pesquisa cadastrados no diretório do CNPq, aos quais os autores
dos artigos analisados estão atualmente vinculados.
2. EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL:
BREVE CONTEXTO HISTÓRICO.
A produção das ideias, de representações, da consciência, está em
princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o
intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O
representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda
aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O
mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na
linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de
um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas
ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças
produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar as suas
formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra
coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de
vida real. [Os] homens, ao desenvolverem sua produção e seu
intercâmbio materiais, transformam também com esta sua realidade, seu
pensar e os produtos do seu pensar (MARX e ENGELS, 2007, p. 93).
Os homens, ao produzirem sua vida material, ao transformarem a natureza com o
objetivo de extrair dela o necessário para a sua sobrevivência, ou seja, ao produzirem por
meio do trabalho a sua subsistência, possibilitam a produção das mais diversas instâncias
da vida. A cultura, a arte, a ciência, as diversas dimensões da vida humana, são
possibilitadas pelo fato dos homens estarem vivos e produzindo sua vida material, sua
história. Marx explica que o trabalho, como categoria à parte de qualquer sociabilidade
determinada, é “[...] um processo de que participam o homem e a natureza, o processo em
que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza” (1982a, p. 202), e ainda, que esse intercâmbio é uma condição
necessária, natural e eterna da vida humana (MARX, 1982a). Segundo o teórico, os
elementos que compõem o processo de trabalho são: “1) a atividade adequada a um fim, o
próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios
de trabalho, o instrumental de trabalho” (MARX, 1982a, p. 202).
Desta forma, o ser humano impõe sua vontade, transforma os recursos naturais em
coisas úteis à vida. E esta transformação, guiada por sua vontade, possui um fim a que se
deseja chegar. O resultado do trabalho é, portanto, a realização do que ele criou
antecipadamente em sua consciência. “Ele não transforma apenas o material sobre o qual
opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira” (MARX,
1982a, p. 202). Os objetos de trabalho são: “Todas as coisas que o trabalho apenas separa
25
de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho, fornecidos
pela natureza” (p.203); E os meios de trabalho são, “[...] uma coisa ou um complexo de
coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para
dirigir sua atividade sobre esse objeto” (p.203). Por conseguinte, “[...] no processo de
trabalho, a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado
fim, no objeto sobre o qual atua por meio do instrumental de trabalho” (MARX, 1982a,
p.205). O trabalho é, portanto, um processo teleológico, ou seja, possui um fim aonde se
quer chegar.
Esta conceituação de trabalho, entretanto, não é adequada ao processo de produção
capitalista. Marx (1982a), explica que nesta sociabilidade o processo de trabalho “[...]
quando ocorre como processo de consumo de força de trabalho pelo capitalista, apresenta
dois fenômenos característicos. O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a
quem pertence o seu trabalho [...]”. O produto é propriedade do capitalista, não do produtor
imediato, o trabalhador. “[...] O capitalista compra a força de trabalho e incorpora o
trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os quais também
lhe pertencem” (MARX, 1982a, p. 209-210). Dessa forma, o trabalho pressupõe o encontro
de dois possuidores: o capitalista, possuidor dos meios de produção, encontra-se com o
trabalhador, que após ter-lhe sido expropriados os meios de produção da vida sendo a terra
o principal (MARX, 1982b), não possui nada além de sua força de trabalho para vender.
Esta relação estabelecida é a forma social determinante de produção sob a regência do
capital.
E, portanto, as múltiplas dimensões da vida atual são possibilitadas por essa forma
de produção, isto é, são determinadas pelas relações sociais que os homens estabeleceram,
e ainda estabelecem, sob as relações capitalistas de produção. “O que distingue as
diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se
faz. Os meios de trabalho sevem para medir o desenvolvimento das forças humana de
trabalho e além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho” (MARX,
1982a, p. 204).
Consequentemente, as políticas atuais dirigidas à educação escolar indígena estão,
como uma das dimensões da vida, articuladas à totalidade da sociedade capitalista, e em
relação a esta é a única forma de ser compreendida em toda sua complexidade. Por
conterem suas origens nos conflitos emergentes do contato entre as populações indígenas e
os exploradores que, no Brasil, chegaram a partir do século XVI, é imprescindível
26
compreender o contexto histórico mais amplo. O desenrolar da história de colonização do
Brasil e, especificamente do território paranaense, é a expressão da expansão colonialista
europeia.
No que toca aos seus inícios, recorde-se a saga da expansão marítima
conduzida pelos grupos mercantis do sul da Europa (especialmente da
Península Ibérica), que abriram as rotas para o Oriente e para as
Américas. Nesse primeiro movimento, no qual já se revela a tendência do
capital para a mundialização, encontram-se entrelaçados processos
extremamente progressistas e processos enormemente bárbaros (pense-se,
por exemplo, no confronto entre os espanhóis e os impérios asteca e
inca), preludiando a inextricável teia de contradições da nova sociedade
(NETTO e BRAZ, 2011, p. 180-181, grifo dos autores).
A tendência de expansão mercantil se mostra um processo bárbaro, que permite a
expansão do comércio e o estabelecimento das bases da sociedade capitalista nascente,
colocando em contato diferentes povos, modos de vida, e diferentes culturas, como
evidenciam Netto e Braz (2011, p. 53) “[...] o modo de produção capitalista se consolidou
como dominante no Ocidente e operou a constituição do mercado mundial, que permitiu o
contato entre praticamente todos os grupos humanos”.
Enraizado no movimento mundial de expansão inicial de um sistema nascente, o
contato com os povos indígenas se consolida num movimento histórico cuja compreensão
é de suma importância. Estabelece-se, portanto, como objetivo desta seção traçar um breve
percurso histórico do contexto de formação da sociedade capitalista e as implicações que a
expansão deste modelo de sociedade resultou, no contato entre os europeus exploradores
com os povos nativos das Américas, sobretudo os povos que ocupavam e ocupam os
territórios onde, atualmente, se localiza o estado do Paraná. Acompanhando este contexto,
se fará também, uma breve apresentação da constituição da educação física moderna.
2.1 A organização da sociedade nascente das entranhas do mundo feudal: o contexto
da constituição da escola para todos
A economia política clássica e seus doutrinadores, para citar apenas alguns, Anne
Robert Jacques Turgot (1727 – 1781), François Pierre Guillaume Guizot (1787 – 1874),
Adam Smith (1723 - 1790) e David Ricardo (1772 – 1823), buscaram estabelecer a
27
explicação da ordem capitalista burguesa e da nova sociedade que se estrutura a partir da
crise do feudalismo. Sobre essa crise, Netto e Braz (2011), afirmam que:
A crise do feudalismo abre-se no século XIV, num processo
extremamente complexo [...] que só culminará, em termos histórico-
universais, no final do século XVIII. No decurso desses séculos,
operando para a ultrapassagem do modo de produção feudal, as suas
contradições internas foram potenciadas pelos efeitos do florescimento do
comércio, expressos na consolidação crescente de uma economia de base
mercantil (NETTO; BRAZ, 2011, p. 80).
A crise se expressou na base produtiva do antigo regime, no problema com as terras
cultivadas que esgotadas já não produziam e nos limites técnicos do período que não
permitiam recuperá-las. Conforme Netto e Braz (2011) e Andery et al (2007), no
desenrolar dos séculos, em meio à sociedade feudal, a classe burguesa vai se consolidando
com seu caráter comercial/mercantil. Diferentemente dos senhores feudais possuidores de
terras, que acumularam riqueza imobiliária, os burgueses comerciantes se voltaram para
uma riqueza mobiliária, o dinheiro. No interior dessa sociedade, inicialmente, a burguesia
alia-se à nobreza, especificamente no momento de constituição do Estado Absolutista para,
juntamente com estes, controlar e vencer as revoltas camponesas. “Uma vez derrotados os
servos, a contradição entre os grandes grupos mercantis (dos quais emergia a nova classe
burguesa) e a nobreza ganhou o primeiro plano na vida social” (NETTO e BRAZ, 2011, p.
84). E, vencidos os servos, a classe burguesa, fortalecida no processo, se volta contra a
nobreza e o Estado Absolutista que se colocavam como obstáculos ao seu pleno
desenvolvimento. Assim, estão lançadas as bases para o estabelecimento do sistema de
produção capitalista, que tem como uma de suas classes fundamentais a burguesia.
Não se pode reduzir o complexo processo de desenvolvimento da sociedade feudal
e constituição da sociedade capitalista11
em tão resumidas palavras, apenas para situarmos
o estado de coisas em que se encontrava a organização social nos tempos dos pensadores
da economia política clássica e, sobretudo, na época do próprio Adam Smith. Tais
pensadores, afirmam Netto e Braz (2011, p. 27 grifos dos autores), “[...] centra[m] sua
atenção nas questões relativas ao trabalho, ao valor, e ao dinheiro, à Economia Política
interessava compreender o conjunto das relações sociais que estavam surgindo na
crise do Antigo Regime.” Na crise do Antigo Regime – o feudalismo – ocorre a formação
11
No limite deste trabalho fez-se uma síntese, porém sugere-se a leitura de Andery et al (2007), Netto e Braz
(2007)
28
dos estados nacionais europeus, quando a burguesia começa a se firmar como classe
dominante e expandir seu poder por meio de processos de colonização.
Os processos que levaram à consolidação da classe burguesa, à formação da classe
trabalhadora12
, ao desenvolvimento da ciência, da técnica e da própria produção burguesa
estão presentes em muitos estudos. A manufatura que, tendo em seu princípio a divisão do
trabalho, se coloca como a forma de produção mais evidente e propulsora do capitalismo
entre os séculos XVI a XVIII. A este respeito Karl Marx (1818 – 1883), estudioso crítico
da Economia Política Clássica, afirma que: “A cooperação fundada na divisão do trabalho
adquire sua forma clássica na manufatura. Predomina como forma característica do
processo de produção capitalista durante o período manufatureiro propriamente dito, que, a
grosso modo, vai de meados do século XVI ao último terço do século XVIII” (MARX,
1982a, p. 386).
Nesse momento, as forças produtivas precisam ser impelidas e ampliadas e,
portanto, os divulgadores da sociedade burguesa clamam pelo fim da sociedade feudal e
pela abertura do mundo ao sistema capitalista. Dentre os intelectuais defensores dos
interesses burgueses, cita-se Smith e sua obra A Riqueza das Nações (1996a; 1996b),
publicado em 1776, cuja explicação de sociedade teve como contexto a manufatura,
partindo da divisão do trabalho. “O maior aprimoramento das forças produtivas do
trabalho, e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em
toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultado da divisão do trabalho”
(SMITH, 1996a, p. 65)
Para explicar e convencer sobre os “benefícios” do modo de produção emergente e
legitimar o poder da burguesia, Smith (1996) busca naturalizar a cooperação capitalista
entre os homens e interpreta-a como um atributo intrínseco aos homens, que se relacionam
com o intuito de satisfazer seus próprios interesses.
Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua
origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e
visaria esta riqueza geral à qual dá origem. Ela é a consequência
necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou
propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa
utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar
uma coisa pela outra (SMITH, 1996a, p. 73).
12
Sobre o processo de expropriação dos camponeses e ação que liberta os servos dos campos e os torna
“livres” para vender sua força de trabalho é minuciosamente explicado no capítulo já referenciado, A
chamada acumulação primitiva, de O Capital (MARX, 1982a).
29
Tratar as categorias sociais e econômicas procurando compreender o conjunto das
relações que estavam surgindo, bem como, concebê-las como dadas naturalmente é
característico dos autores da Economia Política Clássica, pois, como evidenciam Netto e
Braz (2011),
[...] seus autores mais significativos trataram as principais categorias e
instituições econômicas (dinheiro, capital, lucro, salário, mercado,
propriedade privada etc.): eles as entenderam como categorias e
instituições naturais que, uma vez descobertas pela razão humana e
instauradas na vida social, permaneceriam eternas e invariáveis na
sua estrutura fundamental (NETTO e BRAZ, 2011, p. 18, grifo dos
autores).
Essa característica é indicativa do compromisso sociopolítico assumido pela
Economia Política Clássica, na medida em que seus teóricos condessaram os interesses da
burguesia revolucionária (NETTO e BRAZ, 2011). Esse viés “natural” permanece com os
pensadores contemporâneos que recuperaram os preceitos da Economia Política Clássica.
Paulani13
(2005) ao discutir o individualismo no pensamento de Hayek14
, mostra que
grande parte dos intelectuais burgueses que se propõem a discutir o indivíduo, o colocam
na esfera das trocas e negócios e este “se transmuta em homem econômico”, tratando as
categorias sociais, os fenômenos, como pertencentes à “natureza humana”. Nas palavras da
autora:
[...] uma série de pensadores de grande importância vem dedicando, pelo
menos desde o século XVII, boa parte de seus esforços intelectuais para
dissecar esse novo personagem e para diagnosticar o estatuto das relações
entre indivíduo e sociedade que então se estabelecem, seja buscando
encontrar a solução para a questão da ordem e do poder nessa nova
formação social, seja procurando-lhe uma fundamentação moral, seja
discorrendo sobre sua reprodução material (PAULANI, 2005, p. 80).
13
Paulani (2005, p. 91) se propõe a investigar o individualismo apontando que o homem na sociedade
moderna é o indivíduo, que existe uma contradição entre o indivíduo a sociedade e a relação desta
contradição com a ciência econômica, ao longo de sua discussão aponta que “[...] o individualismo
metodológico é um preceito metateórico atinente ao mundo dos fatos sociais e segundo o qual a explicação
de um fenômeno social qualquer só pode ser considerada científica se, por intermédio dela, pudermos reduzir
tal fenômeno às ações intencionais”. 14
Friedrich Augusto von Hayek (1899-1998) foi um economista austríaco, divulgador dos princípios da
economia liberal, e crítico do intervencionismo estatal, falaremos mais sobre suas ideologias ao discutirmos o
neoliberalismo no item 1.5 desta seção.
30
No cerne das explicações liberais clássicas e neoliberais está o indivíduo, sua
propensão “natural” à troca, no objetivo privado de realizar seu próprio interesse.
Juntamente com a mudança das formas de produção e trabalho, alteram-se também as
formas de organização social, as relações pessoais inclusive. O direito à vida e à
liberdade15
passa a ser um direito natural. Nessa sociedade em que tudo é naturalizado, as
categorias sociais aparecem como eternas e imutáveis.
Smith (1996a) buscou fazer ver a divisão do trabalho como processo evolutivo
dependente das habilidades de cada indivíduo. Vivendo no momento de grande produção
capitalista, afirma que toda a riqueza produzida é fruto do esforço individual e que não
deve o Estado intervir nas escolhas de como e o quê o indivíduo produz. Segundo o autor:
É evidente que cada indivíduo, na situação local em que se encontra, tem
muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de
julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional no qual pode
empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o
valor máximo (SMITH, 1996a, p. 438).
Sobre o papel do Estado na obra de Smith, vamos nos ater ao que ele propõe como
função do Estado em relação à Educação. O autor em seu livro A riqueza das nações
iniciou seu artigo intitulado Os gastos das instituições para a educação da juventude
mencionando que “[...] as instituições para a educação da juventude podem propiciar um
rendimento suficiente para cobrir seus próprios gastos” (SMITH, 1996b, p. 228). O autor
procura evidenciar que a remuneração do professor não deve ser totalmente providenciada
da dotação destinada à escola e não deve pesar sobre a responsabilidade da receita geral da
sociedade e esclarece o motivo, recorrendo ao individualismo metodológico. Ele explica
que:
O interesse de todo homem é viver o mais tranquilamente possível; e se
os seus emolumentos forem exatamente os mesmos tanto executando
como não executando algum dever muito laborioso, certamente o seu
15
O direito a liberdade que se conclama é a liberdade das relações da sociedade feudal, Marx (1982) explica
o processo que ocorre entre a transição do feudalismo para o capitalismo e como tornaram os camponeses e
servos em trabalhadores “livres” e assalariados. Mas não livre para decidir se quer trabalhar ou não, pois
juntamente com a liberdade burguesa cria-se toda uma legislação sanguinária – para usar o mesmo adjetivo
usado por Marx – que pune o trabalhador que perdera seus meios de subsistência e fora obrigado a se adequar
às novas condições numa manufatura nascente que não absorvia os trabalhadores tornados “disponíveis”
(MARX, 1982b, p. 851). Na seção 3 tratamos do direito à liberdade, e especificamente dos direitos humanos,
sob a forma da cidadania.
31
interesse — ao menos como o interesse é vulgarmente considerado — é
negligenciar totalmente seu dever ou, se estiver sujeito a alguma
autoridade que não lhe permite isto, desempenhá-lo de uma forma tão
descuidada e desleixada quanto essa autoridade permitir (SMITH, 1996b,
p. 229).
Smith, porém, se preocupa com o efeito da divisão do trabalho, que reconhece na
manufatura de seu tempo. Para o autor, quando o indivíduo passa a vida realizando poucas
operações, não tendo oportunidade de exercitar a compreensão e o espírito inventivo, isto
pode resultar num embotamento e ignorância e, para evitar que isso aconteça, o teórico
afirma que o Governo deve agir, mas que os gastos podem ser mínimos.
O Estado pode facilitar essa aprendizagem elementar criando em cada
paróquia ou distrito uma pequena escola, onde as crianças possam ser
ensinadas pagando tão pouco que até mesmo um trabalhador comum tem
condições de arcar com este gasto, sendo o professor pago em parte, não
totalmente, pelo Estado, digo só em parte porque, se o professor fosse
pago totalmente, ou mesmo principalmente, com o dinheiro do Estado,
logo começaria a negligenciar seu trabalho (SMITH, 1996b, p. 246).
Desta forma, o Estado teria a vantagem da educação elementar e faria bem em
torná-la obrigatória a toda a população, pois segundo Smith (1996b), evitar que as
populações fiquem sem instrução é garantir que o povo não seja desordeiro, que tenha
instrução para que não seja iludido ou supersticioso e que, ainda, não julgue o governo, de
modo que esteja mais facilmente sujeito às determinações do Estado burguês.
A preocupação com a educação não está vinculada à necessidade de preparar
indivíduos para o trabalho, mas é uma forma de compensar os problemas causados pela
intensificação da divisão do trabalho16
ocorrida ao longo dos séculos XVIII e XIX. Essa
intensificação fez com que não fossem “[...] necessários grandes conhecimentos e
habilidades do operário para a realização das tarefas; estas se tornam tão simplificadas que
qualquer um pode executá-las, e o trabalhador passa, então, a ser apenas uma peça a mais
nas engrenagens” (MELLO, 2009, p. 113).
Nos fins do século XIX, uma questão que a burguesia precisou resolver pensando
na conservação de seu status quo, foi a criação da “[...] escola primária obrigatória, gratuita
e laica para todos” (LEONEL, 1994, p. 174). A educação de caráter moral teve como
16
A divisão do trabalho tal qual encontrada na sociabilidade capitalista é tratada por Marx (1982a) na seção
A produção da Mais Valia Relativa, d’O Capital. Explica a cooperação simples, a cooperação fundada na
divisão do trabalho, a Manufatura e a Indústria Moderna, isto é, o desenvolvimento da produção capitalista
que, a grosso modo, vai de meados do séculos XVI até o século XIX.
32
preocupação a formação do sujeito e sua conformação à ordem social hegemônica.
“Portanto, a extensão da escola para todos significa muito mais dar instrução básica e
educação moral àqueles cuja função dentro da fábrica exige qualificações mínimas, além
de dar esta mesma formação a todos os assalariados em potencial” (MELLO, 2009, p.
113).
Não nos esqueçamos de que esse processo de formação da escola, e
desenvolvimento da educação, ocorreu ao longo dos séculos de formação do sistema
capitalista. Ao explicar a origem da educação pública no contexto mundial, Carvalho
(2012) aponta que:
[...] a escola pública, como um sistema formalizado, universal e público é
recente. Foi apenas no final do século XIX ou no início do século XX que
as nações capitalistas mais desenvolvidas como a França, Inglaterra,
Alemanha, Itália, Áustria, Espanha, EUA, organizaram seus sistemas
nacionais de educação, tornando o ensino obrigatório, gratuito e laico. Foi
apenas a partir desse momento que a educação se converteu, de forma
generalizada, em uma questão de interesse público, criada e mantida pelo
Estado (CARVALHO, 2012, p. 45).
Nesse contexto, a preocupação com a educação do corpo é presente “nas
discussões de vários pensadores, estes apresentam a necessidade de mudar hábitos e
valores para a construção de um novo homem livre e independente que responda à nova
forma de produção da vida, em detrimento das relações feudais” (MELLO, 2009, p. 117).
A educação do corpo, entendida como parte essencial da formação do homem, que
incorporou e passou veicular as ideias de “[...] hierarquia, da ordem, da disciplina, da
fixidez, do esforço individual, da saúde como responsabilidade individual” (SOARES,
1994, p. 20). Será construída como valioso instrumento para disciplinar a vontade, para
adequar, para reorganizar e moldar gestos e atitudes necessários para manter a ordem.
2.2 A educação física e seu contexto histórico moderno: a importância de
compreendê-la a partir do materialismo histórico
[...] para compreender a natureza e a função social da educação/educação
física e a raiz das suas questões problemáticas, é fundamental buscar
desvendar como se processa a construção do ser social, como se originam
as categorias fundamentais e como elas se transformam (MELLO, 2009).
33
Buscar a radicalidade das explicações, ou seja, escrutinar os objetos de estudo com
base em um entendimento materialista histórico é um árduo trabalho científico que envolve
a compreensão dos nexos existentes entre o objeto estudado e a totalidade. Ao teorizar
sobre A necessidade histórica da educação física: A emancipação humana como
finalidade, Mello17
(2009) empreende uma explicação da gênese histórica da educação
física e, para tanto, se fundamenta na ontologia materialista histórica evidenciando ser esta
importante por demostrar a possibilidade de emancipação humana.
Apresentando os fundamentos de suas análises, a autora utiliza os conceitos
elaborados ou desenvolvidos por Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), Georg
Lukács (1885-1971), e de outros importantes autores marxistas da atualidade brasileira,
como Ivo Tonet e Sérgio Lessa. Nesse sentido, a autora enfatiza:
[...] recuperar a ontologia materialista formulada por Marx e Engels e,
retomada por Lukács, não significa um confronto de discursos ou de
idéias, e sim a necessidade de analisar objetivamente a prática social para
compreender o processo de desenvolvimento do ser humano, seus nexos,
suas leis históricas e a educação/educação física nesse conjunto.
Compreendê-las não como representações/discursos de seus
professores/teóricos mas como complexos parciais que só possuem
significado na relação com a totalidade social (MELLO, 2009, p. 49).
Para a autora:
E é a partir desse pressuposto que se torna possível compreender os
problemas enfrentados pela área e como parte do gênero
humano/sociedade compreender/atuar dentro das parcas possibilidades
pela transformação radical da sociedade capitalista (MELLO, 2009, p.
50).
Apoiando-se nesse entendimento, a autora apresenta e discute categorias como
trabalho, ser social, teleologia, prévia-ideação, causalidade, objetividade e subjetividade
entre outras. Realiza uma aproximação à discussão sobre o que é o ser social e, objetivando
“[...] apontar que no processo de construção desse ser as contradições apontadas como
dicotomias pelos autores da educação física – corpo/mente, teoria/prática,
17
Em seus estudos Mello (2009) traz uma análise dessas categorias, sendo estas de fundamental importância
para a compreensão materialista histórica da educação física. Esta, enquanto atividade real dos homens,
desenvolvida sob circunstâncias materiais e sociais dadas e, intrinsecamente a elas relacionada. Entendendo a
necessidade teórica de discutir essas categorias, aponta-se as razões de utilizar as sínteses da autora:
primeiramente por se tratarem de categorias teóricas de densa discussão, o que exige ampla reflexão teórica;
e por sua vez requer rigor científico, sendo necessário longo caminho de estudos e amadurecimento teórico.
34
objetividade/subjetividade, indivíduo/sociedade – se constituem em unidades”, e evidencia
que estas “[...] no processo de desenvolvimento das relações sociais são compreendidas
como dicotomias insolúveis e naturalizadas” (MELLO, 2009, p. 50).
Nesse sentido, em sua discussão, a autora demonstra que o processo de constituição
do indivíduo humano não ocorre de forma isolada, como se este fosse uma mônada, mas
sim em um conjunto de relações sociais. “A produção e reprodução da vida realizada no
trabalho é desde o princípio uma ineliminável relação social. Existe sempre uma unidade
entre a produção da história e a produção da humanidade, portanto, dos indivíduos
humanos” (MELLO, 2009, p. 53). Por ser histórico, tal processo marca a essência humana
como histórica, ou seja, constituída nas relações dos homens entre si e em seu intercâmbio
com a natureza. Marx e Engels (2007) assim explicam esse processo:
A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na
procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como
relação natural, de outro como relação social –, social no sentido de que
por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem
as condições, o modo e a finalidade [ ]. Mostra-se, portanto, desde o
princípio, uma conexão materialista dos homens entre si, conexão que
depende das necessidades e do modo de produção e que é tão antiga
quanto os próprios homens – uma conexão que assume sempre novas
formas e que apresenta, assim uma ‘história’[...] (MARX e ENGELS
2007, p. 34).
Nesse intercâmbio, os homens se diferenciam enquanto seres que trabalham com
objetivos específicos e ações previamente pensadas, isto é, finalidades postas as suas
ações. Esse trabalho, de caráter genérico e independente da forma social estabelecida, é
teleologicamente posto, encontra na objetividade uma possibilidade de realizar-se. Mello
(2009) explica que a teleologia e a causalidade,
[...] são partes constitutivas do trabalho, e neste processo fazem com que
o sujeito depois do ato de “pôr”, não se identifique mais com o objeto
posto. A nova objetividade torna-se independente do sujeito que a “pôs” e
passa a ter um desenvolvimento causal, mas uma causalidade posta e não
uma causalidade natural. Esta causalidade posta precisa ser novamente
apreendida pelo sujeito para que possa realizar um novo “pôr” e assim
sucessivamente, suprindo as necessidades construindo sempre uma nova
realidade objetiva e necessitando apreendê-la (MELLO, 2009, p. 54).
Esse “pôr” sucessivo, esse construir uma nova realidade ao suprir uma realidade, é
um processo que ocorre enquanto o ser genérico homem se relaciona em sociedade,
35
enquanto aprende a ser homem. “O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para
viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do
desenvolvimento histórico da sociedade humana” (LEONTIEV, 1979, p. 267). Este
adquirir refere-se às produções e riquezas humanas acumuladas ao longo dos séculos pelas
gerações sucessivas dos homens, “[...] os únicos seres, no nosso planeta, que são
criadores” (LEONTIEV, 1979, p. 267, grifo do autor). Estando esse processo, relacionado
ao trabalho realizado pelo homem enquanto ser social, mediado pela consciência é,
portanto, necessário uma subjetividade que coloque um fim teleológico, mas como já
explicitado essa subjetividade está relacionada à objetividade, à materialidade. Na síntese
de Mello:
É de fundamental importância compreender que é ontologicamente
impossível a existência da subjetividade sem a prévia existência da
objetividade. A subjetividade é a síntese entre teleologia e causalidade,
ou seja, pressupõe o trabalho, como é sempre bom lembrar, categoria da
qual se origina o ser social (MELLO, 2009, p. 59).
O trabalho, como categoria fundante do ser social, é originador do salto
ontológico18
, que marca a passagem do ser natural para o ser social, nessa passagem ocorre
a possibilidade do sujeito se distanciar do objeto, um desdobramento que produz a
consciência. Mello (2009, p. 62) explica que, no “[...] seu desenvolvimento, a consciência
cada vez mais pode ter um domínio sobre o corpo e, os homens, ao criarem as
representações sobre si mesmos, acabam por estabelecer uma cisão entre a consciência e o
corpo.” Mas, alerta que, “[...] a consciência humana está indissociavelmente ligada ao
processo de reprodução biológica de seu corpo. Neste sentido, existe um contínuo ‘recuo
dos limites naturais’, mas nunca a sua completa supressão” (Mello 2009, p. 62).
A autora aponta, então, como se apresenta a dicotomia corpo/consciência,
afirmando que:
18
Mello (2009, p. 53) explica o salto ontológico: “A passagem de um ser para o outro implica, mesmo que o
processo se dê por um longo período, um salto qualitativo, o qual foi chamado por Lukács de ‘salto
ontológico’. O salto (passagem do animal à humanização) que deu origem ao ser social tem como elemento
prioritário o trabalho. O salto de uma esfera de ser para outra significa que, sem eliminar o ser anterior, surge
um ser radicalmente novo, no caso do ser inorgânico para o orgânico o processo de se dá de forma causal na
natureza e estas duas esferas de ser também se desenvolvem de forma causal. No caso do ser social o
processo natural, com o trabalho, dá lugar a um processo que se desenvolve histórica e socialmente afastando
cada vez mais, na expressão de Marx ‘as barreiras naturais’”.
36
Hoje, relacionada à conservação da sociedade, com a crença de
impotência diante do mundo, a dicotomia corpo/consciência se torna
muito presente, como é possível constatar nos textos sobre a educação
física. Na tentativa de mostrar a legitimidade dessa área, sem questionar a
totalidade social na qual se quer ser legítima, se reforça essa dicotomia,
ora por tratar o corpo como um instrumento de um espírito independente
deste, ora por tratá-lo, como o próprio homem sensível, perceptivo,
lúdico independente da racionalidade. O corpo se torna a própria
subjetividade compreendida como sentimentos, vontades, desejos
(MELLO, 2009, p. 66).
Além dessas categorias é discutida a concepção de dicotomia entre teoria e prática,
explicada a partir da teleologia e causalidade, e também da categoria trabalho.
Enfim, não existe nenhuma teoria que não seja relacionada à prática. A
teoria só surge como apreensão consciente da realidade possibilitada pelo
reconhecimento da separação/relação entre a subjetividade e objetividade.
Pode estar relacionada com uma ontologia fictícia, pode aparentar não ter
fundamentação histórica, mas é formulada a partir da práxis. Pode estar
relacionada com o trabalho imediato de forma precisa ou permeada por
interesses sociais que necessitam se pautar em teorias gerais equivocadas
para a perpetuação das relações sociais, ou seja, continuidade de
determinada produção da vida. Mas, na existência do ser social teoria e
prática, apesar de heterogêneas, só existem em relação, sempre formam
uma unidade (MELLO, 2009, p. 78).
O uso dessas categorias permite à autora discutir a necessidade histórica da
Educação Física, que como atividade passa a fazer parte da construção do ser social.
Inicialmente, as atividades físicas ou corporais possuem como finalidade
sentidos/significados diferentes da “atividade educativa” (MELLO, 2009, p. 78). Reafirma
que o desenvolvimento humano é histórico e não natural. Aponta que a educação física na
sociedade capitalista também é um produto do desenvolvimento histórico e, portanto,
também não é natural. E assim, as atividades físicas são também determinadas pelas
relações sociais.
[...] os movimentos humanos de correr, saltar etc. possuem uma
finalidade, ou seja, são movimentos teleologicamente postos. Não são
como os movimentos instintivos dos animais cujas ações são
determinadas biologicamente para assegurar sua sobrevivência e
adaptação às condições naturais. Daí que o correr, o saltar, o nadar etc.
dos seres humanos modifica-se, pois são atividades histórico-sociais que
atendem a determinadas necessidades produzidas e não mais puramente
biológicas (MELLO, 2009, p 81).
37
Se os movimentos humanos são atividades histórico-sociais, estão então
relacionadas à materialidade dada;
Na sociedade capitalista as manifestações dessas atividades às quais
chamamos de cultura corporal – pois são os sentidos e significados
construídos pelo ser social historicamente – estão relacionadas com a
lógica desta sociedade, ou seja, tendencialmente todas as atividades se
tornam mercadorias. Desde aquelas para manutenção da saúde, a arte, as
esportivas e lúdicas, acrescentando aquelas que surgem para ajudar a
compensar os problemas de saúde causados pela forma de organização do
processo de trabalho (MELLO, 2009, p. 82).
Têm-se, a partir desta compreensão, importantes elementos para entendermos a
educação física enquanto um processo histórico diretamente relacionado à realidade maior,
às relações sociais engendradas na sociedade capitalista. Isto é, como complexo particular
que se desenvolve em relação à totalidade, a educação física19
se desenvolve em relação à
sociedade capitalista.
No ressurgimento da Educação Física, não se trata mais da antiga
educação guerreira ou da educação cortesã, mas da formação do cidadão
moderno. Nessa educação, os exercícios físicos funcionariam como
higienizadores, disciplinadores do caráter e da vontade, formadores do
sentido patriótico que colaboraria na formação (Alemanha, Japão e
Itália), manutenção e aperfeiçoamento (França, Bélgica, Inglaterra e
Estados Unidos) dos Estados Nacionais (MELLO, 2009, p. 103).
No período, a preocupação com a educação física, enquanto preparação e
aprimoramento do ‘corpo humano’, apresentou-se nas concepções de renomados
pensadores. Alguns dos quais, defendiam os valores burgueses e, apreciavam o exercício
físico como parte de uma boa educação, Mello (2009) apresenta, como exemplo: Michel de
Montaigne (1533 – 1592), João Amós Comenius (1592 – 1670), John Locke (1632 –
1704), Adam Smith (1723 – 1790).
Tais autores preocuparam-se em explicitar e divulgar os interesses da nova
sociedade que se contrapõe e revoluciona as bases da sociedade feudal (MELLO, 2009, p.
104). Essa nova sociedade exigia “a necessidade de mudar hábitos e valores para a
construção de um novo homem livre e independente que responda à nova forma de
produção da vida, em detrimento das relações feudais” (MELLO, 2009, p. 116).
19
O objetivo nesse momento não é recontar a história moderna da educação física, isto já foi objeto de estudo
de muitos autores: Castellani Filho (1988), Ferreira Neto (1999), Soares (2004), dentre outros.
38
O contexto de dissolução das relações feudais possibilitou a constituição de novas
relações humanas. A consolidação da sociabilidade capitalista foi um processo histórico de
constituição de uma nova ordem política, econômica e social, enfim, uma nova forma de
produzir e reproduzir a vida. Nesse processo, “[...] a preocupação com a educação física no
pensamento dos autores liberais estava voltada para formação do burguês ou do ‘indivíduo
egoísta’” (MELLO, 2009, p. 106). Já a preocupação com a educação para a classe
trabalhadora, emerge posteriormente no contexto de consolidação da sociedade capitalista,
quando “[...] os primeiros sinais de uma escola de massas, ou seja, a ampliação obrigatória
para todos, se deram no sentido de respaldar as novas formas de trabalho20
desenvolvidas
no modo de produção capitalista no séc. XVIII” (MELLO, 2009, p.107).
É necessário distinguirmos os tempos históricos. A educação, na sociedade feudal,
como e para quem é ofertada, é diferente da educação praticada durante os primeiros
séculos da sociedade que está revolucionando as bases feudais. E esta, é diferente da
educação que está sendo pensada nos séculos de consolidação do capitalismo. Leonel
(1994) afirma que ao longo deste período, pode-se verificar “uma adaptação da escola ao
conjunto dos acontecimentos políticos, sociais e econômicos” (LEONEL, 1994, p; 176). A
luta21
pela escola obrigatória, gratuita e laica, tratou-se de “[...] um acontecimento mais ou
menos sincronizado entre os países, determinado pelas mesmas necessidades, mas não
resolvido da mesma forma” (LEONEL, 1994, p. 181).
Esse acontecimento, nos diferentes países, é marcado pela universalidade do
sistema capitalista. A classe burguesa já dominante, precisa assegurar a reprodução e
expansão do capital. Afirma Leonel (1994) que,
[...] os interesses burgueses têm que passar pelo sufrágio universal e a
sociedade se encontra divida em classes antagônicas, a escola pública não
pode mais ser adiada. É preciso educar o novo soberano, transformando o
20
No início desta seção apresentamos a forma de trabalho capitalista, que pressupõe compra e venda de força
de trabalho, portanto, a relação entre o capitalista e o trabalhador. Este produz sob o controle daquele, a quem
pertencem os meios e instrumentos de produção, e ao final de todo o processo, também o produto do
trabalho. Capitalista e trabalhador são duas classes antagônicas que emergiram no processo histórico de
formação da sociabilidade capitalista. “O processo que produz o assalariado e o capitalista tem suas raízes na
sujeição do trabalhador. O progresso consistiu numa metamorfose dessa sujeição, na transformação da
exploração feudal em exploração capitalista” (MARX, 1982b, p. 830). 21
Leonel (1994) investigou a história da escola pública, a criação do Sistema Nacional de Ensino, na França,
e a influência que a escola francesa exerceu sobre outros países, incluindo o Brasil. A autora evidencia que
no contexto de formação da sociedade capitalista, a matriz do pensamento educacional está representada por
Locke e Rousseau. Um preocupado com a educação do burguês egoísta e outro com a formação do cidadão,
respectivamente. A pesquisadora evidencia que nesses autores a teoria liberal de educação é definida e
dirigida a uma classe, visando harmonizar as relações entre indivíduo, sociedade e Estado.
39
sujeito, submetido aos antigos poderes, em cidadão defensor da pátria
amada; substituir seus ‘deveres para com Deus’ pelos seus ‘deveres para
com o Estado’ (LEONEL, 1994, p. 185).
Desta forma, a afirmação dos interesses burgueses perpassa a necessidade de
oferecer escola publica, “[...] a necessidade da escola aparece junto com a necessidade
burguesa de reprodução do capitalismo” (MELLO, 2009, p. 113). Acompanhando esse
processo a “educação do corpo” passa a contribuir para a educação do burguês/cidadão.
Como afirma Soares (2004):
A Educação Física integra, portanto, de modo orgânico, o nascimento e a
construção da nova sociedade, na qual os privilégios conquistados e a
ordem estabelecida com a Revolução Burguesa não deveriam mais ser
questionados. Estava sendo criada pelo homem, sujeito que conhece,
uma sociedade calcada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,
uma sociedade na qual haveria um mercado livre, uma venda livre da
força de trabalho (SOARES, 2004, p. 6, grifo nosso).
Assim, a educação física foi inserida nas discussões e proposições de formação
desse homem/corpo saudável, disseminada pela medicina do século XVIII como a
formadora da disciplina, e higienizadora do corpo. O “[...] conhecimento médico, ao curar
doenças, conter epidemias, e, neste sentido, aumentar o tempo de vida útil dos indivíduos,
significou uma certa ‘libertação’ para o homem e para a sociedade” (SOARES, 2004, p.
21). Desta maneira, a medicina ganhou grande prestígio ao longo da formação da
sociabilidade capitalista, com discursos e práticas higienistas e moralizadoras, constitui-se
em instrumento de intervenção na sociedade, impôs-se “[...] à família, ditando-lhe uma
educação física, moral, intelectual e sexual” (SOARES, 2004, p. 25).
O discurso higienista na Europa do século XIX veiculava a idéia de que
as classes populares viviam mal por possuírem um espírito vicioso, uma
vida imoral, liberada de regras e que, portanto, era premente a
necessidade de garantir-lhes não somente a saúde, mas fundamentalmente
a educação higiênica e os bons hábitos morais (SOARES, 2004, p. 25).
Ora, por que então, a educação física e moral? Por que integra a educação física o
discurso médico? Explicitando as consequências da produção mecanizada22
sobre o
22
Para relembrar que se está tratando da educação física escolar na sociedade moderna, fala-se nesse
momento da sociedade capitalista já consolidada, já num momento de indústria moderna, com maquinário e
instrumentos de trabalho já revolucionados, em sua forma mais desenvolvida “no sistema orgânico de
máquinas da fábrica” (MARX, 1982a, p. 449). Sabe-se que existiu um complexo desenvolvimento nos
40
trabalhador, Marx (1982a) argumenta que a maquinaria dispensa o uso da força muscular.
Em suas palavras:
Tornando supérflua a força muscular, a maquinaria permite o emprego de
trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento físico
incompleto mas com membros mais flexíveis. Por isso, a primeira
preocupação do capitalista ao empregar a maquinaria, foi a de utilizar o
trabalho das mulheres e das crianças. Assim, de poderoso meio de
substituir trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se
imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados,
colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de
sexo e de idade, sob o domínio direto do capital (MARX, 1982a, p. 449).
Se, por um lado, não é necessária a educação do corpo, se as máquinas permitiram
o uso do trabalho infantil e feminino pois dispensa o uso de força física, por outro, existe
uma completa degradação humana, com a exploração de todos os membros das famílias
dos operários. Marx (1982a, p. 455) analisou elementos de relatórios oficiais das
comissões de inquérito e evidenciou a “[...] degradação moral ocasionada pela exploração
capitalista das mulheres e crianças”. Reportando às condições de higiene, do trabalho
exaustivo das crianças, a possibilidade de educação, de segurança, dentre outras apresenta,
com elementos reais, as condições de trabalho e da vida dos trabalhadores.
Outra importante obra que relata tais condições é A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra, escrita por Engels (2010). Apresenta, com base em documentos oficiais e
observações empíricas, como se encontra a classe operária. Em descrições vívidas relata a
miséria que se alastra por toda a Inglaterra ocasionada/ampliada pela Revolução Industrial.
É, portanto, para o trato dessas condições, dessas misérias produzidas pelo
capitalismo em sua consolidação, que a educação física, estruturada ou não, no interior da
escola, expressa o discurso médico/burguês e, como aponta Soares (2004):
Ela incorporará e veiculará a idéia da hierarquia, da ordem, da disciplina,
da fixidez, do esforço individual, da saúde como responsabilidade
individual. Na sociedade do capital, constituir-se-á em valioso objeto de
disciplinarização da vontade, de adequação e reorganização de gestos e
atitudes necessários à manutenção da ordem. Estará organicamente ligada
ao social biologizado, cada vez mais pesquisado e sistematizado ao longo
do século XIX, pesquisas e sistematizações estas que vêm responder,
sistemas de produção capitalista, desde a cooperação simples, às corporações de oficio, à manufatura, e o
desenvolvimento da maquinaria e grande indústria. Entende-se que o desenvolvimento de um modo de
produção não suprime instantaneamente, nem extingue o modo de produção anterior, mas que, se apresenta
como forma dominante nas relações de produção, as explicações de Marx (1982a) são de importante
elucidação para se compreender o movimento histórico desse processo.
41
paulatinamente, a um maior número de problemas que se coloca a classe
no poder (SOARES, 2004, p. 14).
A educação física, em sua origem europeia moderna, foi disseminada pelo discurso
médico/burguês que valorizou seu caráter biológico e higiênico, num momento de
formação dos Estados capitalistas e necessidade de mão de obra abundante e disciplinada.
Durante a consolidação da sociabilidade capitalista, produtora da exploração e miséria de
um grande contingente humano, essa disciplina contribuiu com o propósito de preparar o
corpo adestrado e disciplinado do cidadão moderno para o trabalho, além de ter servido de
compensação para os efeitos degradantes do trabalho. A educação física – higienizadora e
responsável pela saúde física – auxiliaria os trabalhadores em seus cuidados com o corpo,
bem como, tinha o propósito de desenvolver o senso patriótico, moral e cívico, tão
necessários à manutenção da ordem burguesa.
Nossas sínteses demonstraram a origem da educação escolar e a origem da
educação física relacionadas à formação e consolidação do capitalismo. Na sequencia das
ideias, buscaremos verificar como a expansão dessa sociedade que se mundializa, afeta as
populações indígenas na América Latina e, sobretudo no Paraná.
2.3 A expansão capitalista e as populações indígenas no Paraná
No Peru e no México, ouro e prata não serviam como dinheiro, ainda que
existissem como ornamento e houvesse ali um sistema de produção
desenvolvido (MARX, 2011, p. 183).
O contato da sociedade mercantil europeia com os diferentes grupos indígenas das
Américas foi um processo bárbaro, de conquista, de exploração, rapina e genocídio. Essa
exploração, no continente americano, começa nos fins do século XV e início do XVI,
resultando no extermínio de inúmeros nações. “Estimativas apontam que no atual território
brasileiro habitavam pelo menos 5 milhões de pessoas, por ocasião da chegada de Pedro
Álvares Cabral, no ano de 1500. Se hoje esse contingente populacional está reduzido a
pouco mais de 700.000 pessoas, muitas coisas ruins as atingiram” (LUCIANO, 2006, p.
17).
42
A necessidade de expansão mercantilista, precursora da sociedade capitalista,
ocorreu no sentido de constituir um comércio mundial, encontrar outras fontes de matéria
prima e, isto desencadeou a ocupação dos territórios americanos, a expulsão, o extermínio,
a rapina e a escravidão dos povos indígenas. O Resultado dessas expansão somado ao
processo de cercamento dos campos na Europa, estabeleceu as bases de uma sociedade
mercantil, onde a produção da vida humana é possível mediante a apropriação privada e
concentração nas mãos da classe burguesa que se apropria dos meios de produção e de toda
a riqueza produzida por meio da exploração de riquezas naturais e da força de trabalho
humana.
O contato e a colonização destes territórios, como ocorrido em toda a América
Latina, não foi um processo pacífico, pelo contrário, foi um processo de expropriação
violento e de constantes lutas entre os indígenas e os conquistadores.
A exploração das populações indígenas pelos conquistadores não foi sem
obstáculos, como afirmam muitos autores, e a conquista dos seus
territórios também não ocorreu de forma pacífica. Em todos os momentos
e por várias etnias, a resistência foi renhida e sangrenta. [...]. A conquista
desses territórios foi feita palmo a palmo com o uso da espada, do
arcabuz, da besta, da cruz, de doenças e de acordos. (MOTA; NOVAK,
2008, p. 41).
No Brasil, em particular no estado do Paraná, os grupos indígenas empreenderam e
empreendem forte resistência aos exploradores europeus. Os Guarani travaram lutas contra
os bandeirantes paulistas e também contra os espanhóis que buscavam mão de obra escrava
para trabalhar nas fazendas paulistas. Lembremo-nos que o contexto mundial é de
expansão mercantil capitalista que carecia da formação de um mercado consumidor
colonial. No combate, entre os séculos XVII e XVIII, parte dessas populações indígenas
Guarani emigra para as terras paraguaias e mato-grossenses, e outra parte retira-se para o
sul formando com outras tribos os Povos das Missões (MOTA, 2009, p. 87-90). É a partir
desse momento que os Kaingang afirmam sua presença nos territórios que vão “[...] desde
o rio Tietê em São Paulo, até os campos do sul do rio Uruguai no Rio Grande do Sul”
(MOTA, 2009, p.91).
É vasta a documentação e literatura que versa sobre a presença indígena nos
territórios paranaenses, e especificamente sobre os Kaingang que residiam nesse
43
território23
. Tommasino (1995), Tommasino e Fernandes (2001), Mota (1998; 2009), Mota
e Assis (2008), Mota e Novak (2008), apresentam estudos que comprovam a resistência, as
lutas e as estratégias políticas usadas pelos indígenas para a sobrevivência, sobretudo nos
processos de expropriação das terras, derrubada das matas, poluição dos rios, enfim toda a
violência do sistema empreendida contra a organização sociocultural indígena baseada em
princípios de coletividade.
Esse processo de expropriação de terras, resultante da expansão capitalista, se
mostra semelhante ao processo de desapropriação de terras que ocorreu em toda Europa,
também a partir do século XV, e marca o modo violento operado para a consolidação da
ordem capitalista. Sobre o processo de desapropriação de terras Marx (1982b) assevera
que:
[...] a violência que se assenhoria das terras comuns, seguida em regra
pela transformação das lavouras em pastagens, começa no fim do século
XV e prossegue no século XVI. Mas, então, o processo se efetivava por
meio de violência individual, contra a qual a legislação lutou em vão
durante 150 anos. O progresso do século XVIII consiste em ter tornado a
própria lei o veículo do roubo das terras pertencentes ao povo, embora os
grandes arrendatários empregassem simultânea e independentemente seus
pequenos métodos particulares (MARX, 1982b, p. 840).
A ação violenta, o uso de meios legais, o roubo das terras, expropriação de suas
formas de subsistência, são características comuns de processos que ocorrem em locais
distintos, mas que expressam a luta de classes que se consolida na sociedade capitalista
quando da formação e afirmação desse sistema. Na Europa, há um momento de transição
do modo feudal para o modelo capitalista de produção e reprodução da vida, a necessidade
de romper com as relações até então existentes, as relações de servos e senhores, Era
preciso libertar das amarras que o prendiam e tornar livre o servo – o camponês. Era
preciso torná-lo trabalhador assalariado.
No Brasil, esse processo de expansão do capital e, expropriação de terras, matou e
expulsou os povos indígenas de suas terras tradicionais, eliminando e os empurrando na
busca de trabalho tentando torná-los trabalhadores escravos das grandes fazendas. Quando,
entretanto, não era possível convertê-lo em mão de obra optava-se pelo extermínio por
23
Estudos evidenciam que o território paranaense tem sido ocupado continuamente, por mais de 8.000 anos,
por diferentes populações, e que especificamente os Kaingang tenham emigrado para o sul há
aproximadamente 3.000 anos, sendo a guerra com outras etnias – e a colonização europeia – fatores que
também contribuíram para essa dispersão (TOMMASINO, 1995; MOTA e NOVAK, 2008; MOTA, 2009).
44
meio da guerra, primeiramente como inimigos da coroa, e depois do progresso nacional.
Tanto no período colonial, quanto no imperial, nos quais grande parte das terras era ainda
ocupada pelos povos indígenas, a expropriação se expressou por meio da violência física,
da coerção, do extermínio, da guerra, da expropriação das terras tradicionais com o apoio
de políticas de aldeamento. Política esta que retirou os povos de suas terras tradicionais
confinando-os a aldeamentos, as chamadas reservas indígenas.
Um processo violento que dizimou etnias, separou famílias, disseminou doenças e
colocou estas populações em situação de extrema pobreza e dependência (FAUSTINO,
2006), até que em 1850 a expropriação se consolidou por meios legais:
Em 1850, a aprovação da Lei de Terras que regularizou o regime de
propriedade territorial no Brasil foi extremamente prejudicial aos índios;
a partir dessa lei as terras indígenas foram expropriadas e incorporadas ao
patrimônio nacional ficando os índios apenas com seu usufruto sem a
propriedade das mesmas (FAUSTINO, 2006, p. 31).
Mesmo aldeados, a falta de garantia sobre as pequenas parcelas de terras ocupadas
propicia a invasão de fazendeiros e grileiros que avançam por sobre os territórios indígenas
expulsando-os. Embora a relação de propriedade de mão de obra fosse totalmente diferente
da que se consolidou na Europa – pois aqui se caracterizava como mão de obra escrava ao
passo que na Europa os trabalhadores não eram mais camponeses servis, mas trabalhadores
expropriados dos meios de produção – ainda assim, os processos violentos de retirada da
terra, a criação de fazendas de gado, e de plantio de café, expressaram o momento de
expansão da sociedade capitalista e integração e marginalização das sociedades indígenas.
Marginalizados, porque essas populações, durante séculos, viveram de forma coletiva em
suas etnias reproduzindo sua vida, sem a exploração do trabalho alheio e sem o regime de
acumulação, estavam agora sem a base material, a terra, para produzirem sua subsistência.
E, integrados ao modo de produção capitalista, pois, este como forma geral dominante do
processo de produção em expansão (MARX, 1982b), determinou todas as relações
humanas e refletiu de modo específico na sociedade brasileira em formação.
As transformações em seus modos de vida, o confronto com a sociedade mercantil
que lhes expropriou a terra, é um processo que percorreu os anos de contato. Buratto,
Barroco e Faustino (FAUSTINO, 2010, p. 109) afirmam que, “[...] desde o século XVI, os
povos indígenas lutaram para garantir suas terras no processo de colonização, assim como
45
contra outras imposições que a lógica das épocas moderna e contemporânea lhes
impuseram e que mudaram radicalmente seus modos de vida”.
Essas imposições vão se fazendo ao longo dos séculos e os conflitos se
intensificaram no século XIX, marca desse século, por exemplo, o objetivo do governo do
império de ocupar os territórios do interior paranaense, criar enormes fazendas, os
latifúndios, de gados e garantir a ocupação colonial dessas terras (MOTA, 2009; MOTA e
NOVAK, 2008). Em meio a essa realidade, os indígenas já muito dizimados pela poderio
bélico da burguesia, mudaram suas estratégias de luta e exigiram do governo do estado a
demarcação de seus territórios. Regulamentadas as terras em favor dos proprietários
privados (Lei de Terras) e tendo sido os grupos étnicos praticamente dizimados e a
escravidão abolida oficialmente, nos fins do século XIX e começo do século XX, ocorreu
uma mudança no tratamento político dispensado aos indígenas, que passaram a ser
inseridos em um discurso de proteção (FAUSTINO, 2006, p. 31). Proteção de cunho
positivista usado pelos humanistas em um momento de violento avanço da expansão
capitalista. Os indígenas, que já vinham modificando também suas estratégias de luta
contra o sistema, começaram a fazer o uso da escrita, que se adquire por meio da educação
escolar, para somar com suas estratégias de resistência e luta contra o sistema.
No que se refere ao acesso à linguagem escrita, é importante ressaltar que as
populações indígenas possuem uma tradição oral. A educação tradicional é feita por meio
da palavra (FAUSTINO, 2006, p. 39), porém, o acesso à linguagem escrita, bem universal
elaborado pela humanidade, permite a melhor elaboração de suas reivindicações e
exigências bem como, denuncias ao Ministério Público pelos maus tratos e violências
sofridas no sistema capitalista. Assim, grande parte dos povos compreende e confere
importância à escola e aos conhecimentos que se pode acessar por meio dela
incrementando suas estratégias de resistência à expropriação de suas terras.
A guisa de exemplo, em 1933 chefes Kaingang endereçaram uma carta às
autoridades do Estado do Paraná, à comissão de proteção aos índios e, explicando, por
meio da escrita o conflito existente entre os índios e os fazendeiros explicitaram a falta de
apoio do poder público. Denunciam que, aliados ao então subdelegado Caetano Ferraz e a
criminosos, os fazendeiros, empreendiam toda série de violência, afirmando que as terras
não eram dos índios ameaçavam matá-los. Afirmaram que os ataques eram especialmente,
dirigidos ao índio Avelino, que sabia escrever e era capaz de denunciá-los (MOTA 2009,
p. 228).
46
A carta é uma importante expressão da luta, um exemplo da mudança de
estratégias, na tentativa de garantir suas terras e seus tradicionais modos de vida, na qual a
educação escolar e o acesso à linguagem escrita, possibilitados pelo contato, passam a ser
reconhecidos como de importância para enfrentamento do sistema.
