A Educação Segundo Perene - capitulo 9

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A Educação segundo a Filosofia Perene Capítulo Nono - Pressupostos Políticos - Texto disponível para Download no site de Introdução ao Cristianismo segundo a obra de Santo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

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O que realmente é a educação. Quais conceitos se perderam da verdadeira educação.

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A Educao segundo a Filosofia Perene

Captulo Nono

- Pressupostos Polticos -

Texto disponvel para Download no site de

Introduo ao Cristianismo

segundo a obra de

Santo Toms de Aquino e Hugo de S. Vitor

http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

http://www.cristianismo.org.br

http://www.accio.com.br/Nazare/1946/

IX

Pressupostos Polticos.

IX.1) Introduo.

Percorremos at aqui um longo caminho. Expusemos que o fim do homem, sua verdadeira felicidade, est na contemplao, e que, portanto, este tambm o fim natural da educao; comparamos a este fim diversos outros fins explicando porque seria contra a natureza humana fazer deles o fim ltimo da educao, ainda que seja isto o que fazem freqentemente os homens. Depois expusemos os pressupostos histricos deste modo de entender a educao; expusemos tambm os pressupostos psicolgicos que o fundamentam. A seguir expusemos os requisitos pedaggicos prximos de uma educao que tenha como meta a contemplao, isto , o cultivo da virtude e da inteligncia. Expusemos depois tambm outros requisitos mais remotos. Finalmente, enquadramos tudo isto dentro de uma perspectiva metafsica mais ampla, fundamento ltimo da natureza humana e de sua educao.

Enquanto prosseguamos em nossa exposio, o leitor deste trabalho deve ter-se perguntado se um sistema educacional como o descrito neste trabalho algo efetivamente realizvel. Certamente, considerado em si mesmo, nada h nele que impea de ser realizado; no parece conter contradies internas e, historicamente, a Academia de Plato e o Mosteiro de So Vitor foram exemplos de sua factibilidade. Mas no este o sentido da pergunta que o leitor deve ter-se feito. No se trata de saber se esta educao realizvel quando considerada em si mesma, mas sim se ela realizvel dentro do contexto de uma sociedade concreta como a do Brasil, por exemplo, ou a de qualquer pas do mundo. Como seria possvel implantar um sistema educacional como o descrito neste trabalho? Haveria algum Ministro da Educao que se atreveria a propor uma Lei de Diretrizes e Bases com fundamento neste trabalho? E se houvesse, haveria algum Congresso que teria coragem de aprov-lo? E ainda que a tivesse, como fazer para implantar tal coisa? Onde encontrar os professores que sequer entendessem o que se pretenderia? Quem iria formar tais professores? Haveria candidatos para este Magistrio? Ainda que os houvesse, a sociedade aceitaria semelhante tipo de ensino? Seria pelo menos capaz de entend-lo? No acabaria ela exigindo uma educao tal como era antes? Porque se as escolas que temos hoje oferecem uma Pedagogia diferente da que foi descrita neste trabalho porque h motivos para tanto; h necessidades sociais que precisam ser atendidas que fazem com que a educao oferecida seja deste modo e no daquele outro.

Com isto entramos no prprio centro do presente captulo. Como deve organizar-se uma sociedade para que possa existir um sistema educacional cuja meta final seja a contemplao da verdade? Perguntar isto perguntar pelos pressupostos polticos da educao que viemos descrevendo neste trabalho.

IX.2) A sociedade como parte das coisas da natureza.

O incio do Comentrio Poltica descreve o modo como se originam as sociedades com o intuito de mostrar, entre outras coisas, que a sociedade humana no fruto de um livre acordo entre as vontades humanas, mas algo que pertence s coisas da natureza. "Em todas as coisas vemos",-diz o Comentrio-,"que se algum as examinar segundo o modo como se originam de seu princpio, otimamente poder contemplar nelas a verdade" .

A primeira de todas as comunidades aquela que se d entre o homem e a mulher. necessrio dividir a cidade at s suas partes mnimas, de modo que assim cheguemos primeira comunidade de pessoas que no podem existir umas sem as outras, que a comunidade existente entre o homem e a mulher. Esta comunidade se d por causa da gerao pela qual nascem os homens e as mulheres; a gerao no compete aos homens por eleio, isto , na medida em que dotado de uma razo que escolhe, mas lhes compete segundo uma razo comum a si e aos demais animais e tambm s plantas. De fato, h em todos um apetite natural para que deixem aps si um outro semelhante a si mesmo, para que pela gerao se conserve pela espcie aquilo que pelo nmero no pode conservar-se .