Exemplifica-se assim, a importância do acesso à educação, ao conhecimento da
leitura e da escrita da Língua Portuguesa – que no caso brasileiro é a língua da sociedade
do entorno –, explicita também as contradições que permeiam as lutas de classes, quando o
indígena expropriado de sua terra, lançado à sorte no sistema de mercado, se utiliza da
arma do dominador: a escrita, um conhecimento aprendido a partir do contato com a
sociedade do entorno. A apropriação da escrita e da cultura universal servirá neste contexto
como estratégia de sobrevivência aos povos indígenas.
Os desdobramentos desse processo histórico, social, político e econômico de lutas,
conflitos e de adaptação à nova ordem avassaladora que se impunha, de uma forma geral
no Brasil – mas particularmente às populações indígenas – determinaram as políticas de
demarcação de terras, da educação, e políticas estatais para responder às demandas dessas
populações, aldeadas, restringidas a pequenas porções de terras.
No século XXI, o avanço da exploração capitalista, a geração de energia e a
construção de hidroelétricas é o motivo atual desse sistema para o reapropriar-se das
terras que restaram aos povos indígenas. Em face desse contexto de conflitos e lutas, os
indígenas destituídos dos meios para reprodução de sua forma tradicional de vida podem,
por meio da educação e do acesso à linguagem escrita, traçar novas estratégias de luta e
sobrevivência. A educação escolar se apresenta, então, como elemento possibilitador e,
além disso, instrumentaliza a luta indígena quando estes passam, utilizando-se dela, a
exigir a demarcação de suas terras, e denunciar os abusos do sistema econômico.
Dessa forma, é importante observar como se constituiu a educação escolar para os
povos indígenas no Brasil, as possibilidades e o que prevê a legislação para essa
modalidade de ensino.
2.4 A educação escolar indígena no Brasil
O processo de colonização do Brasil, escravidão e catequese dos índios –
no contexto da expansão mercantil europeia – além de produzir o
47
extermínio de muitas etnias, dificultou o conhecimento da experiência
histórica, das instituições, dos sistemas de valores, da produção e
disseminação do conhecimento e da concepção de mundo destes povos
(FAUSTINO, 2006, p. 29).
O projeto colonizador visava inserir as populações indígenas no sistema mercantil
como mão de obra escrava, para tanto era preciso civilizar o “selvagem” para que este
aceitasse sua nova condição de explorado. O objetivo era que os indígenas, ao receberem
instrução se integrassem à “civilização”. A política de educação, por meio da catequização,
seguiu, então, o modelo de colonização, de caráter moralista e noções de civilidade,
conduzida primeiramente pelos padres jesuítas e depois por outras ordens religiosas. Em
algumas regiões as línguas indígenas eram decodificadas e textos doutrinários utilizados
para instruir os indígenas segundo um modelo doutrinário cristão (FAUSTINO, 2006, p.
29). Assim, “O projeto de educação para os índios no Paraná seguiu o mesmo padrão do
projeto colonial, ou seja, catequese e civilização, iniciada com a ação dos jesuítas (séculos
XVII e XVIII) e continuada nos aldeamentos (século XIX) com o trabalho de outras ordens
religiosas” (FAUSTINO, 2006, p. 227).
Por meio de lutas e da manutenção de parte de suas tradições, os indígenas
resistiram à integração, o que contraria o projeto colonizador de expansão e dominação
sobre novos territórios e exploração das riquezas. As políticas propostas para estes povos
são semelhantes tanto no período colonial quanto no imperial, quando se usavam a
catequese, a guerra, o extermínio e a pacificação dos sobreviventes. Diversas são as
propostas ao longo do século XIX para resolver “a questão indígena”, muitas delas foram
gestadas no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro24
(IHGB) e veiculadas pela Revista
do IHGB (MOTA, 1998, p. 153).
Propondo-se a examinar o rol dessas propostas Mota (1998) faz um estudo
sistemático das revistas publicadas desde a edição de 1839 até a de 1889, para apontar as
“soluções” que eram discutidas pela elite brasileira, como propostas que balizavam as
políticas indigenistas para estas populações, consideradas um obstáculo à consolidação do
Estado nacional em expansão e da mercantilização do que restara das terras.
Apresenta-se, por exemplo, “[...] o artigo do capitão Barreto [que] ancorava-se no
Diretório Pombalino de 1757, e sua proposta de como “civilizar” os índios passava pela
24
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 21 de outubro de 1838 e tem por finalidade
preservar a cultura nacional, estimular os estudos históricos, geográficos e de outras ciências sociais sobre o
Brasil e reunir e divulgar documentos relativos a sua formação e identidade, com vistas à preservação da
memória nacional (IHGB, 2005).
48
retirada dos padres da administração e pela sua entrega aos civis” (MOTA, 1998, p. 153).
Direcionar as políticas indigenistas, naquele período, objetivava civilizar e integrar o
indígena ao Estado nacional, leia-se sistema capitalista, em expansão. Outro exemplo,
trazido por Mota (1998), é expresso nas ideias de José Bonifácio para quem,
[...] os meios para se levar adiante a “civilização dos índios”, os quais vão
desde justiça em relação ao não-esbulho de suas terras, passando pela
brandura no seu trato, até a criação de um Tribunal Provincial
encarregado do governo das missões e aldeias dos índios da província.
Muitas das ideias, expostas nos Apontamentos por José Bonifácio, vão
ser aplicadas a partir da criação dos aldeamentos religiosos, em 1845
(MOTA, 1998, p.154).
Dentre outras propostas veiculadas na RIHGB levantadas por Mota (1998), estão as
de aldeamento por etnia, a catequese religiosa como meio de se evitar a guerra aos índios,
e, ainda, o branqueamento dos índios, a mescla das populações ameríndias com o “sangue
português” com vistas à integração dos índios à nação brasileira pelo branqueamento.
A proclamação da República em 1889 marca um momento em que a separação
oficial entre Igreja e Estado e, por consequência uma ruptura com um modelo de
educação/instrução fundamentalmente religioso. Com a influência do pensamento
positivista25
e do discurso modernizador, a questão indígena passa a ser pensada de forma
diferente: “Os positivistas defendiam a ideia de que os índios estavam ainda no período da
infância da evolução do espírito humano”, como evidencia Faustino (2010, p. 35) para
25
Os princípios da Ciência positivista foram sistematizados por Augusto Comte (1798 - 1857), sua teoria
concebe três estágios de evolução do espírito humano. Consiste basicamente na dedução das leis que regem o
desenvolvimento da sociedade com base na aplicação dos métodos matemáticos às ciências sociais. De
acordo com seu Sistema de Filosofia Positiva, “[...] todas as nossas especulações estão inevitavelmente
sujeitas, tanto no indivíduo como na espécie, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes, que
as denominações de teológico, metafísico e positivo podem aqui qualificar de modo suficiente para aqueles,
pelo menos, que tiverem compreendido seu verdadeiro sentido geral” (COMTE, 19--, p. 15). Em síntese, no
primeiro estágio, o teológico, as especulações manifestam uma predileção por questões mais insolúveis e
inacessíveis, está em harmonia com a situação inicial de nossa inteligência, numa época em que o espírito
humano procura avidamente a origem de todas as coisas, as causas essenciais, dos diversos fenômenos que o
impressionam, retira as explicações dos objetos materiais e as transportam a diversos seres fictícios, cuja
intervenção ativa e contínua se torna fonte de todos os fenômenos humanos (COMTE, 19--, p. 16-18). No
segundo estágio, o metafísico, as especulações dominantes conservaram o mesmo caráter essencial de
tendência aos conhecimentos absolutos, tenta explicar a natureza íntima dos seres, a origem, o destino, a
essência dos fenômenos, por meio de entidades ou abstrações personificadas (COMTE, 19--, p. 20-3). E, por
fim, o terceiro estágio, a positividade racional, “[...] o espírito humano renuncia de ora em diante às pesquisas
absolutas que só convinham à sua infância e circunscreve sues esforços no domínio, desde então rapidamente
progressivo, da verdadeira observação, única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis,
sabiamente adaptados a nossas necessidades reais [ ], a revolução fundamental que caracteriza a virilidade
de nossa inteligência consiste essencialmente em substituir por toda parte, à inacessível determinação das
causas propriamente ditadas, a simples pesquisa das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os
fenômenos observados.” (COMTE, 19--, p. 24, grifo nosso).
49
estes, os indígenas mereciam “[...] tratamento por parte do governo que proporcionasse a
evolução do estágio primitivo para o estágio científico (civilizado)”.
Em 1910, sob a influência dos positivistas, é criado o Serviço de Proteção aos
Índios – SPI26
– que passa a cuidar da questão indígena no país para levar em frente o
projeto de assimilação e controle dos povos indígenas. A integração dos índios como uma
estratégia de colocar o indígena no mercado de trabalho e submetê-lo à lógica imposta do
modo de produção capitalista, ocorreu por meio de projetos de agricultura e de educação
profissional, a criação de reservas e as políticas de aldeamento, que seguiram o modelo de
violência contra esses povos.
A escola indígena passa a seguir os moldes das escolas rurais na década de 1940,
nas palavras de Faustino (2010).
Eram construções de madeira, com infraestrutura precária, que atendiam
turmas multisseriadas, assumidas por um único professor, com programas
de ensino e material didático padronizados por todo o país. Nessas
escolas, estudavam índios e não-índios, filhos de colono, trabalhadores
rurais e demais moradores das proximidades (FAUSTINO, 2010, p. 35).
Pouco mais de vinte anos depois, quando o modelo capitalista no Brasil sofreu
ameaças políticas abriu-se o espaço para a instauração de uma ditadura militar, o país vivia
um novo contexto histórico e político. A ruptura política da década de 1960 garantiu a
manutenção da ordem socioeconômica, mas trouxe consigo a alteração da estrutura
política, para que a elite no poder pudesse preservar a ordem socioeconômica. No contexto
da ditadura militar, em 1967, o SPI é substituído pela Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) que corroborava com a política do governo militar de pacificação dos povos
indígenas (FAUSTINO, 2010, p. 36) e, desta forma, se os territórios que essas populações
ocupavam fossem julgados de prima importância para o progresso nacional, sem o menor
pudor a transferência forçada para outras regiões era não só realizada, como apoiada
legalmente (FAUSTINO, 2006; 2010).
A FUNAI, de acordo com determinações do governo militar brasileiro, estabeleceu
relações com a organização evangélica norte americana, Summer Institute of Linguistics–
SIL, essa agência que inicialmente fora barrada pelos positivistas laicos no começo do
26
A criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI – se deu no período final do século XIX e início do século
XX, como resposta política à necessidade de resolver as questões indígenas, ante as questões da proclamação
da República, a modernização do país, e a iniciativa de uma política de “proteção” aos índios (FAUSTINO,
2011).
50
século (FAUSTINO, 2006, p. 34), nesse período em diversas regiões brasileiras, “[...]
missionários do SIL tornaram-se responsáveis pela codificação de línguas indígenas,
alfabetização na língua materna, elaboração de materiais didáticos específicos e
coordenação de projetos educativos” (FAUSTINO, 2010, p.37). Comentando sobre a
atuação dos organismos internacionais e sua atuação na política para educação escolar
indígena, Monte (2000) fala sobre o papel do SIL explica que:
O Instituto Linguístico de Verão, ILV, é uma das importantes agências
missionárias fundamentalistas norte-americanas que atuam na América
Indígena há meio século, sobretudo por meio de processos educacionais
em língua indígena. Tem como principal missão levar a palavra de Deus
aos povos sem escrita, através de instrumentos como a escola, a
alfabetização e a leitura em língua indígena. Seu trabalho, de alto poder
corrosivo, mas muito aceito pelos estados nacionais, foi precursor de
outras presenças missionárias de igrejas evangélicas em toda a América
(MONTE, 2000, p. 120).
Faustino (2006; 2010) evidencia, ainda, que o propósito desta agência foi inserir os
povos indígenas no sistema capitalista de mercado. Os “[...] objetivos do SIL eram a
conversão do índio à fé cristã e sua inserção pacífica no sistema produtivo (venda da força
de trabalho e consumo de produtos industrializados)” (FAUSTINO, 2010, p. 38). Iniciou-
se, com a intervenção desta organização, um “novo” paradigma para a educação escolar
indígena, a preservação da língua e, sobretudo, da cultura desses povos, a valorização do
cotidiano imediato destas populações em detrimento de um conhecimento humano mais
amplo a ser ensinado na escola. Essa valorização da língua e da cultura coaduna com as
políticas e interesses internacionais de organismos que, após a Segunda Guerra Mundial, se
preocuparam com um projeto de educação para as minorias (FAUSTINO, 2006, p. 36),
legitimado por um discurso de garantir, por meio da educação, a construção de um mundo
tolerante e que respeitasse as diferenças culturais para a garantia da paz.
As políticas de organismos internacionais como a UNESCO, a ONU e a OIT,
afirma Monte (2000, p. 120), “desempenharam importante papel na criação e manutenção
da nova perspectiva”, de revitalização da língua e da cultura das sociedades indígenas. A
autora evidencia que estes mecanismos colaboraram
[...] para a fragilização do paradigma da educação indígena como meio
legítimo para a integração e a assimilação do índio à sociedade nacional,
51
materializada pela doutrina do bilinguismo27
e biculturalismo, executada
até hoje em alguns países em suspeitosa cooperação com agências
missionárias americanas (MONTE, 2000, p. 120).
As formulações políticas para as populações “vulneráveis”, assim como as políticas
de inclusão, respeito à diferença, à diversidade cultural estão inseridas neste conjunto de
reformas estruturais28
e políticas mundialmente articuladas e irradiadas por organismos
internacionais. Tais reformas expressam as respostas do sistema capitalista às crises que
ocorreram a partir da década de 1970, e que se arrastam até os dias atuais.
Com o fim da ditadura militar no Brasil e a reabertura política ocorrida na década
de 1980, os movimentos sociais começaram a se reorganizar e fazer uma série de
reivindicações. Os movimentos indígenas contaram com o apoio de indigenistas e
missionários de outras ordens religiosas, antropólogos e pesquisadores, oriundos dos
programas de pós-graduação possibilitados também pela reabertura política.
Marcam esse período, medidas impostas pelos organismos internacionais, tais
como, cortes de orçamento público que afetam diretamente os programas sociais, os gastos
com a saúde e a educação, e o bem-estar da população (FONSECA, 1998; 2001). São
medidas que representaram o controle exercido mediante concessão de crédito por parte
dos países centrais que, exigiam ampla reestruturação política e econômica nos países
periféricos tomadores de empréstimo.
Conforme Fonseca (1998; 2001) tal conjuntura sócio-histórica tem implicações
profundas para a educação, pois os empréstimos ao financiarem os projetos educacionais
brasileiros impõem modelos a serem seguidos. Desse modo, a reestruturação das bases
.27
Sobre as políticas de bilinguismo e multiculturalismo, Faustino (2006) faz um amplo estudo, em tese de
doutoramento, e apresenta as origens destes conceitos como políticas, sobretudo Canadenses e Europeias
para resolverem os contextos de crises e conflitos étnicos e econômicos existentes naqueles territórios, e que
eram então resolvidos a partir de “ações afirmativas” e a manutenção equilibrada das forças antagônicas da
sociedade. 28
Segundo Roberto Leher, “[...] o Banco Mundial tornou-se o principal organismo internacional relacionado
a educação, sendo o principal influenciador das reformas educacionais dos países periféricos e
semiperiféricos”, o autor explica que “[...] com a afirmação das políticas neoliberais – expressão da crise
estrutural do capitalismo – os países periféricos e semiperiféricos deveriam abandonar o sonho de se
converterem em Novos Países Industrializados, redirecionando os seus aparatos produtivos para o
agronegócio e para a exportação de commodities mais ou menos manufaturadas, prioridades complementares
ao capital financeiro – o principal beneficiário das divisas captadas nas exportações”. Desta forma, “[...] de
um lado, o Banco faz juras de amor ao alívio à pobreza e, de outro, encaminha junto com o FMI, por meio de
condicionalidades, as políticas de ajuste neoliberal de segunda geração. De um lado, convoca ONG´s e
sindicatos-cidadão a se engajarem em seus projetos e, de outro, incentiva os governos a enfraquecer os
sindicatos por meio de reformas sindicais e trabalhistas. No caso específico da educação apóia a
fragmentação dos contratos dos docentes em municípios paupérrimos, a formação aligeirada de professores, a
quebra do “monopólio” do saber docente por meio do uso intensivo de tecnologias educacionais e, se
necessário, patrocina novas entidades dóceis à sua agenda” (LEHER, 2005).
52
capitalistas e a importância dada à coesão social preparam o terreno para as políticas
internacionais, com suas amplas reformas da década de 1990, sobretudo no âmbito da
educação escolar, e da educação escolar indígena. A seguir apresentaremos a
contextualização da política e da legislação que assegura, no âmbito jurídico, como direito
constituído e inalienável dos povos indígenas, a educação escolar indígena, e por extensão,
a educação física nestas escolas.
2.5 Crises econômicas, mundialização financeira do capital e os ajustes políticos da
década de 1990
Quando findou a Segunda Guerra Mundial e, os regimes totalitários como o
Fascismo e o Nazismo foram derrotados, a economia americana se colocou como
hegemônica e referência de desenvolvimento, foram criadas organizações internacionais
que se encarregaram de garantir, fosse por meio de empréstimos e/ou acordos, a
supremacia capitalista.
Com a hegemonia econômica do modelo americano de desenvolvimento
nas duas décadas iniciais desse período, instituíram-se agências
internacionais, como a Agência Norte-Americana para o
Desenvolvimento Internacional (AID – Agency for International
Development) – responsável por promover políticas governamentais que
favorecessem a manutenção da hegemonia da ordem capitalista, para isto
utilizando-se de medidas afetas à educação -, a Organização das Nações
Unidas e a UNESCO (CHAVES, 2008, p. 8).
Desses organismos emanou uma série de documentos, declarações, conferências e
orientações, especialmente no que tange à educação, o reconhecimento da educação
inclusiva para as minorias – judeus, curdos, sérvios, nesse contexto inicial e,
posteriormente, abrangendo então as populações indígenas, num contexto mais específico.
Essas orientações foram elaboradas como um novo código de ética que, sob a forma de
empréstimo, dissimularam a expansão do mercado financeiro (CHESNAIS, 2005; ALVES,
2004).
A expansão é a tentantiva de conter a crise que atinge o sistema capitalista, após a
acumulação industrial do perídodo pós Segunda Guerra Mundial. Netto e Braz (2005)
afirmam que: “Entre o fim da Segunda Guerra e a passagem dos anos sessenta aos setenta,
53
o capitalismo monopolista viveu uma fase única em sua história, fase que alnguns
economistas designam como os ‘anos dourados’ [...]” (NETTO e BRAZ, 2007, p. 205).
Chesnais (2005) explica que, um processo de centralização do capital sob a forma
financeira começa nos Estados Unidos, na década de 1950 e, na Europa, em meados dos
anos 1960, tratando-se “[...] de um subproduto da acumulação industrial do período da
‘idade de ouro’” (CHESNAIS, 2005, p. 37). De tal modo que, a crise de 1974-1975 se
manifestou com uma “quebra dos bancos” antes do “choque do petróleo”.
Com os vultosos valores resultantes do aumento do preço do petróleo, seguiu o que
Chesnais (2005, p. 39-40) chamou de “reciclagem”, sob a forma de empréstimos e
transferências de recursos aos países do “Terceiro Mundo”29
que, sob certas
condicionalidades, foram impostas pelos credores dos paises centrais. O efeito “bola-de-
neve” dessas dívidas, quando em 1979 o aumento das taxas de juros, levou a uma crise da
dívida do “Terceiro Mundo”.
Esse endividamento dos países periféricos prepararam um terreno propício aos
ajustes estruturais, isto porque “[...] a dívida tornou-se uma força formidável que permitiu
a imposição de políticas ditas de ajuste estrutural iniciando-se processos de
desindustrialização em muitos deles (CHESNAIS, 2005, p. 40). Foi nos anos de 1980,
como explica Alves (2004, p. 34), que
[...] se constituiu as principais linhas de desenvolvimento do capitalismo
global que, hoje, apresentam seus limites críticos. A ideologia da
29
O termo Terceiro Mundo foi cunhado pela primeira vez na França com um propósito metafórico
se referindo aos Estados-nação asiáticos e africanos que surgiram a partir da descolonização.
Ahmad (2002) explica que, “[...] sempre foi notório por sua imprecisão e era, além disso, usado
em diferentes contextos com sentidos altamente divergentes”, explica, também, que “[...] era
intensamente político no modo com foi usado das primeiras vezes – uma maneira de falar da
natureza insurgente do nacionalismo anticolonial, do movimento a favor do não-alinhamento, e de
uma certa aspiração a um desenvolvimento relativamente independente nos países anteriormente
colonizados” (AHMAD, 2002, p. 8). Segundo o teórico, “[...] esse termo, ‘Terceiro Mundo’ não
nos chega como mera categoria descritiva para designar uma posição geográfica ou uma relação
específica com o imperialismo [...]. Em suas duas dessas variantes, a maoísta e a diretamente
nacionalista, o termo também pressupõe que o ‘Terceiro Mundo’, com seu Estado existente e suas
formações de classe, e independentemente das deformidades dessas formações é uma alternativa
real; de fato, um locus de resistência [ ] contra usurpações por parte dos outros dois mundos. Não
o socialismo, mas o nacionalismo sempre foi designado pelos propagadores desse termo [ ]
como a ideologia definitiva, memorável e imperativa do Terceiro Mundo (Há, naturalmente, ainda
um outro uso desse termo que não tem pretensões teóricas e aplica a nomenclatura ‘Terceiro
Mundo simplesmente aos assim chamados países em desenvolvimento, de Cuba à Arábia Saudita
e da China ao Chad. Esse é um uso polêmico, uma questão simplesmente de linguajar comum [...]” (AHMAD, 2002, p.186-187, grifo do autor).
54
globalizaçao, com sua pregação da desregulamentação financeira e da
liberalização comercial (para os países capitalistas periféricos), do
desmonte da legislação trabalhista e do ideário neoliberal de gestão da
macroeconomia capitalista, constituiu-se como exigências da
mundialização do capital [...].
O contexto de dívida pública dos anos 1980 permitiu a expansão do mercado
financeiro e, gerou “[...] pressões fiscais fortes sobre as rendas menores e com menor
mobilidade, [ ]. No decurso dos últimos dez anos, foi ela que facilitou a implantação das
políticas de privatização nos países chamados ‘em desenvolvimento’” (CHESNAIS, 2005,
p. 42). A desregulamentação e a liberalização forçam os Estados que desejam colocar
bônus do Tesouro nestes mercados liberalizados a se alinharem às práticas norte-
americanas.
Explicando essa “ofensiva do capital”, Alves (2004, p. 36) assinala que “[...] ela
atingirá a borda subalterna do sistema mundial na virada para a década de 1990, com as
políticas neoliberais na América Latina, no Leste Europeu e na Rússia pós-soviética.” É
esse o caminho para o entendimento de como as reformas de cunho neoliberal
contextualizam a década de 1990.
O termo neoliberalismo possui vários significados; pode ser uma corrente de
pensamento, um movimento intelectual organizado de representantes e defensores dos
interesses da burguesia; ou, ainda, um conjunto de políticas adotadas pelo poder central do
capital. Neste sentido, Harvey (2011) indica que:
O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-
econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor
promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras
individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por
sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio
(HARVEY, 2011, p. 12).
Deste modo, estes direitos30
perseguidos e propostos pelo neoliberalismo tem em
comum a busca a um modelo ideal, do ponto de vista burguês, refere-se aos valores do
pensamento liberal. A retomada das doutrinas liberais é comumente denominada neoliberal
por justamente tratar-se de um momento histórico diferente. “A ideologia neoliberal
retoma o antigo discurso econômico burguês, gestado na aurora do capitalismo, e opera
30
Trataremos dos conceitos dos direitos burgueses, de cidadania e de emancipação, na terceira seção deste
trabalho.
55
com esse discurso em condições históricas novas” (BOITO JÚNIOR, 1999, p. 23). Boito
Júnior (1999, p. 23) explicita, ainda, que esta “ideologia neoliberal contemporânea é,
essencialmente, um liberalismo econômico, que exalta o mercado, a concorrência e a
liberdade de iniciativa empresarial, rejeitando de modo agressivo, porém genérico e vago,
a intervenção do Estado na economia”.
Nesse novo contexto de operação sem barreiras (chamado de globalização),
acentuam-se as contradições imanentes do capitalismo representadas na luta de classes que
polarizam a riqueza e a miséria em polos opostos. Os apontamentos de Faustino (2006), ao
estudar as políticas educacionais dos anos 1990 para educação escolar indígena,
evidenciam que:
A política do Estado mínimo, da diminuição dos gastos do Estado e da
racionalidade técnica tão defendida pelo marketing neoliberal visa,
exclusivamente, combater as conquistas sociais dos trabalhadores e
aumentar a concentração da riqueza e do poder nas mãos da classe
dominante, única maneira de salvaguardar a ordem do capital
(FAUSTINO, 2006, p. 117-118).
Sobre esse papel do Estado Mello (2009, p. 132) menciona que:
Com o esgotamento do keynesianismo31
, são recuperados os princípios do
pensamento liberal, agora conceituado como neoliberalismo e surgem
questionamentos sobre o papel do Estado enquanto regulador da
economia. Entretanto o que ocorre não é o afastamento das questões
relacionadas diretamente com a ‘economia capitalista’, mas o
afastamento do Estado em relação às questões sociais (MELLO, 2009, p.
132).
31
O estado de bem-estar-social foi uma política de Estado fundamentada nas concepções de John Maynard
Keynes (1883-1946), um iluminista inglês (acreditava na razão, no convencimento, na moral e no social),
interessado em sugerir algum tipo de reforma social. Keynes usa do conhecimento de que a sociedade
capitalista é imutável, e chegará à perfeição e, para isso, ele trabalha no sentido de reformar o sistema
capitalista, e encontrar respostas para os problemas do sistema por meio de regulamentações e intervenções
estatais na economia. Para ele não era possível deixar a resolução dos problemas sociais para o mercado, tal
qual se encontrava nas mãos da sociedade e da livre concorrência. Antes, era preciso tomar o controle e, para
tanto, teorizava que o Estado voltasse a dar os andamentos econômicos da sociedade. O Keynesianismo
esteve muito forte depois da crise de 1929 e 1930, suas propostas tinham por norte a revitalização do
capitalismo, e para isto, um forte investimento estatal na economia, incentivando as indústrias de base e de
transformação, o desenvolvimento de políticas públicas, a permissão à sindicalização, o atendimento às
reivindicações trabalhistas por meio da elaboração de legislações protetoras do trabalho livre, acreditavam os
pensadores dessa escola que incentivando o consumo se estimula a produção. Com base nesses pressupostos,
o Estado conseguiu por um período manter o capital, sob a forma comumente chamada de Welfare State, ou
de estado de bem estar-social, e estabelecer formas de manter a ordem econômica. Na próxima crise, a de
1970, essas idéias não dão mais conta de responder à crise e o Estado passa ser acusado como o grande
culpado da crise (FAUSTINO, 2006; NETTO e BRAZ, 2007).
56
As intervenções estatais passaram a ser mínimas, apenas no sentido de garantir
acesso a saúde e educação, menor intervenção na regulamentação do trabalho, as chamadas
políticas de bem-estar social. No âmbito da educação, Faustino (2006) afirma que:
Nos anos de 1990 os centros do poder internacional formularam a política
educacional para obter o controle sobre as decisões educacionais dos
países periféricos colocando a escola a serviço dos interesses da
economia de mercado. Esta reforma tem como objetivo político alcançar
o consenso, controlar os conflitos sociais fazendo da educação uma via
estratégica para que a democracia liberal leia-se, sistema capitalista,
possa continuar sua existência e reprodução (FAUSTINO, 2006, p. 117-
118).
Foi nesse contexto de políticas de “Estado mínimo” frente aos interesses sociais, no
qual foram formuladas as atuais políticas educacionais colocando a escola a serviço dos
interesses do mercado. Embutido em tal interesse encontra-se o objetivo de alcançar o
consenso, controlar os movimentos sociais, permitir a continuidade da sociedade
capitalista que reafirma o uso da escola e da educação para reproduzir e formar o sujeito
individualista, tolerante e comprometido, com a construção da paz e da ordem, ou seja,
com a manutenção de um status quo social (LEONEL, 1994; SOARES, 2004). Essa
manutenção social exige que um sujeito que não conteste a ordem vigente, mas que se
conforme e aprenda a conviver com as misérias que resultam da produção e reprodução do
sistema social.
Um exame dos documentos (BRASIL., 1995; BRASIL, 1996; BRASIL, 1997;
BRASIL, 1998; DELORS, 1996) norteadores da educação atual, elaborados a partir
daquele período, evidenciam a educação como principal recurso no cumprimento das
metas e objetivos dos países centrais, representados por suas agencias multilaterais. E,
além disso, a educação institucionalizada32
tem servido, nos últimos 150 anos, como
aquela que fornece conhecimentos, mão-de-obra qualificada, e a internalização dos valores
– que legitimam os interesses burgueses – necessários à reprodução da sociabilidade
capitalista.
Neste sentido, como podemos pensar a educação escolar indígena criada no seio da
sociedade capitalista, e direcionada às comunidades indígenas, na atualidade, sob as bases
32
Nossa compreensão de educação não é pessimista, tampouco, vê na escola o objetivo único de reprodução
do sistema capitalista. O simples fato de podermos pensar e questionar os objetivos, e a finalidade da
educação e da educação escolar, nesta sociabilidade, é indicio de que podemos pensar a educação para além
da reprodução social. Na terceira seção deste trabalho trataremos melhor do conceito de educação.
57
do multiculturalismo e da interculturalidade? A educação escolar indígena, bem como a
educação física escolar indígena, estão fadadas a repetir as funções sociais da escola, no
âmbito de formar para o mercado de trabalho, de fornecer conhecimentos úteis a este
propósito e buscar o consenso tendo os indígenas como partícipes nesse projeto.
Exposto brevemente o contexto histórico de desenvolvimento da sociedade
capitalista como relação universal que engendra todas as instâncias da vida humana e,
dentre estas mais especificamente a educação escolar indígena e a educação física, na
seção seguinte nos propusemos a examinar, documentos e formulações elaboradas com o
objetivo de referenciar/regulamentar as políticas educacionais relativas a essas
especificidades. Inicialmente apresentaremos esses documentos, procurando identificar
principalmente, que são apresentados como políticas de atendimento às reivindicações dos
professores indígenas, mas que, para além de sua aparência seus discursos advêm
verticalmente de formulações dos organismos internacionais decorrentes de interesses
estratégicos do processo de reprodução e acumulação do capital.
3. DELINEAMENTOS POLÍTICOS PARA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO
BRASIL: A RETÓRICA DOS DOCUMENTOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS.
Na seção anterior procuramos evidenciar como a formação da sociedade capitalista
que substituiu o feudalismo como forma social de produção da vida engendrou as relações
sociais, econômicas e políticas, tendo, ao longo de sua expansão, afetado as relações entre as
diferentes populações humanas e, em decorrência, determinado a exploração europeia das
populações indígenas no Brasil, e mais especificamente, como sucedeu esse processo no
âmbito do território paranaense. Buscamos compreender também, como o processo de
expansão capitalista afetou sobremaneira o desenvolvimento da educação pensada para as
minorias, nesse caso, as populações indígenas. Procuramos argumentar que, no contexto do
das décadas finais do século XX, os ajustes internacionalmente planejados e impostos aos
países periféricos, juntamente com a adoção de práticas político-econômicas neoliberais, se
expressaram em políticas para a tolerância, em ações afirmativas, na elaboração de
documentos cuja perspectiva de educação e de formação vai ao encontro da manutenção da
ordem vigente.
Nesta segunda seção, apresentaremos, inicialmente, em forma de síntese, os dois
documentos que consideramos relevantes para os propósitos de nossa pesquisa: o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNE/Indígena –
(BRASIL, 1998), um importante documento na área da educação escolar indígena; e um
documento das Nações Unidas, o relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em
Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio (NAÇÕES UNIDAS,
2003). Ao longo desse processo de exposição, apontaremos as categorias que serão tomadas
como objeto de análise. Dentre elas, algumas estão em processo de análise e serão neste
momento apresentadas de forma preliminar.
3.1. O Referencial Curricular Nacional Para As Escolas Indígenas
O RCNE/Indígena foi elaborado pelo então Ministério da Educação e do Desporto, e
publicado em 1998. É dividido em três seções: uma Introdução; a parte I - Para Começo de
Conversa; e a parte II - Ajudando a Construir os Currículos Escolares. Na Introdução
contextualiza-se e justifica-se a elaboração do documento. Nas duas partes seguintes: uma
59
voltada aos agentes, que atuam nos sistemas de ensino estaduais e municipais e demais
órgãos, ligados à execução da política educacional para as Escolas Indígenas, reúne
fundamentos políticos, históricos, legais e antropológicos de uma proposta para a educação
escolar indígena; A segunda pretende oferecer referências para a prática pedagógica de
professores índios e não-índios, diretamente ligados às ações de implementação e
desenvolvimento das escolas indígenas.
Com uma leitura do conteúdo de cada uma dessas seções, nosso objetivo analisar o
documento e identificar em sua retórica, a forma como apresenta uma suposta reinvindicação
dos professores indígenas, e como essa se mostra similar ao discurso de documentos das
organizações internacionais para a educação na América Latina incluindo o Relatório Delors
(UNESCO, 1996) e outros. Salientamos a importância da compreensão dos objetivos dessa
política configurada por documentos emanados dos organismos internacionais , para além das
aparências.
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), em sua introdução, denota que a partir da década
de 1970 as legislações que regulam a educação escolar indígena no Brasil avançaram no
sentido de reconhecer a necessidade de uma educação específica, diferenciada e de qualidade
para estas populações. Evidencia, também, que as ações e a prática carecem de superações.
Afirma que os professores indígenas têm, nos últimos anos, insistido na necessidade
de currículos mais específicos, mais próximos de suas realidades e demandas de seus povos.
No âmbito das legalidades o documento assevera não existir entraves, argumentando que a
Constituição de 1988 e a LDB/Lei de Diretrizes e Bases da Educação, garantem aos povos
indígenas direitos a formas particulares de organização escolar (BRASIL, 1998, p. 11).
Aponta, nesse sentido, existirem dificuldades relacionadas à falta de conhecimento para
operacionalizar as práticas cotidianas, os objetivos a serem alcançados, e ainda, ações de
órgãos locais de educação que podem também interferir na educação indígena.
O documento evidencia a necessidade de se considerar a grande diversidade cultural e
étnica dos povos indígenas no Brasil afirmando que, construir e implementar uma proposta
relevante e culturalmente sensível requer dos professores indígenas, uma análise constante,
crítica e informada, das práticas curriculares em andamento em suas escolas (BRASIL, 1998,
p. 12). Portanto, o Documento se coloca como instrumento para:
[...] a) explicitar os marcos comuns que distinguem escolas indígenas de
escolas não-indígenas, b) refletir as novas intenções educativas que devem
orientar as políticas públicas educacionais para as escolas indígenas
brasileiras, c) apresentar os princípios mínimos necessários, em cada área de
60
estudo do currículo, para que se possam traduzir os objetivos que se quer
alcançar em procedimentos de sala de aula (BRASIL, 1998, p. 13).
Partindo desta proposta, o Documento coloca a escola como responsável, cada qual,
pela construção de seu próprio referencial de análise, planejamento e construção curricular.
Em outros documentos, como o Relatório Delors (1993), por exemplo, tal responsabilização
sobre a escola é, também, colocada. O RCNE/Indígena apresenta-se, nesse sentido, como
formativo, com vistas a subsidiar a elaboração de propostas curriculares para as escolas
indígenas, trata dos “[...] fundamentos gerais de ensino e aprendizagem para todo o Ensino
Fundamental” (BRASIL, 1998, p. 14).
Ainda na introdução, no subtítulo Em busca de consenso, ao explicar como e com
quem foi elaborado, o RCNE/Indígena indica a existência de discussões coletivas realizadas
em cursos de formação de professores indígenas e encontros de organização dos professores
indígenas, análises de práticas escolares indígenas documentadas e em depoimentos de
assessores pedagógicos de comprovada experiência na área (BRASIL, 1998, p. 15). O texto
foi redigido em duas versões, segundo o RCNE/Indígena, para a primeira versão:
[...] o MEC constituiu uma equipe formada por um conjunto de educadores
vinculados, em sua maioria, a ações de implantação e assessoria às escolas
indígenas e à formação de professores índios. Paralelamente, através de um
roteiro de discussão curricular, um significativo grupo de professores
indígenas foi convidado a enviar suas reflexões para subsidiar a elaboração
do texto. Foram também consideradas, na elaboração deste texto, propostas
curriculares de algumas Secretarias de Educação e de Organizações Não-
Governamentais entendidas como paradigmáticas (BRASIL, 1998, p. 15).
Tomando como referencia tais reflexões que partem de um roteiro de discussão
curricular, indagamos: como podem reflexões roteirizadas balizarem a formulação de um
documento que se propõe intercultural? Como afirmar que as reinvindicações partem dos
professores e comunidades indígenas sem que tenham ficado claro para os povos indígenas as
origens e os objetivos de um referencial curricular? Quem roteirizou tal discussão? As
questões políticas e econômicas internacionais que o MEC atendeu no contexto da
implantação das políticas neoliberais (décadas de 1980 e 1990) foram discutidas com os
indígenas para se afirmar que foi um documento que “[...] primou por respeitar a participação
de educadores índios e não-índios [....] (BRASIL, 1998, p. 3)?
Nas palavras do RCNE/Indígena:
61
Finalizada a redação de uma primeira versão do documento, este foi
submetido a avaliação por um conjunto, ainda mais amplo, de educadores,
especialistas e instituições – indígenas e não-indígenas – envolvidos com a
questão da educação escolar indígena. As contribuições advindas desses
pareceristas serviram para aprimorar e enriquecer o texto original (BRASIL,
1998, p. 15).
Da mesma forma que os PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997),
elaborados por equipe do MEC no mesmo período, o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998)
apresentando uma lista de consultores ao final, não explicita bem quem são os teóricos, os
especialistas e as instituições envolvidas em tal parecer. E, portanto, questionamos: como um
documento que a todo momento afirma se contrapor ao projeto dito “ocidental” na escola
indígena segue ipsis litteris a recomendação de centros do poder europeu como a UNESCO?
No caso dos PCNs, o consultor técnico da equipe brasileira que fez a reforma curricular foi o
europeu, psicólogo evolucionista César Coll Salvador33
(BRASIL, 1997) cujo pensamento e
obras foram amplamente divulgados e comercializados pelas maiores editoras brasileiras.
Em consonância com as determinações do governo neoliberal brasileiro, na década de
1990, o MEC adotou essa corrente teórica na reforma curricular brasileira que passou a
influenciar toda a rede de ensino, tanto da educação básica como superior uma vez que as
obras de Coll, Perrenoud, Morin e outros europeus são maciçamente traduzidas e divulgadas
por diferentes veículos de comunicação (FARIA, 2002).
Na parte I do RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), intitulada Para Começo de
Conversa apresentam-se os “fundamentos gerais da educação escolar indígena” apoiando-se
em conceitos tais como a multietnicidade, a pluralidade e a diversidade, conhecimentos
indígenas, autodeterminação, educação na perspectiva intercultural, comunitária, específica e
diferenciada, pois, para o Documento o “Brasil é uma nação constituída por grande variedade
de grupos étnicos, com histórias, saberes, culturas e na maioria das situações, línguas
próprias” (BRASIL, 1998, p. 22).
A questão da multietnicidade, da pluralidade e diversidade34
são termos recorrentes e
carecem de melhor análise, pois em nossa pesquisa pudemos observar que se evidenciam
poucos estudos que se propõem a tratar numa perspectiva materialista histórica esses termos,
e quando o fazem são raras vezes lidos e pouco citados na produção científica brasileira.
33
César Coll Salvador é professor de Psicologia Evolutiva e da Educação na Faculdade de Psicologia da
Universidade de Barcelona. Foi um dos principais coordenadores da reforma educacional espanhola. No Brasil
atuou como consultor do MEC na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997). 34
.Trataremos destas questões na seção três deste trabalho.
62
A Europa vem, desde a fundação da UNESCO em 1945, formulando um discurso
sobre a importância da diversidade cultural existente no Brasil:
Essa grande república tem uma civilização que se desenvolveu pelas
contribuições diretas de diversas raças. Sofre menos de que outras nações os
efeitos de preconceitos [...]. Não estamos muito bem informados sobre os
fatores que produziram uma situação tão favorável e, em várias maneiras,
exemplar. As especulações gerais não são mais suficientes no atual estado
das ciências sociais. Devemos ter especialistas que pesquisam no campo.
Devemos aprender deles exatamente o porquê e como fatores sociais,
psicológicos e econômicos contribuíram, em vários graus, para possibilitar a
harmonia que existe no Brasil (UNESCO, 1951, p. 4).35
Consideramos essa ideia, de que o Brasil é uma república desenvolvida pela
contribuição de várias raças e que sofre menos dos efeitos do preconceito, equivocada. O
estudo de Silva (2012) sustenta a hipótese de que o racismo e o preconceito têm, em sua base
objetiva, “[...] a exploração do trabalho escravo, que impõe limites ao desenvolvimento dos
indivíduos negros enquanto integrantes do gênero humano” (SILVA, 2012, p. 12). Não
pensamos ser possível considerar a exploração do trabalho escravo como colaboração para o
desenvolvimento do país, antes, entendemos que foi necessário naquele momento de
expansão originária do capitalismo a exploraçao dessa forma de trabalho.
Com a aprovação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino sobre História
e Cultura Afro-Brasileira, no ensino fundamental e médio no Brasil, as investigações sobre o
racismo e a escravidão estão na pauta do dia nas discussões acadêmicas ou não (SILVA,
2012, p. 9) e mais recentemente a Lei 11.645/2011 incluiu, também, o esnino da cultura
indígena como obrigatória nesses níveis de ensino. Políticas de ação afirmativa, projetos de
cotas para a garantida do acesso de negros, estudantes indígenas e estudantes de escolas
públicas aos cursos superiores, entre outras políticas de ação afirmativa que se apoiam na
negação do racismo, são um exemplo de que ainda hoje o preconceito existe de fato no
Brasil, ao contrário do que quer induzir o discurso da UNESCO (1951).
Conforme Faustino (2006), a UNESCO, a partir de 1950, não só contratou
especialistas brasileiros para realizar pesquisas sobre a diversidade cultural, como disseminou
35
Thus, the General Conference of Unesco in Florence recommended for the 1951 programme of the
Organization a study of racial relations in Brazil. This great republic has a civilization which has been
developed by the direct contributions of different races. And it suffers less than other nations from the
effects of those prejudices which are at the root of so many vexatious and cruel measures in countries
of similar ethnic composition. We are as yet ill- informed about the factors which brought about such
a favourable and, in many ways, exemplary situation (UNESCO, 1951, p. 4, tradução minha).
63
amplamente o estruturalismo francês e o culturalismo norte-americano na academia brasileira
influenciando a produção no campo da antropologia, ciências sociais, educação e outras
áreas.
Em relação à educação indígena, os estudos de Florestan Fernandes (1975) e Egon
Schaden (1976), apontaram uma necessária reflexão sobre as trajetórias, os significados, as
diferentes visões de mundo, as culturas e as línguas dos diferentes povos, frutos de gerações
passadas em constante reelaboração, criação e desenvolvimento.
No contexto das reformas neoliberais das décadas de 1980 e 1990, por influência da
UNESCO, da mobilização de antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira e das
reivindicações dos movimentos sociais, tal diversidade cultural adquire garantias legais na
América Latina. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 instituiu a obrigatoriedade do
reconhecimento e respeito à diversidade. As reformas educacionais que se seguiram, LDB,
diretrizes, parâmetros curriculares e demais documentos, foram elaboradas em consonância à
Constituição que é a lei maior.
Sobre os conhecimentos indígenas o RCNE/Indígena é enfático ao afirmar que:
[...] os povos indígenas vêm elaborando, ao longo de sua história,
complexos sistemas de pensamento e modos próprios de produzir,
armazenar, expressar, transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e
suas concepções sobre o mundo, o homem e o sobrenatural. O resultado são
valores, concepções e conhecimentos científicos e filosóficos próprios,
elaborados em condições únicas e formulados a partir de pesquisa e
reflexões originais (BRASIL, 1998, p. 22).
Sem informar os aspectos históricos da constituição da escola universal europeia
criada a partir da Revolução Francesa; do contexto de criação do sistema capitalista que
expropria e concentra os meios de produção (principalmente a terra) nas mãos de uma
pequena parcela da sociedade; bem como do domínio do Estado burguês sobre as
instituições; o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), pragmaticamente, relaciona o pensar a
organização do currículo e da escola privilegiando as concepções indígenas do mundo e do
homem, as suas formas de organização social, política, cultural, econômica e religiosa,
desvinculando estes elementos da relação social universal.
Não há nenhuma dúvida quanto ao fato de que não é apenas o mundo ocidental que
produz conhecimento, porém a sociedade capitalista valida legitima e dissemina apenas o
conhecimento e o pensamento que não revolucionam sua estrutura de funcionamento. E, esse
reducionismo do conhecimento que se quer para a escola indígena, em nosso entendimento
64
impõe limites ao desenvolvimento dos indivíduos indígenas enquanto integrantes do gênero
humano.
Nesse sentido, caberia perguntar: por que os centros de poder do capital estão fazendo
apologia ao conhecimento indígena cuja fonte universal é a reciprocidade, o uso coletivo da
terra e dos demais meios de produção?
Entendemos que o modo de viver das sociedades indígenas produziu conhecimentos,
representações e explicações complexas sobre a realidade, mas nosso questionamento se dá
no sentido de refletir sobre a forma como este conhecimento poderia ser institucionalizado
nesse sistema? De que forma os conceitos, as vivencias, as experiências indígenas são
transportadas para a escola? Visto que “[...] a ocorrência de uma inversão conceitual que ao
ser transposta para o currículo promove a “folklorização” da cultura uma vez que a fragmenta
deslocando-a do contexto originário em que foi elaborada para transformá-la em conteúdos
escolares” (FAUSTINO, 2006, p. 156).
Dentre os conceitos utilizados pelo RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) para
fundamentar o trabalho na escola está o de autodeterminação que, em síntese, é apresentada
pelo documento como o direito de decidir o próprio destino, fazer escolhas, elaborando e
administrando autonomamente seus projetos de futuro. Da mesma forma, em relação à
“comunidade educativa indígena”, o documento afirma que tais sociedades dispõem de
processos próprios de socialização e formação, com momentos que combinam espaços
formais e informais, e que “[...] a escola não deve ser vista como o único lugar de
aprendizado [vejamos como fica bem explicitada a concepção defendida pela UNESCO em
todos seus documentos da área de educação]. Também a comunidade possui sabedoria para
ser comunicada, transmitida e distribuída por seus membros; são valores e mecanismos da
educação tradicional dos povos indígenas” (BRASIL, 1998, p. 23).
Em nenhuma sociedade a escola ou os sistemas escolares foram ou são
compreendidos como o único lugar de transmissão de conhecimentos. Isso é extremamente
óbvio desde a antiguidade, e os povos indígenas tem muita clareza sobre isso. Aliás, grande
parte das etnias, no Brasil e em diferentes partes do mundo, compreendem as limitações e
precariedade da escola nesse sistema. Ainda não amplamente divulgada de forma escrita, o
entendimento dos indígenas sobre o que é a escola na sociedade capitalista, fica explicito em
todos os eventos da área onde há participação dos grupos étnicos36
.
36
Aqui nos referimos mais explicitamente às falas dos indígenas Kaingang e Guarani no Evento: III Encontro de Educação Superior Indígena, realizado no Paraná (UFPR/Campus Litoral), em 2011.
65
É antiga e famosa a carta de um cacique indígena norte americano ao governo dos
Estados Unidos37
explicando porque não queriam a educação escolar do sistema capitalista,
uma vez que suas concepções de trabalho e formação humana não guardam nenhuma relação
com exploração, mais valia e acumulação.
Nesse sentido, é importante refletir sobre a concepção de sociedade, trabalho,
educação, ensino e aprendizagem em que se fundamenta o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998).
Essa concepção é de fundamental importância para compreender o ideário que norteou a
elaboração deste documento e das políticas para a educação escolar indígena que ele buscou
condensar.
O documento (BRASIL, 1998) chama atenção para as contribuições que uma escola
específica e diferenciada pode dar ao exercício da cidadania indígena. O que seria a
cidadania38
indígena em uma democracia capitalista senão a padronização de um sujeito
universal no qual o sistema tenta enquadrar a todos?
O RCNE/Indígena afirma que esse projeto só poderá se concretizar mediante a
participação direta dos povos indígenas, através de suas “comunidades educativas” (BRASIL,
1998, p. 24).
Conforme determinação do Banco Mundial por meio de suas Diretrizes
Operacionais, sendo a primeira OMS 2.34 datada de 1982, a OD 4.20, 199139
(BANCO
MUNDIAL, 1991) para o bom resultado das ações dos organismos entre os povos indígenas é
fundamental a participação e o consentimento das comunidades. Esse princípio também é
adotado pelo Relatório Jacques Delors (1996), que foi encomendado pela UNESCO a uma
comissão de especialistas de diferentes países do mundo. Esse Documento ao afirmar que os
principais contribuintes para o sucesso das reformas educativas são: “[...] em primeiro lugar,
a comunidade local, em particular, os pais, os órgãos diretivos das escolas e os professores;
em segundo lugar, as autoridades oficiais; em terceiro lugar, a comunidade internacional”
(1996, p. 25). Ao explicar a política para a tolerância propagada pelas agendas dos
organismos internacionais, Faustino (2006) evidencia que o “Relatório Delors, atribui à
educação dos diferentes grupos étnicos um papel fundamental” e, portanto, foi “traduzido e
divulgado em todos os países membros das Nações Unidas com o objetivo de instituir uma
política internacional de educação que forme cidadãos tolerantes, aptos a viverem em paz sob
a imposição de um sistema de extorsão cuja tendência é aprofundar as desigualdades do
37
Conforme, Brandão, C.R. O que é Educação. Brasiliense, 1998. 38
A questão de cidadania será discutida na seção três deste trabalho. 39
DAVIS. H. Shelton. The World Bank and Indigenous People. World Bank, WD, 2005
66
mundo, servindo-se da educação como estratégia de coesão [...]” (FAUSTINO, 2006, p. 59-
60). Sendo a questão da participação um discurso hegemônico entre os organismos; cabe
investigar a qual concepção teórica e de ensino e aprendizagem está relacionada? É preciso
investigar o que na agenda de reformas da educação determinaram essas concepções.
Sobre as características desta Escola Indígena, afirma o RCNE/Indígena (BRASIL,
1998) que ela é: Comunitária; Intercultural; Bilíngue/multilíngue; Específica e
Diferenciada. Explicando melhor esses conceitos, assevera que ela tem que ser “[...]
conduzida pela comunidade indígena, de acordo com seus projetos, suas concepções e seus
princípios”. E, continua, recomendando que a escola deve “[...] reconhecer e manter a
diversidade cultural e linguística, estimular o entendimento e o respeito entre seres humanos
de identidades étnicas diferentes, ainda que se reconheça que tais relações vêm ocorrendo
historicamente em contextos de desigualdade social e política” (BRASIL, 1998, p. 24).
A busca pela coesão social é um discurso ocidental capitalista, cujas origens
remontam ao pensamento liberal clássico40
tendo sido revitalizado nos documentos da
política educacional formulada pelos organismos internacionais a partir dos anos de 1980
com base nos pressupostos do neoliberalismo. Em seu Prefácio, o Relatório Delors
(DELORS, 1996, p. 11) afirma que a educação é “[...] um trunfo indispensável à humanidade
na construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social.” O Relatório Delors,
reafirma que, dos quatro pilares basilares da educação, o mais importante é o aprender a viver
juntos,
[...] desenvolvendo o conhecimento acerca dos outros, da sua história,
tradições e espiritualidade. E a partir daí, criar um espírito novo que, graças
precisamente a esta percepção das nossas crescentes interdependências,
graças a uma análise partilhada dos riscos e dos desafios do futuro, conduza
à realização de projetos comuns ou, então, a uma gestão inteligente e
apaziguadora dos inevitáveis conflitos. Utopia pensarão alguns, mas utopia
necessária, utopia vital para sair do ciclo perigoso que se alimenta do
cinismo e da resignação (1998, p. 19).
O objetivo da disseminação desse ideal de paz com uma linguagem messiânica é,
obviamente, a conformação de classe. Nosso objetivo ao trazer o Relatório Delors (1996) foi
enfatizar que as recomendações de uma escola indígena diferenciada e específica faz parte de
uma agenda internacional de reformas educacionais, e como tal pretende antes a manutenção
40
Ver, por exemplo a Carta sobre a Tolerância de John Locke e o Tratado sobre a Tolerância de Voltaire.
67
do status quo capitalista e as misérias por ele produzida, ao acesso das minorias às riquezas
humanas.
Educar para a coesão social, utilizar o discurso de paz, de um desenvolvimento
humano que leve a paz e afirmar que a escola, a educação serão capazes de cumprir essa
tarefa, é uma boa estratégia usada pelos organismos internacionais para desviar o foco de um
sistema econômico que expropria, explora e coloca milhões de pessoas para viver em
condições miseráveis de vida e trabalho. Reproduz-se, com novo discurso, os ideiais da
criação da escola no século XIX, pelas classes dominantes, cujo objetivo era/é conformação
dos sujeitos à ordem social.
As reformas educacionais orientadas pelos organismos internacionais – UNESCO,
BM, ONU, por exemplo – advogam a necessidade de respeito à diversidade e ao
reconhecimento do pluralismo como forma de promover o entendimento entre os povos
(FAUSTINO, 2006). Em contrapartida, à media em que se afirma nos documentos a
necessidade do respeito e reconhecimento das diferenças, essas agências instituem
parâmetros internacionais para produzir uma educação mundial cada vez mais padronizada e
ocidentalizada, com o objetivo de criar um modelo de ser humano genérico (RIZO, 2005).
A UNESCO em seu documento Empleo de las lenguas vernáculas em la ensenanza,
mostrou que
Em meados das décadas de 1930 a 1940, em decorrência do fracasso da
educação indígena, foi necessário desenvolver novas experiências,
principalmente com a ideia de uma educação bilíngue, utilizando a língua
nativa como meio de instrução nos primeiros anos de escola [...]
(UNESCO, 1954, p.82)
O RCNE/Indígena defende também a ideia de um “bilingüismo simbólico”, alegando
que, “[...] a reprodução sociocultural das sociedades indígenas são, na maioria dos casos,
manifestados através do uso de mais de uma língua” (BRASIL, 1998, p. 25). Incluindo nesta
consideração aqueles povos monolíngues em língua portuguesa. Reafirmando por fim, que a
escola é específica e diferenciada, na medida em que é “[...] concebida e planejada como
reflexo das aspirações particulares de povo indígena e com autonomia em relação a
determinados aspectos que regem o funcionamento e a orientação da escola não-indígena”
(BRASIL, 1998, p. 25).
Ainda na primeira parte do documento, o tópico Educação Escolar Indígena no
Brasil, apresenta um histórico demasiadamente simplificado da estrutura econômica, política
e social. Contrapõe a escola integradora e a pluralidade cultural, resumindo cinco séculos de
68
contato dos povos indígenas no Brasil e os exploradores europeus que aqui chegaram, no
seguinte parágrafo:
Essas tendências [integração, e pluralismo cultural] formam a base da
política de governo que é desenvolvida a cada etapa da história do país. A
idéia da integração firmou-se na política indigenista brasileira até
recentemente, persistindo, em sua essência, desde o período colonial até o
final dos anos 80 deste século, quando um novo marco se constrói com a
promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1998, p. 26).
Evidenciamos que o Referencial afirma sua crítica41
à escola permeada do discurso de
objetivo de homogeneização, transmissão de conhecimentos valorizados pela sociedade de
origem europeia e a utilização da língua indígena apenas como meio de tradução e facilitador
de aprendizagem. Sobre essa crítica ao discurso da escola, Faustino (2006, p. 19) afirma que:
Isolando-a do contexto nacional e internacional em que foi planejada,
elaborada e divulgada e comparando-a a antiga “Educação para os índios”,
coordenada nos últimos cinqüenta anos pela agência missionária evangélica
norte-americana Summer Institut of Linguistics, de fato, a política da
educação escolar indígena atual pode se tornar objeto de júbilo acadêmico,
pois representa considerável avanço legal (FAUSTINO, 2006, p. 19).
Sem estabelecer relação com o contexto histórico, questões econômicas e políticas
internacionais, o RCNE/Indígena informa que em meados dos anos de 1970 houve mudanças
na forma de lidar com a população indígena. “Ocorre a mobilização de setores da população
brasileira para criação de entidades de apoio e colaboração com os povos indígenas”
(BRASIL, 1998, p. 27). O Documento menciona que, o movimento indígena tomou forma
acompanhando o movimento da sociedade nos últimos anos de ditadura militar no país. Em
consequência, as sociedade indígenas se articularam com as organizações não-
governamentais, afirmando direitos e exigindo mudanças nas relações com os povos
indígenas. Ao enfatizar e atribuir ao papel dos movimentos sociais as mudanças ocorridas na
atual política de educação escolar indígena, omite-se o papel dos organismos e agências
internacionais ocidentais na condução desse processo. Não se faz, no Referencial , referência
à ditadura militar no país e sua ligação com o centro do poderio do capital – os EUA – no
41
Dentre os muitos questionamentos que emergiram ao desenvolvermos essa seção, estão: Se a escola é o único
instrumento utilizado com objetivo de homogeneização? A escola teria a capacidade de, ao transmitir
conhecimento, esvaziar o indígena de todas as suas práticas? Questionamos ainda, sobre as outras instâncias da
vida indígena o quanto afetam esse processo? Entendemos plenamente que não é possível no estudo proposto e
no prazo para execução desta pesquisa, esgotarmos essas questões, entretanto, não podíamos deixar de elencá-
las.
69
combate e repressão aos movimentos sociais operários e a valorização/exaltação de
movimentos culturais justamente porque estes não contestam, diretamente, a lógica do
sistema capitalista. As bandeiras dos movimentos culturais reivindicam, principalmente,
reformas, inclusão; aproximando-se dos ideias liberais e afastando-se dos movimentos e das
teorias revolucionárias.
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) salienta que as organizações às quais se juntaram
os movimentos indígenas estruturaram-se objetivando a luta pelos territórios e outros direitos
indígenas, reunindo expressivos números de etnias indígenas, participaram associações de
professores, agentes de saúde indígenas, intensificando-se a realização dos encontros de
professores sobre a educação indígena. Nesses encontros teriam sido discutidas questões
afetas à escola que os índios queriam, resultando em documentos de reivindicações e
princípios de uma educação escolar indígena diferenciada. Como entender essa nova política
educacional indígena?
Faustino (2006, p. 231), afirma que no período a educação para os índios começa a ser
melhor enquadrada nas proposições e em,
[...] um novo discurso, baseado, segundo Cunha (1990), em referenciais
teórico-ideológicos de instituições como o III – Instituto Indigenista
Interamericano, vinculado oficialmente à OEA – Organização dos Estados
Americanos. Por meio da Portaria n. 75, de 1972, FUNAI/SIL, foram
estabelecidas as diretrizes que visavam uma ação intensa e conjugada,
SIL/FUNAI, MOBRAL/FUNAI e MEC/FUNAI, objetivando um amplo e
rápido processo de alfabetização para os povos indígenas [...] (FAUSTINO,
2006).
Tendo em vista as críticas internacionais recebidas em relação ao tratamento dado aos
povos indígenas, “[..] O Estado teve o cuidado de adotar um modelo de atendimento às
populações indígenas obtendo, além de um certo reconhecimento científico, uma ampla
aceitação, sendo referendado por organismos internacionais como ONU, UNESCO, OIT e
outros” (CUNHA, 1990, p. 70).
Passando ao largo dessas questões que evidenciam a dependência histórica do Brasil e
de outros países periféricos da América Latina em relação às políticas econômicas
internacionais ocidentais, bem como as políticas educacionais que inclui a educação escolar
indígena atual, ao reunir professores indígenas de diferentes grupos étnicos do Brasil, com a
ênfase em um discurso de mudanças, participação e avanços legais, omitiu-se a presença de
uma “agenda globalmente estruturada” (DALE, 2004) pelo sistema capitalista.
70
Com esse encaminhamento, o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) incorpora e reproduz
o discurso oficial dos organismos internacionais: de que os problemas são locais e as
conquistas são frutos de suas lutas e mobilizações. Assim, omite-se o fato de que a
propriedade privada da terra e dos demais meios de produção, a exploração da força de
trabalho dos expropriados, o lucro e a acumulação são o coração desse sistema, altamente
protegido pelo Estado burguês, suas leis, seus exércitos, o poderio bélico e uma forte couraça
ideológica que nenhuma luta de caráter cultural isolada será capaz de atingir e transformar.
Seguindo uma “agenda globalmente estruturada” (DALE, 2004), conforme explica
Faustino (2006), a partir do final dos anos de 1980, no contexto da crise econômica e adoção
do neoliberalismo, as constituições latino-americanas, sob a orientação dos organismos
internacionais, incorporaram um conjunto de direitos para a proteção das minorias “[...]
fundamentadas no discurso de reconhecimento da diversidade étnico-cultural, da autonomia,
da participação e da interculturalidade” (FAUSTINO, 2006, p. 54).
Evidenciando apenas alguns “[...] marcos legais mais importantes” (BRASIL, 1998, p.
28), o RCNE/Indígena atribuiu grande poder ao movimento indígena, como se este, por si só,
fosse capaz de, no mesmo período nos anos de 1980 e 1990, incluir o direito à diferença e a
educação bilingue em todas as Constituições e legislações do mundo – desde os aborígenes
no Canadá, na Oceania, os povos indígenas das Américas, da Ásia e grupos étnicos na África
e Europa. Como o movimento indígena e os movimentos sociais, de forma geral, não estão
unificados internacionalmente, faz-se, nestes Documentos, ampla apologia das realidades
locais, das particularidades de cada grupo ou segmento social que luta por bandeiras
específicas; o que está em atuação é a universalidade das relações capitalistas com suas
estratégias de exploração e dominação unificadas internacionalmente.
O RCNE/Indigena afirma que “Paradoxalmente, a diversidade das culturas e a riqueza
de conhecimentos, saberes e práticas, tantas vezes negadas pelo saber hegemônico e pelo
poder autoritário, são hoje reconhecidas e valorizadas, abrindo espaço para a aceitação da
diferença e do pluralismo (BRASIL, 1998, p. 30).
Anunciadas estas ideias como grande novidade e conquistas legais dos movimentos
indígenas a partir da Constituição de 1988, deixa-se de informar que os organismos
internacionais vem construindo essa política de diversidade e inclusão com o Brasil e outros
países de diferentes partes do mundo, como estratégia de consenso e combate aos
movimentos revolucionários há décadas; tendo logrado mudanças em todas as constituições
latino-americanas no contexto das reformas neoliberais dos anos de 1980 e 1990. Uma leitura
71
de apenas alguns documentos (UNESCO, 1951; UNESCO, 1954; UNESCO, CEPAL, OEA,
1979; UNESCO 1982) evidencia essa questão.
Analisando o discurso de reconhecimento e valorização da diversidade, Faustino
(2006, p. 295) afirma que, o “[...] projeto da diversidade cultural enfatizou a questão da
cultura atribuindo à educação intercultural e bilíngüe a responsabilidade pelo alívio da
pobreza e promoção da autonomia dos povos indígenas.” Para a autora,
Com esta estratégia, o Estado absorveu demandas tentando transformar
elementos da mobilização política indígena em política indigenista oficial. A
educação escolar que fazia parte das reivindicações radicais do movimento
indígena por transformação social foi redirecionada, nos anos de 1990, para
o interior da escola enfatizando a identidade, a língua, o cotidiano, o
material didático específico e o “treinamento” dos professores (FAUSTINO,
2006, p. 295).
Assegurados constitucionalmente os direitos dos povos, o RCNE/Indígena aponta a
abertura de novos espaços jurídicos de aceitação da diversidade étnica e cultural.
São direitos coletivos dos povos indígenas, entre outros, o direito ao seu
território e aos recursos naturais que ele abriga, o direito a decidir sobre sua
história, sua identidade, suas instituições políticas e sociais, e o direito ao
desenvolvimento de suas concepções filosóficas e religiosas de forma
autônoma. A elaboração de normas jurídicas internacionais para os povos
indígenas vem obrigando países e organismos internacionais a repensar
muitas das concepções tradicionais sobre os direitos humanos (BRASIL,
1998, p. 30).
Questionar sobre o âmbito do direito, das legislações conquistadas, sobre as
elaborações jurídicas, a emancipação política, e como esta concepção do estado burguês
permite que exista tal “igualdade de direitos”, é importante para compreendermos o
movimento indígena e como o Estado burguês atende tais reivindicações42
.
No que se refere à legislação, o Referencial (BRASIL, 1998) aponta a Constituição
brasileira de 1988 como marco que rompe com a tradição de política integracionista e
reconhece os direitos à prática de suas formas culturais próprias, de sua organização social,
costumes línguas crenças e tradições, bem como dos direitos originários sobre as terras
tradicionalmente ocupadas. Apresenta o dever do Estado para com a reafirmação e
42
Na seção três trataremos da questões de Estado, Emancipação Política, Cidadania e Educação, fundamentando
nossos argumentos com os autores: Marx (2010); Mészáros (2010); Wood (2003); Harvey (2011); Tonet (2002;
2005; 2007).
72
valorização das culturas e línguas indígenas. E coloca a escola como responsável para que
isso ocorra. Nos termos da Constituição:
O Artigo 210 assegura às comunidades indígenas, no Ensino Fundamental
regular, o uso de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem e garante a prática do ensino bilíngüe em suas escolas. O
Artigo 215 define como dever do Estado a proteção das manifestações
culturais indígenas. A escola constitui, assim, instrumento de valorização
dos saberes e processos próprios de produção e recriação de cultura, que
devem ser a base para o conhecimento dos valores e das normas de outras
(BRASIL, 1998, p. 32).
A escola é, portanto, eleita como instrumento capaz de salvaguardar os saberes e as
tradições indígenas. A grande responsável por perpetuar os modos tradicionais de vida, que já
não são possibilitados devido à expropriação de seus territórios.
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), elaborado sobre determinações de uma “agenda
globalmente estruturada” (DALE, 2004), coloca sobre a escola a responsabilidade por
valorizar e perpetuar os “saberes”, os modos de vida e a cultura indígena sem evidenciar a
contradição que engendra uma ideia como essa em uma sociedade de classes cuja função da
escola, historicamente é sua reprodução, contribui-se para a criação de uma esperança, uma
ilusão ou, porque não dizer: da perpetuação da ideologia burguesa, que no atual momento
histórico, habilidosamente, se apresenta com as vestes da diversidade.
Qual é o papel da escola? Por que os ideólogos dessa política querem fazer crer que a
escola é capaz de resolver questões que advém de um sistema de uma relação social maior?
No início da década de 1990, como referência á organização curricular de mais de 180 países
do mundo, o Relatório Delors considera que, “[...] em todo o mundo, a educação, sob as suas
diversas formas, tem por missão criar, entre as pessoas, vínculos sociais que tenham a sua
origem em referências comuns” (DELORS, 1996, p. 51). Afirma ainda que, a “[...] educação
pode ser um fator de coesão, se procurar ter em conta a diversidade dos indivíduos e dos
grupos humanos, evitando tornar-se um fator de exclusão social” (DELORS, 1996, p. 54).
Omitem os formuladores da nova política educacional que as injustiças sociais, a
exclusão, a miséria, o analfabetismo, a fome que assola grandes regiões e diferentes povos no
mundo, são resultado de uma sociedade de classes, baseada na exploração do homem pelo
homem, sendo estas imanentes ao sistema capitalista. O reconhecimento da diversidade
cultural imposto aos currículos escolares não promoverá a paz em um mundo que perpetua a
extrema riqueza concentrada nas mãos de alguns e a miséria distribuída para milhões, antes, é
uma prática com o objetivo de velar essa realidade.
73
Para assegurar a responsabilidade da escola com a cultura, o RCNE/Indígena
(BRASIL, 1998) apresenta os seguintes Decretos: Decreto Presidencial n. 26/1991, que
transfere ao MEC a competência de organizar as ações referentes à educação escolar
indígena. Em decorrência deste, a Portaria Interministerial n.. 559/1991 estabelece as formas e
ações, as condições pelas quais o MEC irá coordenar tais ações. O Decreto n. 1.904/1996,
que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos, entre outras ações assegura uma
educação escolar diferenciada, respeitando o universo sociocultural indígena (BRASIL, 1998,
p. 32). Para consolidar essa legislação educacional, apresenta a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB 9394/1996 – em seus artigos 78 e 79, que tratam especificamente
da educação escolar indígena. Explica que o texto da LDB acentua o bilinguismo e a
interculturalidade que pode ser identificado no seguinte comentário:
No caso das escolas indígenas, para que seja garantida uma educação
diferenciada, não é suficiente que os conteúdos sejam ensinados através do
uso das línguas maternas: é necessário incluir conteúdos curriculares
propriamente indígenas e acolher modos próprios de transmissão do saber
indígena (BRASIL, 1998, p. 33).
Ao tratar da inclusão dos “saberes indígenas”, é legalmente estabelecido o direito a
um calendário escolar próprio, o que segundo o Referencial, “[...] permite inovações
originárias de concepções e práticas pedagógicas próprias dos universos socioculturais”
(BRASIL, 1998, p. 34) onde se situam as escolas indígenas.
Os dispositivos legais visam evidenciar a especificidade da educação escolar indígena
e asseguram sua liberdade de construção e criação. Baseada no respeito aos saberes, às
práticas e ao patrimônio intelectual dos povos indígenas a legislação garantiria a construção
de uma nova escola, que respeite o desejo dos povos indígenas por uma educação que
valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a conhecimentos e práticas de outros grupos e
sociedades (BRASIL, 1998, p. 34).
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) apresenta os instrumentos internacionais que
emanam de organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização
das Nações Unidas (ONU) e, Organização dos Estados Americanos (OEA), afirmando que
foi efetiva a participação de lideranças indígenas nos fóruns internacionais, denunciando
situações extremas, apresentando reivindicações e formulando propostas.
Como primeiro instrumento internacional que reconheceu direitos mínimos aos povos
indígenas, o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) apresenta a Convenção no. 107 Convenção
74
sobre a Proteção e Integração das Populações Aborígenes e outras Populações Tribais e
Semi-Tribais nos Países Independentes, de 1957, adotada pela OIT contendo 37 artigos e
estabelece “[...] proteção das instituições, das pessoas, dos bens e do trabalho dos povos
indígenas e reconhece o direito à alfabetização em línguas indígenas.” A Convenção ainda
estabelece “[...] que os Estados signatários devem adotar medidas contra o preconceito do
restante da população nacional que possa afetar a imagem e os direitos dos povos indígenas”
(BRASIL, 1998, p. 35). Essa Convenção recebeu críticas por seu “[..] viés integracionista e
por assumir que as decisões relativas ao desenvolvimento dos povos indígenas eram de
competência dos governos e não das comunidades indígenas” (BRASIL, 1998, p. 35).
O Referencial (BRASIL, 1998) aponta que esta Convenção foi revista no final dos
anos 1980 e deu origem a Convenção n. 169. Esta Convenção reconhece caber aos povos
indígenas a decisão sobre as prioridades em matéria de desenvolvimento, o direito de
participar dos planos e programas governamentais que os afetem. Reconhece, também, a
diversidade étnico-cultural, afirmando que esta deve ser respeitada em todas as suas
dimensões. Prevê a participação na formulação e execução de programas de educação, o
direito de criar instituições e meios de educação próprios, alfabetizar suas crianças na própria
língua e na língua oficial do país onde vivem. A seguir o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998)
cita dois documentos, na época ainda em discussão, voltados à proteção dos direitos
indígenas: a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2009); e a Declaração
Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (OEA, 2009).
A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, já aprovada43
pela ONU, assegura o
direito de controlar instituições e sistemas educacionais, usar a própria língua, métodos de
ensino e aprendizagem e culturais próprios. Já o projeto44
da Declaração da OEA (2009),
também afirma que os indígenas têm direito a programas educacionais com currículos,
materiais didáticos e formação docente próprios.
Analisando o contexto de formulação dessa legislação, Faustino (2006) apresenta
alguns aspectos históricos importantes. Sobre as reformas políticas, somos informados pela
autora que, “[...] habilidosamente, a reforma estrutural do Banco [Mundial] absorveu, no
plano do discurso, as críticas provenientes dos movimentos sociais, traduzindo-as em
políticas indigenistas internacionais” (FAUSTINO, 2006, p. 135). Assim, o “[...] novo projeto
43
A ONU aprovou na 107a Sessão Plenária de 13 de setembro de 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas. 44
A OEA possui um grupo de trabalho encarregado de elaborar o projeto de Declaração Americana sobre os
direitos dos Povos Indígenas, com calendário definido de reuniões e discussões para atingir um consenso sobre a
declaração (OEA, 2009).
75
de integração por meio da participação dos povos indígenas vem sendo elaborado pelos
diversos organismos internacionais e conduzido pelo Banco Mundial na última década”
(FAUSTINO, 2006, p. 136). Citando os “instrumentos internacionais” a autora nos informa
que, nesse período final do século XX,
[...] as ações destes organismos se intensificaram concentrando-se em
‘reconhecer’ (Convenção 169-OIT/1989; Declaração de princípios sobre a
tolerância UNESCO-1995), ‘atender’ (Diretriz Operativa 4.20-Banco
Mundial/1991) algumas demandas dos povos indígenas, ‘pacificar’ os
conflitos em regiões de interesse econômico mundial promovendo a
formação de organizações dispostas ao diálogo para garantir a participação
destes povos nas decisões sobre desenvolvimento emanadas dos países
centrais (FAUSTINO, 2006, p. 136).
Compreender como e com quais objetivos as reformas foram elaboradas e conduzidas,
estabelecer a relação do contexto econômico, político e social do período em que ocorreram,
ajuda-nos a aprofundar os conhecimentos sobre o tema e questionar se reivindicações foram
naquele momento atendidas, ou reformulações foram impostas.
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) afirma que a educação escolar diferenciada,
intercultural e bilíngue (ou multilíngue) é reivindicação e parte dos projetos de vida de
comunidades, povos e organizações indígenas; e, que, a escola é uma instituição integrada ao
cotidiano indígena, mas de origem externa ao universo sociocultural indígena, tendo sido
usada, historicamente, como agente de controle, evangelização e imposição forçada de
mudança social e cultural. A escola é vista como “palco de tensão” onde questões podem ser
colocadas em forma de “diálogos”:
O cotidiano da maior parte dos povos indígenas no Brasil desenrola-se num
contexto de tensão entre conhecimentos indígenas e ocidentais, entre
políticas públicas e política de aldeias, entre tendências políticas
internacionais e a definição de estratégias e de opções específicas de vida e
de futuro para populações indígenas. Supõe-se que estas tensões, de cunho
eminentemente político, passem pela escola indígena, fazendo dela palco
para o diálogo ou o conflito entre essas forças em interação (BRASIL, 1998,
p. 36).
O Referencial (BRASIL, 1998) exalta as questões culturais e políticas,
desconsiderando as questões econômicas: apropriação das terras, exploração da força de
trabalho, acúmulo de riquezas pelos latifúndios, fome, miséria, abandono, doenças,
construção de hidrelétricas, destruição total do meio ambiente habitado pelos grupos. Quando
estas questões são mencionadas, a elas é atribuído um caráter eminentemente político e
76
cultural, destacando a escola como um potente instrumento capaz de resolvê-los. Tenta-se,
assim, direcionar a atenção e a luta dos indígenas diretamente para a instituição escola como
articuladora da construção do projeto histórico de grupo, atuando na criação de associações,
dentre outras ações, que estão aquém das possibilidades da escola.
Cabe dizer que, as lutas indígenas desde que os exploradores aqui chegaram tem sido
uma combinação de estratégias nativas historicamente utilizadas pelos grupos (MOTA, 2009;
FERNANDES, 2003; TOMMASINO, 2005), no combate aos inimigos, aliadas às estratégias
desenvolvidas pós-contato. Embora seja intuito do sistema, por meio de seus organismos,
controlar e conter as lutas e resistências sociais, as instituições não-indígenas, como a escola,
as associações e outras são utilizadas pelos indígenas com prudência justamente por saberem
de sua limitação política. Nesse sistema, a escola se torna uma boa instituição para os
expropriados na medida em que possibilitar-lhes o pleno acesso ao conhecimento e o
desenvolvimento das funções psíquicas superiores em suas máximas potencialidades para que
assim possam melhor compreender a realidade em que se inserem, planejar ações, tomar
decisões.
Apresentando dados sobre a quantidade de alunos, professores e escolas indígenas no
Brasil o Referencial faz a seguinte afirmação:
É alto o índice de evasão e repetência devido (i) à oferta de práticas
educacionais distanciadas dos interesses e da realidade sociocultural dos
alunos; (ii) à obediência a um calendário escolar que não respeita as
atividades coletivas e rituais importantes para a socialização dos estudantes
em seus padrões culturais e (iii) aos sistemas de avaliação que não
consideram conteúdos e metodologias experimentadas pelas práticas de
educação indígena. Superar parte das dificuldades presentes nas relações
institucionais e pedagógicas entre os sistemas de ensino atual e a educação
escolar implica entender melhor quem é, na maioria dos casos, o aluno
dessas escolas (BRASIL, 1998, p. 38).
O documento infere crítica aos índices de evasão e repetência, relacionando-os ao
distanciamento cultural dos alunos com os conteúdos e práticas da escola. De forma geral
grande parte da humanidade tem níveis de escolaridade muito baixos. Fernando Reimers,
professor de política educacional em Harvard, que desenvolve pesquisas no Brasil e outros
países da América Latina, afirma que:
Apesar das enormes esperanças que têm as crianças e seus pais nos
professores e nas escolas, muitos aprendem muito pouco, pois os
pobres têm escassas oportunidades de concluir o ensino fundamental
77
e, em conseqüência, de ascender a níveis mais elevados de educação
média e universitária. (REIMERS, 2003, p.18)
Na grande maioria dos casos, as Terras Indígenas estão situadas em regiões e
municípios de mais baixo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil45
. Inúmeros
documentos internacionais (FAUSTINO 2006) atestam serem os povos indígenas as
populações mais pobres do mundo. Nesse caso, seria importante que os documentos oficiais
que circulam mais amplamente entre os indígenas, apresentassem além de um discurso de
euforia pelos mudanças legais do período neoliberal; resultados de pesquisas científicas e
análises comparativas sobre questões escolares, para que, assim, pudessem ser melhor
compreendidos e interpretados pelos próprios indígenas já que o discurso dos documentos é
em favor da autonomia. Sem apresentar os índices e dados das escolas em regiões pobres e
das escolas indígenas, essa constatação do RCNEI/Indígena (BRASIL, 1998) torna-se, não
apenas, mas também, ideologicamente tendenciosa, ao atribuir o fracasso escolar das
populações indígenas à falta de respeito à cultura nativa pela escola.
Primeiramente questionamos o que entende o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) – e
por extensão aqueles que criticam a escola nas comunidades indígenas – por conteúdos e
conhecimentos ocidentais? Se entendidos como conteúdos eurocêntricos, ou oriundos de uma
ciência eurocêntrica, novamente questionamos: se o conhecimento e sistemas científicos
ensinados nas escolas brasileiras são os conhecimentos ditos "ocidentais", não seriam estes
também muito diferentes da realidade sociocultural dos alunos brasileiros? Que dizer, por
exemplo, de uma escola pública no centro de São Paulo, que ensina o conteúdo previsto pela
LDB 9394/1996 e pelos PCNs (BRASIL, 1997) que, assim como uma escola pública no
interior do estado do Mato Grosso que possui, por sua vez, uma realidade diferente de uma
escola do interior do Sergipe ou do Rio Grande do Sul. Não são estas culturas brasileiras
diferentes e realidades sócio históricas diferentes dos conhecimentos ocidentais? Não é a
realidade brasileira diferente da realidade europeia ou norte-americana? Não permitir que o
conhecimento produzido pela humanidade seja sistematizado e ensinado nas escolas é limitar
as possibilidades de desenvolvimento das crianças que frequentam essas escolas. Sejam elas
indígenas ou não, é necessário que tenham acesso às máximas elaborações humanas, para que
possam desenvolver-se plenamente (LEONTIEV, 2004).
45
POCHMANN, Marcio; AMORIM, Ricardo. (Orgs.). Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez
2003.
78
Na primeira seção deste trabalho, explicitamos o processo em que o ser genérico
homem, por ser um “ser social”, aprende a ser homem enquanto estabelece relação com
outros homens ao viver em sociedade. Asseveramos, também, que humanizar-se, é um
processo possibilitado pelo desenvolvimento histórico da sociedade no trabalho. As novas
gerações passam a adquirir as produções e riquezas humanas milenares, acumuladas ao longo
dos séculos pelas gerações sucessivas da humanidade. Reforçamos que esse processo de
aquisição do desenvolvimento histórico, é um processo de aprendizagem, ou seja, “Para se
apropriar destes resultados, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os
fenômenos do mundo circundante através de outros homens” (LEONTIEV, 2004, p. 300)
Embora os PCNs (BRASIL, 1997), também elaborados com base nos lemas do
Relatório Delors (1996) apresentem uma orientação de que as crianças brasileiras das escolas
públicas precisam aprender na escola o que já sabem, ou seja, aquilo que faz parte de sua
cultura familiar e local, salta aos olhos que nenhuma menção seja feita ao fato de que as boas
escolas particulares no país, nas quais estudam os filhos das classes dominantes tanta ênfase
deem ao aprendizado dos conhecimentos universais e línguas estrangeiras.
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) reafirma a crítica à escola homogeneizadora,
evidenciando a necessidade de uma educação específica e diferenciada que garanta a
especificidade da educação intercultural. Segundo do documento, a atenção dos gestores
devem estar voltadas para dois aspectos, quais sejam: a regulamentação jurídica das escolas
indígenas e o reconhecimento de que uma educação escolar de qualidade, adequada às
necessidades e particularidades indígenas, só será realmente eficaz se conduzida por
professores índios.
Para tanto, as prioridades decorrentes desta especificidade são: a formação de
professores índios; a construção de currículos diferenciados; a definição de calendários
escolares contextualizados à realidade de cada sociedade indígena; a produção de material
pedagógico; a adoção de metodologias e sistemas de avaliação. Novamente a
responsabilização recai sobre os professores. Questionamos quanto a essa afirmação de que
somente o professor indígena pode construir e conduzir uma escola indígena, pensar nesse
reducionismo nos leva a pensar que somente o negro pode construir a escola para o negro,
somente as pessoas que vivem no campo podem construir a escola rural, somente o deficiente
pode construir a escola inclusiva e, por analogia, nenhum professor indígena, negro, do
campo ou deficiente poderia ajudar a construir uma escola não indígena ser diretor, compor a
equipe pedagógica. Este direcionamento não estaria fomentando o gueto? O indígena
formado na universidade ficaria restrito ao trabalho em sua aldeia? Em seu grupo cultural?
79
Não poderia ser diretor de uma escola não-indígena para justamente fazer mais presente a
cultura étnica tão propagandeada pelos documentos?
Se estendermos a defesa de que é o professor indígena que deve construir a escola
indígena, para o campo da produção do conhecimento, afirmaríamos que só os indígenas
podem estudar pesquisar, escrever e falar sobre os indígenas, só os negros podem escrever ou
falar sobre si, só os velhos podem fazer pesquisa sobre a velhice, só as crianças poderão
escrever e teorizar sobre a infância... Por analogia, um indígena formado no ensino superior
nunca poderia ser um professor universitário? Um pesquisador em uma instituição não-
indígena? Quando o for só poderia ser docente em uma universidade indígena e fazer
pesquisa sobre sua própria cultura? Por que documentos oficiais como o RCNE/Indígena
apenas reproduzem esse discurso que leva à guetização sem apresentar sua origem e
fundamento?
Para além dessas questões apontadas indagamos: se o RCNE/Indígena afirma
reiteradamente a importância de respeitar as culturas indígenas, perguntamos: houve pesquisa
entre os mais de 200 povos indígenas no Brasil para saber o que pensam sobre eles mesmos
construir suas escolas? Houve pesquisas, estudos, assembléias envolvendo todos os povos
indígenas das Américas para que pudéssemos conhecer como entendem, o que pensam e o
que querem da escola? Como esta “orientação” de que a escola tem que ser intercultural e
bilíngue (MOYA, 1998), construída pelos próprios indígenas que permeiam todos os
documentos educacionais atuais da área em todos os países do mundo que tem populações
indígenas se tornou um consenso entre Chefes de Estado, sucessivos presidentes do Banco
Mundial, da UNESCO, da ONU, da OIT, CEPAL, OEA, lideranças indígenas, gestores,
pesquisadores, Como se construiu esse consenso?
O fato de o Referencial (BRASIL, 1998) apresentar a fala de alguns professores
indígenas, é o suficiente para legitimá-lo? Pensemos um pouco sobre as culturas indígenas.
Elas se organizam por uma democracia liberal ocidental onde uma pessoa pode representar a
outra? Um professor indígena está autorizado por seu grupo a falar por todos? Conhecendo,
mesmo que superficialmente, algumas culturas indígenas é possível saber que, as autoridades
nas comunidades são o cacique, as lideranças político-religiosas e os mais velhos. Estas têm
formas e lugares onde falam. Ainda que muitos professores advenham de famílias que
ocupam postos de lideranças políticas e religiosas entre suas comunidades, cabe refletir sobre
a autoridade que teriam para falar por seus grupos e formular um referencial para todas as
escolas indígenas do país.
80
Ao mencionar a formação do professor, o Referencial aponta que a quase totalidade
dos professores indígenas não tem formação no magistério, dominam conhecimentos de suas
culturas, e/ou não dominam conhecimentos de língua portuguesa e dos conteúdos
considerados escolares. Ao passo que, os professores não-índios possuem o curso do
magistério, mas não possuem conhecimentos sobre os povos indígenas (BRASIL, 1998, p.
40). Portanto, é um equívoco legitimar este documento com a fala de alguns professores
indígenas, visto que, estes não estão autorizados, pelo sistema tradicional indígena, a falar por
toda a comunidade e, do ponto de vista da cultura envolve, os formuladores das políticas
educacionais para o país necessitam tem competência técnica que os credencie para tal.
Segundo o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), é recente a elaboração de propostas para
a formação de professores e pessoal técnico, indígena. O documento critica essa oferta,
afirmando que é destituída de uma noção mais clara da questão curricular, carece de recursos
financeiros que são repassados apenas pelo MEC, ausência de especialistas, falta de cursos
em nível universitário, cursos que não abordam a questão da interculturalidade e da
diversidade linguística e, também, a falta de planejamento para a elaboração de materiais
didáticos específicos. Afirma o RCNE/Indígena que, “Para que a educação escolar indígena
seja realmente específica e diferenciada, é necessário que os profissionais que atuam nas
escolas pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar” (BRASIL, 1998, p. 42).
Sobre os “desafios” para o professor indígena, o RCNE/Indígena, prevê que:
[...] o professor índio – tem à sua frente um enorme desafio diante das
inúmeras tensões que podem surgir com a introdução do ensino escolar:
choques de lideranças, valorização de novos conhecimentos em detrimento
das práticas e ciências indígenas, supervalorização da escrita em detrimento
da oralidade etc. Assumindo que a escola pode, gradualmente, deixar de ser
concebida como instituição externa, como um território estrangeiro, o
professor índio enfrentará, então, o desafio de torna-la espaço possível de
interculturalidade (BRASIL, 1998, p. 43, grifo do autor).
Essa firmação tem profundas implicações culturais na medida em que o
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) coloca o professor indígena acima do poder e das
organizações nativas constituídos nas comunidades indígenas reproduzindo aquilo que o
Banco Mundial almeja com a formação superior indígena “[...] formar uma geração de jovens
indígenas escolarizados, que melhorariam os níveis de emprego, assumiriam as organizações
indígenas e exerceriam papéis de liderança entre o povo do qual provém” (FAUSTINO,
2006, p.144).
81
A responsabilização do professor pela educação, como redentor responsável pelas
próximas gerações, por importantes mudanças sociais e pelo desenvolvimento da sociedade é
claramente explicitada no Relatório Delors, quando a Comissão responsável pela sua
elaboração,
[...] atribui à educação um papel ambicioso no desenvolvimento dos
indivíduos e das sociedades [...]. O que significa que se espera muito dos
professores, que se lhes irá exigir muito, pois depende deles, em grande
parte, a concretização desta aspiração [...]. Os professores têm um papel
determinante na formação de atitudes — positivas ou negativas — perante
o estudo. Devem despertar a curiosidade, desenvolver a autonomia,
estimular o rigor intelectual e criar as condições necessárias para o sucesso
da educação formal e da educação permanente.
A importância do papel do professor enquanto agente de mudança,
favorecendo a compreensão mútua e a tolerância, nunca foi tão patente
como hoje em dia. Este papel será ainda mais decisivo no século XXI [...]. É
por isso que são enormes as responsabilidades dos professores a quem cabe
formar o caráter e o espírito das novas gerações (DELORS, 1996, p. 152-
153).
Sobre essa estratégia de depositar nos ombros dos professores a responsabilidade pela
melhoria da sociedade, Faustino (2006, p. 84) afirma que, em geral as reformas do “[...]
multiculturalismo tem seu principal foco na educação, pois a escola recebe com entusiasmo a
idéia de igualdade para todos e do combate à discriminação e ao racismo sem refletir, muitas
vezes, sobre quais bases este anti-racismo foi construído.” Demonstra a autora, também que
as reformas multiculturais sucederam a reformas constitucionais na maioria dos países onde
foram adotadas, e “[...] dirigiram o foco de ação para a reforma na política educacional,
dando ênfase ao currículo, ao material didático e à formação de professores” (FAUSTINO,
2006, p. 84).
Na sequência seguiu-se, com base no multiculturalismo, a produção e divulgação de
estudos e a mudança em torno da reorganização dos conteúdos e currículos escolares. Ainda
sobre os desafios impostos aos professores indígenas o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998)
aponta que:
Os desafios que os povos indígenas enfrentam na atualidade exigem dos
professores indígenas uma postura e um trabalho adequado e responsável.
Devem estar comprometidos em desenvolver o processo de ensino-
aprendizagem não como únicos detentores de conhecimentos, mas como
articuladores, facilitadores, intervindo, orientando, problematizando, sem
desconsiderar a atitude de curiosidade dos diversos alunos para os novos
conhecimentos. A escola indígena deve ser espaço de pesquisa e de
82
produção de conhecimentos e de reflexão crítica por parte de todos os que
participam dela (BRASIL, 1998, p. 41).
Essa atribuição dos deveres do professor “facilitador”, conceito de base construtivista,
segue o que foi definido nos PCNs e Relatório Delors, fazendo parte da agenda de reformas e
reestruturações neoliberais impostas pelas agências internacionais. Particularmente no Delors
se estabelece que:
[...]. A prossecução do desenvolvimento individual supõe uma capacidade
de aprendizagem e de pesquisa autônomas que só se adquire após
determinado tempo de aprendizagem junto de um ou de vários professores
[...]. A grande força dos professores reside no exemplo que dão,
manifestando sua curiosidade e sua abertura de espírito, e mostrando-se
prontos a sujeitar as suas hipóteses à prova dos fatos e até a reconhecer os
próprios erros. Devem, sobretudo, transmitir o gosto pelo estudo.
(DELORS, 1996, p. 156-157).
Acometido por este compromisso com o desenvolvimento para com os processos
escolares e para com o desenvolvimento da sociedade, o professor é para esses Documentos
(DELORS, 1996; BRASIL, 1998), o detentor dos “poderes” que desenvolveriam a sociedade,
começando por seus alunos. Nesse sentido, afirma o RCNE/Indígena:
Daí a importância central da formação do "professor-pesquisador." Ele deve
tornar-se um interlocutor entre as aspirações da comunidade, as demais
sociedades e a escola, enquanto representante do apoio à transmissão e
criação cultural: incorpora e socializa a escrita e outros instrumentos,
recursos de expressão e comunicação cultural. Também é tarefa do
professor ser capaz de, com seus alunos e parentes, identificar e propor
algumas das respostas aos novos problemas gerados pelo contato mais
amplo com o que se costuma chamar sociedade nacional em sua diversidade
(BRASIL, 1998, p. 43).
Quer o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) que o professor indígena assuma o lugar dos
velhos depositários do saber nas sociedades orais? Dos religiosos que, com toda a experiência
de vida e inspiração divina são autorizados a identificar e interpretam os problemas que
afligem as comunidades orientando o grupo em como agir diante deles? Alguém poderia
dizer que a “tarefa” prescrita aos professores indígenas estaria colocando-os no trabalho de
ajudar os religiosos e as lideranças nativas, porém, mesmo assim contraria-se profundamente
a cultura, pois, os ajudantes, quando existem, não são escolhidos por formação acadêmica,
prescrições curriculares e nem concursos públicos. Os critérios de escolha são nativos, variam
83
de cultura para cultura e requerem amplas pesquisas para que sejam compreendidos em sua
complexidade.
Sem estudos que nos deem a conhecer quem determinou e, quais são as tarefas do
professor indígena em cada cultura, e se os professores podem exercer tal e qual papel em
suas comunidades, como o documento pode, insistentemente, reafirmar que está a defender a
importância das especificidades culturais? Se defendemos o respeito e o reconhecimento das
culturas indígenas não há que se estabelecer, ou “induzir” genericamente, qual é o papel dos
professores indígenas em suas comunidades.
Com essa “orientação” de como devem ser e o que devem fazer os professores
indígenas, se encerra a parte I do RCNE/Indígena, que tratou dos fundamentos políticos,
históricos, legais e antropológicos de uma proposta para a educação escolar indígena. Em
seguida o Referencial trata, na parte II, intitulada Ajudando a construir os currículos
escolares, de apresentar sugestões para auxiliar os professores na organização e no
desenvolvimento do currículo de suas escolas, com reflexões sobre os fundamentos
pedagógicos; as questões socialmente relevantes e as perspectivas de uma nova abordagem
das áreas de estudo em contextos educacionais indígenas (BRASIL, 1998, p. 53).
Novamente o RCNE/Indígena, elaborado pelo MEC – a maior instância de poder
sobre a educação brasileira – se coloca, assim como os PCNs e outros documentos
elaborados no contexto da reforma neoliberal do país, como uma “possibilidade”. Afirma
que estas propostas são ideias “[...] formuladas como parâmetros e sugestões, de forma a não
definir uma proposta curricular a ser aplicada como "receita" pelos professores em todo o
país” (BRASIL, 1998, p. 53). Busca legitimar seu caráter democrático e participativo
afirmando que a metodologia de elaboração do Documento envolveu a “[...] participação de
um significativo número de profissionais de várias áreas do conhecimento, índios e não-
índios, das diversas regiões do país, (BRASIL, 1998, p. 53).
O RCNE/Indígena, encaminhado para todas as escolas indígenas, tornou-se
importante referência para estas instituições. Esta presente nos cursos de formação e nos
momentos de estudos e planejamentos das equipes pedagógicas. Diversos pesquisadores,
tanto se fundamentam nessa perspectiva, quanto contribuem com a disseminação dessas
concepções para professores e escolas indígenas (ANASTÁCIO NETO, 2007;
ALBUQUERQUE, 2001; VINHA, 2006; VINHA, 2007; VINHA, SANTOS, et al., 2007). É
preciso verificar, ainda, se na prática escolar o Referencial (BRASIL, 1998) se configura
como uma determinação e não como parâmetros e sugestões possíveis.
84
O Referencial aborda os aspectos do trabalho relacionado à prática pedagógica e da
organização escolar “[...] sempre guiados pelas experiências vividas e formuladas pelos
professores indígenas em vários pontos do país quando se mobilizam para discutir a educação
em suas escolas” (BRASIL, 1998, p. 58). Sobre essa referencia constante à presença dos
professores indígenas, Faustino (2006, p. 155) aponta que, uma característica importante do
Referencial “[...] é a preocupação com a participação indígena. Em diversos momentos
constam falas, experiências e opiniões de professores ou lideranças indígenas de Norte a Sul
– muito mais do Norte e do Centro Oeste que do Sul – do país”. Entretanto, visto que os
professores não são autorizados a falar por suas comunidades, pois em sua maioria as culturas
indígenas não se organizam por uma democracia liberal ocidental, é curioso verificar que o
Documento tenta por falas individuais de alguns professores selecionados e convidados a
participar do processo, legitimar-se enquanto reivindicação indígena.
Ao propor uma reflexão sobre os objetivos presentes no currículo, o RCNE/Indígena
(BRASIL, 1998) afirma e reafirma que, os professores, assim como os organismos
internacionais, ressaltam a importância de a escola estar articulada às necessidades das
comunidades, enfatizam aspectos dos conhecimentos, da cultura e da tradição próprias, bem
como a importância do acesso aos demais conhecimentos. Assinala, também, que, para os
professores indígenas, a articulação entre os conhecimentos indígenas e não indígenas é o
grande propósito da escola nas aldeias. Entretanto, o acesso a esse conhecimento é sempre
fundamentado nos termos da interculturalidade e do multiculturalismo46
cujos pressupostos
advém de uma mesma base teórica (DUARTE, 2006; FAUSTINO, 2006).
O Referencial (BRASIL, 1998) assinala que, os objetivos gerais, aqueles comuns à
escola indígena, e os objetivos didáticos são instrumentos que orientam e dão suporte ao
trabalho do professor indígena. Já os objetivos finais – aqueles que se quer chegar quando se
prepara uma aula, por exemplo – são criticados pelo Documento, como que presentes na
cultura escolar não indígena, pois, o objetivo não é que todos os alunos aprendam da mesma
forma, no mesmo ritmo e ao mesmo tempo. Ainda, segundo o Referencial (BRASIL, 1998),
as discussões e debates com os professores indígenas sobre os objetivos gerais do currículo, e
os objetivos didáticos, são aqueles que dizem respeito aos processos de aprendizagem. Neste
sentido, os objetivos são
[...] guias de orientação que o professor mesmo elabora para desenvolver
sua prática, fazer suas escolhas curriculares, pensando as diversas
46
Trataremos da interculturalidade e do multiculturalismo no subitem 3.3.
85
aprendizagens que quer conseguir, definir que caminhos seguir sabendo que
cada aluno vai aprender de forma e ritmo bastante diferenciado. Neste
sentido, os objetivos vão levar em conta não só a diversidade cultural, base
da noção de interculturalidade assumida nos fundamentos gerais, mas
também a diversidade individual dentro de uma mesma escola, mesmo que
sejam todos, professor e alunos, membros de uma mesma comunidade
educativa (BRASIL, 1998, p. 60).
Os conteúdos escolares são a própria realização da interculturalidade na perspectiva
do Referencial, ou seja, é por meio deles que é possível a relação entre os conhecimentos de
diversas culturas humanas, a educação escolar e a própria vida em sua dinâmica histórica.
Desta forma, “[...] a interculturalidade também se faz presente na forma interdisciplinar pela
qual alguns dos professores concebem e praticam um trabalho integrado nos conteúdos
tratados nas suas aulas” (BRASIL, 1998, p. 60). Nesse sentido, sem aprofundar o conceito,
histórico e origem dos termos interculturalidade e multiculturalismo, trata brevemente do
caráter ideológico, ressalta a necessidade da construção do consenso, estimula o respeito
entre os seres humanos e as identidades étnicas (FAUSTINO, 2006).
Os fundamentos da interculturalidade balizam planejamentos, objetivos e práticas
pedagógicas. Nesta perspectiva, o RCNE/Indígena indica um processo de estudos a ser
desenvolvido;
A partir de um potencial processo de investigação e de interação entre os
conhecimentos adquiridos em sua experiência cultural e os conhecimentos
apresentados por aquela área de estudo, os alunos das escolas indígenas têm
condição de reelaborar (às vezes modificando, às vezes ampliando) seu
próprio conhecimento sobre o tema/problema em estudo. Há um processo de
autoria, em que os alunos são convidados a ter um papel ativo em todo o
processo de aprendizagem, ao mesmo tempo em que tais relações se
estabelecem em contextos sociais e históricos determinados (BRASIL,
1998, p. 61).
No Documento, a discussão acerca dos conteúdos escolares perpassa o diálogo entre
conhecimentos de diversas culturas humanas, como instrumentos da realidade que podem
subsidiar a busca de uma relação entre teoria e prática. É desta forma que o RCNE/Indígena
entende o que é aprendizagem, para legitimar seus argumentos traz exemplos de aulas
relatadas por professores indígenas, como uma pescaria coletiva, um roçado e um viveiro,
atividades da vida da comunidade. “Tais eventos fazem a ponte entre o saber escolar e a vida
da comunidade, abrindo as portas da sala de aula e dando o sentido social e comunitário da
escola indígena” (BRASIL, 1998, p. 63).
86
Esse ideal de defesa da supremacia da cultura específica, ao saber pessoal que o aluno
traz em sua experiência, convidando-o a ser autor e acreditar que se pode sistematizar um
conhecimento a partir do saber espontâneo, tradicional, sem levar em conta as formas
científicas de sistematização e transmissão dos conhecimentos humanos, pode ser claramente
identificado com o discurso de um pensamento pós-moderno. Duarte (2006, p. 83) ao analisar
esse discurso afirma que, esse tipo de pensamento ou críticas “[...] levariam a um currículo
que valorizasse a tradição cultural de cada aluno e o saber cotidiano”, em detrimento de um
conhecimento universal e científico.
Ao analisar a agenda pós-moderna Wood (1999) explica que, em geral os pós-
modernistas interessam-se por linguagem, cultura e ‘discurso’. Para eles, os seres humanos e
suas relaçoes são constituídos de linguagem, e nada mais. Insistem na construção social do
conhecimento e de forma relativista, rejeitam o conhecimento ‘totalizante’e de valores
‘universais’ – o que incluí, por exemplo, concepções gerais de igualdade, de classe, de
emancipação humana real. Os pós-modernos enfatizam a diferença, as identidades
particulares, os conhecimentos particulares, as ciências específicas de alguns grupos étnicos.
Há muitas convergência entre o pensamento pós-moderno e as concepção teórica
presente no RCNE/Indígena (BRASIL, 1998). Concepções estas, que vão ao encontro do
consenso identificado por Saviani (2007) ao analisar o contexto da década de 1990, quando o
Ministério da Educação e Desporto Cultura no Brasil elaborou a nova política educacional. O
autor apontou as “orientações” que essas políticas receberam de documentos ocidentais
internacionais como o “Relatório Jacques Delors” identificando um delineamento com base
em concepções pós-modernas expressas em todos os âmbitos da vida social (SAVIANI,
2007, p. 431).
O autor menciona que essas preposições se manifestam em diferentes espaços, “[...]
desde as escolas propriamente ditas, passando por ambientes empresariais, organizações não-
governamentais, entidades religiosas e sindicais, academias e clubes esportivos, sem maiores
exigências de precisão conceitual e rigor teórico” (SAVIANI, 2007, p.432). Corrobora com
este pensamento Duarte (2006), ao afirmar que:
Nessa perspectiva, a tarefa principal da escola deixa de ser a de transmitir
um saber objetivo sobre a realidade natural e social, para ser a tarefa de
propiciar as condições para um processo coletivo e interativo de
compartilhamento e construção de significados que, em última instância, são
pessoais, sendo considerados também sociais e culturais porque fazem parte
de um mesmo contexto interativo (DUARTE, 2006, p. 87).
87
O que revela diretamente a influência de um pensamento pós-moderno (WOOD,
1999) que esvazia os conteúdos escolares, que valoriza a cultura individual, grupal e local em
detrimento da cultura universal humana, que oculta às relações de contradições sociais, de
lutas de classe?. Um pensamento que afeta diretamente a possibilidade de qualquer prática
pedagógica fundamentada em uma teoria que, para o desenvolvimento humano, se coloca
contra a lógica universal capitalista (MÉSZÁROS, 2010; VIGOTSKI, 1930; LEONTIEV,
2004).
Fundamentados no entendimento de Wood (1999), Duarte (2006) e Saviani (2007),
entre outros, nosso questionamento se coloca da seguinte forma: se aquelas atividades já
existem na vida comunitária, é realmente significativo transpô-las para a sala de aula sem
uma devida sistematização? Se não tiver caráter cultural (porque estará fora do contexto em
que é produzido e vivenciado) e escolar, porque carece de cientificidade, o que poderá ser?
Collet (2003) nos dá uma boa pista ao abordar o perigo da folclorização da cultura na escola
indígena.
Outro questionamento que fazemos é em relação à prática pedagógica escolar com a
participação ativa em comunidade: é realmente um discurso proveniente das reivindicações
indígenas? Ou sua origem pode ser identificada também no discurso dos documentos
internacionais?
Podemos afirmar , que relacionar a escola e a comunidade é um ponto de discussão
em comum com o Relatório Delors (1996, p. 163) ao enfatizar que: “Reforçar a ligação entre
a escola e a comunidade local constitui, pois, um dos principais meios de fazer com que o
ensino se desenvolva em simbiose com o meio.” Nessa visão responsabiliza-se a comunidade
local pela educação de seus membros. Diz a Comissão:
A comunidade a que pertencem constitui um poderoso vetor de educação,
quanto mais não seja pela aprendizagem da cooperação e da solidariedade
ou, de maneira mais profunda talvez pela aprendizagem ativa da cidadania.
É a coletividade, em seu conjunto, que deve sentir-se responsável pela
educação de seus membros, seja através de um diálogo constante com a
instituição escolar seja, onde esta não existir, tomando a seu cargo uma parte
desta educação num contexto de práticas não-formais (DELORS, 1996, p.
112).
No sentido de garantir que essa educação se realize, o Relatório Delors (1996) sugere
a “[...] educação dos pais, educação para o desenvolvimento social tratando, por exemplo, de
cuidados de saúde primários ou de planejamento familiar, educação com vista a melhorar as
capacidades econômicas, através de contribuições quer técnicas quer financeiras etc.”
88
(DELORS, 1996, p. 132). Chamamos a atençao para o fato de que, em um contexto de crise
econômica, desemprego e aumento da pobreza, atribui-se à escola o papel de resolver estes
problemas ao nível local, pelos quais a comunidade deve se responsabilizar.
Desde o século XIX, a criação da escola esteve vinculada aos interesses da
sociabilidade capitalista, aos interesses da classe burguesa dominante (LEONEL, 1994).
Salvaguardadas as contradições47
que se revelam em seu interior, existentes em todas as
sociedades de classes, a escola foi, e ainda, é utilizada como instrumento de formação dos
sujeitos; de instrução básica e educação moral àqueles cuja função dentro da fábrica exige
qualificações mínimas; compensação pelas degradações resultantes da exploração do trabalho
nesta relação; bem como formação para o trabalho.
Portanto, como pode ser visto nas compreensões do Relatório Delors (1998), das
Nações Unidas (2003) e do RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) a escola, ainda hoje, é vista
como o instrumento capaz de promover o desenvolvimento e a paz; capaz de combater a
pobreza, promover a democracia e os valores de cidadania, valorizar as culturas e as etnias
por meio do multiculturalismo e da interculturalidade.
Com a alegação de que tais práticas ajudam processos de conhecimentos globais, o
RCNE/Indígena coloca os problemas advindos do sistema de mercado como “temas
transversais” que atravessam toda a vida escolar. E conclama a “comunidade educativa” para
construir uma “pedagogia indígena”. Dispõe o Referencial que:
[...] o respeito à comunidade educativa é sempre mencionado como
dimensão ética de particular importância, enfatizada como fonte de
conhecimento de um conjunto de atores que, junto ao próprio professor,
deve conduzir o planejamento curricular. São os mais velhos, as lideranças
políticas, os pais e outros parentes, os curandeiros, xamãs ou pajés, os
artesãos, os agentes de saúde e agentes agroflorestais, além dos outros
professores, quem fornecem o apoio necessário à construção do currículo
(BRASIL, 1998, p. 65).
Primeiro, o trabalho “coletivo” na escola indígena não é simples e nem idílico como
quer fazer crer o Referencial. Ao estudarmos um grupo étnico ou mesmo uma comunidade
47
Falar em contradição demanda explicações teóricas e filosóficas que a nossa formação ainda não nos permite
explicitar. Primeiramente, por que a nossa formação teórica apenas se inicia na compreensão materialista
histórica. Segundo, por compreendermos que, a categoria da contradição, por si só, poderia ser o tema de uma
dissertação. Entretanto, compreendemos que a humanidade ao longo de seu desenvolvimento viveu por séculos
em sociedades comunitárias sem, e que a sociedade com base na relação de classes é fenômeno recente,
considerando os milhões de anos de desenvolvimento do ser genérico homem. Portanto, pensamos que para
compreender a contradição é preciso compreender as questões de classe (MARX, 1982a; 1982b; MARX &
ENGELS, 2007; ENGELS, 2010; TONET, 2002; TONET, 2005; TONET, 2007).
89
indígena verifica-se que esta, não se trata de um grupo homogêneo. Nela operam facções, há
disputas por cargos, espaços para roça e empregos. O fato dos professores serem
remunerados para exercer tal função faz crer à comunidade ser tarefa deles o trabalho escolar,
pois ganham do governo para isso. Desta forma, mais do que o que seria o ideal de trabalho
em uma escola indígena, seriam necessários estudos sobre a organização sociocultural de
cada grupo, como se organizam no trabalho, produção da vida para verificar se as orientações
são válidas e se há possibilidades de ocorrerem de fato.
Não é uma novidade, nem uma especificidade da educação escolar indígena, essa
convocação de outros “atores” para atuarem na escola, o Relatório Delors (1996) em seu
capítulo Da coesão social à participação democrática, assevera que:
Para criar modalidades de reconhecimento de aptidões e conhecimentos
tácitos e, portanto, para haver reconhecimento social, é bom, sempre que
possível, diversificar os sistemas de ensino e envolver nas parcerias
educativas as famílias e os diversos atores sociais (DELORS, 1996, p. 57).
Os “atores” convocados pelo RCNE/Indígena à estarem juntos com o professor no
processo pedagógico, são os membros da comunidade que detém, ou não, o conhecimento
étnico e os conhecimentos escolares. O Referencial faz parecer crer que, basta ser indígena
para que se tenha o conhecimento étnico. Refletimos sobre esse argumento com base nas
formulações de Leontiev (2004) ao afirmar que “O homem não nasce dotado das aquisições
históricas da humanidade. Resultando estas do desenvolvimento das gerações humanas, não
são incorporadas nele, nem nas suas disposições naturais, mas no mundo que o rodeia, nas
grandes obras da cultura humana” (LEONTIEV, 2004, p. 301). Ora, o conhecimento étnico
não é geneticamente transmitido da geração anterior para as sucessoras, alguns dos
“conhecimentos étnicos”, os quais o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) tanto reitera, se
perderam durante os violentos atos de contato com os não-índios, como no caso de
populações que perderam sua língua, suas terras e boa parte de suas tradições.
Para exemplificarmos como os conhecimentos étnicos são fortemente afetados pela
realidade vivida, mencionamos o caso das três etnias habitantes no território paranaense. Na
Terra Indígena Laranjinha, município de Santa Amélia, norte do Paraná, vivem os Guarani
Nhandewa. Os estudos desenvolvidos pelos pesquisadores do LAEE-UEM48
evidenciam que
48
No período de 2009 a 2010 foi desenvolvido pela equipe do LAEE o projeto Ouvir dos velhos,
contar aos jovens: memórias, histórias e conhecimentos Guarani Nhandewa, financiado pelo
Programa Universidade Sem Fronteiras (SETI-PR) e Coordenação de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), cujo objetivo foi contribuir com a elaboração de um currículo e uma prática pedagógica
90
desde meados de 1940, essa comunidade perde gradativamente sua língua, “[...] os valores
sagrados, transmitidos por meio da palavra, foram sendo eliminados e substituídos por novos
valores, veiculados pela língua portuguesa, alterando sobremaneira a forma de ver e entender
o mundo” (FAUSTINO, 2006, p. 219). A região é de agricultura mecanizada e ambiente
devastado, não existe mata nativa no entorno da Terra Indígena, os indígenas não podem
mais viver do modo tradicional, tal qual seus antepassados, não podem produzir seu próprio
alimento, realizar a caça ou coleta. Por mais que ressignifiquem as tradições, eles tem muita
dificuldade de reproduzir as relações de reciprocidade pois não há o que dividir, não há o que
compartilhar. O alimento é escasso, o trabalho é árduo, pesado, ocupa boa parte do tempo e
requer que se afastem de seus grupos familiares por longos períodos como é o caso, por
exemplo, das colheitas de maçã em que trabalham no estado de Santa Catarina.
Podemos citar, também, o caso dos Xetá49
, a última etnia no Paraná a entrar em
contato com a sociedade não-indígena. “Na década de 40, frentes de colonização invadiram
seu território, reduzindo-o drasticamente. No final dos anos 50, estavam praticamente
exterminados. Em 1999 afirmava-se restar apenas oito sobreviventes” (SILVA, 1999).
Atualmente os Xetá lutam por recuperar parte de suas tradições, sua língua e principalmente
lutam para ter acesso a uma terra onde possam revitalizar e reproduzir parte de suas tradições.
Silva (1999) evidencia que, o território Xetá situava-se na região noroeste do estado do
Paraná, no atual município de Umuarama. Diz a autora sobre os Xetás:
Habitantes originais do noroeste paranaense, o território tradicional dos Xetá
é conhecido como Serra dos Dourados, principalmente no espaço
compreendido ao longo do rio Ivaí (margem esquerda até a sua foz no rio
Paraná) e seus afluentes, o rio Indoivaí, o córrego Duzentos e Quinze (onde
foram localizadas várias de suas aldeias), o rio das Antas, o do Veado, o
Tiradentes e o córrego Maravilha” (SILVA, 1999).
intercultural nas escolas situadas nas aldeias Guarani de Pinhalzinho, Laranjinha, Posto Velho no
norte Paraná. 49
O LAEE-UEM desenvolve sob a coordenação e orientação do professor Dr. Lúcio Tadeu Mota, o
Projeto JANE REKO PORANUHA (O contar de nossa existência): Programa Interinstitucional e
Multidisciplinar sobre o povo Xetá realizado pela Universidade Estadual de Maringá, em parceria
com a UnB – Universidade de Brasília; UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso; SEED – PR,
Departamento da Diversidade; Museu Paranaense e MEC – Ministério da Educação, financiado pelo
Ministério da Cultura e Capes por meio do Edital Pro-Cultura 07/2008. O projeto tem desenvolvido
ações no sentido de ajudar a construir um dicionário Xetá, tem desenvolvido intervenções
pedagógicas com o objetivo de ajudar a recuperar e preservar a memória e a língua Xetá. Outra ação
do projeto foi materializada sob a forma projeto de pesquisa científica, em pós-graduação, o estudo
intitulado Educação escolar e os indígenas Xetá no Paraná: uma abordagem da Teoria Histórico-
Cultural (ARAÚJO, 2012).
91
Com a expropriação e dizimação que sofreram nos anos de 1950/60 o último falante
morreu em 2005, quase todos os mais velhos já se foram ou estão por demais debilitados,
vivendo em lugares diferentes e impossibilitados de transmitir suas memórias e
conhecimentos ao mais novos. Estes, por sua vez trabalham “de sol a sol”, saindo de casa na
madrugada e retornando a noite. O letramento é quase inexistente. A grande maioria pouco
freqüentou a escola, tem pouco tempo para se reunir, estudar, ler e entender o que foi
escrito/registrado sobre suas tradições
Suas lutas atuais vão além da questão de preservação da cultura ou da língua. Envolve
a luta pelo território expropriado, com a anuência do estado do Paraná, há mais de cinqüenta
anos e ainda não restituído chocando-se diretamente com os interesses dos proprietários
capitalistas de terras, que ocupam atualmente essa região. A luta dos Xetá não é diferente dos
demais indígenas habitantes do estado. Em relação aos Kaingang, outra etnia historicamente
habitante no território paranaense, cujas lutas, resistências e embates com o sistema
capitalista pelo roubo e privatização de seus territórios, já foram mencionadas na seção 1
dessa dissertação, passados quase 25 anos da promulgação da Constituição Federal, de 1988,
que garantiu amplos direitos a esses povos, atualmente se encontram em processo ferrenho de
luta contra outras formas de destruição e exploração do sistema, pois as terras que lhes
restaram são frequentemente ameaçadas, por exemplo, por projetos de hidroelétricas. Suas
lutas, como a de todos os trabalhadores não proprietários dos meios de produção, englobam,
para além da cultura e preservação do que restou das tradições, a sua própria sobrevivência.
Esses exemplos nos mostram que, não basta ser Guarani, Xetá ou Kaingang para
poder transmitir seus conhecimentos via escola A preservação da tradição, da cultura e da
língua indígena, está para além da autoria dos alunos, ou dos “atores”, envolvidos como
afirmam os documentos. Como podem esses “atores” realizar a revitalização de sua cultura,
se a base material desta revitalização, a saber, a Terra Indígena não está garantida? Como
podem esses “atores” manter apenas a cultura e as tradições, se a terra que lhes permite
sobrevivência não lhes é assegurada, e quando o é, não é suficiente para a manutenção da
subsistência dos grupos familiares e suas formas tradicionais de vida?
E seu atual espaço conquistado na academia, cremos ser oportuno lembrar que o
capital expropria por meios violentos qualquer povo que se coloque como obstáculo a seu
objetivo de expandir-se e valorizar-se (MARX, 1982a). Diríamos mais: os meios violentos
são evitados quando se pode obter o consenso pela ideologia.
Vimos que a escola, em meio a esse processo de luta, é colocada como responsável
pela preservação da cultura, das tradições e línguas indígenas, cabendo aos professores
92
indígenas grande parte das responsabilidades pela preservação do que restou das tradições. O
Referencial os incentiva a fazer diários de classe como forma de registro e posterior consulta
das práticas realizadas em sala de aula. Segundo o documento os diários “[...] cumprem uma
importante função histórica[...]”, pois tem o sentido de “[...] trazer para o plano institucional a
dimensão heterogênea e ricamente variada do cotidiano, a partir do ponto de vista dos
sujeitos particulares que fazem a escola indígena” (BRASIL, 1998, p. 67). Para fazer um
“diário de classe”, um relatório técnico, um livro didático ou outros materiais, que compõem
a rotina da escola são necessários profundos conhecimentos teórico-práticos adquiridos por
meio de estudos científicos universais. O registro de relatos do cotidiano, sem os elementos
da técnica científica, certamente farão parte de arquivos provisórios das escolas sem atingir o
grau de material instrutivo/formativo.
Ao tratar da avaliação, o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) faz uma crítica ao modelo
tradicional considerado um mecanismo de controle, usado em um projeto educativo que
objetiva homogeneizar e padronizar a cultura escolar. Aponta como resultado desse modelo a
“[...] evasão e o fracasso de muitos estudantes, entre eles os indígenas que, por uma razão ou
outra, não se ‘enquadram’ no modelo esperado pelos agentes educacionais” (BRASIL, 1998,
p. 70). O documento propõe uma avaliação que tenha por objetivo “[...] fortalecer a luta pela
autodeterminação dos povos indígenas e a de outros povos, dentro dos princípios da
pluralidade cultural”. Nesta perspectiva, a avaliação passa a “[...] ser um instrumento positivo
de apoio, incentivo e afirmação de novos projetos educativos das diversas sociedades”
(BRASIL, 1998, p. 70). Os instrumentos listados são: produção dos alunos no uso de
diferentes códigos e linguagens, debates, entrevistas, análise das produções ao longo do ano,
resolução de problemas, diário de classe do professor, relatórios de alunos, auto avaliação,
entre outros. Em seguida o Documento (BRASIL, 1998) se detém sobre cada um desses
instrumentos, sempre trazendo a fala de professores indígenas para legitimar suas análises.
Não seria o caso de perguntarmos: não foi o mesmo Ministério da Educação que
propôs, organizou e aprovou o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) que definiu um sistema
padronizado de avaliação das instituições escolares por provas nacionais, para atender as
determinações do Banco Mundial e da UNESCO?
O RCNE/Indígena trata também Sobre a organização do trabalho escolar, com os
seguintes tópicos: uso do tempo; uso do espaço; e, agrupamento dos alunos (ou ciclos de
formação). Sobre o uso do tempo, o Referencial afirma que este não pode ser rígido nem
imutável, trazendo relatos dos diários de classe de professores para evidenciar uma “[...]
flexibilização do uso desse tempo escolar” (BRASIL, 1998, p. 75). Aponta, ainda, que o
93
tempo deve estar organizado a partir das demandas dos trabalhos junto aos alunos, e afirma
ser o calendário das escolas indígenas um elemento de caráter cultural. Trata do espaço como
não se limitando à sala de aula, diretamente relacionado à ação metodológica e a forma de
lidar com o conhecimento que está sendo trabalhado com os alunos, e que deve ser
pesquisado junto aos outros membros da comunidade. E por fim, reconhece “[...] a
diversidade de idade, de sexo, de conhecimento escolar, de experiência e de inserção no
mundo social e cultural” (BRASIL, 1998, p. 77), como orientações que ajudam o professor a
pensar e organizar sua prática.
O documento faz uma crítica ao regime seriado, utilizado na escola brasileira e, sobre
a categoria aluno, afirma que esta “[...] muitas vezes é usada para homogeneizar e anular a
rica diversidade presente em qualquer sala de aula.” Continua seus argumentos afirmando
que, o “[...] regime seriado, que procura agrupar os alunos pelo conteúdo da série, tendo sua
aprendizagem limitada ao tempo do ano letivo de março a dezembro, também acaba por
negar essa diversidade” (BRASIL, 1998, p. 77). Salienta que “[...] os Ciclos de Formação já
vivenciados em algumas escolas indígenas procuram romper com a visão homogeneizante e
uniformizadora da lógica seriada”, são formas flexíveis de usar o tempo não propõem
rupturas ou reprovação. O Referencial sugere tais ciclos de formação, mas não os padroniza,
afirmando ser necessária a adaptação de cada escola a seu contexto. Repensando-se, para
tanto, a programação curricular, os períodos, os objetivos, os conteúdos e os processos
pedagógicos (BRASIL, 1998, p. 79).
Aqui evidencia-se outra contradição e porque não dizer: desvela-se uma insistente
retórica ilusionista sobre possibilidades de calendários diferenciados em uma sociedade
padronizada pela ordem do sistema de mercado. Estando inseridos nessa lógica há muitos
séculos, como se evidenciou na seção anterior, grande parte dos povos indígenas no Brasil e
em países da América Latina tem comemorado o natal, a páscoa e outras datas importantes do
calendário cristão, o que significa que além de suas tradições, nos períodos que antecedem as
comemorações cristãs eles também se preparam vendendo artesanato e fazendo compras de
produtos para as festas. As crianças indígenas como as demais crianças do mundo se
encantam com ovos de páscoa, Papai Noel e presentes e, seus pais, como a maioria dos pais
do mundo, se esforçam em atender aos seus encantamentos.
Os próprios cursos de formação continuada e licencituras interculturais dirigidas ao s
profesores indígenas, muitas vezes funcionam ou tem atividades acadêmicas no período de
férias escolares o que dificultaria sua continuidade se cada Terra Indígena implementasse um
calendário diferenciado.
94
No subtítulo Implicações para a formação de professores e outros atores
institucionais, O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) explicita seu foco a partir dos
fundamentos pedagógicos apresentados para a escola indígena. Assevera que os cursos de
magistério indígena visam a preparação do professor para os contextos interculturais e
bi/multilíngues. Destaca quatro aspectos do trabalho com os professores indígenas: A
reflexão sobre a prática que nasceria da observação fora e dentro da sala de aula, ajudando
na apropriação, re-interpretação e criação de práticas pedagógicas próprias; A preparação
para o estudo independente que visa iniciar um processo de autonomia intelectual para o
estudo, envolvendo o questionamento constante, levantamento de sugestões, traçando
caminho para a formação e visando o domínio de certas metodologias de estudos e leituras
em cada contexto; A preparação do professor-pesquisador o professor deverá desenvolver
seu potencial pesquisador de vários assuntos, produzir conhecimento, aprender a fazer
levantamentos, sistematizar e analisar informações, promover a pesquisa como processo de
ensino e aprendizagem; A produção de materiais didático-pedagógicos ações de registro
das atividades, reflexões sobre a prática, a iniciação à pesquisa e o estudo independente, e
materiais criados em oficinas, fazem assim parte da produção autoral que deve ser usada em
sala de aula.
Neste ponto o RCNE/Indígena sugere a criação da disciplina “Estudo Dirigido”
(BRASIL, 1998, p. 83) nos cursos de formação de professores, para orientar e desenvolver a
habilidade de estudar, com ênfase para o estudo fora da sala de aula. E, uma disciplina
posterior, o “Estudo Independente” (BRASIL, 1998, p.84), que seria a continuação da
disciplina anterior. A “pesquisa” é, portanto, a sistematização e o intercâmbio de
conhecimentos. Segundo o documento:
É importante que os professores se engajem em diferentes tipos de projetos
de pesquisa, sem esquecer dos projetos voltados para sua prática, que
investiguem o que se passa em suas escolas, as pedagogias ali em
construção, fora e dentro do espaço da sala de aula, para que possam agir
refletidamente no processo de construção da educação que suas
comunidades desejam (BRASIL, 1998, p. 85).
Destaco essa constante afirmação do Referencial de que o professor tem de se
envolver em diferentes projetos, tem também que desenvolver em sua formação, um “[...]
olhar etnográfico da sala de aula”, porém, perguntamos com qual objetivo? O
RCNE/Indígena responde que, “[...] a etnografia pode ser um instrumento possível para o
trabalho e reflexão dos professores indígenas. Esse trabalho parte da prática, enfatiza a
95
reflexão sobre essa prática, constrói a teoria e volta para a prática” (BRASIL, 1998, p. 85).
Os professores precisam pensar para além de sua profissionalização, e em sua formação para
o ensino de outros, comparar suas práticas em sala de aula com de outras escolas indígenas e
não indígenas. Pensar, também, a prática de outros profissionais que atuam nas escolas
indígenas. O professor-pesquisador precisa ter noções de Antropologia e de Sociolinguística e
de suas metodologias específicas de pesquisa. Esses conhecimentos são necessários para
reafirmar o multiculturalismo, o multilinguísmo e a variação linguística (BRASIL, 1998, p.
85). Estão dadas essas condições de trabalho ao professor indígena? A hora atividade do
professor indígena é muito maior do que dos demais professores da educação básica cujos
materiais didáticos, na sua grande maioria já recebem prontos do Estado? Os professores
indígenas dispõe em suas escolas de laboratórios de pesquisa, amplas bibliotecas,
equipamentos, acesso à Internet, técnicos de suporte, gabinetes, auxilires de pesquisa, fluxo
de financiamentos, tempo e conhecimento teórico-prático para preparar e aplicar
instrumentos de pesquisas adequados para a produção/sistematização, validação e divulgação
do conhecimento tradicional de sua cultura?
Na medida em que a política educacional elabora esse discurso, presente no
RCNEI/Indígena e em todos os demais documentos da educação escolar indígena pós
Constituição de 1988, divulga-o amplamente entre gestores, mídia e escolas indígenas,
passando os gestores a requer isso nos PPPs e nas formações, os professores indígenas
começam a ser cobrados sobre esse trabalho sem que tenham a mínima estrutura de pesquisa,
elaboração e divulgação, via escola, de conhecimentos tradicionais em suas comunidades.
O RCNE/Indígena faz, então, uma ressalva quanto “[...] à possível imagem da
sobrecarga para os ombros dos professores indígenas, [...]. A questão principal é incentivá-lo
a fazer pesquisas dentro e fora do espaço escolar” (BRASIL, 1998, p. 86). Esse engajamento
na pesquisa é visto como o que ajudará o professor a executar suas aulas, interpretar
resultados, buscar ajuda de outros professores, colegas, assessores, até mesmo seus alunos e
membros da comunidade.
No que se refere à preocupação em formar o professor-pesquisador indígena, mais
uma vez o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) explicíta seu compromisso com as prescrições
do Relatório Delors (1998), que podem ser constatadas quando este examina questões
referentes aos conhecimentos e as competências, as qualidades pessoais, as possibilidades
profissionais e a motivação requeridas. A UNESCO, por meio do Relatório propõe que “[...]
os futuros professores sejam postos em contato com professores experimentados e com
pesquisadores que trabalham em suas respectivas disciplinas.” Incentiva também, que os “[...]
96
professores em exercício deveriam poder dispor com regularidade de ocasiões para se
aperfeiçoar, através de sessões de trabalho de grupo e de estágios de formação contínua.”
Sobre essa formação, afirma que deve ser ofertada sempre “segundo modalidades tão
flexíveis quanto possível.” Sobre o professor pesquisador indica que, “[...] dada a importância
da pesquisa na melhoria do ensino e da pedagogia, a formação de professores deveria incluir
um forte componente de formação para a pesquisa e deveriam estreitar-se as relações entre os
institutos de formação pedagógica e a universidade” (DELORS, 1996, p. 162).
Assim como os PCNs (BRASIL, 1997), o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), adotando
as prescrições ocidentais de Cesar Coll, propõe os Temas Transversais, definindo que estes
“[...] permitem um elo de discussão entre as áreas de estudo, para passarem todas a servir um
projeto social definido pela comunidade” (BRASIL, 1998, p. 93). Segundo o Referencial,
esse recurso ajuda desenvolver um currículo significativo e flexível, os conteúdos tornam-se
relevantes para pensar as questões importantes para cada comunidade. O documento reafirma
que a metodologia pautou-se pela consulta a professores indígenas. Os temas apresentados
são: terra e biodiversidade; auto sustentação; direitos; lutas e movimentos; ética indígena;
pluralidade cultural e educação e saúde.
Sobre o tema Terra e Conservação da Biodiversidade o RCNE/Indígena (BRASIL,
1998) afirma estar este relacionado à vida, à saúde e a existência dos povos indígenas
destacando a relação dos povos indígenas com a natureza, como se naturalmente essas
sociedades estivessem em condições de preservar o ecossistema mantendo-o em equilíbrio.
“É preciso reconhecer os inúmeros trabalhos que os índios desenvolvem para a conservação
tanto da fauna como da flora”, tratando-os como se fossem os naturais guardiões da natureza.
O Referencial afirma que, “[...] o equilíbrio até hoje existente é devido aos conhecimentos
adquiridos e repassados por seus ancestrais” (BRASIL, 1998, p. 93). Um breve olhar sobre a
desvastação ambiental causada pelo sistema de pilhagem e acumulação (poluição dos rios,
destruição da fauna e flora por atividades de frigoríficos, usinas de álccol, madereiras,
agrotóxicos, agronegócio, etc) e o rastro de miséria, doenças e abandono que o capitalismo
deixa sobre as terras por onde passa, é de se admirar tamanho romatismo no RCNEI ,
Há inúmeros relatos de órgãos indigenistas e processos na Polícia Federal que
evidenciam situações em que lideranças indígenas acuadas pela miséria em que vive seu
povo, vendem madeiras, arrendam terras, aceitam a cosntrução de hidrelétricas e outros
projetos capitalistas que afetam definitivamente a preservação do meio ambiente.
O Referencial afirma, em discurso quase messiânico, que as Terras Indígenas no
Brasil são as mais preservadas e,
97
[...] ainda são as que possuem essas características de harmonia e equilíbrio.
Porém, as destruições em nome do progresso, a ganância do dinheiro, a falta
de respeito aos limites e fronteiras dessas terras, as invasões, o uso
predatório dos recursos naturais, são constantes e visíveis, e afetam cada vez
mais as condições socioambientais desses territórios (BRASIL, 1998, p. 94).
Perpassando superficialmente a discussão sobre as consequências da exploração da
natureza, sem fazer menção ao real motivo da destruição massiva e da apropriação privada
das Terras Indígenas e uso predatório de recursos naturais, essa crítica ao “progresso”
evitando a palavra “capitalismo” como o fazem os estrategicamente os organismos
internacionais, torna-se muito semelhante aos panfletos da Campanha da Fraternidade e
outros documentos de organizações cristãs e organizações não-governamentais, estando
aquém das possibilidades que teria um documento do MEC, com todo seu peso político, de
melhor evidenciar e ajudar os povos indígenas a compreender, com maior profundidade, a
origem da miséria, violências e preconceito que vivenciam desde o início do confronto com a
sociedade mercantil ocidental.
O que o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) não menciona em sua “crítica”, melhor
dizendo, no “conteúdo relevante” que propõe para a escola, é que o sistema capitalista, por
natureza, é um sistema que precisa expandir-se, reproduzir-se com base na exploração dos
recursos naturais do planeta, da realização da mais-valia, da concentração da riqueza e sua
consequente produção da miséria, em todos eles em sua forma extrema (TONET, 2005;
MÉSZÁROS, 2009).
Quanto ao tema Terra e Conservação da Biodiversidade, o RCNE/Indígena objetiva
“[...] valorizar e refletir sobre a realidade atual fundiária e ambiental do Brasil e conscientizar
a sociedade nacional e as indígenas para a construção do futuro, no que diz respeito à
dignidade dos povos indígenas, à sua vida em comum e à harmonia com o seu meio”
(BRASIL, 1998, p. 96).
Consideramos que este é outro aspecto que merece uma análise mais detida, haja vista
sua importância. Entretanto, essa discussão não pode prescindir da análise do contexto
econômico, político e social, tal como é apresentada de forma naturalizada no documento. É
preciso articular as “reflexões” sobre a questão da terra às questões do sistema capitalista que
envolvem as Terras Indígenas. É preciso demonstrar o sistema que explora as riquezas
naturais do planeta em favor do acúmulo privado, é preciso, também, explicitar que a
exploração das riquezas está diretamente relacionada à luta de classes antagônicas. A partir
desse pressuposto de análise, Faustino (2006) explica que os centros internacionais de poder
98
“preocupados” com a pobreza extrema que vivenciam milhares de pessoas, voltam sua
atenção para as Terras Indígenas, ocupadas pelos “mais pobres entre os pobres”. Desse modo,
os indígenas “[...] por ocuparem, em muitos casos, regiões estratégicas de interesse do capital
internacional – que deseja continuar “compartilhando” os recursos naturais no mundo –, se
tornaram um segmento importante desta atenção” (FAUSTINO, 2006, p. 132).
O segundo tema transversal apresentado é Auto-Sustentação, novamente o
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) evidencia, assim como os organismos internacionais, uma
preocupação com a participação, as falas e opiniões dos professores indígenas. O Documento
denota que esse tema é importante, pois tanto povos indígenas como não indígenas enfrentam
dificuldades para sobrevivência. A auto-sustentação dos povos indígenas está relacionada
com a terra e com a valorização da cultura. As buscas para o sustento e autonomia econômica
social e política, como grupos diferentes da sociedade nacional. “Nos seus territórios, lutam
para ter a sua própria economia. O objetivo de continuar a manter o grupo em relação a
alimento, vestuário e outros produtos é uma preocupação cada vez maior” (BRASIL, 1998, p.
97). O Referencial afirma ainda que, com “a aceleração do contato”, as comunidades tornam-
se mais dependentes da comunidade do entorno, de trabalhos exercidos fora das Terras
Indígenas. Por isso, sugere que se façam parcerias com outras comunidades, com
organizações governamentais e não governamentais, buscando formas de sustento, de
relações com a “sociedade envolvente”.
Em relação ao conteúdo escolar, sobre a transversalidade do tema o documento
afirma:
Em todas as áreas de estudo, pensar as alternativas que se apresentam para
as atividades produtivas daquela comunidade. Quando se fala em produção,
tanto se pode estar falando de bens como de conhecimentos. Assim, nem
toda produção tem um valor imediato de mercado. No entanto, a relação
com o mercado é um desafio e uma necessidade de grande parte das
comunidades indígenas hoje, e por isso é importante refletir, na escola,
sobre a questão da subsistência e as relações de mercado que se abrem em
cada caso (BRASIL, 1998, p. 98).
O RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) valoriza e afirma a todo o momento a grande
diversidade dos povos indígenas e generaliza o tema auto-sustentação. Entretanto, ao afirmar
que as comunidades lutam para produzir sua subsistência dentro de suas terras, o faz como se
todas as comunidades indígenas pudessem produzir sua vida material de forma isolada e
independente da “sociedade envolvente”. Ou ainda, como se todas as comunidades indígenas
conseguissem produzir qualquer produto/mercadoria que pudesse ser vendida no mercado do
99
entorno. A partir de nossa investigação é possível perceber que a realidade das Terras
Indígenas é bem diferente da demostrada pelo RCNE/Indígena, como é possível constatar na
comunidade da Terra Indígena Boa Vista, no município de Laranjeiras do Sul – PR, que
tomaremos como exemplo para contrapor tal argumento e demonstrar que os indígenas estão
integrados à economia capitalista50
.
Ao tratar da situação econômica dos moradores desta comunidade, Mileski e Faustino
(2011) constataram que sua economia “[...] é bem debilitada pela falta de espaço para o
plantio de roças, de matas mais densas onde consigam caçar e coletar, o que exige que
comprem os alimentos necessários a sua sobrevivência”. No entanto, os autores identificaram
que “[...] mantém aspectos da economia tradicional como a pesca e a coleta de pinhão e de
ervas medicinais, além da produção artesanal” (MILESKI e FAUSTINO, 2011, p. 9).
Quanto à pesca, as coletas e a produção artesanal, os autores, tomando como
referência informações dos membros da comunidade, apreenderam o modo de produção de
subsistência destas comunidades, quanto a estas atividades, e descrevem que:
[...] sempre que possível os indígenas pescam nos rios Três Cachoeiras (Goj
Tej), Verde e, principalmente, no rio do Cobre (Goj Pág), onde algumas
vezes as famílias passam mais de uma semana acampadas. As espécies
encontradas são pequenos bagres, traíras e lambaris, entre outros. No rio do
Cobre ainda pescam com pari – armadilha tradicional – e também com cipó
(cipó bananeira de mico e/ou criciúma), como nos foi relatado pelo Sr. L. C.
(MILESKI e FAUSTINO, 2011, p. 9)
A coleta do pinhão é realizada durante a temporada do outono nos poucos pinheiros
que restaram próximos a sede da comunidade. Explicam os autores que, “[...] como a coleta
não é muita, esta é consumida entre as famílias e não chega a constituir-se como um item a
ser comercializado” (MILESKI e FAUSTINO, 2011, p. 9). Outro material advindo da
atividade de subsistência e que não é comercializado pela comunidade é a lenha que retiram
do mato próximo a aldeia e utilizam para acender e manter o fogo em suas casas.
Dentre as atividades de subsistência não comercializáveis, a coleta de ervas
medicinais51
também se faz presente. Os autores relatam que: “Em Boa Vista existe um Kuiã,
um rezador, e pessoas mais idosas que conhecem e utilizam remédios com ervas medicinais.
50
Na seção 3 desenvolvemos melhor essa questão da relação das comunidades indígenas com a relação
universal capitalista. 51
É informado pelos autores que apesar de existir um pequeno posto da Funasa na T. I., os moradores ainda
utilizam o sistema de saúde na cidade mais próxima.
100
As ervas são coletadas no mato que circunda a sede da T. I" (MILESKI e FAUSTINO, 2011,
p. 10).
Os autores descrevem que, “A planta conhecida como samambaiaçu (Dicksonia
selowiana) ocorre em alguns pontos da área da T. I. próximos ao Rio das Três Cachoeiras.
Do tronco dessa planta é retirado o xaxim, que os indígenas comercializam na região, sendo
uma fonte de renda para as famílias” (MILESKI e FAUSTINO, 2011, p. 10). Essa atividade é
comercializada, assim como o artesanato produzido com a utilização da taquara52
. “A maioria
das famílias produz artesanato para ser comercializado em Laranjeiras do Sul e outras cidades
da região, até mesmo em Guarapuava”, informam Mileski e Faustino (2011, p. 10). O
artesanato é a maior fonte de renda das famílias da T. I. Boa Vista, e com o dinheiro
arrecadado compram a maioria dos alimentos e itens de suas necessidades.
A aposentadoria se constitui numa fonte de renda importante para a manutenção das
famílias, porque “[...] não está sujeita a variações climáticas ou preço dos produtos
comercializados, ela é uma renda fixa recebida todo mês que garante uma margem de
segurança econômica para as famílias dos aposentados” (MILESKI; FAUSTINO, 2011, p.
10). Essa renda fixa também se expressa em salários dos oito (08) trabalhadores53
empregados em atividades em atividades que prestam serviços às agências do governo. Além
desses, alguns moradores, principalmente os mais jovens trabalham em estabelecimentos
comerciais na cidade.
A partir desta realidade podemos constatar no estudo apresentado que a auto-
sustentação não pode ser tomada como um princípio aplicável de maneira genérica a todos os
povos indígenas, já que, as formas de subsistência nas Terras Indígenas não advêm somente
do trabalho nas terras e das atividades tradicionais. Deste modo, a realidade contrapõe a
argumentação e a concepção do RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) de auto-sustentação,
evidenciando que os indígenas estão determinados à economia capitalista, estão integrados à
forma geral dominante do processo de produção.
O terceiro tema transversal trata dos Direitos, Lutas e Movimentos, o
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) relaciona o tema ao respeito aos direitos indígenas
conquistados e assegurados na Constituição de 1988, e outros textos legais. Evidencia que os
direitos estão em consonância com as lutas e os movimentos indígenas, e que o objetivo é
52
A matéria-prima das cestarias, a taquara (Bambusa Vulgaris), encontra-se num ponto que ainda pertence a
uma fazenda e as famílias têm que pedir permissão para fazer sua coleta. 53
Sendo: FUNAI - 01; FUNASA - 02; SEED – Paraná -05 (MILESKI e FAUSTINO, 2011).
101
conquistar novos direitos, bem como fazer valer os já existentes. Deste modo, devem
aprender
[...] a lidar melhor com o mundo institucional, público e privado da
sociedade nacional e internacional e tratar das demandas (demarcação e
controle de recursos naturais), assistenciais (saúde, educação, transporte e
comunicação) e comerciais (colocação de produtos no mercado) (BRASIL,
1998, p. 99).
Conforme consta neste Documento, o trabalho sobre os direitos devem ser feitos pela
escola, para que os estudantes conheçam seus direitos, aqueles inerentes ao ser humano e os
direitos indígenas mais especificamente. Estes se estendem, a uma educação diferenciada, de
acordo com os desejos da comunidade indígena.
A Ética está também elencada entre os temas transversais, e diz respeito “[...] a
maneira, o jeito de agir, de se comportar, do indivíduo frente ao outro, sem prejudicar a si
mesmo e ao seu próximo. Ética tem a ver com o amor, com a solidariedade, o respeito, a
justiça” (BRASIL, 1998, p. 101). O referencial relaciona essa questão ética à conduta, ao
convívio social e ao confronto de valores diferentes. Sobre a ética indígena54
, afirma que esta,
“[...] se baseia nos valores e princípios morais próprios das diversas comunidades indígenas
como a solidariedade, a generosidade, a hospitalidade”. Neste ponto, cita professores
indígenas que mencionam “[...] o respeito às coisas sagradas, à mitologia, à natureza, à
religiosidades [...] aos mortos, aos segredos existentes nos rituais” (BRASIL, 1998, p. 101),
colocando todas essas questões no bojo da discussão ética. Como tema transversal, a ética,
para o Referencial, permite formar uma ideia sobre o mundo, um modo de pensar, uma
opinião sobre a vida. Na escola apoia a construção de regras sociais, melhora o convívio, a
solidariedade, um reforço para solução de problemas. Afirma que este tema na escola
54
Sobre a questão dessa ética indígena, Faustino (2006) desenvolve uma analise crítica: “Seria
interessante que se desenvolvessem reflexões entre os estudiosos da educação escolar indígena sobre
o que pode significar o ensino da Ética – conceito nascido no berço da civilização ocidental greco-
romana – para crianças indígenas. Dificilmente esta palavra constará no vocabulário da língua
materna dos mais de 220 povos indígenas no Brasil.” A autora afirma ainda que: “Organizando-se por
meio dos Temas Transversais nos quais se inclui a Ética, a educação escolar indígena deseja chamar
para si a responsabilidade sobre a formação moral da criança e do jovem indígena. Em se tratando de
uma educação que se intitula intercultural, específica, diferenciada e respeitadora da diversidade
cultural, deveria chamar nossa atenção o fato de ter se apropriado e reproduzido um princípio
ocidental prescrito ao currículo por um psicólogo espanhol construtivista cuja idéia central formulada
para a área dos Temas Transversais é a educação moral e cívica. Este fato é um indicador de que o
documento mais importante da política para a educação escolar indígena – O RCNEI – atende a uma
padronização internacional, tendo sido mais um instrumento organizado pelo MEC para responder a
‘agenda reformista’ imposta pelos organismos internacionais” (FAUSTINO, 2006, p. 156-157).
102
recoloca os valores particulares das sociedades indígenas como transversais à formação
escolar.
Ao falar da Pluralidade Cultural o RCNE/Indígena trata da “[...] diversidade de
culturas que existem em todos os lugares e em diferentes grupos humanos” (BRASIL, 1998,
p. 103). O professor deve pesquisar essa temática, os conhecimentos de sua própria cultura e
de outras etnias. Diz o Referencial:
A Pluralidade Cultural é assim uma maneira de atingir os objetivos do
ensino das áreas de estudo, em que o conhecimento escolar deve estar
relativizado historicamente, enfatizando-se as diferentes produções culturais
e científicas dos diversos povos e sociedades humanas (BRASIL, 1998, p.
104).
O tema transversal Saúde e Educação traz uma importante mudança no discurso do
documento como um todo. A questão de saúde dos povos é colocada em pauta, o Referencial
“[...] busca repensar a cultura de saúde dos povos indígenas, valorizando os conhecimentos
acumulados por esses povos ao longo dos séculos e buscando alternativas eficientes para os
novos desafios a serem enfrentados” (BRASIL, 1998, p. 105). Questões de saúde permitem
um repensar da cultura? Reconhecendo os conhecimentos indígenas sobre tratamentos de
saúde, ainda, assim, o RCNE/Indígena afirma novamente que tradicionalmente os povos
indígenas cuidaram da sua saúde, mas hoje precisam enfrentar novos desafios em favor da
saúde.
O Documento sugere o trabalho com diferentes disciplinas, elucidando temas como
história das doenças em relação com história do contato, noção de contato, determinantes
internos e externos de saúde/doença, política de saúde e sistema de saúde para os povos
indígenas. A escola é novamente eleita o espaço privilegiado para fomentar conversas,
estudos, pesquisas e produção de conhecimento sobre saúde, levando em conta os
conhecimentos tradicionais sobre plantas, por exemplo, e também os novos conhecimentos.
Além dos valores para a promoção da saúde, devem ser estudados na escola
os meios de prevenir a disseminação de muitas doenças. Os cuidados de
higiene precisam ser tratados de maneira destacada, lembrando que há
cuidados higiênicos diferentes para situações diferenciadas – novos padrões
de comida, de vestuário, de moradia etc. (BRASIL, 1998, p. 107).
O Referencial afirma que, o professor e o estudante indígenas são fundamentais no
processo de divulgação de informações sobre saúde e prevenção de doenças para outros
103
membros da comunidade. Sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, e afirma
que:
Deve-se encontrar mecanismos para que a escola veicule os conhecimentos
mais eficientes, sem com isso afetar a cultura milenar, que, por sua vez, é
dinâmica e deve incorporar novos conceitos e padrões de saúde, que, como
práticas culturais, sempre se renovam (BRASIL, 1998, p. 108).
Findada a discussão dos temas transversais, o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) passa
a referenciar as seguintes disciplinas curriculares: Línguas, Matemática, História, Geografia,
Ciências, Arte e Educação Física55
. O modelo de discussão é semelhante para todas: inicia
com a questão: por que e/ou para que estudar a disciplina na escola? Sugestões de Temas;
Sugestões de trabalho, o ensino da referida disciplina, a Avaliação; e, por fim, Indicações
para a formação do professor.
Reiteramos que, como esse trabalho tem como objeto de pesquisa a Educação Física
na escola indígena, nos dedicaremos a partir deste momento a examinar a concepção de
educação física tomando como referencia o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), como um
documento elaborado pelo Estado brasileiro, e o Relatório das Nações Unidas, O Esporte
para o Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do
Milênio (NAÇÕES UNIDAS, 2003), como documento que expressa a concepção de
educação física dos organismos internacionais.
3.2. O Relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização das
Metas de Desenvolvimento do Milênio
O Relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização
das Metas de Desenvolvimento do Milênio foi elaborado pela Força Tarefa56
entre as
55
Apresentaremos especificamente a questão da educação física no subitem 2.3. 56
A Força Tarefa foi formada, unindo agências com experiência significativa na utilização do esporte em seu
trabalho, incluindo a OIT, UNESCO, OMS, UNDP, UNV, PNUMA, UNHCR, UNICEF, UNODC e a
UNAIDS. A Força Tarefa foi co-presidida pelo Sr. Adolf Ogi, Assessor Especial do Secretário Geral do Esporte
para o Desenvolvimento e a Paz, e pela Sra. Carol Bellamy, Diretora Executiva da UNICEF. O apoio do
Secretariado foi fornecido através da organização não governamental (ONG) Right to Play (antiga Olympic
Aid). Seu objetivo foi o de rever as atividades que envolvem o esporte dentro do sistema das Nações Unidas,
promover a utilização mais sistemática e mais coerente do esporte em atividades relacionadas ao
desenvolvimento e à paz, em especial no nível da comunidade, e gerar mais apoio para tais atividades entre
governos e organizações ligadas ao esporte. A Força Tarefa também teve como objetivo estabelecer uma lista de
programas existentes envolvendo o esporte para o desenvolvimento, identificar exemplos construtivos,
incentivar o sistema das Nações Unidas a incorporar o esporte em suas atividades e trabalhar para a realização
das Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs) (NAÇÕES UNIDAS, 2003).
104
Agências das Nações Unidas. O documento é composto de um sumário executivo, e seis (06)
itens nomeados conforme a ordem que segue: Introdução; O potencial do esporte como uma
ferramenta para o desenvolvimento e a paz; O esporte na busca das Metas do
Desenvolvimento do Milênio (MDMs) 57
. Este item está subdividido em subitens de acordo
com as Metas; Conclusão e recomendações; Bibliografia e Anexos; Este item também está
subdividido em subitens trazendo listas de iniciativas, indicações de leituras e outros. Em
diversos momentos do texto constam exemplos de programas de aplicação do esporte,
exemplos de iniciativas de utilização do esporte por parte de escolas, governos, organizações
não governamentais, desenvolvidos ou não em parceria com as agências participes da Força
Tarefa.
O Sumário executivo nos informa que alcançar as Metas de Desenvolvimento do
Milênio requer parcerias e a ONU trabalha nesse sentido. Em seguida nos oferece um
panorama geral do Relatório informando:
Os esforços das Nações Unidas no sentido de prestar assistência a diferentes
países para que consigam alcançar as MDMs incluem vários atores que
trabalham em parceria para o desenvolvimento sustentável e a paz. Em
especial, a oitava MDM requer ação conjunta para se cultivar "uma parceria
global para o desenvolvimento" (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 3).
Percebemos que, nesta concepção, o esporte é uma parceria natural para o sistema das
Nações Unidas, pois ele envolve a participação, inclusão, cidadania, é, ainda, uma ponte entre
as diferenças étnicas e culturais unindo, indivíduos e comunidades (NAÇÕES UNIDAS,
2003). A Força Tarefa considera, ainda, que o esporte oferece o aprendizado de habilidades
como a disciplina, a confiança, a liderança, a tolerância, a cooperação, o respeito, o esforço,
lidar com a vitória e a derrota. “Quando estes aspectos positivos do esporte são enfatizados, o
esporte se torna um poderoso veículo através do qual as Nações Unidas podem trabalhar para
a realização de suas metas” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 3).
O Relatório destaca que o esporte tem um “[...] impacto na saúde e reduz a
probabilidade de muitas doenças”, além de servir como “ferramenta eficaz para a
57
As Metas para o Desenvolvimento do Milênio são em número de oito, surgem da Declaração do
Milênio, assinada por 190 países, em 8 de setembro de 2000, e pretendem ser alcançadas até 2015, são
elas: 1- Erradicar a extrema pobreza; 2 – Atingir o ensino básico universal; 3 – Promover a igualdade
entre os sexos e a autonomia da mulher; 4 – Reduzir a mortalidade na infância; 5 – Melhorar a saúde
materna; 6 – Combater ao HIV/Aids, a malária e outras doenças; 7 – Garantir a sustentabilidade
ambiental; 8 – Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. Informações coletadas no
site do PNUD http://www.pnud.org.br/odm/ acesso: 22 de novembro de 2011.
105
mobilização social”, apoio a campanhas de educação e imunização relacionadas ao
HIV/AIDS, e, ainda para gerar empregos e apoiar a preservação do meio ambiente (NAÇÕES
UNIDAS, 2003, p. 3). O combate a problemas sociais é o mote principal quando se trata de
utilizar o esporte. Sobre o uso de drogas e o crime, o Relatório apresenta o esporte como uma
alternativa, evidenciando também uma relação direta com a melhoria do desempenho
acadêmico. Também, de acordo com o Documento: “A principal descoberta da Força Tarefa
entre Agências das Nações Unidas para o Esporte para o Desenvolvimento e a Paz é que as
iniciativas bem elaboradas, baseadas no esporte são ferramentas práticas e custo-efetivas para
se atingir as metas de desenvolvimento e de paz” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 4).
Na Introdução encontramos informações sobre a Força Tarefa, quem a constitui e
quais os objetivos de sua reunião, somos informados como se desenvolveu o trabalho de
composição do Relatório, e sobre algumas ações concretas realizadas pelas Agências.
Conforme o Documento, a Força Tarefa foi reunida em 2002 pelo Secretário Geral das
Nações Unidas. O objetivo era rever as atividades relacionadas ao esporte para o
desenvolvimento. Para tanto, as Agências com experiência significativa na utilização do
esporte em seu trabalho fizeram parte da Força Tarefa. Os integrantes realizaram reuniões
para traçar as estratégias e decidir sobre as recomendações.
A Força Tarefa procurou consolidar as lições aprendidas a partir da
experiência crescente dentro do sistema das Nações Unidas da utilização do
esporte como uma ferramenta para o desenvolvimento e a paz, procurou
também aproveitar o interesse crescente no mundo do esporte em atividades
das Nações Unidas (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 5).
Aproveitando a utilização do esporte, a Força Tarefa evidencia que “O tempo é
oportuno para se desenvolver uma estratégia coerente e sistemática no sentido de aumentar a
utilização do esporte dentro das Nações Unidas” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 6)
No item O potencial do esporte como uma ferramenta para o desenvolvimento e a
paz, há a indicação de que o esporte se constitui um direito humano essencial para a
condução de uma vida saudável e plena. Que o esporte é fundamental para o
desenvolvimento da criança, para o ensino de valores como o respeito e a cooperação, para
melhorias para a saúde, geração de empregos e desenvolvimento local e serve como “[...]
ponte entre as diferenças culturais e étnicas” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 6).
106
O Relatório considera que o esporte é tratado como direito esquecido e um subproduto
do desenvolvimento e demonstra que ele deve ocupar um papel significativo na agenda do
desenvolvimento:
Demonstrando a contribuição que o esporte pode oferecer quando utilizado
de maneira coordenada e estratégica, o Relatório incita as Nações Unidas e
seus parceiros a integrar o esporte em seu trabalho. Além disso, tem como
objetivo reunir novos esforços para apoiar tais iniciativas vindas de
organizações ligadas ao esporte, de governos e do setor privado, sugerindo
maneiras de avançar em parceria com a sociedade civil (NAÇÕES
UNIDAS, 2003, p. 6).
Em sua definição de esporte, a Força Tarefa afirma que o considera em um sentido
amplo, ou seja, como: “[...] todas as formas de atividade física que contribuam para a boa
forma física, para o bem-estar mental e para a interação social. Estas incluem a brincadeira; a
recreação; o esporte organizado, casual ou competitivo; e esportes ou jogos indígenas”
(NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 7). No bojo dessas discussões define brincadeira como
qualquer atividade física divertida, que envolva a participação da criança e sem o
direcionamento de um adulto. O Documento considera que: “A recreação é mais organizada
do que a brincadeira e geralmente envolve regras ou costumes e às vezes competição. O
importante é que a brincadeira, a recreação física e o esporte são todas atividades livremente
escolhidas, realizadas por prazer” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 7).
O objetivo primário das Nações Unidas é a construção da paz e o desenvolvimento
geral. Por isso, “O objetivo das atividades das Nações Unidas que envolvem o esporte não é a
criação de novos campeões ou o desenvolvimento do esporte, mas em vez disso, é a
utilização do esporte em atividades mais abrangentes do desenvolvimento e da construção da
paz”. Neste sentido, indica o porquê de utilizar o esporte, pois “[...] valores fundamentais
inerentes ao esporte são compatíveis com os princípios necessários para o desenvolvimento e
para a paz, tais como o jogo justo, a cooperação, o compartilhar e o respeito” (NAÇÕES
UNIDAS, 2003, p. 7).
O Relatório, ao evidenciar sua concepção de sociedade e de homem, tende a
naturalizar as relações sociais e o comportamento humano. Indica que o esporte é um reflexo
da sociedade:
Deve-se reconhecer que o esporte, como muitos aspectos da sociedade,
abrange simultaneamente alguns dos piores traços humanos, incluindo a
violência, a corrupção, a discriminação, o vandalismo, o nacionalismo
excessivo, roubar no jogo e o uso de drogas. Entretanto, estes aspectos
107
negativos do esporte, de forma alguma prevalecem sobre seus benefícios
positivos potenciais. As Nações Unidas podem ajudar governos e
comunidades a aproveitarem os aspectos positivos do esporte e canalizá-los
de uma maneira coordenada para a busca das MDMs (NAÇÕES UNIDAS,
2003, p. 7).
Aponta o Relatório que, para as Nações Unidas, o desenvolvimento sustentável é
fundamental e vai muito além do crescimento econômico. A Força Tarefa apresenta sua
concepção de desenvolvimento explicando-o como uma síntese das escolhas individuais:
O desenvolvimento é um processo de ampliação das escolhas das pessoas e
de aumento das oportunidades disponíveis a todos os membros da
sociedade. Baseado nos princípios da inclusão, da equidade e da
sustentabilidade, a ênfase está na importância de aumentar as oportunidades
para a geração atual assim como as de gerações futuras. As capacidades
humanas básicas necessárias para isto são: ‘conduzir vidas longas e
saudáveis, ter acesso ao conhecimento, ter acesso aos recursos necessários
para manter um padrão de vida decente e poder participar na vida da
comunidade’ (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 8).
Assinalamos que o desenvolvimento, como coloca a Força Tarefa, apresenta um
estreito vínculo com o individualismo presente no pensamento neoliberal, a exemplo de
Hayek (PAULANI, 2005), no Relatório Delors (1998), com os princípios reforçados pelo
RCNE/Indígena (1998), e, em última instância, relacionado com os princípios da sociedade
capitalista que reforça características individualistas. O objetivo último do desenvolvimento é
a formação para atuar, com escolhas pessoais, na comunidade, leia-se mercado, e desta
forma, acessar os recursos necessários para garantir seus padrões de vida.
Relaciona o esporte a práticas saudáveis de bem-estar, ao aumento da expectativa de
vida, à redução da probabilidade de doenças não contagiosas (doenças do coração, diabetes e
determinados cânceres). Dentre os benefícios psicossociais proporcionados pelo esporte
destaca a: integração social, o aprendizado de mecanismos de controle; em relação aos
benefícios psicológicos estão a: redução da depressão e melhoria na concentração. No
Relatório o esporte é equiparado a educação física, indica que ela deve ser incorporada ao
currículo escolar, pois oferece “[...] oportunidades de recreação melhora a capacidade de
aprendizado de uma criança, com evidências que indicam também a melhoria da frequência
escolar e do desempenho geral” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 8). Segundo o Relatório, a
educação sobre o corpo propiciada pelo esporte eleva o nível de consciência e de respeito
para com seu corpo e o dos outros relacionando esse fato ao fator de uma vida saudável e
para a prevenção de doenças.
108
A concepção de esporte que se apresentada no documento refere-se àquela que
naturalmente desenvolve o respeito ao outro e ao meio-ambiente. A educação, nesse sentido,
é algo que, naturalmente ocorre por meio do esporte, ao promover relações sociais, conexões
e comunicação entre os indivíduos e os grupos, “[...] ajudando a construir capital social e
fortalecer o tecido social” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 8).
Cabe dizer que essa visão de educação física, como esporte, que naturalmente vai
desenvolver hábitos saudáveis, prevenir doenças e ajudar a resolver os problemas sociais é
uma concepção amplamente questionada por alguns autores da educação física, como já
evidenciamos na primeira seção deste trabalho, a partir da década de 1980, um amplo debate
na área da educação física ocorreu nesse sentido.
Ao relacionar o esporte ao potencial econômico, o Relatório destaca o “peso
econômico resultante de atividades tais como a fabricação de produtos esportivos, eventos
desportivos, serviços relacionados ao esporte e a mídia”. Traz como exemplo o valor
originário de atividades esportivas no Reino Unido, estimado em 1,7% do Produto Nacional
Bruto, o que comparativamente significa que o “[...] o volume dos negócios relacionado ao
esporte comparável ao da indústria automobilística e de alimentos” (NAÇÕES UNIDAS,
2003, p. 8-9).
Evidencia que o esporte é um catalisador para o desenvolvimento econômico,
relaciona uma população fisicamente ativa à uma população mais saudável, com maior
produtividade no trabalho e melhores resultados econômicos, além da possibilidade de
formas mais custo-efetivas de medicina preventiva. Em relação à empregabilidade, o
Relatório relaciona novamente “os valores naturais” do esporte ao ensino de habilidades
essenciais como o trabalho em equipe, a liderança, a disciplina e o valor do esforço. Vê o
esporte como uma atividade construtiva que ajuda a reduzir os níveis de criminalidade
juvenil, comportamento antissocial, e, em casos de trabalho infantil, um substituto
significativo para o trabalho. Em momento algum o Relatório toca na questão fundamental de
existência desses problemas sociais como resultantes dos processos de exploração capitalista.
Vinculando o esporte à paz, o Relatório afirma que este “[...] une os povos de uma
maneira que consegue ultrapassar limites e barreiras, fazendo do campo um local simples e
freqüentemente apolítico para iniciar contato entre grupos antagônicos” (NAÇÕES UNIDAS,
2003, p. 9). Ao mesmo tempo, é um “fórum” onde se pode estabelecer o diálogo social,
findar as rivalidades e o preconceito entre os povos. Neste sentido, o esporte é visto como
uma ferramenta para comunicar as mensagens de paz. Seus valores são os mesmos ensinados
com o intuito de resolver e impedir conflitos. Respeito, honestidade, comunicação,
109
cooperação, empatia, cumprimento de regras, são os valores necessários a essa “construção
da paz”. O esporte é destacado como um direito humano que deve ser promovido e apoiado, e
argumenta trazendo resoluções, cartas, convenções e instrumentos internacionais.
O terceiro item O esporte na busca das Metas de Desenvolvimento do Milênio
explicita que o esporte é uma ferramenta inovadora e eficaz para auxiliar nos esforços
existentes no sentido de atingir os objetivos específicos para a realização das Metas de
Desenvolvimento do Milênio. A utilização de programas de esportes bem elaborados é vista
como “[...] uma maneira custo-efetiva de se contribuir significativamente para a saúde, a
educação, o desenvolvimento e a paz, além de ser um meio poderoso e de se mobilizar
sociedades e de se comunicar mensagens-chave” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 11).
O Relatório aponta que o esporte e a atividade física de forma apropriada
desempenham um papel fundamental na prevenção de doenças não-contagiosas, propicia
benefícios relativos à saúde física, social e mental. Complementa estratégias de melhora da
alimentação, desestimula o uso do tabaco, do álcool e das drogas. Novamente o esporte é
visto pelas agências componentes da Força Tarefa como uma ferramenta custo-efetiva de
melhorar a saúde pública.
Sobre a relação do esporte, da educação e dos hábitos saudáveis de vida, o Relatório
destaca que:
Nas escolas, a educação física é um componente-chave de uma educação de
qualidade e pode ser utilizada para promover a educação entre os jovens.
Fora da sala de aula, o esporte é uma ‘escola para a vida’, que ensina valores
básicos e habilidades para a vida que são importantes para o
desenvolvimento holístico. O esporte é também um veículo poderoso para a
educação pública, uma vez que eventos esportivos podem eficazmente
aumentar a consciência e fomentar apoio e ações concretas em torno de
questões fundamentais (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p.15).
Evidenciamos ter essa vinculação do esporte com a educação, o objetivo de
salvaguardar a sociedade, mobilizando e responsabilizando as comunidades regionais para
combater a miséria e exclusão social, produzidas pelo sistema capitalista. Na perspectiva do
Força Tarefa o esporte contribui para o desenvolvimento de habilidades essenciais tais como:
[...] a cooperação e a autoconfiança, são essenciais para a coesão social e
são levadas para a vida adulta. Ensina ainda sobre valores como
honestidade, jogo justo, o respeito próprio e pelos outros, a obediência às
regras e o respeito pela importância delas, lidar com a competição, o perder
e o ganhar (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p.15).
110
Desta forma, para o Relatório, o esporte também ajuda a construir a compreensão do
valor dos vínculos comuns, a importância da diversidade, à inclusão da própria identidade e
da identidade dos outros, favorecendo a inclusão social. Esses conceitos são explicados no
item Esporte, educação e inclusão, onde afirma-se que o esporte dentro e fora da escola
deve oportunizar a participação de todos independente de gênero, raça ou habilidade. Afirma,
ainda, que, os jogos tradicionais envolvem custos mais baixos em termos de instalações e
equipamentos do que os esportes comuns (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 16). Um discurso
comum aos documentos dessas agências é o da valorização da diversidade, da inclusão, da
comprrensão do outro, evidenciando-se um enfoque direto na coesão social, preocupação
constante dos dirigentes das economias capitalistas centrais.
Sobre o esporte como forma de inclusão, assevera-se que este deve assegurar
oportunidades iguais a todas as pessoas, independente de gênero, raça ou habilidade. Nesses
termos, é entendido como ferramenta importante para garantir meios não formais de acesso à
educação para meninas, pessoas com deficiência e refugiados (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p.
18).
Sobre a educação física, o documento afirma que negligenciá-la é obter impactos
negativos na saúde pública e nos orçamentos da saúde. O por quê de a Educação Física ser
importante na escola? A Força Tarefa concebe esta disciplina como meio de promover a
saúde. O objetivo da educação física é promover saúde ou promover o desenvolvimento do
indivíduo? Para essas Agências é a única disciplina do currículo que focaliza especificamente
o corpo, portanto, essencial para ajudar a ensinar aos jovens sobre o risco do HIV/AIDS, de
doenças sexualmente transmissíveis e o uso de drogas.
Nessa concepção, a educação física apresenta eficácia como ferramenta para saúde,
desenvolvimento físico, coesão social diálogo intercultural é “[...] meio excelente de se pôr
em prática muitas das habilidades que são consideradas resultados necessários de um sistema
de educação moderno, especialmente o trabalho em equipe, a cooperação, a resolução de
problemas e a construção da auto-confiança” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 19).
No item O esporte e desenvolvimento econômico o esporte é destacado como um
estímulo de desenvolvimento econômico, gerador de atividade, emprego e riqueza em vários
setores da economia. E, para isso, deve ser novamente mobilizado grande contingente de
pessoas na elaboração e na implementação de “[...] estratégias locais para o desenvolvimento
baseadas no esporte devem ser participativas, incentivando e facilitando parcerias entre
interessados locais, incluindo Governos, agências das Nações Unidas, ONGs, grupos da
comunidade, empregadores e empregados” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 20). O esporte é
111
valioso, para esta Agência, por ensinar o valor do esforço, de trabalhar em equipe, o que
melhora a “empregabilidade” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 21).
No item Esporte e desenvolvimento social, o Relatório reafirma a relação do esporte
com os princípios de coesão social, combate a drogas e a criminalidade, reabilitação de
trabalhadores infantis, como ferramenta terapêutica para tradar “portadores de deficiência”,
melhorando habilidades motoras e aumentando a mobilidade, autossuficiência e
autoconfiança. Sobre gênero afirma que é “[...] uma ferramenta eficaz para empoderar
meninas e mulheres” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 20-24). Em relação à questão de gênero,
consideramos que ampliar o papel prescrito às mulheres é apenas garantir alguns direitos, e
não uma mudança real na condição das mulheres, nessa sociedade. Esse “empoderamento”
muda realmente a relação de gênero, ou fica novamente no âmbito do discurso legal?
Qualquer mudança que se reduza ao âmbito do direito, ou seja, da cidadania, não passa de
uma conquista pela emancipação política. E, por mais que signifique grande avanço, a
emancipação política é a máxima emancipação que se pode alcançar na sociedade capitalista.
Para se garantir efetivas mudanças na condição das mulheres, dos indígenas, enfim, da
humanidade, é preciso que se efetue a emancipação humana real58
.
Interessante notar que o Relatório aborda também o tema Esporte e meio ambiente
afirmando que o esporte é um causador de impacto cumulativo sobre o meio ambiente,
sugerindo que se deve assegurar que os eventos e materiais esportivos sejam realizados de
maneira sustentável (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 24-25). Para o Relatório, esta é uma forma
de incentivar as pessoas a se tornarem mais ativas fisicamente, e isso requer a criação de
ambiente limpo, apropriado e sustentável. A Força Tarefa denota que o esporte é uma
ferramenta poderosa para comunicar mensagens ambientais e incentivar ações para a limpeza
do meio ambiente.
Ao relacionar o Esporte e Voluntariado menciona que “[...] voluntários são um
recurso estratégico importante para os programas de esporte e devem ser ativamente
mobilizados” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 25). Incentiva que os jovens sejam
especialmente mobilizados, para que sejam também voluntários em sua vida futura. Aponta
como benefícios do serviço voluntário “[...] a autossatisfação, a aquisição de habilidades, o
aumento da compreensão e a integração social”. O que beneficia a sociedade com “[...]
impactos que incluem o crescimento econômico, o bem-estar social, a participação
comunitária, a geração de confiança recíproca e a ampliação da interação social” (NAÇÕES
58
Discutimos emancipação humana real e cidadania no subitem 3.4 deste trabalho.
112
UNIDAS, 2003, p. 25). O que não explicita o documento é quem nessa sociedade se
beneficia desses serviços voluntários? Ou, porque essa necessidade de se construir a coesão e
a estabilidade social?
No item Esporte e paz, são tratados temas como: coesão social, formas de evitar
conflitos, construção da paz sustentável, apresentando o esporte como a ponte entre as
diferenças étnicas, e afirma que “[...] quando aplicados eficazmente, programas de esporte
promovem a integração social e a tolerância” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 26). Em função
de um bem maior, o Documento afirma que o objetivo é “[...] reduzir tensões e gerar o
diálogo”. Leia-se garantir a apropriação privada da riqueza humana por uma pequena classe
detentora do capital.
O item Iniciativas Comunitárias para a Paz reafirma o uso do esporte em
programas comunitários, envolvendo pessoas afetadas por conflitos e tensão social. Sobre a
promoção da paz, a Força Tarefa traz relatos de iniciativas diversas que utilizaram o esporte
com populações específicas: Jovens sendo preparados para o mundo competitivo; Ex-
soldados infantis sendo reabilitados e tendo suas infâncias devolvidas com a colaboração do
esporte; as Nações Unidas endossando a Trégua Olímpica antes dos Jogos Olímpicos
reconhecendo o esporte como “[...] um forte símbolo da paz” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p.
28).
O Relatório aponta que as Nações Unidas colaboram também com o sucesso do
“mundo do esporte na área de comunicações, gerando a consciência sobre questões chaves de
esforços globais e locais” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 29, promovendo estilos de vida e
hábitos saudáveis, utilizando a imagem de atletas como “Embaixadores da Boa Vontade”
para, entre outros objetivos, os esforços no sentido de mobilizar recursos. Assim, o uso dos
eventos esportivos como “[...] fórum para alcançar um grande número de pessoas” (NAÇÕES
UNIDAS, 2003, p. 30), o que inclui divulgação em mídia, vídeos e bandeiras dentro dos
estádios, shows no intervalo, publicações e links em sites. Indagamos, porém, qual o objetivo
disso tudo? Em âmbito global, diz a Força Tarefa, “[...] os eventos esportivos podem
incorporar todos os elementos acima e fornecer oportunidades adicionais de marketing e para
levantar fundos” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 30).
Neste sentido, as Nações Unidas afirmam apoiar áreas onde o esporte atua para o
desenvolvimento, para “[...] conduzir a mudanças positivas e estimular a adesão” (NAÇÕES
UNIDAS, 2003, p. 31). Entretanto, essa mudança positiva está relacionada aos problemas de
coesão social e de administração de tensões, vistas por essas Agências como fruto das
características naturais do homem. Entendemos, diferentemente desse pensamento, que tais
113
problemas sociais: os conflitos, a pobreza, as drogas, as doenças, o trabalho infantil, a
exploração das mulheres, e tantos outros listados neste Relatório são de ordem social porque
estão diretamente ligados à forma como os homens produzem a vida e se relacionam entre si.
Marx (2004) explica que “[...] o declínio e o empobrecimento do trabalhador são o produto de
seu trabalho e da riqueza por ele produzida” (MARX, 2004, p. 30).
Portanto, aqueles problemas, que a Força Tarefa intenta resolver por meio do esporte,
não são problemas gerados pela natureza do homem, mas pelas relações que este estabelece
para produzir a vida. Para fazer tal afirmação, nos apoiamos em Marx (1982b), que
incasavelmente dedicou seus esforços ao longo da vida para explicar a sociedade capitalista.
Este autor nos diz que, para existir capital é preciso haver determinadas circunstâncias.
Segundo Marx (1982b), duas espécies de possuidores precisam se relacionar, se confrontar e
entrar em contato,
[...] de um lado, o proprietário do dinheiro, de meios de produção e de meios
de subsistência, empenhado em aumentar a soma de valores que possui,
comprando a força de trabalho alheia, e, do outro, os trabalhadores livres,
vendedores da própria força de trabalho e, portanto, de trabalho [ ].
Estabelecidos esses dois polos do mercado, ficam dadas as condições
básicas da produção capitalista. O sistema capitalista pressupõe a
dissociação entre os trabalhadores e propriedade dos meios pelos quais
realizam trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não
se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em escala cada vez
maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo
que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho [ ]. A
chamada acumulação primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o
trabalhador dos meios de produção” (MARX, 1982b, p. 829-830).
Deste modo, o processo que criou o sistema capitalista foi um processo histórico, e,
isto pressupõe que foi produzido pelos homens. Marx (1982b), nesse sentido, afirmou que
“[...] o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, efetivada através das
coisas” (MARX, 1982b, p. 885). Se a sociedade é a totalidade das relações de produção, os
problemas sociais estão diretamente relacionados a essa forma de produção.
A sociedade feudal em sua totalidade de relações possuía problemas sociais que foram
radicalmente transformados, quando a classe burguesa revolucionária subverteu a ordem
feudal, e estabeleceu59
a sociedade capitalista burguesa. O que nos dá elementos para
compreender que os problemas sociais nesta sociedade capitalista, cujo Relatório da Força
59
Na primeira seção deste trabalho compreendemos como sucedeu o processo que sucedeu a transformação da
sociedade feudal em capitalista. Não foi um processo rápido e de decisão unânime, antes envolveu lutas de
classes e contatos de povos distintos, no decorrer de séculos de transformações sociais.
114
Tarefa afirma serem resultados da natureza humana, nada mais são que problemas produzidos
na relação social capitalista, e neste sentido, podem ser solucionados se, e somente se, as
relações capitalistas forem revolucionadas e os homens estabelecerem nova ordem de
relações sociais.
Esta revolução envolve um processo histórico em que todos os homens, e não apenas
uma classe dominante, passam a controlar as formas de produção. Os homens não serão mais
indivíduos capitalistas, possuidores dos meios de produção e de subsistência de um lado e,
trabalhadores, possuidores apenas de força de trabalho, de outro. Revolucionar, portanto, as
formas de produção, bem como as relações sociais, é o processo histórico que possibilita
transformar todos os homens em trabalhadores associados, cujo trabalho “[...] tem como
característica essencial o fato de os produtores controlarem, de forma livre, consciente e
coletiva o processo de produção e distribuição da riqueza. Vale dizer, estabelecerem o que,
quanto e em, que condições os bens serão produzidos e distribuídos”. Os homens estarão em
condições de, “[...] a partir de uma base material capaz de criar riquezas suficientes para
satisfazer as necessidades de todos – de serem efetivamente sujeitos de sua história”
(TONET, 2007, p. 31). A satisfação das necessidades de todos suprimirá, de uma vez por
todas, aqueles problemas sociais que nada tem de naturais como quer fazer crer o Documento
(NAÇÕES UNIDAS, 2003).
As mudanças positivas do Relatório das Nações Unidas, obviamente não levam em
consideração essa necessidade radical de transformar a ordem capitalista, ao contrário,
buscam promover a coesão social para amenizar as tensões e assegurar a paz apenas por meio
da mobilização das pessoas em favor do esporte. Deste modo, idealiza o papel da educação e
do esporte na solução dos problemas sociais, como se sua solução passasse pela mudança na
forma de pensar dos homens.
Os objetivos da Força Tarefa enunciam belas palavras na organização de suas
campanhas: “Cartão Vermelho para o Trabalho Infantil”; “Esportes livres do Tabaco”;
“Times para Acabar com a Pobreza”; “Jogue pelo Planeta”; “Esportes Contra as Drogas”
(NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 31-32). Sempre com o mesmo intuito de utilizar o esporte para
promover parcerias, mobilizar recursos, combater a pobreza, combater o HIV/AIDS, sempre
repetindo e reforçando o uso do esporte para estes fins.
A Força Tarefa conclui afirmando que seu Relatório “[...] mostrou que o esporte – de
jogos e atividade fisica ao esporte organizado e competitivo – é um meio poderoso e custo-
efetivo de apoiar objetivos de desenvolviemnto e paz”. Complementa, ainda, ser de vital
importância que, “[...] as agências das Nações Unidas, governos e grupos interessados
115
integrem o esporte e a atividade física em políticas e programas em diversos setores,
incluindo a saúde, a educação e o desenvolvimento econômico e social”. E, reitera, que o
sistema das Nações Unidas deve “[...] realizar plenamente o potencial do esporte como uma
ferramenta viável e prática para o desenvolvimento e a paz” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p.
40).
Findada esta apresentação do Relatório Esporte para o Desenvolvimento e a Paz:
Em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio, no próximo item
faremos algumas análises na tentativa de mostrar a articulação entre os documentos,
evidenciando que as políticas para a educação escolar indígena e educação física são
formuladas para atender a padronização internacional, ao invés de atender as reivindicações
das minorias étnicas.
3.3. Relações do RCNE/Indígena e do Relatório O Esporte para o Desenvolvimento e a
Paz: em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio: o discurso das
agências internacionais
No Brasil, as reformulações da educação escolar indígena acompanharam as reformas
educacionais brasileiras, que por sua vez, acompanharam uma “agenda global estruturada
para a educação” (DALE, 2004). Os indígenas ganharam, a partir da Constituição Federal
Brasileira de 1988, o direito à cidadania, a adquirir documentos – a carteira de identidade, o
cadastro de pessoa física (CPF), título de eleitor (FAUSTINO, 2006, p. 151). A partir deste
momento, uma série de documentos, decretos e regulamentos, passam a legislar sobre a
educação indígena.
A Carta Magna garantiu, pelo menos em lei, o direito de utilização da língua materna
e de processos próprios de aprendizagem para os indígenas. Tais direitos são garantidos
também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) Lei n. 9394/1996, no
Decreto n. 21 de 1991, na Portaria Interministerial n. 559, de 1991, nas Diretrizes para a
Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1992 (FAUSTINO, 2006, p. 152-153),
entre outros documentos.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/1996 (BRASIL,
1996) garante no Artigo 78 “[...] a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos
povos indígenas”, por meio de programas desenvolvidos entre agências federais de fomento à
cultura e de assistência aos índios e os sistemas de ensino da União. Garante, ainda, em seu
artigo 79 que, “A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no
provimento da educação intercultural às comunidades indígenas [...]” (BRASIL, 1996).
116
Já apresentamos o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) e como este documento se coloca
como um referencial que propõe ampliar as discussões da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, orientar a construção dos currículos e atendimentos pedagógicos no âmbito da
escola indígena. Apresentando-se como resultado das reivindicações dos professores
indígenas à construção de novas propostas curriculares, afirma ser necessário que os sistemas
educacionais reconheçam a diversidade cultural e étnica dos povos indígenas e que construa e
implemente propostas curriculares diferenciadas e culturalmente sensíveis, atribuindo grande
responsabilidade ao professor nesse processo.
Ao analisar esse documento Faustino (2006) evidencia que nas culturas indígenas,
[...] de forma geral, os padrões de conduta que permeiam as relações e
permitem a um novo membro do grupo (principalmente as crianças)
apreender o sistema social em que nasceu (ou foi acolhido) e está inserido
são ensinados e aprendidos no âmbito familiar, nos rituais, por meio dos
mitos e nas práticas sociais nas quais se transmitem e recriam todo um
complexo de normas que fundamentam a organização sócio-cultural, o
conhecimento, as crenças, as relações entre as pessoas, as trocas e as
condutas consideradas adequadas ou inadequadas para um determinado
grupo frente a determinadas situações cotidianas (FAUSTINO, 2006, p.
157).
Ora, se o aprendizado do sistema social indígena ocorre durante toda sua existência,
de forma complexa e total nos relacionamentos e nas práticas sociais, é possível que no
âmbito escolar se recrie toda essa complexidade de relações para promover o aprendizado? E,
mais, qual o sentido da escola que valoriza o cotidiano e o conhecimento imediato em
detrimento do conhecimento científico universalmente produzido? Não é papel da escola
reproduzir as instâncias da vida cotidiana. A função social da escola, se considerarmos os
estudos da Teoria Histórico-Cultural60
, é ser o espaço onde se promoverá aos alunos o
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, onde se possibilitará que os alunos
conheçam as máximas elaborações humanas e possam ter contato com o conhecimento
humano acumulado.
60
Os pressupostos de Marx e Engels (2007) permitiram que Vigotski (1896 – 1934), em seu tempo, pretendesse
superar a “velha psicologia”, objetivando suplantar a dicotomia corpo-mente (TULESKI, 2008, p. 81), Com as
contribuições de A. R. Luria (1902 – 1977) e de A. Leontiev (1903 – 1979), num contexto de ordem econômico-
sociais, que ocorreram na Rússia em fins do século XIX e início do século XX, estão dadas as condições
materiais para a construção da Teoria Histórico-Cultural, uma nova explicação do desenvolvimento humano
tendo como fundamento a compreensão marxista. Estes fundamentos materialistas históricos nos permitem
compreender como as gerações se desenvolvem a partir das produções das gerações passadas, no entendimento
de Leontiev (1979, p. 267) “as gerações humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa às
gerações seguintes que multiplicam e aperfeiçoam, pelo trabalho e pela luta, as riquezas que lhes foram
transmitidas e passam o testemunho do desenvolvimento da humanidade.”
117
Esse entendimento de educação e escola destoa completamente do discurso dos
documentos que aqui apresentamos. Já observamos, no item 2.1, que Faustino (2006) afirma
que o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), “[...] o documento mais importante da política para a
educação escolar indígena” ao tratar de uma educação intercultural, específica, diferenciada e
respeitadora da diversidade cultural, “[...] atende a uma padronização internacional, tendo
sido mais um instrumento organizado pelo MEC, para responder a ‘agenda reformista’
imposta pelos organismos internacionais” (FAUSTINO, 2006, p. 157-158).
Dos documentos resultantes dessa agenda internacional mencionamos um Relatório
encomendado pela UNESCO, resultado do trabalho de uma equipe de pesquisadores,
representantes de diferentes partes do mundo, tendo Jacques Delors (1996) como seu relator.
As diretrizes do Relatório Delors (1996) apontam para a construção do conceito de cidadania,
evocando a participação da sociedade, o papel das agências internacionais e das empresas
privadas como parceiros. Aponta quatro pilares que devem ser a base para a “[...] educação
ao longo de toda a vida baseia-se em quatro pilares: aprender a conhecer; aprender a fazer;
aprender a viver juntos; aprender a ser” (DELORS, 1996, p. 101). O aprender a conviver,
pela valorização das diferenças, organizando experiências para os alunos viverem situações
comuns, é considerado o pilar mais importante na construção do novo indivíduo. Ao mesmo
tempo em que a concepção de sujeito, remete àquele que é competente, o sujeito que sabe
fazer. A ênfase é dada à questão de hábitos e atitudes, para a formação do sujeito que vai
responder a esse contexto de crise do capital, e resolver suas questões individualmente, sendo
inclusive empreendedor e independente do estado.
Estabelecemos, portanto, uma relação entre a ideologia de formação do indivíduo
presente no Relatório Delors (1996) e o contexto das políticas neoliberais da “agenda global
estruturada para a educação” (DALE, 2004). Bem como a reafirmação desta concepção pelo
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) quando esse menciona, por exemplo, que
[...] a construção e a implementação de propostas curriculares
politicamente relevantes e culturalmente sensíveis requerem, por
parte das pessoas diretamente responsáveis por tal tarefa, ou seja, os
professores das escolas indígenas, uma análise constante, crítica e
informada, das práticas curriculares ora em andamento em suas
escolas (BRASIL, 1996, p. 12).
O RCNE/Indígena se propõe como um documento construído em parceria com os
professores indígenas, “[...] em discussões coletivas conduzidas em diferentes situações”
(BRASIL, 1998, p. 15), responsabilizando diretamente o professor pela tarefa de construir e
118
implementar uma proposta curricular que respeite a cultura. Ele é o responsável pela sua
escola, entretanto, como evidencia Faustino (2006), os “[...] professores e demais sujeitos
envolvidos no processo educacional tem a liberdade de ‘construir’ o que quiserem, desde que
seja dentro do que já foi estabelecido pela política educacional” (FAUSTINO, 2006, p. 121).
O próprio RCNE/Indígena vem apontar que sua elaboração é um processo que busca o
consenso, quando menciona:
[...] a elaboração deste documento pautou-se em discussões coletivas
conduzidas em diferentes situações – cursos de formação de professores
indígenas e encontros de organização dos professores índios realizados em
algumas regiões do país –, em análises de práticas escolares indígenas
documentadas, e em depoimentos de assessores pedagógicos de comprovada
experiência na área (BRASIL, 1998, p. 15).
O documento não informa quem organizou os cursos de formação, que discussões
permeavam o objetivo do curso, ou ainda quais e como foram pensadas as pautas de tais
discussões. Deste modo, nos parece evidente que as discussões são feitas e as decisões
tomadas sob políticas previamente delineadas, como infere Faustino (2006),
[...] o que parece novo conserva sua linha de continuidade nas propostas
centradas na idéia de manutenção do modelo econômico vigente. Na
formulação da política o Estado centralizou todas as decisões. O currículo e
a formação dos professores têm sido os elementos mais destacados e, por
isso, alvos principais da reforma educacional, pois são a garantia de que os
conteúdos e as práticas desenvolvidos na escola serão aqueles definidos pela
política que visa estreitar a articulação entre escolarização, emprego,
consumo, produtividade e comércio (FAUSTINO, 2006, p. 121-122).
É, também, evidente a articulação destes documentos com a política internacional de
manutenção do modelo econômico, emanada a partir dos organismos internacionais, e
pensada para o alívio da pobreza e manutenção do status quo capitalista. Faustino (2006)
assinala, ainda, que essa reforma intervém em todos os campos escolares, sendo propostas
que chegam prontas às escolas e disfarçadas sob o manto da discussão coletiva.
As propostas coletivas foram cooptadas ou dispersadas uma vez que esta
política chega pronta às escolas, embora tenha sido desenvolvida uma
retórica persuasiva de que é apenas uma orientação não definitiva e que está
em constante (re)elaboração. Com uma forte dose de imediatismo,
apropriação de idéias, simplificações, receitas prontas e palavras de impacto,
decisões são tomadas e encaminhadas às escolas (FAUSTINO, 2006, p.
121).
119
É presente uma forte dose de imediatismo, o discurso de valorização do específico e
do conhecimento cotidiano, em detrimento do conhecimento científico amplo que permite
uma maior compreensão e ação sobre a realidade.
O Documento (BRASIL, 1998) destaca que as demandas pela construção de novas
propostas curriculares, diferenciadas e culturalmente sensíveis, que reconheçam a diversidade
cultural e étnica dos povos indígenas, partem dos professores indígenas. No entanto, segundo
Faustino (FAUSTINO, 2006, p. 109) essas demandas são políticas utilizadas pelos aparatos
do Estado, e assumem o caráter de um novo “indigenismo assimilacionista”.
Ao tratar da disciplina de educação física o RCNE/Indígena explica ela é responsável
por integrar os alunos na “cultura corporal do movimento” explicando que esse é o termo
usado por especialistas na área para definir “[...] o conjunto de conhecimentos culturalmente
produzidos que se referem à movimentação do corpo” (BRASIL, 1998, p. 320). O que o
referencial não considera é que esse termo não é utilizado por todos os especialistas na área
da educação física, mas por alguns, em específico.
Entendemos que as práticas da educação física não podem ser naturalizadas como
intenta o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), marcamos aqui as diferenças desses termos e seus
autores, como diz o RCNE/Indígena os “especialistas da área”, por exemplo, “Coletivo de
Autores (cultura corporal), Betti (cultura corporal de movimento), Bracht (cultura corporal de
movimento), Kunz (objetivações culturais de movimento). Embora a nomenclatura seja
similar o seu significado não é o mesmo” (MELLO, 2009, p. 173). As propostas na educação
física para o entendimento de que conteúdo ministrar encontram-se em vigoroso debate desde
a década de 198061
, colocá-las todas sob o mesmo entendimento relativizando-as e afirmar
que todas dizem a mesma coisa, é uma estratégia teórico-metodológica que deseja conduzir
os professores indígenas ao pensamento consensual. Se o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998)
se coloca como um referencial e propõe indicar caminhos para a escola indígena necessário é
evidenciar as diferentes vertentes que tratam a educação física, e não colocá-las todas sob a
mesma perspectiva, indicando que os especialistas da área pesquisam e publicam seus
trabalhos numa mesma matriz teórica.
O RCNE/Indígena apresenta, ainda, uma tendência a querer fazer confundir atividade
física cotidiana com educação física, e menciona que as sociedades indígenas devem escolher
61
A partir da década de 1980, a educação física entra em um período que os teóricos da área costumam tratar
“como ‘crise de identidade’ e começa a manifestar preocupações com a resolução desta crise. Muitos
pesquisadores passam a discutir a especificidade do seu conhecimento, a sua legitimidade e a sua
obrigatoriedade, fundamentados em algumas vertentes teóricas das ciências humanas, tecendo críticas diversas à
sociedade capitalista” (MELLO, 2009, p. 10).
120
se querem ou não a educação física na escola (BRASIL, 1998, p. 321-322). O fato de as
populações indígenas realizarem muitas atividades no seu cotidiano, que requerem esforço
físico, não significa que estão realizando naqueles momentos atividades vinculadas à
educação física enquanto disciplina pedagógica, dotada de um conteúdo sistematicamente
pensado e organizado, que visa contribuir para o desenvolvimento das potencialidades físicas
e intelectuais da criança que frequenta o ambiente escolar. Para além deste direcionamento,
compreende a educação física como esporte e, apesar de mencionar elementos como jogos,
brincadeiras, danças, ginástica, e outros, enfatiza sobremaneira o futebol62
como conteúdo da
educação física.
Ao defender o esporte como forma de trabalhar o conteúdo da competitividade,
aponta que:
[...] há profissionais da Educação Física que questionam o predomínio dos
esportes nos currículos da disciplina. Essa preocupação se fundamentaria em
observações da própria escola não-indígena, onde o estímulo excessivo à
prática esportiva teria favorecido a disseminação de valores negativos para a
vida social. A competitividade extremada e a falta de solidariedade,
promovidas pelo predomínio dos esportes no currículo, constituiriam fatores
indicativos de que a escola não é o lugar para se formarem campeões
(BRASIL, 1996, p. 331).
Novamente o documento, apresentando-se como crítico à escola tradicional,
naturaliza características como a competitividade e a falta de solidariedade, da mesma forma
que essas características são entendidas pelos teóricos liberais, que concebem a sociedade
capitalista como naturalmente desenvolvida, e o individualismo e a busca de satisfações
como características naturais e inerentes ao homem. E, tal qual o pensamento liberal, o
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) recorre à educação para resolver as contradições criadas
pelo capital, o competitivo e a solidariedade tornam-se problemas da escola, e não problemas
históricos socialmente desenvolvidos pelo sistema. Colocados como problemas da escola,
quer se fazer crer que por ela poderão ser resolvidos.
Essa visão do esporte como aquele que vai ajudar resolver os problemas sociais é
compartilhada pelo Relatório das Nações Unidas, O Esporte para o Desenvolvimento e a
Paz (NAÇÕES UNIDAS, 2003), o qual apresenta o esporte como importante “parceria
natural” para a realização das Metas de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas
(MDMs), para esta agência:
62
Um interessante estudo sobre o a importância que o futebol assumiu na etnia Kaingang é apresentado na tese
de Fassheber (2006).
121
O esporte oferece um fórum para o aprendizado de habilidades tais como a
disciplina, a confiança e a liderança e ensina princípios fundamentais, tais
como a tolerância, a cooperação e o respeito. O esporte ensina o valor do
esforço e como lidar com a vitória e com a derrota. Quando estes aspectos
positivos do esporte são enfatizados, o esporte se torna um poderoso veículo
através do qual as Nações Unidas podem trabalhar para a realização de suas
metas (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 3).
O esporte é utilizado, entre diferenças culturais e étnicas, como importante ferramenta
para a transmissão de valores, tais quais a cooperação e o respeito, e para levar os indivíduos
à uma vida plena e saudável. Ao mesmo tempo, é visto como uma forma de gerar emprego e
desenvolvimento local, e, além disso, considerado um instrumento de baixo custo para
combater as mazelas produzidas pelo sistema capitalista. Desconsiderando que a superação
desses problemas exige a superação do sistema.
Soluções paliativas são melhores utilizadas para promover a coesão social, o respeito
à diferença, ao étnico, ao que é culturalmente diverso. Falar nesse tipo de coesão é um
exercício ideológico praticado pela Organização das Nações Unidas desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, quando se quer deslocar a análise da realidade econômica, a verdadeira
fonte dos problemas sociais existentes (FAUSTINO, 2006, p. 62).
Para essa Organização “são incorporados na definição do ‘esporte’ todas as formas de
atividade física que contribuem para a boa forma física, para o bem-estar mental e para a
interação social” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 3) A mesma visão é compartilhada pelo
RCNE/Indígena (BRASIL, 1998) que vê toda atividade física como importante para o
desenvolvimento do bem estar físico e da saúde.
O Relatório quando define esporte como conjunto das atividades físicas que
contribuem para a saúde e o bem-estar, menciona que as atividades que compõem o esporte
“incluem a brincadeira; a recreação; o esporte organizado, casual e competitivo; e esportes ou
jogos indígenas” (NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 7). Esse é o único momento em que o
Relatório tece consideração aos povos indígenas, em nenhum outro momento aborda a
utilização do esporte às comunidades indígenas.
Estes documentos (BRASIL, 1998; DELORS, 1996; NAÇÕES UNIDAS, 2003) são
extremamente específicos, apontam questões relativas à atuação de professores, à atuação de
voluntários, à responsabilidade individual por fazer a educação ou o esporte contribuir para o
desenvolvimento local de suas comunidades.
122
A educação física e a utilização do esporte, para o RCNE/Indígena (BRASIL, 1998)
são elementos que podem permitir um resgate da cultura, ou promover a saúde e o bem estar,
enquanto que, para o Relatório das Nações Unidas (NAÇÕES UNIDAS, 2003) serve para a
promoção da saúde e para o desenvolvimento. Para ambos os Documentos é elemento que
permite a coesão social, a promoção do respeito a diferença e a cultura.
De modo que, ambos refletem visivelmente a utilização da escola e da educação, bem
como da educação física como formas promotoras do desenvolvimento social, do combate à
pobreza, e da tentativa de minimizar as misérias produzidas pelo capital, elementos que
permitem a manutenção do sistema social. A educação física, na concepção dos documentos
representada pelo esporte, tem como objetivo último a formação humana para a manutenção
das relações sociais capitalistas.
No entendimento de Mello (2006):
[...] a Educação Física tal qual a conhecemos hoje, expressa, de alguma
maneira, a forma como os seres humanos se relacionam no modo societário
capitalista. As modificações do seu conteúdo e da forma de aplicá-los, bem
como as disposições legais desta disciplina no âmbito escolar, tendem a
obedecer à lógica das modificações dessa organização social (MELLO,
2009, p. 10).
Para Faustino (2006), essa política, que se coloca como participante e democrática,
resulta na manutenção do status quo e promoção das ideologias políticas desses organismos.
Esta política, emanada dos centros do poder internacional, apropriada pela
classe dominante brasileira segundo seus interesses, caracteriza-se, no
campo educacional pelo afastamento dos professores e de suas organizações
na tomada de decisões sobre a escola e na formulação de projetos próprios,
ao mesmo tempo em que desenvolve uma ampla estratégia de inserção de
voluntários na educação e da comunidade na escola, para dar a idéia de
participação social. Porém, esta participação se resume a questões cotidianas
– reformas do prédio, datas para festas comemorativas, atividades
esportivas/recreativas, palestras sobre temas da psicologia (adolescência,
sexualidade, drogas etc.), enquanto as decisões políticas são tomadas por
técnicos/burocratas cujo vínculo com a comunidade é discutível
(FAUSTINO, 2006, p. 128).
Todo esse voluntarismo estimulado pela política educacional elaborada no contexto
do neoliberalismo, leva o cotidiano escolar à condição central, fragmenta a participação
social, diminui a importância do papel do professor na escola, visto que esta se torna o local
onde qualquer pessoa pode atuar desde que tenha boa vontade, para ensinar não é preciso ter
formação, depende apenas da vontade pessoal (FAUSTINO, 2006, p. 128). Entendemos que
123
se faz necessária a valorização desses aspectos cotidianos, entretanto, é preciso vinculá-los ao
que é maior e articulador dessas relações, a estrutura macroeconômica que afeta grandemente
todas as instâncias da vida social, e que afetou as políticas para os indígenas e as minorias.
A responsabilização do professor, a valorização do conhecimento imediato e
cotidiano, a escola e a educação física como promotoras do desenvolvimento social, são
discursos comuns aos documentos, seja na escola indígena (BRASIL, 1998), ou nas escolas
para os não indígenas (DELORS, 1996), essa é a perspectiva comum aos organismos
delineadores das políticas educacionais.
Nesta seção nos dedicamos a apresentar, e analisar as relações entre os seguintes
documentos: RCNE/Indígena (BRASIL, 1998), o Relatório O Esporte para o
Desenvolvimento e a Paz: em Direção à Realização das Metas de Desenvolvimento do
Milênio (NAÇÕES UNIDAS, 2003) e o Educação: um tesouro a descobrir (DELORS,
1996). Evidenciamos o conteúdo dos documentos referentes à educação escolar indígena e a
partir dele a especificidade da disciplina de educação física, bem como as concepções de
aprendizagem, de educação escolar indígena, de educação física, de esporte e atividade física
que encontramos no conteúdo destes documentos. Procuramos elaborar algumas análises, e
levantamos alguns questionamentos, indicando o caminho que pretendemos percorrer na
seção próxima seção.
124
4. A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA EDUCAÇÃO FÍSICA: A PRODUÇÃO
CIENTÍFICA DO CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE (2001 a
2011)
É significativo o aumento da produção científica brasileira sobre educação física nas
últimas décadas e também é expressiva nessa área do conhecimento a produção sobre a
temática indígena63
. Foi, sobretudo, a partir da década de 1980, com a criação de cursos de
pós-graduação Stricto Sensu, com maior inserção de pesquisadores nas diversas áreas do
conhecimento, das quais podemos citar: a Educação, a Sociologia, a Antropologia, a História,
entre outras, o que permitiu que no âmbito acadêmico se criasse amplo debate sobre a
educação física, seus conteúdos, sua prática pedagógica, sua inserção enquanto disciplina do
currículo escolar. No âmbito da educação física criou-se a necessidade histórica de produzir
um corpo teórico de conhecimentos, vislumbrando transformar a prática pedagógica da
educação física (CARMO, 1985; SOARES, 1994; BRACHT, 1992).
Também as universidades brasileiras junto a seus programas de graduação e pós-
graduação fomentaram a divulgação científica por meio de editoras responsáveis pela edição
de livros, capítulos de livros, periódicos e eventos. Essa divulgação também é realizada por
empresas editoriais privadas. Grande parte desse material é indexada em catálogos nacionais
e internacionais e podem ser acessadas em sua maioria pelo portal de periódico da CAPES, e
algumas constam também no catalogo Webqualis64
.
No conteúdo desses debates e extensa produção científica, a temática indígena tem
sido amplamente discutida nos círculos políticos, sociais e acadêmicos, nas mais diversas
áreas do conhecimento da sociedade brasileira, como já indicamos nas seções anteriores.
Foram promovidos encontros da educação escolar indígena, seminários internacionais e
nacionais fomentados por organizações governamentais, não governamentais, instituições
missionárias, organismos internacionais com o intuito de mobilizar pesquisadores e socializar
suas pesquisas sobre este tema (FAUSTINO, 2006).
63
Conforme consta nos apêndices. 64
O levantamento bibliográfico que empreendemos utilizou resultados de uma pesquisa realizada nos periódicos
científicos catalogados no sistema Webqualis. A pesquisa fez parte dos objetivos do projeto “Avaliação
socioeducacional, linguística e do bilinguismo nas escolas indígenas Kaingang do território
etnoeducacional planalto meridional brasileiro” e gerou um banco de dados. Os pesquisadores do LAEE-
UEM realizaram um levantamento dos periódicos indexados ao Portal WebQualis cujos textos abarcassem a
temática da educação escolar indígena entre os anos 2000 e 2010. Os resultados apontaram um total de
aproximadamente duzentos e quarenta artigos encontrados que tangenciam o tema educação escolar indígena.
125
Concomitante ao debate sobre a educação escolar indígena, discussões sobre os
direitos destes povos a uma educação diferenciada e intercultural, a educação física, as
práticas corporais, os jogos indígenas, foram englobados, pesquisados, e incrementou-se a
produção científica sobre tais temas. O principal fórum de debate na área da educação física o
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE) também oportunizou a
divulgação da produção científica sobre a temática indígena. “Esse evento é bienal e
organizado pelo Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, maior entidade científica da
educação física e possui atualmente 12 GTTs (Grupos de Trabalhos Temáticos)” (MELLO,
2009).
Nesta seção nos propomos a apresentar a produção científica do Congresso Brasileiro
de Ciências do Esporte – CONBRACE – em suas edições de 2001 a 2011. Nosso objeto de
estudo é composto da análise de 14 artigos publicados ao longo do recorte histórico proposto,
o que nos leva a apresentar a síntese do pensamento de seus autores, evidenciando as
discussões sobre educação escolar indígena, práticas corporais, jogos indígenas, bem como os
principais fundamentos teóricos utilizados.
4.1 A temática indígena na produção científica do CONBRACE
Nosso recorte envolve seis edições do CONBRACE realizadas bienalmente em
diferentes cidades brasileiras no período de 2001 a 2011. Nos anais dessas edições fizemos
uma busca por artigos que abordam a temática indígena, essa produção é representada no
seguinte quadro.
No. Título da produção Autor(res) Publicação Ano
01 A União das Tribos: uma Abordagem
Sobre o Esporte Indígena
Joelma Cristina Parente
Monteiro/ Sérgio
Simonsen Miranda de
Carvalho
Anais do XII
CONBRACE – Caxambú 2001
02
Educação Física na Formação de
Magistério Indígena do Acre: o Futebol
no Diálogo Intercultural
Maria do Socorro
Craveiro de
Albuquerque
Anais do XII
CONBRACE – Caxambú 2001
03
História de Bugres e Tigres: Corpo e
natureza em terras catarinenses dos
oitocentos
Ana Márcia Silva/
Célia Guimarães
Perini/ Márcia de
Souza Pedroso
Agostini
Anais do XIII
CONBRACE – Caxambú 2003
04 Corpo e cultura de movimento indígena
do ritual à esportivização (Pôster)
Joelma Cristina Parente
Monteiro
Anais do XIII
CONBRACE – Caxambú 2003
126
05 Corpo e Cultura em relações de
Fronteiras Culturais
Beleni S. Grando
(Seminário)
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
06
Estudo da frequência cardíaca de
indivíduos indígenas durante uma
partida de futebol (GTT Rendimento de
alto nível)
Bankoff, A.D.P.; De
Marchi, F.L.; Da Cruz;
E.M.; Moreira, S.M.
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
07 Apontamentos sobre o povo indígena
(GTT Corpo e cultura)
Maria Beatriz da
Rocha Ferreira/
Marizabel Kowalski
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
08
Esporte e identidade: o gosto pelo
esporte como estabelecimento de inter
relações entre grupos distintos. (GTT
Corpo e Cultura)
Ricardo de F. Lucena/
Maria da Conceição A.
Batista
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
09
A produção do conhecimento sobre as
práticas corporais indígenas na
educação física
Joelma C. P. Monteiro
Alencar
Anais XV CONBRACE II
CONICE – Recife 2007
10 Povos indígenas e relações ambientais:
um olhar na educação
Maria Cecilia de Paula
Silva; Cátia de Oliveira
Cabra
Anais XV CONBRACE II
CONICE – Recife 2007
11
Corpo, infância e cultura: o lazer e a
constituição da(s) identidade(s) das
crianças pataxós.
Luciano Silveira
Coelho
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
12
As práticas corporais e a educação do
corpo indígena: a contribuição do
esporte nos jogos dos povos indígenas.
Arthur José Medeiros
de Almeida
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
13
A produção do conhecimento sobre as
práticas corporais indígenas e suas
relações com os jogos indígenas do
Brasil.
Beleni S. Grando;
Elcione Trojan de
Aguiar; Bruna Maria
de Oliveira.
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
14
O esporte entre os indígenas no Brasil:
constituição de identidades e alterações
de comportamento
Arthur José Medeiros
de Almeida
XVII CONBRACE IV
CONICE – Porto Alegre 2011
Quadro 1. Referências levantadas nos anais eletrônicos das últimas seis edições do CONBRACE (2001-2011)
No XII CONBRACE de 2001, realizado na cidade de Caxambú – MG, a temática foi
Sociedade, ciência e ética: desafios para a Educação Física, e foram apresentados dois
artigos. O primeiro intitulado A união das tribos: uma abordagem sobre o esporte
indígena (CARVALHO e MONTEIRO, 2001)65
, consistiu em uma pesquisa descritiva que
adotou os pressupostos do estudo etnográfico. Mendonça66
é sua única referência, para
introduzir a questão da invasão europeia no século XVI, o extermínio de algumas etnias e a
alteração no modo de vida indígena. Os autores informam que objetivaram registrar, estudar,
analisar e entender uma determinada cultura a partir dos pontos de vista das atividades
indígenas, utilizando-se da observação participante. Descrevem brevemente as etnias
participantes, evidenciando suas línguas, localizações geográficas e destacando algumas
65
Os artigos analisados estão paginados de forma diferente nos anais. Ora apresentam paginação por artigo, ora
não apresentam paginação, ou seguem a paginação dos anais. Mantemos o padrão de numerar as páginas por
artigo. 66
MENDONÇA, Mônica Lemos. Educação Indígena. Informando. v.3, n.5-6, p.35, nov. 1999.
127
práticas. Apresentaram comentários a respeito das modalidades que foram disputadas nos
Jogos dos Povos Indígenas: Futebol de Campo; Arco e Flecha; Arremesso de Lança; Corrida
de Toras; Natação; Zarabatana; Lutas Corporais; Cabo de Guerra; Atletismo; Canoagem.
Concluem o artigo afirmando que toda a humanidade precisa de união e fraternidade, que o
pluralismo cultural das nações indígenas exige o respeito à diversidade cultural. “O
reconhecimento das práticas corporais indígenas relacionadas ao desenvolvimento de valores
levam à participação de caminhos sociais responsáveis pela busca da cidadania”
(CARVALHO e MONTEIRO, 2001, p. 5).
Afirmam que as influências dos não-indígenas nas provas e práticas socioculturais
indígenas interferem nos modos de agir e na liberdade de movimentos. Destacam a não
predominância da técnica, o puro prazer de participar das atividades e a representação
minoritária da mulher indígena. Em relação às mudanças no âmbito social, afirmam que são
significantes e que estas, “[...] pela visão positiva, proporciona aos índios a tentativa de
resgate da sua dignidade e igualdade perante os outros povos e, pela outra, a evidência da
não-imunidade contra o mal chamado civilização que o lança em direção a um mundo doente
e capitalista” (CARVALHO e MONTEIRO, 2001, p. 5).
No mesmo evento, outro artigo, Educação física na formação de magistério
indígena no acre: o futebol no diálogo intercultural (ABUQUERQUE, 2001) dedicou-se a
discutir se a disciplina de educação física seria necessária no currículo de Magistério
Indígena promovido pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC). Parte de ações
desenvolvidas num projeto de formação de professores realizado pela CPI-AC e defende uma
educação específica, diferenciada e de qualidade para as populações indígenas. Suas
reflexões apontam que o Brasil é um país marcadamente diverso culturalmente e que a
educação, portanto, deve estar voltada para o respeito à diversidade sociocultural.
A autora busca em seu estudo “[...] contribuir para desarticular alguns conceitos já
cristalizados no cotidiano nacional, tais como: os índios não têm passado; representam um
estado fossilizado de desenvolvimento humano; a aculturação é um caminho sem volta e
aponta para o desaparecimento inevitável de formas culturais distintas, em meio a um
processo homogeneizador e globalizador mundial (ABUQUERQUE, 2001, p. 1). Defende
que os objetivos da educação devem fornecer elementos para que os indivíduos tornem-se
sujeitos de sua história construindo sua identidade por meio de uma prática social consciente,
autodeterminada, com participação e decisão política.
Entende a escola indígena como um instrumento de reforço das identidades, tendo que
ser, para tanto, específica e diferenciada. Sua pesquisa, pautada por uma perspectiva
128
qualitativa e inserida no âmbito da pesquisa-ação tem por sujeitos professores indígenas que
foram definidos pelo critério de representatividade qualitativa. Explica a autora que, “[...] o
grupo de professores indígenas que recebem sua formação em Magistério Indígena pela CPI-
AC, embora minoria em seus grupos de origem, são membros significativos em termos
ideológicos e políticos, pois veiculam as ideias de suas etnias, num vai-e-vem constante com
a sociedade envolvente e suas comunidades” (ABUQUERQUE, 2001, p. 2).
Somos informados pela autora que sua investigação deparou-se com a seguintes
situações: a constante solicitação dos professores índios em ter acesso às informações das
práticas corporais da sociedade não indígena, esportes em geral e futebol, em particular; a
recomendação de diversos consultores, da necessidade de pesquisar as brincadeiras
indígenas; A regulamentação do Centro de Formação de Magistério Indígena da CPI-AC,
pelo Conselho Estadual de Educação do Acre e, consequentemente de seu currículo. A
investigação utilizou a técnica de Seminário, onde foram examinadas e discutidas as
seguintes questões da investigação:
A educação física é necessária no currículo de formação de Magistério
Indígena da CPI-AC? Essa disciplina pode colaborar para a sistematização
do saber produzido pelas comunidades indígenas do Acre? É possível
trabalhar com essa disciplina no currículo da CPI-AC, privilegiando os
princípios da terra, língua e cultura e utilizando a pesquisa como
metodologia de ensino-aprendizagem? (ABUQUERQUE, 2001, p. 3)
A autora elenca falas dos professores indígenas a partir das quais elabora suas
discussões e seus argumentos. Apoia-se em Vianna67
para conceituar educação física como os
“[...] modos variados de transmissão de conhecimentos e valores referentes ao uso do corpo
humano presente em todas as sociedades”. Argumenta que nas sociedades indígenas o corpo
totaliza uma visão particular do cosmo, com condições históricas e sociais específicas.
Utilizando Damata68
afirma ser “[...] a corporalidade a grande arena onde as transformações
são possíveis” (ABUQUERQUE, 2001, p. 3).
Sobre a necessidade da educação física no currículo de formação de Magistério
Indígena da CPI-AC, a autora informa “[...] a grande preocupação dos professores quanto à
formação dos jovens em suas etnias e a curiosidade crescente demonstrada pelas novas
gerações em conhecer os esportes, em especial o futebol” (ABUQUERQUE, 2001, p. 3).
67
VIANNA, Fernando Luiz de Brito. Os índios e o futebol no Brasil: uma proposta de pesquisa num campo
inexplorado. São Paulo: USP – Departamento de Antropologia (Projeto de Pesquisa), 1997. 68
DAMATA, R. O corpo brasileiro. In: STROZEMBERG, I. (org.). De corpo e alma. Rio de Janeiro:
Comunicação Contemporânea: 1987.
129
Evidencia com a fala dos próprios professores indígenas que o interesse destes é o de “[...]
conhecer os esportes da educação física”, pois como os próprios indígenas enfatizam, “o
futebol não é apenas dos não-indígenas, ‘é um divertimento dos povos do mundo inteiro’
(Francisco Mário Kaxinawá69
)” (ABUQUERQUE, 2001, p. 4). A autora evidencia que o
futebol é de grande importância e prática nas comunidades indígenas onde a pesquisa foi
realizada.
Em suas conclusões, destaca a questão ética e política que pressupõe o trabalho com a
educação escolar indígena. Informa que os professores definiram que a educação física
deveria ser incluída no currículo do Magistério Indígena da CPI-AC. Os conteúdos
escolhidos foram a pesquisa das brincadeiras de cada etnia; estudo do nado e das corridas
como acontecem em cada etnia; estudo das funções do jogo na educação tradicional indígena.
As competências a serem trabalhadas seriam: conhecer e descrever o nado e as corridas, de
maneira como é feita nas etnias e relacionar criticamente com os esportes natação e corridas
da sociedade não-indígena; conhecer e discutir as funções do jogo na educação indígena.
Afirma que a escola deve funcionar como espaço de pesquisa e produção do
conhecimento e, para tanto, o professor indígena deve ser formado como pesquisador, pois
necessita ser aquele que vai investigar em sua etnia, com seu próprio olhar e instrumentalizar
seu aluno para lidar com os conhecimentos, com a imposição cultural e com a política da
sociedade envolvente.
No ano de 2003, também na cidade de Caxambú – MG, foi realizado o XIII
CONBRACE com o tema: 25 anos de história: o percurso do CBCE na Educação Física
brasileira. Nesse evento foram apresentados dois trabalhos que trataram da questão indígena.
O primeiro deles, História de Bugres e Tigres: corpo e natureza em terras catarinenses
dos oitocentos (SILVA, PERINI e AGOSTINI, 2003) faz uma análise documental e busca
compreender o contexto interétnico estabelecido no século dezenove em Santa Catarina
quando da chegada dos imigrantes e analisa a ginástica como um dos elementos de
constituição da identidade étnica desses.
Os autores empreendem uma contextualização histórica do século XIX e o momento
de ocupação do território nordeste do estado de Santa Catarina. Mencionam ainda, o processo
de imigração de diferentes povos para esse território e o encontro com os povos indígenas da
região. Utilizam o conceito de “dinamismo histórico de Hobsbawn70
. Compreendem que
elementos do passado auxiliam o entendimento do atual trato com o corpo, que segundo o
69
Um dos professores indígenas participantes da pesquisa, o depoimento encontra-se no artigo. 70
HOBSBAWM, Eric. O novo século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
130
teórico, em muito se aproxima da concepção e práticas corporais estruturadas na Europa do
século XIX. Os autores tomam a imigração alemã como o “fio condutor” de suas analises.
Fundamentam-se em Bourdieu71
ao tratarem do corpo apropriado pela história, que se
apropria das coisas habitadas por essa história, e Meyer72
quando mencionam que esse corpo
traz em sua bagagem nova racionalidade e representação corporal.
Os autores justificam seu recorte geográfico e histórico por ser “[...] nele que
encontramos dados frequentes de caça aos índios e animais mais selvagens, ‘bugres e tigres’,
como denominados pelos imigrantes que chegaram a estas terras” (SILVA, PERINI e
AGOSTINI, 2003, p. 1). Relatam esse contexto e analisam ao longo de suas articulações a
prática de Ginástica pelos imigrantes alemães que nesse território se instalaram.
Apontam que “a centralidade do corpo e das representações corporais para estas etnias
indígenas [mencionam os Carijós, e os Xokleng], como para todas as sociedades Jês e a
profunda vinculação do corpo individual com o corpo social, contrastava com a centralidade
da razão e com a configuração individualista que prevalecia entre as etnias provenientes da
Europa” (SILVA, PERINI e AGOSTINI, 2003, p. 5).
Por fim os autores se fundamentam em Latour73
e propõem pensar a partir de
diferentes representações de corpo e natureza, “[...] porque estas diferenças permitem
‘estabelecer ligações incomensuráveis’; compreender que tais configurações de mundo são
incomparáveis” (SILVA, PERINI e AGOSTINI, 2003, p. 5). Para os autores essa análise
permite refletir a profunda distinção que se estabelece entre esses povos, os europeus, seus
descendentes e os indígenas.
O segundo trabalho Corpo e cultura de movimento indígena do ritual à
esportivização (MONTEIRO, 2003) foi apresentado na modalidade pôster. A pesquisa trata
do processo de esportivização dos rituais indígenas identificado nos Jogos dos Povos
Indígenas. A autora se fundamenta no conceito de cultura de movimento anunciado por
Kunz74
e nos estudos de Lucena75
sobre o fenômeno esportivo. Aponta que um dos grandes
desafios da educação é lidar com os fenômenos advindos da diversidade cultural. Afirma a
necessidade de compreender as relações e as diferenças sociais, pois, a escola enquanto
71
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 72
MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann. Identidades traduzidas: cultura e docência teuto-brasileira-
evangélica no Rio Grande do Sul. Santa Cruz do Sul:Edunisc/Sinodal, 2000. 73
LATOUR, Bruno (2001). A ecologia política sem a natureza? Projeto História, São Paulo (23), p.31-44,
nov. 74
KUNZ, E. Educação Física: ensino & mudanças. Ijuí: Unijuí Ed, 1991. 75
LUCENA, Ricardo de F. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Campinas, SP:
Autores Associados, 2001.
131
instituição social seria construída por sujeitos socioculturais que expressam diferentes
identidades.
Para Monteiro (2003) a cultura é um fator que deve ser considerado para se avançar
na garantia de uma educação escolar como um direito social e em relação a um universo
simbólico e ao mundo do trabalho. Fundamenta o conceito de cultura em autores como
Chauí, Daolio76
, entre outros. Comenta os caminhos da Antropologia citando Hertz, Levi-
Strauss, Geertz, Morin77
e chega à educação física apontando “os movimentos renovadores de
pensamento nessa área”, a partir de meados da década de 1970, fazendo menção a alguns dos
estudos que emergiram nesse período.
A autora questiona se, “[...] na perspectiva de compreendermos a complexidade das
relações corpóreas do homem, é possível pensarmos a cultura de uma sociedade através do
fenômeno esportivo?” Neste sentido, se baseia em Lucena afirmando que “[...] o jogo pode
expressar um sentido de identidade num contexto específico de um grupo social”
(MONTEIRO, 2003, p. 2). Indica que sua investigação aborda especificamente o processo de
esportivização dos ritos da cultura de movimento, enfocando a “cultura de movimento
indígena”. Para tanto, observou as manifestações desta nos Jogos dos Povos Indígenas.
Segundo a autora,
[...] a esportivização dos ritos indígenas apresenta-se ainda numa condição
de “flutuação”78
, que não permite conclusões precipitadas. Ou seja,
buscando uma analogia com o conceito de flutuação, identificamos que na
realização dos Jogos, as figurações interpretativas, apresentam-se, num certo
momento, no contexto do esporte participação, em outro momento, no
contexto do esporte espetáculo, e outras vezes, nas atividades tradicionais
das etnias (MONTEIRO, 2003, p. 3).
Neste sentido, encerra seu artigo explicando que a pesquisa se encontrava em fase de
desenvolvimento, e que para analise dos materiais iconográficos coletados se apoiaria na
hermenêutica visual.
76
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Ática, 2001.
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas, SP: Papirus, 1995. 77
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
HERTZ, R. “A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa”. In: PROJETO:
Métodos e Técnicas de Pesquisa em Antropologia para “Entender Belém”. Universidade Federal do Pará,
2000.
MORIN, E. O método III: O conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto
Alegre: Sulina, 1999. 78
A autora explica em nota que, este conceito diz respeito ao conceito de bifurcação e determina que ramo
emergirá em cada ponto de bifurcação, se fundamenta em Ilya Prigogine (2001), entretanto não traz, nas
referências, as informações bibliográficas.
132
O XIV CONBRACE79
foi realizado na cidade de Porto Alegre – RS no ano de 2005.
O tema central do evento foi Educação Física e Ciências do Esporte: ciências para a vida,
encontrando-se, nos anais do evento, quatro artigos que retornaram as pesquisas pelas
palavras chave indígena/índios.
Nesse evento, Beleni S. Grando proferiu um seminário intitulado Corpo e Cultura
em relações de Fronteiras Culturais. A autora informa que pretende “dialogar com os
conceitos de cultura, práticas corporais e identidade, refletindo com os colegas as formas de
educação que se materializam no corpo e constituem a pessoa como única” (GRANDO,
2005, p. 1). Seus estudos buscam compreender a realidade a partir das práticas corporais
estabelecidas nas relações entre diferentes maneiras de viver e ser originárias da realidade do
estado do Mato Grosso. Entende as práticas corporais como práticas sociais educativas
relacionadas a outras práticas e contextos com os quais cada grupo social se constitui como
grupo específico e diferenciado. Fundamentando-se em Frederik Barth80
apresenta o conceito
de “fronteiras culturais” como
[...] espaços socialmente construídos nos quais confrontam-se diferentes
grupos étnicos e culturais, em que no ‘campo da cultura e nas relações entre
poder e cultura’ se estabelecem conflitos em que cada grupo lida com o seu
‘capital simbólico cultural’ buscando ‘articular seus processos de
resistência’ cujas diferenças são constantemente reinterpretadas e
reformuladas no contexto da própria cultura (GRANDO, 2005, p. 2).
Citando Clifford Geertz81
, a autora busca compreender cultura como conceito de
homem, como um conjunto de mecanismos simbólicos pelo qual o homem controla seu
comportamento, um vínculo entre o que eles intrinsicamente podem se tornar e o que eles
raramente se tornam. Afirma que para tornar-se humano,
[...] cada corpo é individualizado por padrões culturais – sistemas de
significados criados historicamente – que o orientam nas relações com
outros humanos pelas quais vai se apropriando desses padrões e com os
quais as recria coletivamente a partir das escolhas guiadas por sua
sensibilidade, que é única como o é cada corpo, cada pessoa (GRANDO,
2005, p. 2)
79
No ano de 2005 o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte inicia a primeira edição do Congresso
Internacional de Ciências do Esporte, os anais dos eventos são divulgados em conjunto, portanto, usaremos
apenas a sigla CONBRACE para nos referimos aos anais. 80
BARTH, Frederik. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P. Teorias da etnicidade. Seguido de
Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth / Philippe Poutignat, Jocelyne Streiff-Fenard. Tradução de
Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. 81
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Ed., 1989.
133
Nesta perspectiva os espaços de contato e intercâmbio entre as populações permitem a
constituição de processos onde se estabelecem as fronteiras nas quais se pode identificar
traços que diferenciam a cultura nesta relação. Neste sentido, o corpo é habitado e é o meio
pelo qual a cultura se manifesta.
O corpo é assim, um território primordial onde a cultura vive em cada
indivíduo. O lugar onde ela se manifesta e se revela sensível, viva. Desde o
nascimento, admite-se que, até mesmo antes, a cultura é transmitida pelos
mais velhos aos mais novos. Estes recebem-na sem contestação, inscrevem-
na profundamente em suas estruturas psicofisiológicas a partir de sua
sensibilidade. É assim, no corpo que as primeiras marcas da cultura são
inscritas profundamente no indivíduo (GRANDO, 2005, p. 3).
Com base nas explicações de Hasse82
, a autora comenta que a transformação do corpo
ocorre em uma relação de forças entre homem e natureza que o obrigam a buscar soluções.
Mesmo que tenha consciência do inscrito em seu corpo, explica a autora, mudanças não são
facilmente efetivadas. Citando Mauss83
aponta a relevância do conceito desenvolvido por
esse autor de “técnicas corporais” que, permite a compreensão de sociedades, culturas e
pessoas (GRANDO, 2005, p. 4).
No entendimento da autora, o corpo é a matriz simbólica sobre a qual a pessoa é
“fabricada”. O corpo é produzido em momentos ritualísticos e as práticas sociais associadas a
tecnologias e estéticas específicas manifestam-se no e com o corpo, possibilitando a
construção de um “ideal de pessoa” diferenciada em cada grupo social. Explica a autora que
essa fabricação é o que permite a ação educativa do grupo social que, como processo, só pode
ser compreendida em seu contexto.
Para a autora, no Brasil, essas “[...] fronteiras desterritorializadas marcam no corpo o
diferente que é desqualificado, promove e reforça relações etnocêntricas e autoritárias sobre
os grupos minoritários (índios e filhos de trabalhadores rurais ou urbanos que pertencem à
classe economicamente desfavorecida) que resistem a padronização privilegiada pela cultura
hegemônica” (GRANDO, 2005, p. 4).
A autora afirma que neste contexto complexo, dinâmico e conflitivo, no qual se
estabelecem as relações sociais e diferentes maneiras de ser, as identidades são bombardeadas
pelos meios de comunicação de massa “[...] que impõem suas formas de fazer e de ser que
82
HASSE, Manuela. Corpo, Técnica e Desenvolvimento: um problema humano e social. Texto apresentado
em Provas de Agregação da disciplina Antropologia e História do Corpo, na Faculdade de Ciências da
Motricidade. UTL/FMH, Lisboa, novembro de 2001. 83
MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de
Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss; Volume II – tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU, 1974.
134
visam a fragmentação dessas coletividades para a consolidação de uma identidade alienante
de consumidores de uma cultura que se sustenta no mercado e na mercadorização do ser,
resta-nos o desafio da Educação Intercultural” (GRANDO, 2005, p. 5).
Para a autora o desafio da educação intercultural se constitui na escola como espaço
em que as fronteiras se estabelecem e, portanto, pode-se privilegiar a reflexão e a
consolidação de uma educação que possibilita o respeito à diversidade e a aprendizagem com
o outro. Neste sentido afirma que a escola é “[...] um espaço privilegiado para que as
mediações entre as fronteiras culturais e étnicas sejam qualificadas a partir de uma educação
que possibilite qualificar essas relações de fronteiras, desvelando os valores excludentes que
permeiam as práticas sociais cotidianas visando novas práticas” (GRANDO, 2005, p. 5).
Afirma a autora também que “[...] a Educação Física tem um papel preponderante no
reconhecimento de que as praticas corporais também excluíram, no contexto da escola e fora
dela, uma educação inscrita nos corpos pardos, índios e negros, que se constituem em
diferentes formas de ser (sem terra, sem teto, sem direitos, sem cidadania, sem identidade,
etc.) desqualificando-os como pessoa” ( GRANDO, 2005, p. 5).
Explica que cada cultura vivida no corpo, explícita nas diferentes formas de fazer e de
ser, é imposta por padrões que orientam condutas e com os quais cada grupo se identifica e se
diferencia de outros, ainda que em uma mesma sociedade. A constituição de uma prática
pedagógica intercultural precisa reconhecer este contexto, as diversas práticas corporais que
constituem as diferentes identidades que se relacionam neste contexto escolar. A cultura e
suas “fronteiras” são espaços de intercâmbio de sentidos e significados, estabelecidos por
sensibilidades vivenciadas no corpo. “Daí a relevância de compreender a escola como um
espaço de fronteiras em que são potencializadas vivências e trocas que marquem as pessoas
em suas sensibilidades corpóreas, o reconhecimento e a valorização da diferença como forma
de se constituir como humano e como único” (GRANDO, 2005, p. 6).
Para a autora, é na escola que se promove a Educação Intercultural, que remete ao
reconhecimento das práticas corporais que são espaço de mediações e intercâmbios de
sentidos e significados específicos para cada grupo social que deles participam, identidades
coletivas que reclamam por valorização e diferença. “O desafio do educador que pretende
superar as relações excludentes, racistas e preconceituosas marcadas no corpo das crianças e
jovens com os quais trabalha, é buscar consolidar, em sua prática pedagógica, novas práticas
sociais” (GRANDO, 2005, p.6).
O artigo intitulado Estudo da frequência cardíaca de indivíduos indígenas durante
uma partida de futebol (BANKOFF, et al., 2005), tem como objetivo avaliar a performance
135
cardíaca de 4 indígenas adultos, do sexo masculino. Os autores apresentam alguns conceitos
relacionados à saúde. Descrevem a coleta dos dados, os instrumentos e os sujeitos da
pesquisa, apresentam algumas discussões com relação aos resultados e considerações com
relações à especificidade dos sujeitos.
Explicitam na introdução que o interesse em realizar esse trabalho partiu de um
convite da FUNAI em 2001, para que participassem dos debates sobre saúde e esporte nas
conferências dos IV Jogos dos Povos Indígenas realizados em Campo Grande – MS.
Argumentam que os contatos com as etnias indígenas permitiram conversas com “[...]
chefes de diferentes grupos étnicos que se fizeram presentes à ocasião” (BANKOFF, et al.,
2005, p.2), o que resultou em relatos sobre aspectos referentes aos costumes cotidianos nas
aldeias, sobre a prática de jogos, lutas e outras modalidades de atividades como as danças e
rituais presentes também, em seu cotidiano.
Consideram que a prática do futebol é uma constante cada vez maior entre os povos
indígenas no Brasil e, portanto, interessou aos autores analisar o comportamento da
Frequência Cardíaca dos jogadores integrantes das equipes de futebol participantes do IV
Jogos dos Povos Indígenas. Acrescentam que os praticantes não realizam treinamentos
específicos para a prática desta modalidade esportiva e, portanto, seu objetivo é analisar os
resultados frente à performance dos indivíduos durante a partida.
Apresentam conceitos relacionados ao sistema cardiovascular e respiratório, e aptidão
física relacionada à saúde. Informam que foram avaliados quatro atletas do sexo masculino,
pertencentes às etnias Xavante e Terena, durante uma partida de futebol. Apresentam tabelas
e gráficos analisando os dados coletados.
Consideram que com relação ao objeto de análise, a frequência cardíaca observada
apresentou índices bastante surpreendentes, demonstrando excelente capacidade cardíaca,
levando em conta o referencial comparativo de estudos realizados com atletas profissionais
de futebol de campo e de outras equipes amadoras e universitárias.
Os autores mencionam aspectos que consideram de extrema relevância no que se
refere aos resultados encontrados nesse estudo. Ainda com relação aos participantes, apontam
que, além do futebol, muitos deles “[...] competem em mais de uma modalidade esportiva
cultural, que envolvem vários perfis específicos de treinamento e realização” e para os
autores o resultado final da soma desses esforços é um “[...] processo adaptativo fisiológico e
morfológico favorável à prática, não apenas dessa modalidade como também de outras.”
Informam que não existe a figura do técnico, apenas o treinador que é representado por um
membro escolhido pela equipe, “Na equipe de futebol indígena, todos são considerados aptos
136
a serem treinadores; porém, geralmente é escolhido o jogador mais velho e considerado o
mais experiente” (BANKOFF, et al., 2005, p.7). Os autores concluem afirmando que não
existe violência e agressões, a vitória é comemorada por ambas as equipes e os perdedores
oferecem aos vencedores danças e outras manifestações culturais referentes à sua etnia.
Noutro artigo intitulado Apontamentos sobre o povo indígena (KOWALSKI e
FERREIRA, 2005), as autoras salientam que seu “ensaio constitui uma abordagem de
entendimento de parte da cultura do povo indígena brasileiro no conceito branco.” Objetivam
tratar do estético na arte, nos ornamentos, adereços e nos corpos. Iniciam afirmando que,
geralmente insere-se o povo indígena numa cultura marginal, negando-lhes a inserção em
domínios públicos, relegando direitos especiais. As autoras indagam: “Que barreiras culturais
nos impedem de reconhecê-los como não sendo coisas, como seres humanos, como
brasileiros?” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 1).
Afirmam ser importante discutir concepções políticas e governamentais de território, e
também que, consideram critérios abstratos de entendimento subjetivo, “[...] subjugar
pretensões de respeitabilidade, educação, crença”, e, indicam por onde encaminharão suas
discussões; “O que une aqui é o estético”. Explicam que, o que é comum aos povos é o corpo
e, “[...] a vestimenta, a exposição e o culto ao belo não será desperdiçado em críticas
obsoletas – revelamos as formas, derivações e interdependências de fatores e valores culturais
entre ‘brancos e índios’, tendo o compromisso com a visão científica dentro das concepções
da estética corporal” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 1).
As autoras se fundamentam em Louro84
afirmando que ao longo dos séculos os
sujeitos se vêm sendo examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos pelas
marcas que são atribuídas a seus corpos. Baseando-se em Maffesoli85
, apontam que o
sociólogo tem o direito de também poetizar e estetizar sobre o desenvolvimento social.
Evidenciam que os índios inspiraram e inspiram a tiradas de humor poético em muitas fases
da literatura brasileira e estrangeira.
Comentando sobre as vestimentas para recobrir os corpos femininos das “índias
escravas” no Brasil e sobre os corpos femininos retratados artisticamente por reconhecidos
pintores europeus do mesmo período, afirmam as autoras:
A linguagem, os signos, as convenções e as tecnologias usadas para referi-
los são dispositivos de cultura. E se ele, o corpo, ‘fala’, o faz através de uma
84
Louro, G.L. Corpos que Escapam. Labrys: estudos feministas. N°4, Dez., 2003. 85
Maffesoli, M. O Paradigma estético: a sociologia como arte. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. N.21. 1986.
137
série de códigos, de cheiros, de comportamentos e de gestos que só podem
ser ‘lidos’, ou seja, significados na contextualização de uma dada cultura.
Entretanto, isso não quer dizer que os corpos são ‘lidos’ ou compreendidos
do mesmo modo em qualquer tempo e lugar, nem que seja atribuído valor
ou importância semelhantes às características corporais em distintas culturas
(KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 2).
Evidenciam que essas formas de ler os corpos mudam, e que as mudanças nos padrões
estéticos para os corpos, na publicidade, na mídia, na moda, nas “[...] manifestações de
‘juventismo’ socialmente aceitos.” Mencionam a entrada do açúcar na Europa e o associam à
criação “[...] de um modelo de corpo cheio de curvas, e por que não dizer, gorduras,
cuidadosamente reproduzidas por pintores como Rubens e Rembrandt” (KOWALSKI e
FERREIRA, 2005, p. 3). Denotam também que, no Brasil no mesmo período, índias e negras
andavam seminuas, utilizavam objetos, adereços e marcas. Tudo representava, segundo as
autoras,
[...] um código artístico que era inscrito na substância corporal através de
técnicas arcaicas: pinturas faciais, tatuagens, escarificações, que as
transformavam em obras de arte ambulantes em ‘quadros vivos’ [...]. Essa
marcação terá, além de seus efeitos simbólicos, expressão social e material.
Ele permite que o sujeito seja reconhecido como pertencendo a uma
determinada identidade; que seja incluído ou excluído de determinados
espaços; que seja acolhido ou recusado pelo grupo; que possa (ou não)
usufruir dos direitos, que possa (ou não) realizar determinadas funções ou
ocupar determinados postos, que tenha deveres ou privilégios; que seja, em
síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado (KOWALSKI e FERREIRA, 2005,
p. 3-4).
Segundo as autoras, no inconsciente coletivo a imagem do índio apresenta algumas
vertentes: ora é estereotipada na vertente do bom selvagem em sintonia perfeita com a
natureza; ora apresenta-se na vertente contrária, antropofágica, violenta; ou ainda uma versão
de contemplação estética. As autoras expõem que a mudança nos padrões estéticos de
“corpo” praticadas em todo mundo tem uma função social: “Isso se aplica igualmente às
formas extremas de mutilação corporal. Inerentes a estas práticas estão noções culturalmente
definidas como ‘beleza’, ‘religião’ e ‘status’. Generalizando, os humanos almejam tamanhos
e formas ‘ótimos’ para o corpo” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 5).
As autoras usam o entendimento sobre corpo de Bernuzzi Sant’Anna86
afirmando que
“[...] o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua
fisiologia, ao mesmo tempo escondê-los” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 5). Discutem
86
Sant’Anna, B. Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
138
ainda, as visões de mundo, de bom e de mau, do belo e do feio, normal ou anormal,
afirmando que estas dependem “da posição de cada um em relação as suas próprias
continuidades históricas e culturais” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 6). Afirmam que a
comunicação engendra o corpo, por meio de um conjunto de imagens, de imaginações, e de
símbolos, sendo esta a forma de relacionar-se dos corpos.
Fundamentadas em Helmann87
afirmam que cada ser humano tem simbolicamente
dois corpos, um individual (físico e psicológico) adquirido ao nascer, e outro social
necessário para viver em sociedade. E a sociedade exerce um controle poderoso sobre os
aspectos do corpo individual. “A sociedade não apenas molda e controla os corpos no seu
âmbito, mas também o corpo fornece uma coleção de símbolos que utilizamos para entender
a sua organização em si”. Continuam as autoras ressaltando que, “[...] essa relação estreita
entre o imaginário corporal e social significa tipos variáveis de valores os quais produzem
imagens diferentes de corpos” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 7).
Sobre as sociedades tradicionais, evidenciam que nestas “[...] o status do indivíduo
está fisicamente inscrito sobre a superfície e seu corpo: tatuagens, escarificações, circuncisão,
adorno como piercing de orelhas, lábios e outras partes do corpo são formas permanentes e
visíveis da pele cultural” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 7). E concluem, “[...]
portanto, a redescoberta da estética pode ser motivada pela perda do humano no homem, ou
seja, nesta demolição, o homem perdeu a razão e tornou-se conceito abstrato universal da
imagem ‘corpo’” (KOWALSKI e FERREIRA, 2005, p. 8).
No próximo artigo, Esporte e identidade: o gosto pelo esporte como
estabelecimento de inter relações entre grupos distintos (LUCENA e BATISTA, 2005), os
autores apresentam observações dos VII Jogos Indígenas ocorridos em Porto Seguro/BA em
2004. Buscam fazer emergir questões da identidade e das ações miméticas relacionadas ao
esporte nesse contexto, e se fundamentam em Norbert Elias88
.
Partem do pressuposto, segundo o qual “[...] o esporte, fenômeno de amplitude
mundial, é também elemento de identidade e parte de um controle de emoções característico
de um processo civilizador em andamento”. Abordam identidade como “[...] o sentido que
busca relacionar variáveis e, considerando esse aspecto, trabalhar com a ideia que os
diferentes não são, necessariamente, excludentes” (LUCENA e BATISTA, 2005, p. 2, grifo
dos autores).
87
Helmann. Cultura, saúde & Doença. Porto Alegre, RS: Artmed, 2003. 88
ELIAS, Norbert. & SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed., 2000.
139
Para os autores, o “[...] esporte, essa invenção social, nasceu para suprir as
necessidades de grupos que, certamente, viviam e vivem em situações de interdependências
que denotam um modo de ser onde o sujeito é estimulado a viver mais por si”. Comentam
que essa prática “[...] surge e se desenvolve entre ‘brancos’ e que desperta a atenção dos
grupos indígenas em crescente contato com aqueles” (LUCENA e BATISTA, 2005, p. 2).
Mencionam o contato crescente entre os próprios grupos indígenas, “[...] tendo como
fator de aproximação o gosto pelas práticas esportivas como ação mimética peculiar do
esporte.” Com base na entrevista de uma liderança indígena apontam que “[...] o esporte se
afigura como forte fator de identidade porque torna-se linguagem comum, vivenciada por
grupos distintos”, evidenciando que, “O desafio que fica é, sendo o esporte uma oportunidade
de reunião entre os diversos grupos, não submetê-los simplesmente a sua prática, mas
principalmente, capacitá-los a usufruir desse objeto com autonomia, independência e
criatividade” (LUCENA e BATISTA, 2005, p. 2-3).
Para os autores a questão das emoções no esporte se relaciona a um processo de
significação, pois em sua compreensão, as sociedades indígenas são “[...] sociedades menos
complexas onde a tomada de decisões está sempre relacionada com as tradições dos mais
velhos ou com os ancestrais”, explicam que, “[...] as cadeias de relações que unem os
indivíduos são certamente mais curtas, a adoção de uma prática que requer a submissão a
regras estabelecidas de fora, requer uma outra percepção do indivíduo no grupo e
consequentemente uma outra forma de comportamento” (LUCENA e BATISTA, 2005, p.3).
Em seu trabalho os autores entendem a metodologia como um elemento que constitui
todo o processo da pesquisa, apresentam seus procedimentos metodológicos para o
levantamento de dados, os indígenas que participaram dos jogos e constituíram os sujeitos da
pesquisa, bem como os esportes praticados nos Jogos. Concluem indicando que sua pesquisa
avançaria para o levantamento de dados e posterior analise.
No ano de 2007 ocorreu a XV edição do CONBRACE em Recife – PE, o evento teve
como tema: Política científica e produção do conhecimento em Educação Física. Foram
apresentados dois trabalhos abordando questões indígenas. O primeiro deles, intitulado A
produção do conhecimento sobre as práticas corporais indígenas na educação física
(ALENCAR, 2007), se propôs a apresentar resultados de um estudo sobre a produção do
conhecimento acerca das práticas corporais indígenas na área da Educação Física. A autora
aponta um sensível avanço na produção científica em Educação Física no Brasil com a
criação dos cursos de pós-graduação e destaca a particularidade das produções e publicações
140
sobre a temática indígena. Evidencia uma considerável influência de autores da antropologia
nessas produções.
Alencar (2007) destaca que os temas clássicos do pensamento indígena como o
primitivo, mítico, mágico, pré-lógico, selvagem; estão em debate, assim como também a
questão da escolarização dos índios, a produção acadêmica e o discurso de governo. Afirma
que diante dessa identificação, “[...] percebe-se a necessidade de avançar na sistematização e
ampliação da produção na área, na perspectiva de contextualizar e historicizar as produções
publicadas, bem como, instigar o debate sobre uma concepção ampliada de educação e
atuação profissional intercultural” (ALENCAR, 2007, p. 2).
Neste sentido, “apresenta a sistematização dos resultados encontrados, até o momento,
a partir da leitura e da análise dos trabalhos publicados na Revista Brasileira de Ciências do
Esporte, entre o período de 1989 a 2006” (ALENCAR, 2007, p. 2). Apresenta sete artigos,
evidenciando a que se referem os estudos, os autores em que se fundamentam e tece algumas
análises.
Em suas conclusões observa que “[...] no âmbito desta produção ocorreram mudanças
na abordagem de pesquisa sobre a referida temática. As abordagens pautadas na
fundamentação antropológica prevalecem na sustentação teórica das produções científicas da
área”. Informa que estas “pesquisas que enfocam as práticas corporais indígenas com base na
“Antropologia da Educação”, na “Antropologia da Criança” e na “Antropologia do Esporte”
representam novas tendências no desenvolvimento das pesquisas de caráter qualitativo na
Educação Física” (ALENCAR, 2007, p. 7).
Para a autora, os discursos críticos de cunho social, filosófico, pedagógico e
antropológico na área, contribuem para a compreensão sobre os povos indígenas, assim como
as relações entre a educação física na escola indígena e o ambiente social e político em que
ela se insere. Aponta a necessidade de maior socialização dos estudos sobre o tema.
O segundo artigo intitulado Povos Indígenas e relações ambientais: um olhar na
educação (SILVA e CABRAL, 2007) investigou a história dos povos indígenas Kiriri e
Kariri-Xocó objetivando analisar os significados/sentidos histórico-culturais das expressões
corporais relacionadas aos costumes e rituais e as suas relações com as diversas formas de
cultura, lazer e vida.
As autoras abrem sua discussão comentando a figura indígena no senso comum, as
questões que emergem do contato com a colonização exploradora europeia, e a constituição
histórica e social desta imagem de índio. E, portanto nesta perspectiva focalizaram um pouco
da história dos povos Kariri-Xocó e Kiriri, valendo-se do uso da história oral/memória e
141
imagética para apreensão das singularidades. Apoiam-se em Benjamim, Thompson, e
Jameson89
e apresentam em seu artigo falas e depoimentos desses povos, relacionando a
história do tempo presente com trabalho, lazer e vida. Pontuam “[...] aproximações e
distanciamentos entre as duas culturas tratadas, relacionadas a nossa cultura” (SILVA e
CABRAL, 2007, p. 3).
As autoras apresentam aspectos do povo Kariri-Xocó, sua localização geográfica, suas
moradias, fazem uma crítica em relação a hábitos e costumes, se fundamentando em
Jameson90
, afirmam que: “Seus novos trajes capitais: shorts, calças, blusas, tênis, bonés entre
outros, retratam não apenas a invasão da cultura ‘branca’ (eurocêntrica e norte-americana) e
degradação da sua, mas, a perda de sua liberdade e a conquista das neuroses da
‘modernidade'” (SILVA e CABRAL, 2007, p. 3). Denunciam também a imposição da língua
e de costumes, tradições, religiões sobre os povos “autóctones” e utilizam, para tanto, Nelida
Piñon91
, remetendo à descaracterização de culturas.
Retomam a questão da colonização e apontam sobre os 507 (quinhentos e sete) anos
em que “[...] nações foram colocadas no arsenal da opressão do outro e vem se reabilitando
por sua própria luta de resistência, de transformação e ida a gênese como forma de quebrar
laços ainda fortes de uma identidade forjada pela dominação” (SILVA e CABRAL, 2007, p.
4). Falam das aldeias como local da cultura dos povos indígenas. Apresentam com linguagem
poética o cotidiano na aldeia Kariri-Xocó, situam os problemas existentes e suas soluções a
partir da alegria e do contentamento. “Quando comparamos a pobreza, no sentido das
dificuldades de sobreviver, de alimentar, de vestir, com a capacidade de alegrar-se e
contentar-se com a concessão da vida e de viver, perspectivamos que nem sempre, as mazelas
construídas pela sociedade predatório-dominante conseguem cegar os olhos do coração”
(SILVA e CABRAL, 2007, p. 4).
Relatam a cerimônia sagrada do toré, utilizado para comemorar alguma alegria, uma
atividade cultural, a venda do artesanato, a caça ou a pesca. “O toré é o momento em que
povo, Natureza e Ser Superior se unem. Cada canto tem um significado e relação direta com
o Ser Superior, existindo um canto de abertura em que se pede permissão à força Superior e
um de fechamento, que se despede dessa força” (SILVA e CABRAL, 2007, p. 5). As autoras
descrevem a cerimônia:
89
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
THOMPSOM, Paul. A voz do passado - história oral. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1992.
JAMESON, Frederic. Modernidade tardia. 2003. 90
JAMESON, Frederic. Modernidade tardia. 2003. 91
PIÑON, Nelida. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1984.
142
Dança circular cadenciada com batidas ritmadas dos pés por todos os
componentes: dos anciões às crianças, reverenciando o sagrado. Em alguns
momentos do ritual, dão-se as mãos representando a “união grupal pela
tradição, pisando no solo sagrado com pingos de suor no esforço coletivo de
afirmação étnica Kariri-Xocó”, diz José Nunes (Mhenety) outro membro da
tribo. É no toré que boa parte de sua língua de origem ainda é mencionada,
cantada, resgatada (SILVA e CABRAL, 2007, p. 5).
Com base nos relatos do “Mhenety - guardião das tradições”, explicam ainda que o
ritual é praticado em círculo, em sentido anti-horário, como os fenômenos naturais. As
autoras relatam que as crianças brincam livres pela aldeia. “O pular corda, elástico,
amarelinha, esconde-esconde são recorrentes, além de outras como o boto, macacão,
garrafão, ciranda (atirei o pau no gato) e batatinha frita 1, 2, 3” (SILVA e CABRAL, 2007, p.
5) e, ainda, que outras manifestações da cultura “dos brancos” como o futebol e o voleibol
também são praticadas. Os esportes fazem parte do cotidiano na aldeia, algumas das
manifestações tradicionais são realizadas, atualmente, em uma data determinada.
Sobre a etnia Kiriri, aponta que sua denominação significa “‘povo silenciado’ nas suas
ações cotidianas; o silêncio de sua aldeia; a pouca presença das crianças nas ruas, o que lhe
confere característica pacata, não se observando crianças brincando, nem mesmo frente às
casas" . O lazer que as autoras relatam terem presenciado foi um campeonato de futebol, onde
todos, de qualquer idade participaram, e apontam que o “lazer para essa comunidade parece
ter outro significado, diferente da lógica que o compreendemos a partir da ‘cultura branca’”
(SILVA e CABRAL, 2007, p. 6). Entretanto não explicam o que seria o lazer na lógica da
“cultura branca”.
Explicam que o silêncio parece penetrar nas atividades de lazer, trabalho e vida. “Das
observações e análises realizadas no encontro com os povos Kiriri, podemos constatar que
nos Kiriri, trabalho, lazer e vida, constituem uma só e única coisa” (SILVA e CABRAL,
2007, p. 6). E, que antigamente, no período da Festa de São João, relatam as autoras,
“[...] os mais velhos saiam junto à banda de pífanos de casa em casa,
tocando e convidando seus parentes. O final do trajeto era sinalizado por
uma fogueira, construída anteriormente em torno de uma árvore. Acendiam
a fogueira e queimava-se a árvore toda enfeitada de alimentos. Quando esta
cedia às chamas e caía ao chão, as crianças corriam para pegar as laranjas,
milhos e outros alimentos pendurados (SILVA e CABRAL, 2007, p. 7)
As autoras afirmam que esse ritual ainda é praticado, mas que os jovens não se
interessam mais por ele e os mais velhos se preocupam com o perigo de perder o contato com
143
os instrumentos e com sua tradição. Assim nessa época, “[...] os rituais, principalmente os
religiosos, estão suspensos, sendo esta decisão tomada pelo pajé e os caciques, e cumprida
por toda a aldeia, devido à influência da cultura europeia (quadrilha), muitas vezes
reproduzidas nos moldes difundidos pelos meios de comunicação, principalmente a
televisão” (SILVA e CABRAL, 2007, p. 7).
O artesanato, segundo as autoras, é o principal meio de vida dessa comunidade. Os
Kiriri têm legalmente suas terras, e cada família tem seu pedaço de terra para plantar e colher,
porém o plantio é desordenado, não existe sistema de irrigação, e a produção é baixa. “A
fome e a carência ainda são problemas constantes nessa aldeia” (SILVA e CABRAL, 2007,
p. 7). Apontam os movimentos sociais e políticos, e estabelecem questionamentos
relacionados à manutenção e valorização da cultura desses povos. Destacam a evidente marca
de luta de resistência desses povos pela preservação de sua cultura, história, tradições,
sabedorias, e que em meio às inúmeras formas de violência social, cultural e política, “vão
conseguindo ampliar os espaços políticos e fortalecendo a luta pela apropriação e posse da
terra, bem como de seus bens culturais (SILVA e CABRAL, 2007, p. 8).
Para as autoras a aproximação com as realidades dos povos Kariri-Xocó e com os
Kiriri, fez “refletir sobre a valoração social dada aos bens materiais e sua efetiva
importância”, além de ampliar a “sensibilidade à reflexão a partir da lógica que a sociedade
vive e nos condiciona – a lógica racional do sistema do capital.” E ainda, a aproximação com
as culturas dos povos indígenas, respeitando sua sabedoria, registrando sua história e
absorvendo seus ensinamentos, “remete a efetivas possibilidades de construirmos outra
história, apreciarmos suas memórias e valorizamos sua arte de bem-viver” (SILVA e
CABRAL, 2007, p. 8) As autoras remetem um convite para alterar o curso da história,
“alterar no sentido de estabelecermos relações mais fraternas, calorosas, pacientes, felizes,
humanas, com os outros e com a natureza. Refletirmos sobre os rumos de nossa história para
podermos alterá-la para um mundo melhor - econômico, social, ecológico e politicamente”
(SILVA e CABRAL, 2007, p. 8).
Formação em Educação Física & Ciências do Esporte: Políticas e Cotidiano foi o
tema do XVI CONBRACE realizado na cidade de Salvador – BA, no ano de 2009. O evento
contém em seus anais três artigos que tratam de questões relacionas a identidade e/ou práticas
corporais indígenas. O primeiro deles Corpo, infância e cultura: o lazer e a constituição
da(s) identidade(s) das crianças pataxós (COELHO, 2009) investiga as contribuições do
lazer na constituição da(s) identidade(s) das crianças pataxós, busca olhar para as relações
144
sociais que essas crianças participam, focando o conhecimento e as práticas culturais em que
se envolvem. Utiliza para tanto, uma perspectiva etnográfica.
Coelho (2009) inicia seu artigo comentando sobre as dinâmicas culturais na qual as
comunidades indígenas brasileiras estão inseridas, fundamentando-se em Gomes e Faria92
.
Evidencia que a relação entre o tradicional e o contemporâneo não ocorrem de maneira
proporcional, causando uma considerável e rápida mudança nos costumes e hábitos de vida
das comunidades indígenas. “As presenças da energia elétrica, das tecnologias de
comunicação de massa, da religião, da escola, bem como outros elementos estabeleceram
uma reestruturação dos tempos, espaços, relações de trabalho e práticas de lazer das
comunidades indígenas” (COELHO, 2009, p. 2). Neste sentido, o autor justifica a
contribuição de sua pesquisa junto às produções acadêmicas que pesquisam a infância
indígena numa perspectiva etnográfica.
Fundamentado em Viveiros de Castro, afirma que “o conjunto das práticas que se
expressam pelo viés da corporalidade nos traz informações importantes sobre o mundo e a
vida social da criança indígena e pode apontar elementos fundamentais para compreensão da
constituição da(s) identidade(s) das crianças pataxós” (COELHO, 2009, p. 2).
O autor elenca em seus objetivos específicos: investigar os tipos de aprendizagem que
estão presentes no lazer das crianças pataxós; identificar os tipos de aprendizagens que
contribuem para a constituição da identidade das crianças; Analisar de que forma o lazer pode
contribuir para a constituição da(s) identidade(s) das crianças pataxós; Identificar qual o
papel da criança na maneira como a aldeia pataxó se organiza em relação aos seus tempos,
espaços e as práticas de lazer; Conhecer as relações de poder, a organização hierárquica, as
práticas de lazer e o acesso das crianças pataxós aos conhecimentos presentes no mundo
social em que vivem; conceituar o que é “ser criança” no contexto pataxó.
Apresenta os sujeitos da pesquisa, e contextualiza a mudança do povo Pataxó de seu
território de origem, o sul da Bahia, para o município de Carmésia – MG. Destaca que entre
as atividades produtivas estão o artesanato, agricultura familiar da qual a produção excedente
é por algumas vezes comercializada, também a piscicultura e a apicultura. Segundo o autor, a
organização da comunidade Pataxó pode trazer elementos para uma análise etnográfica das
situações de aprendizado das crianças pataxós.
92
GOMES, Ana Maria Rabelo. FARIA, Eliene Lopes. Lazer e diversidade cultural. Brasília: SESI/DN, 2005.
145
Em sua fundamentação teórica, conceitua a infância baseando-se em Ariès e
Carvalho93
, mencionando que na Idade Média a infância era um período desconsiderado e as
crianças retratadas como adultos em miniatura. Aponta que nos séculos XVII e XVIII as
concepções e práticas educacionais mudam seu paradigma, e que no início do século XX
surge o movimento da Escola Nova que propunham uma revolução da prática pedagógica.
Segundo o autor esse movimento do “Escolanovismo” se baseava em Piaget e, também, em
Vygotsky. O autor se fundamenta em Gouveia e Martins94
, e afirma que Piaget definiu
estágios universais e evolutivos do desenvolvimento infantil. E que Vygotsky centrou suas
atenções para as interações sociais, analisando a criança e suas relações com o mundo social e
seus signos (COELHO, 2009, p. 4). Informa que, partindo desses entendimentos se propõe a
uma pesquisa etnográfica sobre a infância, utilizando como instrumentos metodológicos de
pesquisa a observação participante e as entrevistas. Coelho (2009) enfatiza também que seu
“[...] diálogo com a antropologia coincide com o entendimento de lazer como uma dimensão
da cultura”, demonstra o motivo em optar por esse conceito “[...] por compreender que o
mesmo não deva ser entendido exclusivamente em contraste com o tempo de trabalho. Essa
lógica poderia nos levar a compreender que as crianças como sujeitos destituídos de lazer,
por não estabelecerem relações diretas com o trabalho produtivo” (COELHO, 2009, p. 4).
Neste sentido, o autor toma o lazer como um fator importante para a compreensão da
realidade sociocultural, afirmando ser “[...] um campo de emergência de práticas humanas
permeadas de sentidos e significados socialmente construídos pelos sujeitos” (COELHO,
2009, p.5). Argumenta também que as práticas de lazer podem dizer muito sobre padrões
estéticos, sociais, éticos e valorativos do grupo que as pratica.
O autor apresenta o trabalho de Lave e Wenger95
sobre Aprendizagem Situada e o
conceito de participação periférica legitimada, na qual o aprendiz de determinada tarefa
move-se em direção ao aprendizado de maneira gradual e contínua até uma participação
plena da tarefa. Baseado nesses autores menciona que, “[...] o aprendizado não deve ser
entendido como acúmulo de conhecimentos, mas como um processo de construção entre o
sujeito e a comunidade em que está inserido” (COELHO, 2009, p. 5). Menciona também que
93
ÁRIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
CARVALHO, Levindo Diniz. Imagens da infância: brincadeira, brinquedo e cultura. Dissertação (Mestrado
em Educação) Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. 94
GOUVEA, Maria Cristina Soares de. Infantia: entre a anterioridade e a alteridade. Belo Horizonte:
FAE/UFMG, 2003. S/D. Inédito
MARTINS, João Carlos. Vygotsky e o papel das interações sociais na sala de aula: reconhecer e desvendar o
mundo. Idéias. São Paulo: FDE, nº 28, p.111-122, 1997. 95
LAVE, Jean; WENGER, Etienne. Aprendizaje Situado: Participación Periférica Legítima. Universidad
Nacional Autónoma de México, Faculdad de Estudos Superiores Iztacala, 2003.
146
o aprendizado depende da participação, pois se alguém não participa pode até estar presente
com os demais, mas não vai conseguir aprender por não vivenciar as ocasiões necessárias
para isso. O professor, concebido pelo autor como o “veterano”, não é detentor do
conhecimento, mas um mediador do processo. Deve proporcionar ao “aprendiz” momentos
de convivência e experiência com o conhecimento a ser aprendido.
Ainda sobre a aprendizagem, Coelho (2009) afirma que esta é possibilitada por
diferentes formas de linguagens e que a oralidade contribui quando é parte integrante da
prática, sendo a linguagem oral um componente fundamental para a transmissão de
conhecimentos e valores de populações originalmente ágrafas.
Neste ponto o autor aponta outras formas de linguagem como a corporalidade: “O
movimento, a dança, a gestualidade, os rituais, os festejos, as artes, constituem um conjunto
de signos e significados estruturados simbolicamente que contribuem para o aprendizado e a
inserção social da criança indígena em sua comunidade.” Afirma que, “aprender a nadar no
rio, manusear o arco e flecha, confeccionar adereços e ornamentos, pintar o corpo, são
exemplos de tarefas que podem possibilitar mais que um ‘aprender a fazer’, mas um
‘aprender a ser’” (COELHO, 2009, p. 6, grifo do autor). Finaliza seu artigo mencionando
que o projeto de pesquisa poderá revelar dados importantes sobre o mundo, a vida social da
criança indígena e apontar elementos fundamentais para compreensão da constituição da
identidade da criança pataxó.
O segundo artigo apresentado nesta edição do Evento intitula-se As práticas
corporais e a educação do corpo indígena: a contribuição do esporte nos Jogos dos
Povos Indígenas (ALMEIDA, 2009). O autor informa que toma como objeto de estudos as
práticas corporais no contexto da IX Edição dos Jogos dos Povos Indígenas. Menciona que
seu objeto passa pelos campos da Antropologia, da Sociologia e da Educação Física, e que o
corpo é esse objeto interdisciplinar e área central da Educação Física.
Almeida (2009) se fundamenta em Daólio96
para afirmar que pensar o “homem total”
leva a compreender que a sociedade inscreve, sobre o corpo dos homens, semelhanças ou
diferenças. E que o corpo é o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o
cerca. Para o autor, no corpo se manifestam as regras e as relações humanas e, portanto,
pode-se por meio dele reconhecer uma cultura, um conjunto cultural que se incorpora nas
expressões do indivíduo.
96
DAÓLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
147
Analisa as práticas corporais e, para tanto, situa dentre estas, os jogos e brincadeiras
“[...] como elementos da cultura corporal de movimento de cada etnia indígena, cruzando-as
com elementos que caracterizam o esporte em sua dimensão de alto rendimento, procurando-
se observar a influência de tais práticas para a educação do corpo indígena” (ALMEIDA,
2009, p. 2). Informa que sua pesquisa de campo foi realizada durante a IX edição dos Jogos
dos Povos Indígenas, nas cidades de Recife e Olinda – PE. Destaca que vivenciou o momento
de realização do evento, o que possibilitou fazer construções a partir do contato com o objeto.
Se fundamenta em Geertz97
, explicando que o pesquisador se inscreve no discurso social, e
com isso transforma o acontecimento passado em um relato, que em sua inscrição pode ser
consultado posteriormente.
Segundo o autor seus procedimentos objetivaram compreender “[...] em que medida
as práticas corporais nos Jogos dos Povos Indígenas contribui para a educação do corpo dos
indígenas envolvidos no evento”, pretendendo também “[...] entender o significado dos Jogos
dos Povos Indígenas em relação ao sentido de educação do corpo, sua apropriação e as
mudanças culturais proporcionadas” (ALMEIDA, 2009, p. 3).
Para o autor , o senso comum trata os povos indígenas com uma visão uniforme, e se
ancora na existência da “cultura indígena”. Argumenta, usando dados do Instituto
Socioambiental, que no território brasileiro existem 225 etnias, e que, portanto, representam
uma grande diversidade cultural. Fundamenta-se em Laraia98
quando afirma que cada uma
dessas culturas ordena o mundo a seu modo. E em Lévi-Strauss99
, argumentando que existem
muitas culturas humanas, e que os povos indígenas elaboraram culturas diferentes em
contextos e territórios diferenciados. O efeito é que, segundo o autor, “[...] cada povo, cada
etnia indígena tem uma cultura própria, com organização social e econômica e práticas
corporais particulares” (ALMEIDA, 2009, p. 4).
Comenta, com base em Viveiro de Castro100
, que a construção do corpo dos povos
xinguanos decorre da “[...] intervenção consciente da cultura sobre o corpo humano,
construindo a pessoa, modificando sua essência e se manifestando desde a gestualidade, até
alterações da forma desse corpo”. Citando Grando101
afirma que, entre os Bororo do Mato
97
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. 98
LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. 99
LÉVI-STRAUSS, C. Seleção de Textos. São Paulo: Abril, 1976. (Os Pensadores: História das grandes idéias
do mundo ocidental). 100
VIVEIRO DE CASTRO, E. “A Fabricação do corpo na sociedade xinguana”. In: Oliveira Filho, João
Pacheco (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. São Paulo: Marco Zero. UFRJ, 1987. 101
GRANDO, B. “Corpo e cultura: a educação do corpo em relações de fronteiras étinicas e culturais e a
constituição da identidade Bororo em Meruri-MT”. Pensar a Prática. Goiânia. v. 8, n. 2, p. 163-179, Jul./Dez.
2005.
148
Grosso, “nos rituais, as danças são utilizadas como instrumento de educação do corpo, em
que os jovens ao ‘fabricarem seus corpos’ constituem uma identidade específica”
(ALMEIDA, 2009, p. 4). Afirma ainda que a corporalidade é uma dimensão fundamental
para o ensino e aprendizado de conhecimentos, das habilidades e das técnicas da “pessoa
indígena”, permitindo assumir os papéis sociais conquistados, portanto, os jogos e
brincadeiras permitem à criança indígena aprender.
Almeida (2009) define brincadeira como “[...] formas lúdicas de apreensão da
realidade que formam uma identidade fundamentada nos sentidos e significados específicos
de cada cultura.” Expõe que as práticas corporais estão envoltas na totalidade das culturas
indígenas e possuem símbolo próprio em suas tradições. “A educação, por meio de jogos e
brincadeiras tradicionais, se baseia em superar as dificuldades impostas pelo meio ambiente e
no desenvolvimento de valores cooperativos e de evolução social” (ALMEIDA, 2009, p. 5).
Afirma que as culturas indígenas são dinâmicas, e mudam por fontes endógenas ou
exógenas à sociedade, e que as mudanças representam conflitos. “Nesse sentido, sociedades
que produziam mudanças culturais em longos períodos de tempo estão sujeitas a
apresentarem conflitos devido às rápidas mudanças decorrentes do contato com uma
sociedade envolvente, cujo principal traço característico é a globalização” (ALMEIDA, 2009,
p. 5). Com relação às práticas corporais, o autor informa que esse evento foi idealizado por
dois irmãos da etnia Terena com o objetivo de que os povos indígenas troquem informações
sobre suas práticas culturais, econômicas e sociais. Evidencia, com base nos documentos que
orientam os Jogos, que “[...] tem-se como objetivo promover a cidadania indígena, a
integração e o intercâmbio de valores tradicionais, com vistas a incentivar e valorizar as
manifestações culturais próprias desse povos” (ALMEIDA, 2009, p. 5).
Evidencia o autor que o evento possui outras instâncias, como o Fórum Social
Indígena, a Feira de Artesanato, demonstrações culturais, e competições afirmando que “nos
Jogos dos Povos Indígenas foi apresentado um conjunto de práticas culturais de diversas
etnias participantes que demonstraram como cada um desses povos supera as situações
conflitantes de seu cotidiano e pelas quais construíram sua cultura corporal de movimento”
(ALMEIDA, 2009, p. 6). Destaca a realização do congresso técnico realizado antes de cada
edição dos Jogos, com o objetivo de discutir e decidir sobre as modalidades esportivas que
serão contempladas no evento. Compara esse “estabelecer normas” ao processo que ocorreu
na Europa com as regulações dos jogos populares, referenciando, para tanto, Bracht102
.
102
BRACHT, V. Sociologia Crítica do Esporte: uma introdução. 2. ed. Ijuí: Editora Ijuí, 2003.
149
Aponta que algumas das modalidades são apresentadas sob a forma de demonstração
por não haver condições de normatização. Sua crítica se dá no sentido de afirmar que
enquanto essa espetacularização permite a aproximação e apropriação da cultura indígena por
parte dos presentes, pode, por outro, lado contribuir para o deslocamento do sentido de
determinada prática da cultura corporal desses povos.
Sobre o Futebol, o autor assevera que “[...] é o único esporte praticado nos Jogos dos
Povos Indígenas agregando um grande número de indígenas em sua realização. Tendo em
vista que a cada jogo uma etnia é eliminada da competição, foi observado um acirramento da
disputa em busca da vitória, gerando jogadas bruscas e conflitos” (ALMEIDA, 2009, p. 6).
Utiliza o pensamento de Kunz e Guttmann103
para analisar o esporte de alto rendimento bem
como, as normatizações e burocracias do esporte para afirmar que são reflexos da sociedade
moderna.
Apresenta o futebol como elemento intercultural por meio do qual, determinados
valores, atitudes e comportamentos são assimilados por indígenas de diferentes etnias. “Os
jogos e brincadeiras tradicionais demonstram as preferências de cada sociedade, prolongam
seus hábitos e refletem suas crenças”. E, que, por meio das “[...] escolhas por determinadas
práticas corporais demonstram o modo de pensar de um grupo, o que acaba por educá-lo,
definindo suas características morais e intelectuais e reafirmando seu habitus” (ALMEIDA,
2009, p. 7).
Para o autor, a regulamentação das práticas corporais permitiu que estas fossem
realizadas de forma competitiva, o que por sua vez, permitiu a quantificação dos resultados.
Assevera que, essa quantificação, entendida como mensuração do desempenho atlético, “é
coerente com o modo de vida da sociedade moderna, sendo numa compreensão sociológica
demarcada pela teoria weberiana, o modo de racionalizar da sociedade ocidental moderna”.
Evidencia também, a utilização do arco e flecha como instrumentos de diversas etnias.
Analisa que, o quê antes era um instrumento de caça e proteção, nos Jogos “[...] a prática que
envolve o arco e a flecha foi realizada de maneira competitiva e seguiu a lógica do tiro com
flecha praticado nos eventos esportivos” (ALMEIDA, 2009, p. 7). Sobre o arremesso de
lança, denota a padronização do instrumento e, com efeito, altera a técnica corporal dos
indígenas. Para a analise da técnica corporal se fundamenta em Mauss104
.
103
KUNZ, E. Transformação ditádico-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
GUTTMANN, A. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia University, 2004. 104
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
150
O autor tece críticas a essa padronização da técnica, afirmando que essas alterações
provocarão mudanças no comportamento dos grupos, nos seus hábitos e na educação de seus
corpos. Menciona as corridas de tora, a corrida de “Cem Metros Rasos” e a “Corrida de
Fundo”. Sobre esta, aponta uma similaridade com a maratona disputada nas olimpíadas
mundiais. Ressalta que “[...] o esporte de alto rendimento condiz com os interesses
dominantes na sociedade capitalista, influenciando o estado atual de ofertas esportivas”
(ALMEIDA, 2009, p. 8). Assevera que estas ofertas vão ao encontro do sentido dominante, o
do esporte-espetáculo.
O autor aponta que as sociedades tradicionais ressignificam seus elementos culturais,
e neste sentido, o treinamento passou a ser uma demanda dos próprios indígenas. “Com
efeito, tem-se uma mudança na ‘fabricação’ do corpo indígena, devido à assimilação de
técnicas corporais esportivas através do treinamento, com o objetivo de proceder a um
aumento gradual do rendimento para a participação nessas competições” (ALMEIDA, 2009,
p. 10). Fundamentado em Kunz105
, aponta que a especialização esportiva impede o
desenvolvimento plural do indivíduo, a possibilidade da educação indígena torna-lo corpo
especializado com treinamento sistematizado, iniciado precocemente. Para o autor, quando
assimila “[...] esse procedimento em sua rotina diária, o indígena pode reduzir sua
participação em atividades corriqueiras de suas culturas, imprescindíveis para a construção de
sua identidade, por ter que dedicar grande período de tempo aos treinos e às competições”
(ALMEIDA, 2009, p. 10). Tecendo preocupações com o habitus indígena, o autor aponta que
a criança, ao ser introduzida no sistema esportivo de rendimento, pode incorporar valores da
sociedade envolvente, acarretando mudanças em seu comportamento, originando um papel
social distinto entre os indígenas, o atleta. Alerta que, “[...] as técnicas esportivas
correspondem à visão de mundo ocidental, fundamentada na ciência positivista e em uma
organização social capitalista” (ALMEIDA, 2009, p. 10).
Em conclusão, afirma que as práticas corporais ao serem reconfiguradas nos Jogos
dos Povos Indígenas, perdem sua identificação como práticas tradicionais e assumem
elementos do esporte moderno. Critica o esporte por este mudar o habitus e a relação do
indígena com o uso de seu corpo. Evidencia que o esporte a ser oferecido aos povos
indígenas no Brasil deve respeitar sua autonomia, deve ser problematizado, bem como os
conhecimentos técnicos e científicos, explicando a possível consequência de sua inserção nas
105
KUNZ, E. Transformação ditádico-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
151
comunidades. Defende que os povos indígenas possam fazer escolhas conscientes do uso ou
não do esporte em suas comunidades.
Por fim, o terceiro artigo publicado no XVI CONBRACE é intitulado A produção do
conhecimento sobre as práticas corporais indígenas e suas relações com os Jogos
Indígenas do Brasil (GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009). Na introdução do artigo as
autoras apresentam que seu projeto é financiado pelo Ministério do Esporte e integrado a
Rede CEDES, tendo por objetivo “[...] investigar as práticas corporais e lúdicas indígenas,
compreendendo suas relações com os eventos organizados para promover jogos indígenas no
Brasil.” Para tanto, afirmam que “[...] deve-se considerar o contexto sócio-cultural e
econômico onde estas são produzidas e praticadas [ ]. compreendê-las a partir das relações
sociais que os povos indígenas estabelecem historicamente na sociedade brasileira”
(GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009, p. 2).
As autoras situam o processo de colonização do Brasil, os processos de genocídeos,
de integração cultural, de resistências e informa número de etnias indígenas e línguas faladas.
Afirmam que as relações estabelecidas com os não indígenas, em diferentes momentos
históricos, ganham dimensões e estratégias para cada grupo garantir sua sobrevivência,
apropriando-se de elementos culturais de outras etnias, mas identificando-se como grupo,
diferenciando-se de outros.
Apoiando-se em Geertz106
afirmam que indentificar-se no grupo é tao fundamental
quanto identificar-se como único. Trazem a Declaração das Nações Unidas que reconhece o
direito às maneiras de ser específicas, reconhecendo os indígenas como iguais a todos os
povos. Mencionam também leis brasileiras que garantem, no contexto educacional, a inclusão
e a valorização da diversidade étnica e cultural.
Celebram a Lei 11.645/2008, que torna obrigatório a inclusão da temática da história e
cultura afro-brasileira e indígena nos currículos e afirmam que seu projeto busca contribuir
com a implementação da Lei no campo da Educação Física e Ciências do Esporte. Para entrar
neste campo específico, fundamentam-se no conceito de “técnicas corporais” de Marcel
Mauss107
complementando ainda, que estas “[...] expressam a cultura de um grupo e deve ser
compreendida como ‘fato social total’, como expressão de todas as dimensões da vida,
marcada pela história e contexto social do grupo” (GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009,
p. 3).
106
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro : LTC Editora, 1989. 107
MAUSS, M. Técnicas Corporais. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974. (212-218).
152
Explicam as autoras que, “[...] nas técnicas corporais reconhece-se o eu, o nós e os
outros, nas diferentes formas de parar, sentar, nadar, andar, falar presentes em uma mesma
cultura e sociedade, constituindo-se em práticas sociais que expressam formas de se
comunicar e identificar pessoas de diferentes culturas” (GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA,
2009, p. 3). Partindo desta compreensão, buscam conhecer as práticas corporais presentes nos
Jogos dos Povos Indígenas.
Consideram que o esporte se coloca no evento como meio de integração, uma prática
corporal assimilada pelos diferentes grupos e jogada, por exemplo, com as mesmas regras,
técnicas, uniformes. Além do esporte (futebol), outras práticas que as autoras consideram
meio de integração, como o cabo-de-guerra, ou práticas indígenas são transformadas para que
competições possam acontecer orientadas pelas mesmas regras. Evidenciam que além das
práticas corporais competitivas, há apresentações de práticas tradicionais como jogos e
danças, pinturas e adornos corporais e a presença do artesanato comercializado pelos
indígenas durante o evento.
Como metodologia, informam as autoras, utilizarem-se de entrevistas realizadas nos
Jogos em 2007, envolvendo as etnias Umutina e Nambikwara em 2008. Os dados são
apresentados no artigo de forma parcial contendo análises das falas dos entrevistados. Com
relação aos objetivos dos jogos, também o somar esforços para fortalecimento de ações
empreendidas pelas comunidades indígenas.
Evidenciam que nas aldeias as atividades esportivas mais praticadas são o futebol e
vôlei sendo que grande número delas possuem espaços exclusivos para a prática do futebol,
sendo este uma atividade cotidiana e uma das mais preferidas entre homens e mulheres.
Revelam a existência de preocupação entre os mais velhos, os quais, segundo as autoras,
desaprovam essas novas práticas implantadas pelos não índios. “Eles defendem a tese de que
com este esporte a cultura deles está ‘morrendo’” (GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009,
p. 5). Mencionam, baseadas nas entrevistas, que há pouca atenção política dos governantes no
atendimento as necessidades dos indígenas participantes do evento. Dentre os problemas
elencados estão as “[...] dificuldades com os governos locais no reconhecimento de seus
direitos como cidadãos, ao acesso econômico, político e social do país”. Dentre os quais, as
autoras enfatizam que, “[...] a terra é um dos mais graves problemas desta parcela da
população brasileira, sem este direito atendido os demais todos são prejudicados”
(GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009, p. 5). Nos Jogos, as demandas estão relacionadas
à falta de organização para acomodar os participantes, à forma de comunicar às comunidades
153
que podem participar do evento, a dificuldade com o deslocamento para participar, problemas
com transporte, falta de alimentação no trajeto, entre outros.
Em conclusão as autoras entendem que “[...] há muita influência da cultura não
indígena nas aldeias em se tratando das práticas corporais.” Destacam o fato de o futebol ter
sido transformado “[...] numa prática permanente no interior das aldeias, para a maioria dos
povos indígenas, no caso, 21 etnias, com as quais estabelecemos contato na pesquisa”
(GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009, p. 5). Denotam que o esporte é um direito
constitucional ao mesmo tempo em que não se disponibilizam as condições para a prática nas
comunidades indígenas. Apontam como contradição a relação do esporte como “[...]
fenômeno social que possibilita uma integração entre diversas etnias e culturas, ao mesmo
tempo em que este promove uma negação ou aculturação das práticas corporais tradicionais
que constituem a cultura corporal de movimento dos povos indígenas do Brasil” (GRANDO,
AGUIAR e OLIVEIRA, 2009, p. 5).
As autoras destacam a relevância dos Jogos dos Povos Indígenas, por proporcionar
momentos de integração entre os próprios indígenas, os organizadores e o público. Segundo
as autoras o evento traz visibilidade da realidade diversificada que vive o povo brasileiro.
Expõem a necessidade dos povos indígenas serem reconhecidos em suas especificidades
culturais, econômicas e sociais com ênfase ao direito à terra, à alimentação adequada,
educação e saúde. “O direito ao esporte com o princípio da inclusão deve estar pautada numa
política mais ampla e que dê sustentação econômica para o exercício do direito” (GRANDO,
AGUIAR e OLIVEIRA, 2009, p. 6).
As autoras reafirmam a expectativa de que, assegurados os direitos, por uma
legislação estabelecida, esses possam, efetivamente, realizar a mudança necessária para o
respeito aos povos indígenas, às suas culturas e diversidades.
As novas legislações para a Educação Nacional, em especial a Lei
11.645/08, que poderá contribuir, se implementada em todas as escolas e
inclusive pela Educação Física, para educar a sociedade numa nova visão
dos indígenas não mais como um homem/‘ser genérico’, mas compreendê-lo
como um ser de cultura, que se constitui como sujeito histórico em seu
grupo social específico, e como ser único, como pessoa.
Reafirmam que os povos indígenas reconhecem a importância de manter sua cultura e
acreditam que os jogos contribuem para que nas aldeias sejam valorizados nos saberes
tradicionais. Concluem afirmando que a finalização de sua pesquisa contribuirá com as
políticas públicas de esporte e lazer para os povos indígenas.
154
Por fim, na edição XVII do CONBRACE, realizada na cidade de Porto Alegre – RS,
cujo tema foi Ciência & Compromisso Social: Implicações na/da Educação Física, um
único trabalho científico sobre as questões indígenas foi apresentado. O artigo O esporte
entre os indígenas no Brasil: constituição de identidades e alterações de comportamento
(ALMEIDA, 2011), objetivou fornecer subsídios teóricos referentes à prática do esporte entre
os indígenas e propiciar uma reflexão crítica acerca do fenômeno esportivo entre esses povos.
O autor inicia seu texto afirmando que os povos indígenas atualmente vivem em
constantes relações sociais com outros povos e com a sociedade nacional e, portanto, o
contato com outros valores, instituições e conhecimentos torna-se inevitável. Reforça que
estas relações se desenvolvem em meio a intensas trocas econômicas, informacionais e
simbólicas nas últimas décadas. Expõe a diversidade das sociedades indígenas no Brasil,
afirmando que, “[...] trata-se de aproximadamente 225 etnias que possuem mais de 180
idiomas.” Explica que, “[...] de forma geral, a ação pedagógica tradicional se dá por meio da
transmissão oral do patrimônio cultural – dos mais velhos aos mais jovens – e, também
através das práticas corporais tradicionais vivenciadas no cotidiano das comunidades”
(ALMEIDA, 2011, p. 2). Segundo o autor, as crianças indígenas aprendem as habilidades
corporais e a capacidade linguística e intelectual em atividades rotineiras.
Afirma que o Estado brasileiro com o objetivo de integrar os indígenas à sociedade
instituiu no século XX a educação escolar indígena e que esta se baseava em transformar os
indígenas em pessoas “civilizadas”, nas palavras do autor, esta “[...] estruturação da educação
escolar indígena rompia e, em certa medida, ainda rompe com a noção de ensino e
aprendizagem que ocorrem de forma contínua e incorporada à rotina das comunidades”
(ALMEIDA, 2011, p. 2-3). Menciona a atividade missionária e catequizadora que visava à
incorporação de valores culturais ocidentais, alterando o modo dos indígenas de conceber o
mundo.
O autor infere que com esta forma de compreensão o esporte foi também apresentado
aos indígenas como instrumento de transmissão de outros padrões culturais, bem como as
técnicas corporais relacionadas ao modo de vida moderno. Fundamentado em Bourdieu108
afirma que: “O esporte, numa lógica inerente à cultura ocidental moderna, transforma o
indígena corporalmente, na medida em que altera seu habitus” (ALMEIDA, 2011, p. 3).
Assevera que desta forma constitui outras identidades indígenas. O esporte, para o autor, em
sua forma de alto rendimento e treinamento, reafirma uma disciplinarização e especialização
108
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.
155
que impõe ao corpo indígena a cultura não-indígena. Ao tratar do fenômeno esportivo, o
autor se fundamenta em Bracht, Gonzalez, Kunz e Guttmann109
. Aponta que o esporte
moderno é resultado de um processo de esportivização da cultura corporal de movimento das
classes populares e da nobreza inglesas. Explica que esse processo ocorre quando os códigos
e princípios que caracterizam o esporte são absorvidos pelas práticas corporais não-esportivas
afetando a cultura corporal de movimento e a subjetividade.
Relaciona ainda o esporte e a indústria cultural, evidenciando a relação do público
indígena e o esporte-espetáculo, o que segundo o autor, levaria a modificação da visão de
mundo dos indivíduos. Afirma que, “[...] a abordagem sociológica de base marxista situa o
esporte como instituição e o apresenta como um elemento da cultura ocidental que reproduz
as determinações da estrutura social mais ampla.” Para o autor “[...] nessa perspectiva, o
esporte é compreendido como uma instância composta por elementos materiais e produtos
culturais, possuidor de grupos específicos, com agentes de autoria e hierarquias em que os
papéis são definidos” (ALMEIDA, 2011, p. 4). Essa matriz teórica demonstraria que a
estrutura do modo de produção industrial se reproduz no esporte, por meio do princípio do
rendimento, da competição e da hierarquia social. Sendo o esporte um reprodutor das
relações sociais reforça a competitividade, a exclusão e o individualismo, além das
rivalidades e disputas exageradas.
Baseando-se nas ideias de Stigger110
afirma que o esporte é um fenômeno humano que
constitui um conjunto social e cultural, um conjunto de normas, valores, representações,
símbolos coletivos e comportamentos, orientados por aspectos macrossociais. Assevera que é
necessário compreender também o esporte enquanto lazer e recreação. Reafirma, baseado em
Kunz111
, que o modelo praticado na “sociedade ocidental moderna” é o de alto rendimento,
com regras, competições, princípios de sobrepujança e comparações objetivas. Infere que o
esporte de alto rendimento “[...] contribui para formar uma outra identidade entre os
indígenas, com base em uma cosmologia distinta da sua etnia. Neste processo tem-se um
‘confronto cosmológico’ que gera tensões e conflitos nestas comunidades” (ALMEIDA,
2011, p. 5).
109
BRACHT, Valter. Sociologia Crítica do Esporte: uma introdução. 2. ed. Ijuí: Editora Ijuí, 2003.
GONZÁLEZ, Fernando Jaime. “Projeto curricular e educação física: o esporte como conteúdo escolar”. In:
Rezer, Ricardo (Org.). O Fenômeno esportivo: ensaios crítico-reflexivos. Chapecó: Argos, 2006.
KUNZ, Eleonor. Transformação ditádico-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
GUTTMANN, Allen. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia University,
2004. 110
STIGGER, Marco Paulo. Esporte, lazer e estilos de vidas: um estudo etnográfico. Campinas: Autores
Associados, 2002. 111
KUNZ, Eleonor. Transformação ditádico-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
156
Almeida (2011) faz algumas ponderações sobre o esporte entre os povos indígenas,
evidenciando que o contato com o esporte ocorreu de modo específico em cada comunidade
indígena, em processos nos quais participaram ações do Estado, missionários, professores e
cidadãos das cidades próximas das aldeias, cujas ações proporcionaram a adoção do esporte
por diferentes etnias indígenas habitantes no território brasileiro. O autor destaca a
apropriação do futebol, a criação de departamentos para o esporte em algumas comunidades,
a prática deste esporte por homens e mulheres das mais variadas idades, e a marginalização
dos jogos e brincadeiras tradicionais.
Para o autor na relação entre esporte e as sociedades indígenas, alguns elementos
culturais são preservados e outros modificados. Há o predomínio da lógica esportiva e de alto
rendimento, valores modernos são inseridos no cotidiano das comunidades determinando
relações sociais e mudando comportamentos. Fundamentado em Lucena, Kunz, Mauss,
Grando e Hasse112
, considera que o esporte de alto rendimento desencadeia processos de
individualização, especialização, e assimilação de técnicas corporais, correspondentes à
sociedade capitalista, ao estilo de vida moderno. E que, desta forma, “[...] o indígena pode
reduzir a participação em atividades corriqueiras de suas culturas, imprescindíveis para a
construção de sua identidade [...]”, afirma também que, “[...] a especialização, apesar de
aparecer em práticas corporais tradicionais, é característica básica do esporte de alto
rendimento, que, diferente delas, fomenta a profissionalização dos mais aptos”, o que para o
autor é “[...] um meio de integração desses povos à sociedade global, como atores e como
consumidores do fenômeno esportivo” (ALMEIDA, 2011, p. 8).
Almeida (2011), utilizando o entendimento de Pierre Bordieu, denota que o processo
de mercadorização esportiva está relacionado a incorporação da lógica capitalista do
consumo no esporte, tornando este um processo da indústria cultural muito valorizado no
mercado internacional, e que se encontra amparado numa ciência que busca o
aperfeiçoamento físico e técnico, visa produzir campeões reforçando o consumo de bens
materiais e simbólicos.
O autor infere que “[...] o sentido de esportivização se faz presente nos mais diferentes
grupos indígenas, alterando os sentidos de suas práticas sociais e econômicas, incorporando-
os ao mercado mundial como consumidores do fenômeno esportivo” (ALMEIDA, 2011, p.
112
LUCENA, Ricardo. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Campinas: Autores
Associados; CBCE, 2001
KUNZ, Eleonor. Transformação ditádico-pedagógica do esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
GRANDO, Beleni; HASSE, Manuela. “Índio brasileiro: intergração e preservação”. In: Fleuri, Reinaldo Matias
(Org.). Intercultura: estudos emergentes. Ijuí: Unijuí, 2001.
157
10). Aponta que, com isso, as práticas corporais tradicionais vêm caindo em desuso ou sendo
resignificadas assumindo características do esporte de alto rendimento, substituindo a
ludicidade pela competitividade e o rendimento.
Para Almeida (2011), o esporte é uma prática social apropriada de forma diferenciada
em realidades específicas. Dependendo do sentido a ele atribuído, possibilita que os “atores
sociais” sejam produtores de cultura evidenciando decisões individuais e dos grupos, criando
e recriando tais práticas. Apresenta o futebol como elemento cultural da sociedade ocidental
moderna, apropriado e adaptado à diversidade cultural indígena. Assim, o futebol é tido como
um elemento intercultural praticado como esporte de alto rendimento, que contribui para a
assimilação de determinados valores, atitudes e comportamentos. O autor defende, portanto,
que “[...] ao compreenderem as diferentes formas de apreciar o esporte os povos indígenas
possam (re)significarem esta prática adaptando ao seu padrão cultural, minimizado a
assimilação de comportamentos indesejados” (ALMEIDA, 2011, p. 10)
Ao concluir afirma que “[...] o esporte a ser oportunizado pelo Estado aos povos
indígenas no Brasil deve respeitar sua autonomia”, enfatiza “o direito que esses povos têm de
participar ativamente das decisões que dizem respeito às suas manifestações culturais”
(ALMEIDA, 2011, p. 11). Expõe que por ser intercultural o esporte tem de ser compreendido
em sua totalidade, pois permite o contato com valores, instituições e procedimentos de
diferentes povos. Defende que os interesses dos povos indígenas surjam de escolhas
fundamentadas em conhecimentos adquiridos, de planejamentos, execução e avaliação de
programas de lazer e esporte que respeitem a autonomia indígena. E, por fim, reafirma que o
esporte pode e deve ser vivenciado de forma prazerosa e saudável pelos indígenas. “Sua
vivência e forma de organização nas comunidades indígenas devem coexistir com a prática
dos jogos e das brincadeiras tradicionais, considerados como importantes elementos de
reafirmação étnica” (ALMEIDA, 2011, p. 12).
4.2. Síntese geral dos artigos: natureza indígena, emancipação e educação
Numa perspectiva geral nos artigos é possível verificar uma preocupação constante
com o objetivo de manutenção da cultura indígena. Em síntese buscam compreender as
manifestações corporais indígenas evidentes: nos Jogos dos Povos Indígenas (CARVALHO e
MONTEIRO, 2001; MONTEIRO, 2003; BANKOFF, DE MARCHI, et al., 2005; LUCENA
158
e BATISTA, 2005; ALMEIDA, 2009; GRANDO, AGUIAR e OLIVEIRA, 2009;
ALMEIDA, 2011); na construção do currículo do Magistério Indígena (ABUQUERQUE,
2001); na ginástica como elemento da constituição de identidade étnica (SILVA, PERINI e
AGOSTINI, 2003); nas práticas corporais como espaços de mediações e intercâmbios num
contexto de Educação Intercultural (GRANDO, 2005); no estético presente na arte, nos
ornamentos, nos adereços e nos corpos (KOWALSKI e FERREIRA, 2005); na produção do
conhecimento sobre as práticas corporais indígenas (ALENCAR, 2007); nos costumes e
rituais e suas relações com cultura, lazer e cotidiano (SILVA e CABRAL, 2007); no lazer e
sua contribuição como construtor da identidade das crianças Pataxós (COELHO, 2009).
Em quase a totalidade os autores estão cadastrados no Diretório de Grupos de
Pesquisa do Brasil (CNPq), como líderes de grupos ou como pesquisadores, o que demonstra
a institucionalização de suas pesquisas. Alguns dos quais estão articulados, como é o caso do
Grupo COEDUC - Corpo, Educação e Cultura da Universidade Federal de Mato Grosso –
UFMT. A relação dos grupos de pesquisa encontra-se no quadro a seguir.
Autor Grupo de Estudos
Joelma Cristina Parente Monteiro
Grupo de Estudos Indígenas na Amazônia - GEIA - UEPA
(líder)
GEPI-Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas - UFPA
(pesquisador)
Observatório de Educação Escolar Indígena do Território
Etnoeducacional Amazônia Oriental Tupi - UFPA (pesquisador)
Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Educação, Sociedade
e Política Educacional do Campo e da Floresta da Amazônia
Paraense - HESPECF. (vinculado ao HISTEDBR - secção Pará)
- UFPA (pesquisador)
Culturas e memórias amazônicas - UEPA (pesquisador)
Maria do Socorro Craveiro de Albuquerque
COEDUC
Grupo de Estudos e Pesquisas da Cultura Corporal e
Comunicação na Amazônia - UFAC (líder)
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (pesquisador)
Pesquisa Qualiquantitativa de Representações Sociais
organizada a partir do processo metodológico do Discurso do
Sujeito Coletivo - UFAC (pesquisador)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT
(pesquisador)
Ana Márcia Silva Labphysis - Laboratório Physis de Pesquisa em Educação Física,
Sociedade e Natureza - UFG (líder)
Beleni S. Grando
COEDUC
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (líder)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT (líder)
Núcleo de Estudos de Povos Indígenas - UFSC (pesquisador)
Educação Intercultural e Movimentos Sociais - UFSC
(pesquisador)
Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza - Necon - UNB
(pesquisador)
Movimentos Sociais e Educação - UFMT (pesquisador)
159
Bankoff, A.D.P.;
Atividade Física, Saúde e Qualidade de vida - UNICAMP (líder)
Eletromiografia e Biomecanica da Postura - UNICAMP (líder)
GEMORGETS - Grupo de Estudos sobre morbidade referida,
processo de trabalho e gestão em saúde no contexto de vida
humana - UFMT (pesquisador)
Maria Beatriz da Rocha Ferreira/
Esporte, Jogos 'tradicionais' e Sociedade - UNICAMP (líder)
Comunicação e Divulgação Científica e Cultural do Esporte. -
UNICAMP (líder)
Grupo de Pesquisa Processos Civilizadores - UEL (pesquisador)
Grupo de Pesquisa em Inclusão, Movimento e Ensino a
Distância - GIME - UFJF (pesquisador)
Marizabel Kowalski Ensino, Corpo e Sociedade - UFV (pesquisador)
Ricardo de F. Lucena
Centro de Memória do Esporte no Nordeste - UFPE (líder)
LABORATÓRIO DE SOCIOLOGIA DO ESPORTE-LASEPE -
UFPE (pesquisador)
Literatura e Cultura Francesas - UFPB (pesquisador)
TEATRO: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE - UFPB
(pesquisador)
Maria Cecilia de Paula Silva
HCEL - História da Cultura Corporal, Educação, Esporte, Lazer
e sociedade - UFBA (líder)
Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas - UFBA
(pesquisador)
Arthur José Medeiros de Almeida
COEDUC
Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza - Necon - UNB
(pesquisador)
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (pesquisador)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC – UNEMAT
(pesquisador)
Bruna Maria de Oliveira
COEDUC
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT
(pesquisador) Quadro 2 Pesquisadores ativos no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil (CNPq)
Os estudos em sua maioria tecem críticas à influencia dos não-indígenas nos modos
de agir, bem como às mudanças que lançam o indígena ao “mundo doente e capitalista”. Sem
contextualizar e dar a compreender a totalidade das relações capitalistas, sua influência
enquanto modo de produção determinante de todas as relações sociais, inclusive das relações
estabelecidas nas comunidades indígenas, tais críticas adquirem um tom moralista que não
contribui com o desvelamento das reais condições de pobreza, de falta de acesso a condições
mínimas de saúde, de educação, de alimentação (POCHMANN; AMORIM; et.al., 2004;
HALL & PATRINOS, 2004, FAUSTINO, 2006), em que vivem a maior parte das
populações indígenas no Brasil e em diferentes partes do mundo.
Ante a crítica sobressai a valorização da pobreza, do sentimentalismo, dessa vida de
“abnegação”. Expresso na ideia de que “a aproximação com a cultura indígena remete à
reflexão sobre a valorização dos bens materiais existente na lógica capitalista, às
possibilidades de se construir outra história, relações fraternas, pacientes, felizes, humanas
com outros e a natureza” (SILVA e CABRAL, 2007, p. 8). Semelhante ponderação,
encontramos nos documentos e disposições dos organismos nacionais e internacionais
160
(BRASIL, 1998; DELORS, 1996; NAÇÕES UNIDAS, 2003), cuja linguagem, em tom
messiânico, buscam a disseminação dos ideais de construção da paz, da liberdade, da justiça
social, escamoteando a expropriação, violência e real condição de produção capitalista
baseada na exploração do homem pelo homem (produção de mais-valia para a reprodução
ampliada do capital) e da miséria relativa e absoluta decorrente dessa forma de organização
social (MARX, 1982a; 1982b).
Sem uma análise das relações de produção capitalista, que longe do economicismo é,
antes, a busca da compreensão da totalidade dos nexos sociais que regem as relações
humanas nesta sociedade, os autores, ao tratarem da questão indígena diante dos efeitos
degradantes desta sociedade, mesmo afirmando a dinâmica cultural, não puderam ver
nenhuma outra solução senão um retorno ao entendimento de que o indígena conserva uma
essência humana boa, uma natureza pura, uma identidade (crenças, costumes e práticas)
impermeável às mudanças do contexto social que levam à mudanças culturais
(ALBUQUERQUE 2001; MONTEIRO, 2003; SILVA, PERINI e AGOSTINI, 2003;
GRANDO, 2005; KOWALSKI e FERREIRA, 2005; SILVA e CABRAL, 2007; COELHO,
2009; ALMEIDA, 2009; 2011) e que esta deva ser conservada com autonomia
independentemente da sociedade não-indígena.
Nesse sentido, nos apoiamos em Vigotski (1930)113
que, ao analisar o processo de
desenvolvimento psicológico do homem, aponta que para filósofos como Rousseau e Tolstói
a solução aos problemas da moderna sociedade capitalista concebia o retorno a um estado
primitivo de pureza e integralidade da natureza humana. Antagonicamente, Vigotski (1930)
afirma que, efetivamente,
[...] do ponto de vista social desse romantismo reacionário, os períodos
primitivos de desenvolvimento social humano apresentar-se-iam como o
ideal que a humanidade deve perseguir. E, efetivamente, uma análise mais
profunda das tendências históricas e econômicas que regulam o
113
O texto A Transformação Socialista do Homem foi publicado em 1930 na revista VARNITSO – órgão
periódico da Associação de Trabalhadores da Ciência e Técnica para o Avanço da Construção do
Socialismo na União Soviética (VECCHIA e PASQUALINI, 2006, p. 3). Vigotski (VIGOTSKI, 1930), em um
contexto de pós-revolução Russa na primeira metade do século XX, expõe o horizonte histórico e político que
atribuía à construção da psicologia científica marxista. Postula que o tipo psicológico do homem moderno é um
produto de duas linhas evolutivas: a evolução biológica e o desenvolvimento histórico-cultural. Salienta que o
tipo biológico do homem não sofreu alterações significativas ao longo do desenvolvimento histórico do gênero
humano, o que se explica pelo fato de que, ao nos referimos ao ser humano, as leis da evolução biológica são
superadas pelas leis tendenciais próprias ao desenvolvimento social e histórico do mundo dos homens. Não
obstante, aquelas permaneçam como pano de fundo, afastadas pelas leis sócio históricas. Vigotski fundamenta-
se em O Capital de Marx, em A Ideologia Alemã de Marx e Engels, em Anti-Dühring de Engels, para
explicar a divisão do trabalho na sociedade capitalista e as consequências desumanas que tal divisão causou à
humanidade sob a égide da exploração do homem pelo homem.
161
desenvolvimento capitalista mostraria que esse processo de mutilação da
natureza humana, aqui demonstrado, é inerente não à crescente
industrialização de grande escala como tal, mas à forma especificamente
capitalista de ordenação societária que a conduz (VIGOTSKI, 1930, p. 6).
Portanto, os processos que mutilam o ser humano, que produzem miséria e pobreza,
não são resultantes da indústria ou do desenvolvimento técnico das formas de produção, mas
são processos últimos da relação social capitalista que rege e conduz tal processo.
Reiteramos, que o problema não está no acesso aos produtos da sociedade capitalista, ou
como querem alguns dos autores que tratam da temática indígena na área da educação física,
“[n]a conquista das neuroses da ‘modernidade’” (SILVA e CABRAL, 2007, p. 3), ou ainda
no chamado “mundo doente e capitalista” (CARVALHO e MONTEIRO, 2001, p. 5), muito
menos reside na indústria capitalista e seus produtos, independente de qual sejam os bens
produzidos, como se estes fossem “[...] um meio de integração desses povos à sociedade
global, como atores e como consumidores do fenômeno esportivo” (ALMEIDA, 2011, p. 8).
Como exposto no excerto acima (VIGOTSKI, 1930), o problema está na “forma
especificamente capitalista de ordenação societária que a conduz”, nas relações sociais de
produção capitalista. Não podemos ser ingênuos de culpar moralmente o sistema capitalista,
por destruir, por meio de seus bens, a cultura indígena e os seus meios de subsistência
supondo que, culturalmente diferentes da “sociedade envolvente”, os indígenas são
forçosamente integrados aos meios de consumo, ou integrados à sociedade capitalista. Trata-
se de compreender a raiz do problema e criticar seus fundamentos.
Uma vez que o sistema capitalista tem por imanência a expansão, e que em sua forma
consolidada e moderna assentou em contato todos os povos do mundo, não podemos afirmar
que os indígenas estão à margem, ou estão aquém do sistema capitalista de produção, quando
em realidade o capital é a forma geral dominante do processo de produção (MARX, 1982b, p.
586) dos bens necessários às satisfações humanas. O processo de produção capitalista é uma
relação social estabelecida entre homens que produzem e homens que se apropriam dos
resultados dessa produção. Esse processo organiza o atual modo de vida humano e, portanto,
perpassa e medeia todas as instâncias da vida.
Forma geral dominante, não significa única forma de se produzir. O capital convive
muito bem com as formas artesanais de produção. O fato de encontrarmos, por exemplo,
costureiras e alfaiates trabalhando de maneira artesanal, ou ainda, os próprios indígenas
“possuírem uma agricultura primordialmente familiar, onde a produção excedente, como a
banana, milho, feijão, farinha de mandioca, em alguns momentos são comercializados”
162
(COELHO, 2009, p. 3), é evidência disso. Entretanto nem a costureira, nem o alfaiate, nem o
indígena ditam o modo de produzir e comercializar seus produtos. Antes, quem dita regras, a
que estes produtos serão submetidos ao serem transportados ao mercado é o sistema
capitalista de produção da costura, da alfaiataria, da banana, do milho, etc...
Como afirma Marx (1982a, p. 204), “[...] o que distingue a diferentes épocas
econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz. Os meios de
trabalho114
servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e além disso,
indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho.” Assim os indígenas e os não-
indígenas, ou seja, todo ser humano que vive na atual época econômica capitalista, estão
determinados imediata ou mediatamente em suas relações econômicas, políticas, e sociais
pelos modos de produção capitalista em uma relação social econômica, que em ultima
instância é relação de classes.
Os estudos evidenciam, também, que os indígenas em suas relações sociais com as
comunidades do entorno, satisfazem necessidades do estômago ou da fantasia, para utilizar
uma expressão de Marx (1982a), por meio de produtos provenientes dessas. Sejam os
produzidos com fins de suprir as necessidades de mantimentos, vestuários, utensílios, bem
como os produtos para satisfação das necessidades da fantasia como os esportes, por
exemplo, dentre os quais o mais citado é o futebol.
Não deixando de lado esse entendimento econômico, das relações sociais
estabelecidas entre os povos, destacamos também o aspecto político e cultural. Os estudiosos
da temática indígena, que publicaram nos anais do CONBRACE, revelam preocupações com
114
Marx (1982a), no capítulo V de O Capital, explica o que é processo de trabalho e processo de valorização,
ou seja, produzir mais valia. Utilizando categorias já explicadas nos capítulos anteriores, como valor-de-uso,
valor-de-troca e valor, o autor explica “o processo de trabalho à parte de qualquer estrutura social determinada”
(p.202). Nesse processo genérico o homem, ser social genérico, interage com a natureza e produz valores-de-uso
– riquezas, coisas que satisfazem as necessidades humanas independentemente de quais sejam essas
necessidades (MARX, 1982a, p.41). Nesse sentido, o trabalho é um “processo em que o ser humano com sua
própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (p. 202). “Todas as coisas
que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho,
fornecidos pela natureza” (p.203). Em sua interação com a natureza o homem utiliza-se dos meios de trabalho,
“[...] uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe
serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto” (p.203). “Observando-se todo o processo do ponto de vista do
resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho
produtivo” (MARX, 1982a, p.205). Entretanto, o teórico alerta em nota de rodapé que esta conceituação de
trabalho produtivo não é adequada ao processo de produção capitalista. Este, pressupõe o encontro de dois
possuidores: o capitalista, possuidor dos meios de produção, encontra-se com o trabalhador, que expropriado da
terra, não possui nada além de sua força de trabalho para vender. “O processo de trabalho, quando ocorre como
processo de consumo de força de trabalho pelo capitalista, apresenta dois fenômenos característicos. O
trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho. [...] O produto é propriedade
do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. [...] O capitalista compra a força de trabalho e incorpora
o trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os quais também lhe pertencem”
(MARX, 1982a, p. 209-210).
163
a autonomia, com a alteridade, com a manutenção dos modos de vida indígena. Em sua
maioria não mencionam a realidade da falta de acesso às terras, ao antigo espaço geográfico
que possibilitava seus anteriores modos de vida. Em um ou outro artigo, esse contexto de
aldeamento, perdas e lutas por territórios tradicionais é tangenciado. Na maior parte dos
textos, bastaria o respeito ao pluralismo cultural das nações indígenas, à diversidade destas e
boa parte dos problemas estariam resolvidos, como se “o modo de vida tradicional, a
identidade indígena” fosse possível sem àqueles e o acesso à riqueza humana universalmente
produzida não fosse interessante ao indígena.
É comum aos estudos deslocarem a discussão da centralidade do trabalho para a
centralidade da cultura. Grande parte dos artigos entende a cultura como um conjunto de
mecanismos simbólicos pelo qual o homem controla e expressa seu comportamento, sua
identidade, ou ainda suas práticas corporais. A cultura nesta compreensão é apresentada como
algo idealmente superior, uma transcendência que habita e se manifesta no corpo. Essa
compreensão da cultura como algo extrínseco, transcendente, fundamenta o entendimento de
homem cuja transmissão da cultura se dá sem contestação e cujos resultados é uma inscrição
profunda e independente das vontades das gerações. Digno de se notar também, a dicotomia
de corpo/mente ou corpo/cultura, que se expressa na utilização do corpo como um utensílio
sobre o qual o homem vai agir e transformar sua natureza, seu corpo e a si mesmo.
Colocar a cultura como determinante ignorando a economia, mencionar a cultura
ocidental dominante e passar a discutir dominação cultural, é colocar de lado a centralidade
do trabalho, como categoria fundante da vida humana, deixando-se de discutir a economia e
suas categorias dominantes, para discutir a cultura, as categorias de cultura, as diferenças e os
direitos de cidadania (EAGLETON, 2005). O que incorre em colocar a cultura como
categoria, como se esta fosse o elemento que pode minimizar as diferenças, no lugar de classe
trabalhadora a categoria que carrega em si o fardo histórico de revolucionar ou não a
sociedade (MARX e ENGELS, 2007). Neste sentido, Ahmad (1999) nos ajuda a
compreender os nexos entre cultura e economia-política, ao afirmar que:
Cultura não é redutível àqueles processos que a economia política marxista
estuda para seus próprios fins, mas está neles enraizada. A denominada
moderna cultura de massa não pode ser de maneira alguma separada dos
processos de produção em massa, marketing, especulação com vistas a
lucros extraordinários, sistemas de comunicação de massa, etc (AHMAD,
1999, p. 107).
164
A cultura, não sendo categoria fundante, não a torna menos importante, é preciso
compreendê-la em sua conexão com a totalidade das relações de produção. Não se pode
tomá-la como objeto suspenso acima da realidade, para então teorizá-la. É preciso
compreender o fundamento que permite aos homens produzirem cultura. Na explicação de
Marx e Engels (2007), compreendemos o pressuposto de toda a existência humana e de toda a
história,
[...] o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de
comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato
histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidade,
a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico,
uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há
milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para
manter os homens vivos (MARX e ENGELS, 2007, p. 32-33).
Portanto, os homens precisam produzir meios para satisfazer suas mais básicas
necessidades, e, isto é o primeiro ato histórico. Produzir a satisfação de suas necessidades é
possível ao homem por meio do trabalho: a perpétua relação do homem com a natureza. “Por
isso o trabalho foi e continuará sendo a categoria fundante do ser social. A produção da vida
que não é simplesmente dada pela natureza, mas é construída socialmente pelos seres
humanos” (MELLO, 2009, p. 52). É essa a radicalidade da qual não podemos prescindir, o
fato de que existe uma determinação econômica na vida social e que os homens para viver
precisam trabalhar, e, somente a partir do trabalho podem produzir a vida e suas mais
variadas instâncias, como a cultura, por exemplo. A perda desse radical compromete,
segundo Ahmad (1999), a visão da “maioria das coisas” como questão de classe. Justifica
suas palavras com dados empíricos:
Sabe-se que a Índia tem uma população entre 900 milhões e 1 bilhão de
pessoas. Aproximadamente metade dessa gente é analfabeta. Nenhum
burguês, porém, é analfabeto em parte alguma do mundo, e os que falam
constantemente nos “prazeres do texto” jamais são pobres. Cerca de metade
dos cegos do mundo vive na Índia. A cegueira, porém, é uma questão de
classe, no sentido em que constitui quase que exclusivamente uma doença
de pobres, e também no sentido de que uma incidência tão alta assim de
cegueira tem muito a ver com o fato de eles viverem em condições que a
causam, com o número e a qualidade dos hospitais, com a capacidade de
financiar a cura e o tratamento. O que precisa ser justificado é o outro tipo
de cegueira, que se recusa a ver que a maioria das coisas é uma questão de
classe. Essa renúncia em si mesma é, bem no fundo, também uma questão
de classe (AHMAD, 1999, p. 114, grifo do autor).
165
Portanto, prescindir da determinação econômica, sucede o abandono da crítica ao
capitalismo e de qualquer possibilidade de superá-lo. “No processo, as críticas ao capitalismo
também são separadas de qualquer necessidade de uma política de classe operária”
(AHMAD, 1999, p. 114). Não obstante, sendo as diferenças de classe preponderantes na
compreensão de cultura no processo de produção capitalista, percebemos a diferença radical
na concepção de cultura presente nos artigos analisados. Nesses, a cultura apresenta-se como
categoria central idealizada sem nexo com a realidade social, uma entidade exterior ao
homem que se apodera de seu corpo e por meio dele expressa seus signos e significados,
expressa uma identidade indígena construída em relação às especificidades culturais
indígenas.
Tão enraizado nas determinações econômico-políticas encontra-se a cultura, e de
forma tão relacionada aos meios de produção, que o contato com a sociedade capitalista
trouxe as mais profundas mudanças nas sociedades indígenas. Em sua pesquisa sobre o
multiculturalismo e a interculturalidade nas propostas para a educação escolar indígena,
Faustino (2006) evidencia que, o contato com a sociedade colonizadora/exploradora levou a
mudanças nas condições históricas para as populações indígenas no Paraná.
É possível constatar que, em sua maioria, os artigos celebram as legislações propostas
no âmbito da educação escolar indígena, e a preocupação vai ao encontro do que expõe o
RCNE/Indígena “[...] é preciso que os sistemas educacionais estaduais e municipais
considerem a grande diversidade cultural e étnica dos povos indígenas no Brasil” (BRASIL,
1996, p. 12) sem, no entanto, evidenciar que o direito à diferença, à autonomia, à cidadania,
provém dos princípios fundantes do liberalismo que susteta a sociedade capitalista.
Enfim, encontramos nos artigos definições que discutem a necessidade, ou não, da
educação física na formação e no magistério indígena, a escola indígena como lócus de
reforço das identidades, ambiente de formação do indivíduo como sujeito de sua história,
autodeterminada e participação política. Ideais de uma educação intercultural que respeita à
diversidade, bem como práticas esportivas como processo civilizador que alteram a
identidade e o comportamento indígena. E, diante de tão diverso constructo de ideias e
concepções marcamos a necessidade de discutir: o direito indígena à diversidade, sob a forma
de participação cidadã nas decisões que concernem às políticas para as populações indígenas,
qual é a emancipação desejável aos indígenas; e ainda, que concepção de educação pode ser
pensada para educação escolar indígena, e seus desdobramentos na educação física nesta
escola, bem como a educação que desejam essas populações.
166
4.3. O Multiculturalismo e a Interculturalidade como fundamentos de uma educação
para a diversidade: o contexto histórico que não se relata
Conforme Faustino (2006), o ideário do multiculturalismo e da interculturalidade é
um discurso dominante que vem se consolidando na educação escolar indígena no Brasil a
partir do início dos anos de 1980 quando a UNESCO patrocinou um evento no México
intitulado Conferência Mundial do México sobre Cultura e Desenvolvimento
(FAUSTINO, 2006, p. 16). Tanto um como o outro, são termos que foram elaborados em
diferentes contextos ocidentais e com fins específicos.
O multiculturalismo é o termo que reconhece oficialmente a existência de grupos
culturalmente diferentes em um dado país. Sua utilização como política pública, começou
como estratégia de governo no Canadá, com fins de evitar um movimento separatista na
década de 1960 tendo em vista o objetivo de aliviar tensões raciais entre os dois grupos
majoritários, os anglófanos e francófanos, bem como desenvolver economicamente o país em
um contexto de crise econômica que articulou um plano de atração de investimentos
internacionais com uma ampla propaganda de respeito aos estrangeiros. Elaborou-se uma
reforma constitucional que contemplou questões multiculturais nas quais os indígenas
(aborígenes e nativos canadenses) adquiriram direitos à cidadania e tiveram suas línguas
maternas constadas nos currículos escolares e em materiais didáticos dos quais se retiraram
ideias preconceituosas e estereotipadas a respeito desses grupos populacionais.
Paralelo a esse contexto, nos Estados Unidos eclodiram movimentos sociais nos anos
de 1960: movimento negro, movimento feminista e movimentos pacifistas que
reivindicavam, por exemplo, o fim das intervenções bélicas e da Guerra do Vietnã. Com o
intuito de enfrentar essas reivindicações, o governo estadunidense encomenda estudos e, nos
moldes do Canadá, passa a implementar uma política multicultural baseada em reformas
legais e ações afirmativas, visando á inclusão, criação de cotas, combate ao racismo,
segregacionismo, machismo. Estas ações criaram “[...] espaço para as discussões sobre
diversidade cultural, linguística e identitária, mobilizando os centros decisórios do governo
em torno de projetos que possibilitassem o controle dos conflitos” (FAUSTINO, 2006, p. 79).
Seguiu-se de investimentos em estudos universitários (McCARTHY, 1993), elaboração e
divulgação de conceitos ligados ao multiculturalismo.
167
Já o conceito interculturalidade foi elaborado e adotado na Europa, nos fins dos anos
de 1970 com o objetivo de orientar uma política governamental para o tratamento da
imigração (CUCHE, 1999), tratar com os imigrantes que afluíam dos países pobres em
direção aos países industrializados em busca de trabalho e melhores condições de vida.
Embora alguns autores diferenciem os termos, ambos frequentemente aparecem juntos e com
significados semelhantes. O multiculturalismo é colocado como uma política de
reconhecimento às diferentes culturas presentes em um mesmo país, ao passo que
interculturalidade se refere à política de diálogo entre diferentes culturas (FAUSTINO, 2006).
Esse ideário foi disseminado como política de atendimento aos movimentos sociais e,
ambos os termos têm na escola uma importante aliada à medida que objetiva preparar jovens
e crianças para viver em uma sociedade que reconhece a diversidade cultural. É interessante
notar que no Brasil, como demonstra Faustino (2006), anteriormente à política de reforma
curricular postulada pelo MEC – Ministério da Educação, nos anos de 1990, “[...] não se
encontravam os termos multiculturalismo ou interculturalidade na literatura no Brasil, o que
denota estarem ausentes das demandas dos movimentos sociais” (FAUSTINO, 2006, p. 108).
Explica-nos, também a autora, que nesse período a formulação de uma política de diversidade
cultural contou com variadas frentes, e em 1996 um seminário internacional promovido pela
Secretaria dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça tratou de discutir as
possibilidades de se adaptar as políticas do multiculturalismo norte-americano à realidade
brasileira.
Esses termos acompanharam as agendas internacionais de reformas educacionais para
as minorias étnicas, e conceitos como interculturalidade, diversidade e pluralidade
democráticas foram incluídos nas políticas públicas (FAUSTINO, 2006; MONTE, 2000). Por
parte dos pesquisadores latino-americanos e brasileiros o interesse por esses temas e sua
introdução na política educacional latino-americana iniciou-se nos anos de 1990.
Silva (2012), ao estudar o racismo115
como uma expressão da forma moderna de
alienação explica que “[...] o multiculturalismo apregoava o fim das ‘amplas coalizões
sociais’ e o inicio de uma era em que só restassem as organizações e movimentos específicos’
115
O autor objetiva delinear fundamentos ontológico-materialistas para pensar o racismo em sua dimensão
essencial. Sua hipótese é a de que “[...] o racismo, particularmente aquele apoiado em preconceitos contra os
indivíduos negros e mediante teorias raciais, expressa uma forma moderna de alienação efetivamente existente
na realidade social em decorrência de uma base objetiva: a exploração do trabalho escravo, que impõe limites ao
desenvolvimento dos indivíduos negros enquanto integrantes do gênero humano” (SILVA, 2012, p. 12). Para
desenvolver seu pensamento de fundamento ontológica-materialista o autor discute importantes categorias
filosóficas, com base em autores como Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895), Georg Lukács
(1885-1971), István Mészáros (1930), e outros.
168
que lutassem individualmente pelos interesses particulares.” O autor afirma que o
multiculturalismo em relação ao campo do conhecimento, “[...] prega o abandono das
categorias da totalidade e da universalidade e reduz seus estudos à particularidade de grupos
ditos minoritários, dentre os quais o de maior relevância é ligado às relações étnico-raciais”
(SILVA, 2012, p. 11).
Propor a tolerância para com as minorias raciais e étnicas é a estratégia multicultural,
dos seguimentos dominantes da sociedade, para omitir o fato de que os problemas do racismo
e aversão aos estrangeiros, ou ainda questões ligadas à língua e etnia, são prioritariamente
problemas de ordem de classe. O principal foco do multiculturalismo é a educação, “[...] pois
a escola recebe com entusiasmo a ideia de igualdade para todos e de combate à discriminação
e ao racismo sem refletir, muitas das vezes, sobre quais bases esse anti-racismo foi construído
(FAUSTINO, 2006 p. 84).
Impulsionadas por teóricos liberais como Will Kymlicka (1996), o que tem
centralidade no debate do multiculturalismo e da interculturalidade é a questão da igualdade e
diferença, a possibilidade de ser igual sendo diferente. Faustino (2006) aponta que essa ideia
é herança da tradição de igualdade jurídica dos tempos das revoluções burguesas contra a
sociedade feudal. Sobretudo na França, expressou-se na Declaração dos Direitos Humanos,
abarcando os direitos à liberdade de crença, de decisão, de associação, de pensamento e de
expressão. Em suma é a ideia ocidental burguesa de cidadania que pode abranger a todos sem
interferir negativamente nos interesses e relações econômicas.
Consolidadas as bases capitalistas de produção, a cidadania e democracia burguesas
galgaram os diferentes discursos ao longo da era capitalista. Nas décadas finais do século
XX, as bandeiras da democracia se estenderam à inclusão social, ao reconhecimento e
manutenção da diversidade cultural.
4.4 Escola indígena e a formação para a Cidadania e Emancipação
Nos artigos que tomamos como objeto de estudo, é recorrente o discurso de formar o
indivíduo sujeito de sua história, para uma prática social consciente, autodeterminada,
com participação e decisão política, ou ainda que, a educação intercultural possibilita o
respeito à diversidade, a aprendizagem com o outro, desvelando os valores excludentes.
Encontramos também a defesa da ideia de que elementos da sociedade não-indígena como o
169
esporte, por exemplo, precisam ser apresentados aos indígenas respeitando a autonomia
indígena, problematizando as consequências de sua inserção nas comunidades, para que
os indígenas possam fazer escolhas conscientes sobre o seu uso.
Fundados nas concepções de educação intercultural e no multiculturalismo, baseados
nas declarações de direitos humanos, nos direitos dos povos indígenas, entre outros
documentos e políticas, norteadores da educação escolar indígena, para aqueles autores, os
fins últimos dos direitos indígenas remetem a uma escola que valorize suas culturas, que
respeite as diferenças e possibilite a eles tomar consciência dos costumes e das práticas
sociais da “sociedade envolvente”, para somente então decidir que aspectos dessas práticas
são interessantes para suas comunidades. Em suma o papel da escola, na perspectiva da
maioria dos trabalhos analisados é formar um indígena cidadão, que possa participar das
formulações políticas da sociedade não-indígena que afetarão diretamente suas comunidades.
Para nos posicionarmos quanto aos direitos à cidadania e quanto às concepções de
educação escolar indígena, primeiramente, nos baseamos nas contribuições de Tonet (2002;
2005; 2007). Esse autor, ao argumentar sobre a problemática dos Direitos Humanos, utiliza o
termo “[...] com o sentido de direitos básicos, de direitos mais elementares, de direitos
considerados os mais fundamentais” (TONET, 2002, p. 63). Fundamentais, porque
pressupõem o homem como portador de uma natureza anterior ao seu estado de sociedade,
concepção esta que remonta ao momento histórico de revolução burguesa de combate à
sociedade feudal.
A cidadania, como expressão dos direitos humanos hoje, é aquela de origem moderna,
com base nos direitos humanos universais. Tonet (2005), explica que representada por Kant,
Hobbes, Locke, Rousseau e outros, a teoria liberal da cidadania parte do pressuposto de que
todos os homens são iguais e livres por natureza e que a desigualdade social é resultado da
busca pela realização pessoal. “Desse modo, a desigualdade social era considerada legítima e
constitutiva do mundo humano porque fruto do exercício da própria liberdade natural”
(TONET, 2005, p. 81). Daí a necessidade dos homens se organizarem em sociedade e
instituírem um elemento inibidor, o Estado, capaz de garantir que determinados limites
fossem respeitados, salvaguardando a sobrevivência de todos.
Somos alertados por Tonet (2005) que aqueles autores não teorizavam sobre
cidadania, entretanto, lançaram bases para a constituição futura desta. A igualdade e a
liberdade naturais, ao longo de um processo histórico concreto, enraizaram a concepção de
cidadania e esta, por sua vez, “[...] sempre foi vista como um instrumento, não para erradicar,
mas para equilibrar as desigualdades sociais” (TONET, 2005, p. 81). Sua expressão maior, os
170
direitos humanos, “[...] foram oficialmente proclamados, pelas primeiras vezes, nas
constituições dos Estados Unidos e da França, entre 1776 e 1789” (TONET, 2002, p. 63).
Em sua obra intitulada Sobre a Questão Judaica116
, Marx (2010) fez uma análise da
Constituição dos Direitos Humanos de 1791 e de 1793, e explica o que são tais direitos:
“Antes de tudo constatemos o fato de que os assim chamados direitos humanos, [...], nada
mais são do que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta,
do homem separado do homem e da comunidade” (MARX, 2010, p. 48, grifo do autor). O
que marca a diferença radical na compreensão de Marx? Como pode esse autor afirmar que
os chamados direitos naturais e imprescindíveis – que para os autores da teoria liberal da
cidadania são a igualdade, a liberdade, a propriedade e a segurança – não são naturais, mas
socialmente construídos?
Ao examinarmos essas afirmações não podemos prescindir, como afirma Tonet
(2005), que “para Marx [...] a crítica não tem um sentido depreciativo e nem sequer um
sentido apenas lógico ou epistemológico”, antes, é o exame da lógica do processo social
como produto da atividade humana, apreendendo “[...] a sua natureza própria, suas
contradições, suas tendências, seus aspectos positivos e negativos, suas possibilidades e
limites, tendo sempre como parâmetro os lineamentos mais gerais e essenciais do processo
social como um processo de autoconstrução humana” (TONET, 2005, p. 89).
Essa forma de entendimento do processo social, explica-nos Tonet (2005),
possibilitou a Marx compreender que durante muito tempo o trabalho117
não produzia mais
que o necessário para a subsistência humana imediata. Os homens viviam em comunidades,
cujos meios de produção não eram propriedade privada de nenhum de seus integrantes, não
existindo contraposição entre os interesses particulares e coletivos, não havia produção
116
Marx em seu artigo Sobre a Questão Judaica, publicado em 1844, apresenta uma crítica dos limites da
Revolução Francesa e da retórica dos direitos do homem (BENSAÏD, 2010). Trata-se de uma resposta à Bruno
Bauer e sua publicação, A Questão Judaica, nos Anais Alemães em 1842. Bauer afirma que na sociedade de
seu tempo a emancipação dos judeus exige a emancipação da teologia, para acessar a cidadania do Estado
constitucional, os judeus tinham de renunciar sua religião. Marx traz à tona a necessidade de uma “[...] crítica da
política, do direito, do Estado, da cisão entre a sociedade civil e o Estado, do salto mortal entre o mundo do
egoísmo privado e o do interesse geral ilusório” (BENSAÏD, 2010, p. 11). Para Marx a questão é que não há
emancipação pura e simples, é preciso esclarecer de que emancipação se trata: se emancipação política, ou
emancipação humana real. 117
O trabalho, aqui referido, é o trabalho enquanto mediador entre homem e natureza, o trabalho enquanto
fundamento ontológico do ser social, enquanto elemento social que possibilitou o desenvolvimento humano
(ENGELS, 2005; MARX, 1982a; TONET, 2007). Compreendemos que o trabalho tem diferentes aspectos e que
está relacionado ao modo economico de produção, assim como a forma trabalho na sociedade escravista é
diferente da forma trabalho na sociedade feudal, bem como ambas são diferentes da forma trabalho na sociedade
capitalista. Atualmente é necessário compreender de que categoria “trabalho” estamos tratando, como nos alerta
Mello (2009, p. 87) atualmente “se confunde “trabalho”, categoria fundante do ser social e “trabalho abstrato”,
aquele relacionado à produção de mais-valia e próprio da sociabilidade capitalista”.
171
excedente para que fosse privadamente apropriada. A produção de excedentes abriu
possibilidades para o surgimento da propriedade privada dos meios de produção. Com o
desenvolvimento da produtividade do trabalho, houve a divisão social do trabalho, como
consequência, “[...] à apropriação, por parte de alguns, da força de trabalho coletiva e à
apropriação particular do produto do trabalho, a propriedade privada” (TONET, 2005, p. 94).
Essa produção de excedentes não criou a sociedade de classes como uma relação de causa e
efeito, mas possibilitou o surgimento da escravidão que engendrou historicamente a
propriedade privada dos meios de produção. Possibilitando, então, a gênese das classes
sociais, das contradições entre proprietários e não-proprietários, entre o interesse particular e
o interesse coletivo. “Como consequência, a necessidade do Estado, com todo o seu aparato
jurídico-político, com a finalidade primordial de defender os interesses da propriedade
privada” (TONET, 2005, p. 94).
A diferença no entendimento de Marx, é que para ele a origem dos direitos
fundamentais não está em uma natureza humana a priori, mas nas relações que os indivíduos
concretos estabelecem entre si na produção econômica (TONET, 2002). É, portanto, esse o
entendimento que permite a Marx (2010) estabelecer a distinção entre emancipação política e
emancipação humana. O autor analisa os direitos fundamentais da liberdade, da propriedade,
da igualdade e da segurança. O direito à liberdade equivale ao direito de não fazer nada que
prejudique nenhum outro homem, o limite é o isolamento, “[...] o direito humano à liberdade
não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na
separação entre um homem e outro. Trata-se do direito a essa separação, do direito do
indivíduo limitado, limitado a si mesmo” (MARX, 2010, p. 49, grifo do autor).
Com relação ao direito à propriedade privada, afirma que este equivale a desfrutar a
seu bel prazer de seu patrimônio, sem levar em consideração os outros e a sociedade. “Aquela
liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade
burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas ao
contrário, a restrição de sua liberdade.” Assim como o direito a igualdade é a igualdade de
liberdade, “[...] cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesmo”
(MARX, 2010, p. 49). Para Marx, o direito humano à segurança, “[...] é o conceito social
supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da
sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de
seus direitos e de sua propriedade” (MARX, 2010, p. 50).
Marx, historicamente analisou os fundamentos dos direitos humanos, relacionando-os
ao processo social concreto, e pôde concluir que estes são formas de assegurar a reprodução
172
da sociedade burguesa. Em seu entendimento os indivíduos não antecedem a sociedade, mas
pelo contrário, o indivíduo é resultado de suas relações em sociedade.
Tonet (2007) ao analisar essa compreensão explica que: “A própria natureza dos
indivíduos é resultado das suas relações sociais. De modo que os indivíduos não nascem
egoístas, mas se tornam egoístas ou solidários dependendo das relações reais que
construírem” (TONET, 2007, p. 44).
Assim, na conceituação liberal da cidadania, que é a predominante (TONET, 2007;
2005), ser cidadão, em sua forma mais plena, é ser sujeito de direitos, o que permite a
participação em uma comunidade política, organizada por um Estado democrático, onde
todos são considerados iguais perante a lei. No entanto, como vimos, com base nos
estudiosos do tema, tal concepção está relacionada ao indivíduo/cidadão burguês,
historicamente determinado pela sociedade capitalista, o que por sua vez, pressupõe que tem
de ser compreendido em relação a esta.
Embora os movimentos indígenas latino-americanos não contestem formalmente a
existência do Estado, cidadania não é um conceito oriundo das comunidades indígenas de
nenhuma parte do mundo, nem um conceito cujas origens remontam os movimentos dos fins
do século XX. Dessa forma, o termo cidadão indígena, utilizado nos artigos por nós
analisados, refere-se à conceituação liberal. A cidadania moderna refere-se aos direitos
humanos conquistados com a revolução burguesa, cuja expressão mais elevada foi a
Revolução Francesa, que transformou a sociedade moderna, que destituiu os elementos
feudais, emancipou politicamente o homem, derrubou o poder do soberano feudal, e alçou os
assuntos do Estado à condição de assuntos de toda a nação. “Ela [a revolução burguesa]
decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivíduos,
por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e espirituais que compõem o teor vital, a
situação burguesa desses indivíduos” (MARX, 2010, p. 52, grifo do autor).
Esses indivíduos livres e iguais podem então, na sociedade burguesa, gozar e dispor
de seus bens, como assegura a declaração dos direitos humanos em suas mais variadas formas
de documentos e leis e Constituições, podem inclusive vender e comprar força de trabalho
sob a forma de produção capitalista. As qualidades de livres e iguais, diz Tonet (2007, p. 45),
“[...] serão a base para o desenvolvimento de todos os outros direitos – civis, políticos e
sociais – que compõem a cidadania, mesmo que se saiba que eles foram resultados de
duras lutas e não meras concessões da classe burguesa”.
O modo de produção capitalista em seu efetivo ato de compra-e-venda da força de
trabalho tem como resultado a produção da desigualdade social, portanto, a “[...] dimensão
173
democrático/cidadã é, ao mesmo tempo, expressão e condição da reprodução da desigualdade
social” (TONET, 2007, p. 45). Desta forma, o trabalhador assalariado, por mais que desfrute
de seus direitos assegurados de cidadão, não deixa de ser explorado pela dominação
capitalista e não é plenamente livre, nem sujeito consciente e autônomo de sua história.
Assim como o cidadão indígena que, ainda que possua acesso aos direitos do Estado
democrático, não é plenamente livre, nem sujeito consciente e autônomo de sua história
estando fadado ao desenvolvimento do conjunto das relações sociais capitalistas.
A cidadania, por mais aperfeiçoada e desenvolvida que seja, não pode erradicar a
desigualdade social, nem permitir aos indivíduos serem plenamente livres. Não se trata de
desqualificar a cidadania e a possível emancipação política, entendemos que a luta pelos
direitos é importante. Trata-se, entretanto, de diferenciar emancipação política de
emancipação humana (MARX, 2010; TONET, 2002, 2005; 2007).
A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega
a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a
forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente
até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de
emancipação prática. (MARX, 2010, p. 41, grifo do autor).
A emancipação humana em geral da qual trata Marx (2010), tem relação com a forma
de trabalho que possibilitará tal emancipação, em uma forma de sociabilidade radicalmente
diferente, e plenamente livre. Tonet (2007, p. 46) com base em Marx, explica que essa forma
de trabalho, é o trabalho associado, ou livre associação dos produtores associados. Explica
que é uma forma de trabalho que “[...] se caracteriza pelo controle livre, consciente, coletivo
e universal dos trabalhadores sobre o processo de produção e distribuição da riqueza.” A
produção tem por objetivo o atendimento das necessidades humanas. “Esta forma de trabalho
também terá como consequência a eliminação do trabalho assalariado, do capital, da
mercadoria e seu fetichismo, das classes sociais e, portanto, da desigualdade social e da
exploração e da dominação do homem pelo homem” (TONET, 2007).
Sob aspectos qualitativamente novos, essa forma de trabalho só é possível a partir de
um desenvolvimento das forças produtivas, que permitam a produção de bens suficientes para
o atendimento das necessidades de todos. O desenvolvimento das forças produtivas e o
trabalho associado de todos os homens possibilitará a redução do tempo necessário de
trabalho para produzir o suficiente para a comunidade humana. Em comunidade significa,
portanto,
174
[...] que a humanidade terá se tornado uma autêntica comunidade humana;
que todos terão acesso aos bens, materiais e espirituais, necessários ao seu
pleno desenvolvimento; que as relações entre indivíduo e sociedade, sem
deixar de estar permeadas por conflitos, serão muito mais harmoniosas, o
mesmo acontecendo com as relações entre os homens e a natureza (TONET,
2007, p. 48, grifo do autor).
De tal modo que, a transformação radical da sociedade capitalista e o estabelecimento
da relação socialista de trabalho associado, por meio do desenvolvimento das forças
produtivas é a possibilidade de satisfação das necessidades de toda a humanidade por meio da
utilização dos recursos naturais do planeta de forma consciente e controlada, pois, para o
homem, a relação com a natureza é imprescindível para produzir a vida.
Pensar uma sociedade comum humana, não é pensar num paraíso utópico, de
liberdade absoluta, homogênea e sem problemas. Antes, a construção de tal sociedade está
colocada no plano das possibilidades118
de se construir uma alternativa à sociedade capitalista
que subsiste da exploração do homem pelo homem. A sociedade capitalista, como tal, foi
produzida pelos homens em condições históricas dadas, foi uma resposta à sociedade feudal
decadente. No interior da sociedade capitalista gestam-se as possibilidades de superá-la e
construir uma nova sociabilidade radicalmente diferente. A possibilidade está dada, cabe aos
homens em um processo consciente e revolucionário fazê-la, ou não.
Diferentemente da concepção de emancipação humana apresentada, o
multiculturalismo e a interculturalidade cujas bases fundamentam a atual política da educação
escolar indígena e grande parte das discussões acadêmicas sobre o tema, argumenta-se sobre
a realização máxima da cidadania e direitos humanos, sem alterar a lógica da sociedade
capitalista. Nos artigos analisados a questão da educação intercultural é pensada como aquela
que possibilita o respeito à diversidade, a aprendizagem com o outro, desvelando os
valores excludentes. Destaca-se o entendimento de educação por meio de jogos e
brincadeiras tradicionais que se baseia em superar dificuldades, e desenvolver valores
cooperativos e de evolução social. São concepções que atribuem função à escola e aos
professores, sem discutir o que efetivamente é a educação e a sua especificidade na escola
indígena.
118
Os autores que nos ajudaram na compreensão da possibilidade de superação da sociedade capitalista, nos
ajudam no entendimento do campo da possibilidade, bem como das outras facetas que envolvem a emancipação
humana, um assunto complexo e que não pode ser encerrado aqui. Como nosso objetivo é demarcar nossa
compreensão de cidadania, para situar a possibilidade da educação escolar indígena enquanto espaço de
formação do cidadão indígena, evidenciamos ser importante o entendimento do próprio Marx (1982a; 1982b;
2006; 2011), de Marx e Engels (2007), de Tonet (2002, 2005, 2007), dentre outros.
175
Os autores, preocupados em salvaguardar a cultura indígena e as particularidades da
diversidade cultural, acentuam os perigos do contato com a “sociedade envolvente”, por
vezes criticam a escola como elemento externo à cultura indígena, integrador e com objetivo
de impor a cultura não indígena sobre a cultura indígena sem, no entanto, discutir a origem e
os objetivos da escola, bem como suas contradições, em uma sociedade de classes. Afirmam
a necessidade dos indígenas fazerem escolhas conscientes, asseverando que a educação, os
esportes, as práticas corporais, etc... precisam ser oportunizados aos povos indígenas
respeitando sua autonomia, respeitando sua diversidade, para que possam compreender os
processos que poderão afetar suas comunidades.
Não discutem os problemas atuais que a educação enfrenta na própria sociedade
capitalista e sequer se posicionam quanto ao que compreendem por educação. Não
relacionam a educação escolar indígena ao contexto maior do sistema educacional brasileiro,
das políticas nacionais e internacionais para a educação e da reforma neoliberal que alterou,
simultaneamente, todas as constituições latino-americanas forçando-as a reconhecer os
direitos das minorias. Evidenciam apenas a garantia legal da educação escolar indígena, e
seus direitos específicos sem discutir o contexto ocidental/internacional em que foram
elaborados. Restringindo-se ao âmbito do direito, como se nos outros aspectos, econômicos e
sociais, a educação estivesse harmoniosamente consolidada e livre de problemas, impõem os
deveres que a escola indígena, o professor indígena e a comunidade indígena devem cumprir.
O direito à escola intercultural e diferenciada está relacionado ao contexto de
divulgação da agenda de reformas dos organismos multilaterais que afetaram as políticas
internacionais para educação, inclusive no Brasil. Faustino (2006, p. 102) evidencia que nesse
período, “[...] a crise instaurada nas últimas décadas do século XX impulsionou as bandeiras
dos direitos humanos e da cidadania incluindo a discussão sobre inclusão social concomitante
ao reconhecimento e direito à manutenção da diversidade cultural”. Nos alerta também que
legitimar a diferença enquanto desigualdade é uma estratégia bem sucedida do pensamento
conservador.
As bases teóricas multiculturais e interculturais imputam à escola um caráter de
promotora da igualdade, omitem as questões reais de exclusão social e, “[...]
ideologicamente, quer fazer acreditar que, frequentando a escola, dialogando e aprendendo a
conviver com a diversidade, os pobres e diferentes terão suas vidas transformadas na medida
em que esta lhes abrir a porta de acesso ao mundo da produção e das rendas” (FAUSTINO,
2006, p. 104). A escola é tomada como aquela que irá ensinar o convívio em sociedade, o
176
reconhecimento da diversidade, o respeito ao outro. Esta concepção de educação, afirma
Faustino (2006),
[...] abstraindo o real discursa sobre a necessidade da inclusão social por
meio da educação – que agora pode contar com o auxílio da cultura –, sendo
chamada a acabar com a discriminação, a violência, com a pobreza e
promover a igualdade entre todos, mas se não conseguir atingir estes
objetivos, deverá, pelo menos, ensinar aos pobres e diferentes, excluídos, à
convivência pacífica sendo tolerantes, vivendo em paz e acreditando neste
sistema que os descartou, mas promete que se eles abraçarem o
multiculturalismo e a interculturalidade poderão ser re-incluídos
(FAUSTINO, 2006, p. 105).
O remédio para todos os males, a educação é assim chamada a combater a
desigualdade, o preconceito, a discriminação, a pobreza e a miséria que, não são problemas
gestados no interior da escola. É realmente esse o papel da educação? Formar valores
humanistas, que garantam uma convivência democrática? Formar para a participação cidadã?
Tem ainda a escola, o papel de combater o preconceito, a discriminação, ensinar aos pobres e
diferentes ser tolerantes e pacíficos, acreditando que através da educação terão acesso ao
mundo de produções e renda?
Não concordamos com essa visão utilitarista da educação. Primeiramente, para
estabelecermos nossa compreensão de educação escolar – e suas especificidades como a
educação escolar indígena, educação física escolar – é preciso definir educação.
Partimos do pressuposto de que o homem é um ser social, e que para além de sua
individualidade biológica, para tornar-se homem precisa conviver em sociedade e
desenvolver suas qualidades e capacidades humanas a partir deste convívio.
Leontiev (1979), com base no pensamento de Marx e Engels, explica que esta
concepção compreende que “[...] o homem é um ser de natureza social, que tudo o que tem
de humano nele provém da sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela
humanidade” (LEONTIEV, 1979, p. 261, grifo do autor). Isto não quer dizer que o homem
pode prescindir da ação das leis biológicas, antes que o desenvolvimento do homem é
determinado por outras leis, as sócio-históricas. “Podemos dizer que cada indivíduo aprende
a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em
sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento
histório da sociedade humana” (LEONTIEV, 1979, p. 267, grifo do autor).
177
Adquirir119
o patrimônio desenvolvido historicamente, é tornar-se humano. Este
processo envolve a aquisição das aptidões humanas que estão postas nos objetos da cultura
material e espiritual, e, segundo Leontiev (1979), essas não são dadas nos fenômenos.
Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, ‘os
órgãos da sua individualidade’, a criança, o ser humano, deve entrar em
relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens,
isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a
atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo
de educação (LEONTIEV, 1979, p. 272, grifo do autor).
Temos, portanto que, o processo de transmitir os resultados do desenvolvimento
histórico da humanidade às gerações seguintes e possibilitar o progresso histórico é a
educação. Entretanto, educação não se reduz a esta compreensão, e pode ter diferentes
formas. Leontiev (1979) explica que, “[...] na origem, nas primeiras etapas da sociedade
humana, como nas crianças mais pequenas, é uma simples imitação dos atos do meio, que se
opera sob o seu controle e com a sua intervenção”, mas a educação, continua o autor, “[...]
depois complica-se e especializa-se, tomando formas tais como o ensino e a educação
escolares, diferentes formas de formação superior e até a formação autodidata” (LEONTIEV,
1979, p. 272, grifo do autor).
Não estamos afirmando que é a educação que movimenta o progresso histórico, mas
que ela é o processo que permite aos homens transmitirem as aquisições da cultura às
próximas gerações. Estamos refletindo aqui sobre “a natureza essencial120
– certamente
histórica – da educação e não sobre a sua função em determinada forma de sociabilidade ou
em um específico momento histórico” (TONET, 2005, p. 211).
Educação, neste sentido, é apropriar-se da produção cultural humana, e neste processo
tornar-se humano, trata-se de “[...] apropriar-se do que já existe e de, ao mesmo tempo,
119
Karl Marx forneceu importantes compreensões acerca natureza social do homem e do seu desenvolvimento
histórico. Fundamentados na compreensão marxiana, Vigotski, Luria, Leontiev, e seus continuadores, puderam
desenvolver a Teoria Histórico Cultural, que possibilita análises sobre o processo de desenvolvimento psíquico
do homem com base nas leis sócio-históricas. 120
Sobre a natureza essencial da educação, Tonet (2005) evidencia que é comum a discussão com ponto de
partida na sociedade capitalista ou, ao menos, a sociedade de classes e não a estrutura ontológica do ser social.
“A natureza assim concebida é então vista como sendo a natureza essencial da educação. É preciso, porém,
deixar claro que uma coisa é a natureza essencial de determinado fenômeno social; outra coisa é o seu papel em
determinado momento do processo social” (TONET, 2005, p. 211). Sobre a ontologia, Mello (2009) sintetiza
que: “[...] recuperar a ontologia materialista, formulada por Marx e Engels e, retomada por Lukács, não significa
um confronto de discursos ou de idéias, e sim a necessidade de analisar objetivamente a prática social para
compreender o processo de desenvolvimento do ser humano, seus nexos, suas leis históricas [...]”, nos alerta
ainda que, “A compreensão das leis históricas não significa incorporar à sociedade as leis da natureza, mas
compreender os nexos de desenvolvimento do ser social” (MELLO, 2009, p. 49-50).
178
recriá-lo e renová-lo, configurando, desse modo, o próprio indivíduo em sua especificidade”
(TONET, 2005, p. 214). É o adaptar-se à cultura, aos instrumentos e às operações que
historicamente estão incorporadas nestes. Essa aquisição segundo Leontiev (1979) “É ao
mesmo tempo um processo de formação ativa de aptidões novas, de funções superiores,
‘psicomotoras’, que ‘hominizam’ a sua esfera motriz”. O autor explica que esta aquisição
aplica-se “igualmente aos fenômenos da cultura intelectual” (LEONTIEV, 1979 p. 269).
A adaptação é esse processo educacional no qual o indivíduo torna-se homem, o
indivíduo adapta-se às propriedades e aptidões historicamente construídas pela espécie
humana. Neste sentido, nenhum ser humano torna-se homem sozinho, tal qual uma mônada
isolada, mas desde o nascimento, o contato com a linguagem e com os demais processos de
desenvolvimento humano estão imbricados nas diversas relações sociais.
O ser social, explica Tonet (2005, p. 215), “[...] é uma unidade integrada por dois
momentos: o da individualidade e o da genericidade. De modo que a constituição do
indivíduo como membro do gênero humano é indissociável da reprodução deste último.”
Portanto, a reprodução do ser social, do homem, estará predominantemente marcada pela
reprodução do gênero, ou seja, a educação do indivíduo, seu tornar se homem, estará marcado
pela reprodução da totalidade social.
Portanto, pensar na educação em uma dada sociedade, envolve relacioná-la à
totalidade histórica e assim compreenderemos a educação institucionalizada, ou seja,
educação escolar. Deste modo, já alertados por Leontiev (1979) de que a educação assume
diversas formas, institucionalmente ela tem servido aos interesses da totalidade social
capitalista, como afirma Mészáros121
(2010):
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu –
no seu todo – ao propósito de não só fornecer conhecimentos e o pessoal
necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como
também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses
dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da
sociedade, seja na forma ‘internalizada’ (isto é, pelos indivíduos
devidamente ‘educados’ e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e
uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (MÉSZÁROS,
2010, p. 35, grifo do autor).
121
O filósofo húngaro István Mészáros, é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Foi
assistente de Georg Lukács, um dos maiores pensadores marxistas, no Instituto de Estética da Universidade de
Budapeste. Atualmente é professor emérito da Universidade de Sussex (Inglaterra). “Mészáros orienta sua obra
por uma demanda de seu mestre: reescrever O capital de Marx – trabalho que empreendeu em seu Para além
do capital, hoje leitura indispensável para se entender o sistema de relações capital-trabalho, seus limites, suas
contradições, seu movimento e seu horizonte de superação” (SADER, 2010).
179
Por conseguinte, a educação relacionada à totalidade capitalista, opera no sentido de
transmitir conhecimentos e formar pessoas necessárias ao processo de produção desta
sociedade. Tonet (2005) explica que, como o eixo do processo social é a produção econômica
capitalista, a educação passou a ocupar um lugar especial, pois as classes trabalhadoras agora
precisam de conhecimentos e habilidades que devem ser apreendidos fora do âmbito
específico do trabalho. “Além disso, a transformação de todos os indivíduos em cidadãos e a
participação numa sociedade democrática exigem, por parte de todos, a apropriação de um
conjunto de elementos – ideias, conhecimentos, valores, comportamentos, habilidades, etc. –
adequados para o exercícios destas novas determinações” (TONET, 2005, p. 221).
Assim como as outras instâncias da vida social, a educação é afetada pelas
determinações gerais do capital e, integrada à totalidade dos processos sociais, funciona em
sintonia com as determinações educacionais gerais da sociedade. Sob o domínio do capital a
questão crucial, evidencia Mészáros (2010) “[...] é assegurar que cada indivíduo adote como
suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema”. Explica o filósofo,
que educação no sentido amplo do termo, “[...] trata-se de uma questão de ‘internalização’
pelos indivíduos da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social
juntamente com suas expectativas ‘adequadas’ e as formas de conduta ‘certas’, mais ou
menos explicitamente estipuladas nesse terreno” (MÉSZÁROS, 2010, p. 44). É a adoção das
“perspectivas globais da sociedade mercantilizada como inquestionáveis limites individuais”
(MÉSZÁROS, 2010, p. 45) às aspirações pessoais.
Entretanto, as instituições formais de educação são apenas uma parte do sistema
global de internalização, e quer os indivíduos participem ou não destas, “[...] eles devem ser
induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos
orientadores dominantes na própria sociedade, adequados a sua posição na ordem social, e de
acordo com as tarefas reprodutivas que lhes foram atribuídas” (MÉSZÁROS, 2010, p. 44). É
nesse sentido que a educação enquanto mediação para a reprodução social terá
predominantemente na sociedade de classes capitalistas, funções voltadas para a reprodução
das relações sociais dominantes (TONET, 2007). O que significa que uma revolução na
educação formal só é possível se as bases sociais sobre as quais está fundada, forem também
revolucionadas.
Segundo, Mészáros (2010) “[...] a educação formal não é a força ideologicamente
primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer
uma alternativa emancipadora radical”. Pois, sua função, continua explicando o autor, “[...] é
produzir tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por meio de
180
seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados.” Assim, não é possível
esperar que a educação formal abrace “a grande tarefa de nosso tempo, ou seja, a tarefa de
romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana” (MÉSZÁROS,
2010, p. 45, grifo do autor).
Entretanto a educação não está fadada a apenas contribuir para a reprodução do
capitalismo, esta não é sua única possibilidade (TONET, 2005; 2007). “Apenas a mais ampla
das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança
verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompam a lógica
mistificadora do capital” (MÉSZÁROS, 2010, p. 48). Longe de pensar em reformismos ou
reparos nas instituições formais, e para além do imobilismo ou acomodação, isso “[...]
significa realizar o que é possível122
ainda que pareça pouco, mas na direção certa” (TONET,
2007, p.32).
Realizar o que é possível na direção certa é ter por finalidade o objetivo evidente da
superação radical do capital e a consequente instauração de uma sociedade comunista. A
educação formal ou informal, ou seja, “[...], toda a atividade educativa, teórica e prática, que
pretenda contribuir para formar pessoas que caminhem no sentido de uma autentica
comunidade humana, deve nortear-se pela perspectiva de emancipação humana e não pela
perspectiva de construção de um mundo cidadão” (TONET, 2007, p. 33).
Portanto, a educação escolar indígena ou não-indígena tem sentido se, e somente se,
tiver por finalidade a educação com o objetivo de permitir que seus estudantes apropriem-se
da cultura humana, do patrimônio material e espiritual humano. Para, além disso, as
atividades educativas têm de estar voltadas para formar esses alunos com a perspectiva da
emancipação humana, e da construção de uma verdadeira sociedade humanizada que possa
superar radicalmente a sociedade capitalista. No âmbito da escola indígena sua participação
deve estar articulada com o objetivo da comunidade indígena, tendo como elementos a
apropriação do conhecimento tradicional da comunidade, bem como o acesso aos
conhecimentos humanos.
Essa concepção de educação nos permite pensar uma educação física para as escolas,
sejam elas indígenas ou não. Já indicamos que, o contexto dos anos 1980 gerou uma crise na
área da educação física e que, autores e pesquisadores manifestaram preocupações e
discussões acerca da especificidade do conhecimento, da legitimidade e da obrigatoriedade
122
Tonet (2007) discute a categoria da possibilidade, para tanto, retoma “O sentido atribuído por Aristóteles, [...]
segundo ele, o possível é um conjunto de determinações do objeto que podem ou não vir a se realizar”
(TONET, 2007, p. 32, grifo do autor). Podendo realizar-se ou não, dependendo de muitos fatores. Mas existe a
viabilidade em termos de amplitude, profundidade e prazos, sempre vinculada ao fim almejado.
181
dessa disciplina nas escolas (MELLO, 2009; CASTELLANI FILHO, 1999). Os diferentes
posicionamentos, críticos ou conservadores, acerca dessa disciplina resultam em proposições
pedagógicas. Dentre as concepções de educação física resultantes daquele período está a
“Crítico-superadora”123
(SOARES, et al., 1992), a qual tomamos como fundamento de nossa
concepção de educação física.
De inicio, os autores explicitam seu entendimento das “reais condições” em que
trabalha o professor de eduação física. Evidenciam, também, que compreendem a sociedade,
como uma sociedade de classes, trabalhadora e proprietária em que a luta dessas classes
possui interesses contraditórios. Afirmam que “[...] um projeto político-pedagógico
representa uma intenção, ação deliberada, estratégia. É político porque expressa uma
intervenção em determinada direção e é pedagógico porque realiza uma reflexão sobre a ação
dos homens a realidade explicando suas determinações” (SOARES, et al., 1992, p. 15).
No entendimento do Coletivo de Autores a educação física é a “[...] disciplina que
trata, pedagogicamente, na escola, do conhecimento de uma área denominada aqui de cultura
corporal” (SOARES, et al., 1992, p. 61). Os componentes dessa chamada cultura corporal são
formas de atividades historicamente construídas e figuram entre essas o jogo, o esporte, a
ginástica, a dança ou outras. A escola, “[...] na perspectiva de uma pedagogia crítica-
superadora aqui defendida, deve fazer uma seleção dos conteúdos da Educação Física”. E
essa seleção segundo os autores, deve exigir uma “[...] coerência com o objetivo de promover
a leitura da realidade” (SOARES, et al.1992, p. 63).
Compreendemos que o Coletivo de Autores é um ponto de partida para a prática
pedagógica da Educação Física escolar. Os professores, sejam indígenas ou não-indígenas,
devem conciliar suas atividades educativas balizados pela perspectiva de emancipação
humana, para que possam contribuir para formar pessoas que caminhem no sentido de uma
autentica comunidade humana.
O professor indígena Francisco Mário Kaxinawá assim resume esse assunto na escola
indígena, falando do futebol aponta que este, “é um divertimento dos povos do mundo
inteiro” (ABUQUERQUE, 2001, p. 4), e não apenas dos não-indígenas. Assim, também o
conhecimento humano acumulado, o patrimônio cultural material e espiritual humano,
também não é apenas dos não-indígenas, mas também dos indígenas, e ter acesso a esse
123
Tratamos aqui de “Coletivo de Autores” por que, foi assim que ficou conhecido o grupo de professores que
produziram a Metodologia do Ensino de Educação Física (SOARES, et al., 1992). Esse grupo foi composto
pelos seguintes autores: Valter Bracht, Lino Castellani Filho, Celi Taffarel, Carmen Lúcia Soares, Elizabeth
Varjal e Micheli Escobar; que além de apresentar esta concepção discute a especificidade desta disciplina.
182
patrimônio deve-lhes ser garantido pela escola. A história evidencia como esses povos foram
expropriados, marginalizados e exterminados. Bem como atesta, a situação atual dos povos
indígenas em ferrenha luta por demarcação de suas terras, pela sobrevivência, contra o
sistema capitalista. Portanto, a luta pela emancipação indígena, não pode se dar apenas no
âmbito de sua cultura, mas, parafraseando Marx (2010, p. 60), a emancipação social do
indígena equivale à emancipação da sociedade em relação ao capitalismo.
183
5. CONSIDERAÇOES FINAIS
Retomando a conversa sobre o que é futebol muitos professores externaram
que futebol não é apenas dos não-indígenas, “é um divertimento dos povos
do mundo inteiro” (Francisco Mário Kaxinawá). E também que “é uma
maneira que as pessoas em conjunto praticam um caminho de brincadeira
com regras que você tem direito de cumprir” (Manoel Sabóia Kaxinawá)
(ALBUQUERQUE, 2001).
Os estudos que empreendemos ao longo dessa pesquisa objetivaram compreender a
concepção que norteia os documentos propostos pelos organismos internacionais (DELORS,
1996; NAÇÕES UNIDAS, 2003) e pelo Estado brasileiro (BRASIL, 1998), relativos à
educação escolar indígena e à educação física. Objetivamos, também, apresentar e analisar a
produção científica do CONBRACE em suas edições de 2001 a 2011. Buscamos apreender se
as concepções de educação e de educação física presentes nesta produção convergem com a
perspectiva proposta naqueles documentos. Procuramos, portanto, a articulação destes objetos
em sua conjuntura histórica, social, econômica e política, entendendo sob um referencial
materialista histórico que, para a compreensão dos fenômenos é necessário o entendimento de
suas relações com o contexto histórico social maior.
Com base nesse referencial, entendemos que os homens ao agirem intencionalmente
sobre a natureza com a finalidade de produzir sua vida material, transformam a natureza – o
mundo – e em meio a esse processo são por ela transformados. Portanto as condições
humanas, as produções materiais, a sociedade e todos os resultados dessas transformações da
natureza e dos homens são determinações sócio-históricas.
Deste modo, a organização social capitalista se estruturou resultante das
determinações sociais, como respostas dos homens às necessidades que se produziam em
meio à sociedade feudal. A expansão marítima da sociedade de mercado, iniciada no século
XV, marcou a já inicialmente tendência capital para a mundialização, e possibilitou o
contato de praticamente todos os grupos humanos, engendrado por processos contraditórios
de lutas e conflitos de diferentes interesses de classe.
As sociedades ocidentais em meio a processos bárbaros abriram as rotas para o
Oriente e para as Américas expandindo seus domínios e sua influência social e cultural. Nas
Américas vimos que estes processos levaram as sociedades indígenas a situações de extrema
pobreza e de abandono. A perda de seus territórios tradicionais, transformados pela sociedade
colonial em enormes fazendas a serviço da acumulação capitalista, resultou, em muitos casos,
184
na perda de memórias, da língua e dos antigos modos de vida. O contato com os outros
grupos humanos, com outras formas de organização social, levou os povos indígenas a
transformar abruptamente seu habitual modo de vida.
Diferentes políticas foram elaboradas em resposta à situação dos indígenas, ora as
políticas visavam à guerra e o índio se constituía inimigo do projeto colonizador, ora visavam
a “integração” à sociedade capitalista por meio da conversão religiosa e a utilização dos
indígenas como mão-de-obra escrava. Havia, ainda, as políticas de branqueamento das
populações por meio do casamento com não-índios e ao longo dos 500 últimos anos de
contato as estratégias de dominação das populações indígenas perpassaram da catequese e do
trabalho forçado à valorização da língua e da cultura.
Compreendemos que, uma vez que o sistema capitalista tem por imanência a
expansão, e que em sua forma consolidada e moderna assentou em contato todos os povos do
mundo, não podemos afirmar que os indígenas estão à margem, ou estão aquém do sistema
capitalista, quando em realidade o capital é a forma geral dominante do processo de produção
dos bens necessários às satisfações humanas, e, portanto, as formulações legais e as políticas
que se estruturam para as populações indígenas são fenômenos marcados pela sociedade
capitalista que se expande mundialmente.
Entendido o movimento geral da formação capitalista, e também as explicações
formuladas para essa sociedade pela economia política clássica, bem como a totalidade das
relações que produziram particularidades como a escola e a educação física, traçamos o
entendimento da retomada neoliberal da ideologia econômica clássica como formulações
conduzidas por organismos internacionais nos fins do século XX.
Estas políticas, feitas sob as formas de condicionalidades, se iniciaram após a
Segunda Guerra com a criação do BM e do FMI, e se intensificam na década de 1990. À
medida que a concessão de crédito por esses organismos permitiu a direção de políticas
específicas, estas reafirmaram a condição de reprodução do sistema capitalista e a dominação
burguesa sobre os acúmulos e as produções desta sociedade. Visando a manutenção do status
quo tais políticas orientaram as políticas educacionais, pois viram a educação como a
ferramenta estratégica para responder às demandas dos movimentos sociais. Estes,
anteriormente configurados como luta de classes, atualmente, se encontram pulverizados sob
a bandeira da diversidade cultural.
Como políticas gestadas fora dos movimentos sociais, especificamente dos
movimentos indígenas brasileiros, o multiculturalismo e a interculturalidade foram
disseminados como política de atendimento às necessidades destes, ambos os termos tiveram
185
na escola uma importante aliada à medida que esta toma para si o objetivo de preparar jovens
e crianças para viver em uma sociedade que reconhece a diversidade cultural. Foi possível
identificar que a área da educação física não ficou alheia a esse movimento, sendo o respeito
à diversidade e a educação intercultural, nos moldes emanados por aquelas políticas,
defendido na quase totalidade dos artigos analisados.
Em relação às formulações elaboradas como referenciais para a escola indígena
questionamos como podem reflexões roteirizadas balizarem a formulação de um documento
que se propõe intercultural? Como afirmar que as reinvindicações partem dos professores e
comunidades indígenas sem que tenham ficado claro para os povos indígenas as origens e os
objetivos de um referencial curricular? Quem roteirizou tal discussão? As questões políticas e
econômicas internacionais que o MEC atende foram discutidas com os indígenas para se
afirmar que foi um documento que “[...] primou por respeitar a participação de educadores
índios e não-índios” (BRASIL, 1998, p. 3)?
Vimos que no Brasil, os termos multiculturalismo ou interculturalidade estavam
ausentes na literatura anterior à reforma postulada pelo MEC nos anos de 1990. E, que
conceitos como diversidade e pluralidade democráticas foram introduzidos nas políticas,
produções didáticas e pesquisas científicas posteriores a esse período. Verificamos que a
defesa dos interesses indígenas recai no âmbito dos direitos políticos conquistados, no
respeito às escolhas indígenas quanto a que conteúdo ministrar nas escolas, ou às práticas
corporais que se permitem entrar na comunidade, por meio dos Jogos dos Povos Indígenas,
ou do futebol. A utilização dos conceitos de interculturalidade, multiculturalismo, diversidade
e seus correlatos, escamoteia o contexto histórico em que tais conceitos foram gestados, e
tratam a educação escolar indígena como objeto compreendido retirado de sua realidade,
esvaziam os conteúdos escolares, e por extensão os conteúdos da educação física, e valorizam
a cultura individual, grupal e local em detrimento da cultura universal humana. Rejeitam as
discussões totalitárias e universalizantes, ocultando as contradições sociais, e as lutas de
classe, reafirmando as lutas particulares, em especial as lutas indígenas por manutenção da
língua e da cultura.
Os autores da área da educação, e em específico da educação física, em sua maioria
quando criticam as relações capitalistas produtoras das misérias humanas e que colocam os
indígenas sob as mesmas condições de classe que o trabalhador destituído dos meios de
produção, o fazem sob um discurso moralista, destituído da compreensão histórica,
econômica, política e social que envolve as relações sociais capitalistas. Concebem os
indígenas com uma essência humana boa, uma natureza pura, uma identidade (crenças,
186
costumes e práticas) impermeável às mudanças do contexto social que levam à mudanças
culturais e que esta deva ser conservada com autonomia independente da “sociedade não-
indígena envolvente”. Tais críticas adquirem um tom moralista que, em nada contribuem com
o desvelamento das reais condições de pobreza, de falta de acesso a condições mínimas de
saúde, de educação, de alimentação em que se encontram essas populações.
Evidenciamos que os discursos da diversidade apoiam-se sobre a defesa dos direitos
humanos. A possibilidade de ser igual sendo diferente é herança da tradição jurídica das
revoluções burguesas, expressadas na Declaração dos Direitos Humanos. A ideia de
cidadania e democracia abrangem, ao final do século XX, a bandeira da diversidade cultural,
da pluralidade étnica, da inclusão social.
Os documentos (BRASIL, 1998; DELORS, 1996; NAÇÕES UNIDAS, 2003)
analisados, chamam atenção por suas similaridades e para as contribuições que uma escola
específica e diferenciada pode dar ao exercício da cidadania indígena. Questionamos o que
seria a cidadania indígena em uma democracia capitalista senão a padronização de um sujeito
universal no qual o sistema tenta enquadrar a todos?
Concordamos com Marx (2010) que, o direito à liberdade equivale ao direito de não
fazer nada que prejudique nenhum outro homem, o limite é o isolamento. No sentido de que,
para o teórico
[...] o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem
com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e
outro. Trata-se do direito a essa separação, do direito do indivíduo limitado,
limitado a si mesmo. [ ] Aquela liberdade individual junto com esta sua
aplicação prática compõem a base da sociedade burguesa. Ela faz com que
cada homem veja no outro homem, não a realização, mas ao contrário, a
restrição de sua liberdade. [ ] cada homem é visto uniformemente como
mônada que repousa em si mesmo” (MARX, 2010, p. 49, grifo do autor).
Desta forma, o direito à propriedade privada equivale a desfrutar a seu bel prazer de
seu patrimônio, sem levar em consideração os outros e a sociedade. Marx afirma, ainda, que
o direito humano à segurança, “[...] é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o
conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada
um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade”
(MARX, 2010, p. 50).
Estas explicações nos ajudaram a compreender que o cidadão, ou, como nos artigos
analisados, o cidadão indígena, ainda que possua acesso aos direitos do Estado democrático,
não é e nem será, nessa sociedade de classes, plenamente livre, nem sujeito consciente e
187
autônomo de sua história. Está fadado ao desenvolvimento do conjunto das relações sociais
capitalistas. A cidadania, por mais aperfeiçoada e desenvolvida que seja não pode erradicar a
desigualdade social, nem permitir aos indivíduos serem plenamente livres, nem possibilita
aos indígenas viverem da forma que bem entenderem, autonomamente.
Sendo a questão da participação um discurso hegemônico entre os organismos e os
pesquisadores, especificamente na área da educação física, questionamos qual concepção
teórica e de ensino e aprendizagem está relacionada? E, o que na agenda de reformas da
educação determinaram essas concepções?
As políticas públicas e as discussões acadêmicas que investigamos, em sua maioria
objetivaram a realização máxima da cidadania e direitos humanos. A educação intercultural é
pensada como aquela que possibilita o respeito à diversidade, a aprendizagem com o
outro, desvelando os valores excludentes, bem como a compreensão de educação por meio
de jogos e brincadeiras tradicionais que se baseia em superar dificuldades, e desenvolver
valores cooperativos e de evolução social. São concepções que atribuem a superação dos
problemas sociais como função da escola e dos professores, sem discutir o que efetivamente é
a educação e a sua especificidade na escola indígena.
Concordamos com Faustino (2006) quando afirma que, estas agendas de reformas
educacionais têm como “principal objetivo divulgar um discurso de respeito à diferença e de
alívio da pobreza entre as minorias étnicas, ‘consideradas as mais pobres entre os pobres’, por
meio da ênfase na cultura” (FAUSTINO, 2006, p. 300). Propor a tolerância para com as
minorias raciais e étnicas é a estratégia multicultural, dos segmentos dominantes da
sociedade, para omitir o fato de que os problemas do racismo e aversão aos estrangeiros, ou
ainda questões ligadas à língua e etnia, são também problemas de ordem de classe.
As populações indígenas estão situadas em condições de extrema pobreza, o que leva
a conclusão de que apenas pensar e discutir as políticas de educação e saúde não basta. Para
essas populações suas lutas e reivindicações por terras representam a resistência a um modo
coercitivo de dominação capitalista que expropria a terra e juntamente com essa expropriação
produz a miséria, o abandono, e muitas vezes o extermínio. A colonização representou para
esses povos a mudança radical nos tradicionais modos de vida, a reorganização dos sistemas
internos das sociedades indígenas que agora se veem obrigadas as se adaptar ao modo
capitalista de produção.
A falta de terras em extensão suficiente para garantir seu modo de vida, os obriga à
condição de trabalhos degradantes e que em nada se assemelham, para estes povos ao seus
188
tradicionais modos de vida. Tornam-se esses, expropriados de terras e por consequência dos
modos tradicionais de subsistência, assim ficam a mercê das políticas assistencialistas.
Na segunda metade do século XX as políticas para os indígenas mudam seu discurso
dando centralidade à valorização da língua e da cultura estas começam a aparecer em
eventos, políticas e documentos internacionais. O que não muda de fato a situação em que
vivem estas populações, todo o discurso de valorização da cultura e da linguagem indígenas
pode deslocar do contexto a discussão de posse da terra o que contradiz o próprio discurso,
pois não é possível garantir a valorização da cultura e da língua sem a terra necessária a
manutenção de suas tradicionais formas de vida.
Inferimos a partir dos documentos e artigos estudados que, ao tratar de populações
específicas, as legislações e políticas se voltam sempre para a questão cultural e para a
valorização do indivíduo por meio da inclusão, de conceder a estes a oportunidade de acesso
a um conhecimento cotidiano colocado como possibilidade de acesso ao sistema de mercado
e as oportunidades que a sociedade capitalista permite aos indivíduos, isto é, a venda de sua
força de trabalho, o único meio que lhes restam para satisfazerem suas necessidades.
O trabalho, e não a cultura, deve ser tratado como a categoria principal e determinante
das possibilidades de efetuar a emancipação humana. Somente revolucionando as formas de
produção capitalista, por meio do trabalho associado é que os homens, de forma consciente e
controlando a produção, poderão satisfazer as necessidades humanas, e produzir a
emancipação real. Somente desta forma a humanidade poderá garantir a igualdade entre os
homens e a diversidade entre eles, somente em uma sociedade emancipada poderão os
homens ser o que quiserem e fazer suas próprias escolhas.
Concordamos com Marx e Engels (2007) quando estes tratam o comunismo como um
movimento real que supera o estado de coisas atual,
[...] ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo
de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe
agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a
possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar
à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar,
exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne
caçador, pescador, pastor ou crítico (MARX & ENGELS, 2007, p. 38).
É, portanto, somente desta forma que os indígenas poderão em uma sociedade
emancipada, salvaguardarem suas tradições, suas culturas, tendo assegurada a satisfação de
suas necessidades. É esta a possibilidade colocada pelo trabalho como categoria fundante do
189
homem e não pela cultura. É a classe trabalhadora a categoria que carrega em si o fardo
histórico de revolucionar ou não a sociedade.
Ressaltamos que, em torno de toda essa discussão cultural e valorização do imediato,
não se articula a necessidade de que para a manutenção do modo de vida desses povos é
necessária a manutenção de seus territórios, e mesmo que a manutenção dos seus tradicionais
modos de vida já não é possível face à modificação radical no modo como suas anteriores
terras estão agora subordinadas à lógica capitalista e ao objetivo primário da sociedade do
capital, a saber, o acumulo do lucro sob a forma da propriedade privada dos meios de
produção.
Cabe aqui inferir que a escola, por suas limitações, não tem condições de superar as
contradições impostas pelo sistema capitalista, muito menos figurar como a panaceia dos
problemas humanos. Em seu espaço cabe a luta pela transformação social sim, mas essa luta
não se encerra na escola, pois, tanto esta, quanto os trabalhadores das escolas estão
socialmente subordinados à lógica capitalista.
Neste sentido retomamos as questões anteriormente formuladas quanto às concepções
de escola e educação evidenciada nos documentos e artigos. No item 2.1 questionamos
quanto ao que se deve ser ensinado na escola indígena. Se as atividades cotidianas, que já
existem na vida comunitária, é realmente significativo transpô-las para a sala de aula sem
uma devida sistematização? E a articulação com o conhecimento humano universal, por
exemplo, as diferentes formas de pescas ou agricultura das diferentes sociedades? Ou como
os instrumentos humanos para tal atividade foram histórica e tecnicamente desenvolvidos ao
longo da história? É possível que no âmbito escolar se recrie toda essa complexidade de
relações para promover o aprendizado? E, mais, qual o sentido da escola que valoriza o
cotidiano e o conhecimento imediato em detrimento do conhecimento científico
universalmente produzido?
O ambiente escolar tem o dever sim de possibilitar o desenvolvimento das funções
complexas superiores de seus alunos, permitindo que estes entrem em contato com o máximo
das realizações humanas sistematizadas no conhecimento científico, nas artes, na música, na
literatura, tendo como finalidade sempre a emancipação humana, e as atividades que apontem
no sentido desta emancipação real.
Retomamos a concepção de Mészáros (2010) para reafirmar as possibilidades
existentes no ambiente escolar. “Apenas a mais ampla das concepções de educação nos pode
ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando
instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital” (MÉSZÁROS, 2010,
190
p. 48). Contra essa lógica capitalista, se pensarmos a escola como espaço para o aprendizado
e o estímulo ao desenvolvimento humano, como espaço onde se possibilita o acesso ao
máximo dos conhecimentos e realizações humanas, não podemos valorizar apenas, como
querem os documentos internacionais, o conhecimento imediato e cotidiano. Para além desse
aprendizado imediato é preciso a garantia de acesso ao máximo das elaborações humanas, e
valorizar tanto o conhecimento tradicional indígena das relações imediatas, como valorizar e
possibilitar, por exemplo, o acesso aos poemas, às músicas, às artes, e às ciências de grandes
pensadores.
Concluímos que, a educação física na escola indígena deve pautar-se por atividades
historicamente construídas entre as quais figuram, como elementos da cultura corporal: o
jogo, o esporte, a ginástica, a dança ou outras. Deve, também, sistematizar o conhecimento
tradicional indígena, aquele que diretamente relacionado ao desenvolvimento das funções
superiores das crianças indígenas, que possibilite uma relação com o conhecimento humano
universal. A direção do trabalho são as atividades educativas que tenham por finalidade a
emancipação indígena, não esquecendo que a escola é apenas um dos espaços que permitem a
luta pela emancipação humana, e, ainda, tendo em mente que, a emancipação indígena só
pode realizar-se plenamente com a emancipação da humanidade em relação ao capitalismo.
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ANEXO
1. Referências dos artigos analisados
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Filho, João Pacheco (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. São Paulo:
Marco Zero, Rio de Janeiro: ed. da UFRJ, 1987.
APÊNDICES
No. Título da produção Autores Publicação Ano
01 “A União das Tribos: uma Abordagem
Sobre o Esporte Indígena”
Joelma Cristina Parente
Monteiro/ Sérgio
Simonsen Miranda de
Carvalho
Anais do XII
CONBRACE – Caxambú 2001
02
Educação Física na Formação de
Magistério Indígena do Acre: o Futebol
no Diálogo Intercultural
Maria do Socorro
Craveiro de
Albuquerque
Anais do XII
CONBRACE – Caxambú 2001
03
História de Bugres e Tigres: Corpo e
natureza em terras catarinenses dos
oitocentos
Ana Márcia Silva/
Célia Guimarães
Perini/ Márcia de
Souza Pedroso
Agostini
Anais do XIII
CONBRACE – Caxambú 2003
04 Corpo e cultura de movimento indígena
do ritual à esportivização (Pôster)
Joelma Cristina Parente
Monteiro
Anais do XIII
CONBRACE – Caxambú 2003
05 Corpo e Cultura em relações de
Fronteiras Culturais
Beleni S. Grando
(Seminário)
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
06
Estudo da frequência cardíaca de
indivíduos indígenas durante uma
partida de futebol (GTT Rendimento de
alto nível)
Bankoff, A.D.P.; De
Marchi, F.L.; Da Cruz;
E.M.; Moreira, S.M.
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
07 Apontamentos sobre o povo indígena
(GTT Corpo e cultura)
Maria Beatriz da
Rocha Ferreira/
Marizabel Kowalski
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
08
Esporte e identidade: o gosto pelo
esporte como estabelecimento de inter
relações entre grupos distintos. (GTT
Corpo e Cultura)
Ricardo de F. Lucena/
Maria da Conceição A.
Batista
Anais do XIV
CONBRACE I CONICE –
Porto Alegre
2005
09
A produção do conhecimento sobre as
práticas corporais indígenas na
educação física
Joelma C. P. Monteiro
Alencar
Anais XV CONBRACE II
CONICE – Recife 2007
10 Povos indígenas e relações ambientais:
um olhar na educação
Maria Cecilia de Paula
Silva; Cátia de Oliveira
Cabra
Anais XV CONBRACE II
CONICE – Recife 2007
11
Corpo, infância e cultura: o lazer e a
constituição da(s) identidade(s) das
crianças pataxós.
Luciano Silveira
Coelho
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
206
12
As práticas corporais e a educação do
corpo indígena: a contribuição do
esporte nos jogos dos povos indígenas.
Arthur José Medeiros
de Almeida
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
13
A produção do conhecimento sobre as
práticas corporais indígenas e suas
relações com os jogos indígenas do
Brasil.
Beleni S. Grando;
Elcione Trojan de
Aguiar; Bruna Maria
de Oliveira.
Anais XVI CONBRACE
III CONICE – Salvador 2009
14
O esporte entre os indígenas no Brasil:
constituição de identidades e alterações
de comportamento
Arthur José Medeiros
de Almeida
XVII CONBRACE IV
CONICE – Porto Alegre 2011
Quadro 3. Referências levantadas nos anais eletrônicos das últimas seis edições do CONBRACE (2001-2011)
Autor Grupo de Estudos
Joelma Cristina Parente Monteiro
Grupo de Estudos Indígenas na Amazônia - GEIA - UEPA
(líder)
GEPI-Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas - UFPA
(pesquisador)
Observatório de Educação Escolar Indígena do Território
Etnoeducacional Amazônia Oriental Tupi - UFPA
(pesquisador)
Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Educação,
Sociedade e Política Educacional do Campo e da Floresta da
Amazônia Paraense - HESPECF. (vinculado ao HISTEDBR -
secção Pará) - UFPA (pesquisador)
Culturas e memórias amazônicas - UEPA (pesquisador)
Maria do Socorro Craveiro de Albuquerque
COEDUC
Grupo de Estudos e Pesquisas da Cultura Corporal e
Comunicação na Amazônia - UFAC (líder)
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (pesquisador)
Pesquisa Qualiquantitativa de Representações Sociais
organizada a partir do processo metodológico do Discurso do
Sujeito Coletivo - UFAC (pesquisador)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT
(pesquisador)
Ana Márcia Silva Labphysis - Laboratório Physis de Pesquisa em Educação
Física, Sociedade e Natureza - UFG (líder)
Beleni S. Grando
COEDUC
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (líder)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT (líder)
Núcleo de Estudos de Povos Indígenas - UFSC (pesquisador)
Educação Intercultural e Movimentos Sociais - UFSC
(pesquisador)
Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza - Necon - UNB
(pesquisador)
Movimentos Sociais e Educação - UFMT (pesquisador)
Bankoff, A.D.P.;
Atividade Física, Saúde e Qualidade de vida - UNICAMP
(líder)
Eletromiografia e Biomecanica da Postura - UNICAMP (líder)
GEMORGETS - Grupo de Estudos sobre morbidade referida,
processo de trabalho e gestão em saúde no contexto de vida
humana - UFMT (pesquisador)
207
Maria Beatriz da Rocha Ferreira/
Esporte, Jogos 'tradicionais' e Sociedade - UNICAMP (líder)
Comunicação e Divulgação Científica e Cultural do Esporte. -
UNICAMP (líder)
Grupo de Pesquisa Processos Civilizadores - UEL
(pesquisador)
Grupo de Pesquisa em Inclusão, Movimento e Ensino a
Distância - GIME - UFJF (pesquisador)
Marizabel Kowalski Ensino, Corpo e Sociedade - UFV (pesquisador)
Ricardo de F. Lucena
Centro de Memória do Esporte no Nordeste - UFPE (líder)
LABORATÓRIO DE SOCIOLOGIA DO ESPORTE-
LASEPE - UFPE (pesquisador)
Literatura e Cultura Francesas - UFPB (pesquisador)
TEATRO: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE -
UFPB (pesquisador)
Maria Cecilia de Paula Silva
HCEL - História da Cultura Corporal, Educação, Esporte,
Lazer e sociedade - UFBA (líder)
Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas - UFBA
(pesquisador)
Arthur José Medeiros de Almeida
COEDUC
Núcleo de Estudos do Corpo e Natureza - Necon - UNB
(pesquisador)
COEDUC - Corpo, Educação e Cultura - UFMT (pesquisador)
Corpo Educação e Cultura - COEDUC – UNEMAT
(pesquisador)
Bruna Maria de Oliveira
COEDUC
Corpo Educação e Cultura - COEDUC - UNEMAT
(pesquisador) Quadro 4 Pesquisadores ativos no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil (CNPq)