A esta comunidade do homem e da mulher se acrescentou a comunidade entre o senhor e os servos, quando aqueles que so ricos de foras corporais, para sobreviverem, se associaram queles que pela sabedoria so capazes de prever as coisas e reger os demais pela prudncia. Esta comunidade tambm pela natureza, porque a natureza no somente pretende a gerao, mas tambm que o que gerado sobreviva .

Destas duas comunidades, uma para a gerao, outra para a sobrevivncia, constituu-se a primeira casa . Toda comunidade se ordena a alguns atos; os atos humanos podem ser de dois tipos, isto , os cotidianos, como comer, aquecer-se ao fogo, e os no cotidianos, como comprar e vender, guerrear, etc.. Uma casa uma comunidade constituda, segundo a natureza, com uma ordenao aos atos cotidianos .

A primeira comunidade entre vrias casas chamou-se aldeia. Ela difere de uma casa porque os aldees no se comunicam pelos atos cotidianos que so prprios de uma casa, mas por aqueles atos externos que no so cotidianos .

A aldeia uma comunidade manifestamente natural. Ela, de fato, se origina quando de uma casa procedem muitos filhos e netos que, multiplicando-se, instituem diversas casas prximas umas s outras. De onde que, como a multiplicao da prole algo que pertence natureza, segue-se que a comunidade alde algo que tambm pertence natureza .

Na antiguidade, diz Aristteles, os homens habitavam dispersos por aldeias, sem se congregarem em alguma sociedade. Sinal de que foi a multiplicao da prole que formou as primeiras aldeias o fato de que no incio, ainda segundo Aristteles, todas as cidades eram governadas por reis, assim como toda casa governada por algum antiqussimo, e assim como os filhos so governados pelos pais; Homero, o poeta mais antigo dos gregos, tambm afirma em seus versos que cada um instituu leis sua esposa e aos seus filhos como um rei na cidade. Assim, o regime real nas cidades proveio de um regime mais antigo na casa ou na aldeia .

Assim como uma aldeia compe-se de muitas casas, assim a cidade constitui-se de muitas aldeias.A cidade uma comunidade perfeita, pois ela se ordena a que o homem tenha suficientemente tudo o que necessrio vida. Na cidade encontra-se tudo o que necessrio vida humana, pelo que se compe de muitas aldeias, em uma das quais exerce-se a arte fabril, em outra a arte txtil, e assim por diante. No incio a cidade constituiu-se apenas para que os homens encontrassem nela suficientemente com o que pudessem viver;mas na medida em que pelas leis da cidade a vida do homem passou a ordenar-se virtude, dela proveio que os homens na cidade no apenas vivessem, mas tambm passassem a viver bem .

A cidade tambm pertence s coisas da natureza, pois o fim das coisas naturais a natureza delas. Ora, a cidade o fim das comunidades j mencionadas, das quais mostrou-se todas pertencerem natureza; portanto, a cidade pertence s coisas da natureza .

Do carter natural da cidade infere-se que o homem por natureza um animal poltico, pois a cidade no seno uma comunidade de homens; sendo ela parte das coisas da natureza, o homem tambm ser por natureza um animal poltico. Aquele que por natureza e no pelo acaso deixa de viver em sociedade ou um ser vil, corrompido em sua natureza humana, ou algum superior ao homem, possuidor de uma natureza mais perfeita do que o comum dos homens .

De tudo isto conclui-se que em todos os homens h uma inclinao natural comunidade civil assim como s virtudes. Assim, porm, como as virtudes so adquiridas pelo exerccio, conforme afirma o II da tica, assim tambm as cidades foram institudas pelo trabalho humano. Aquele que, portanto, por primeiro instituiu a cidade foi causa para os homens de bens mximos. De fato, o homem o melhor dos animais se nele se aperfeioam as virtudes s quais possui inclinao natural. Mas se vive sem lei e justia, o homem se torna o pior de todos os animais, pois a injustia tanto pior quanto maior for o nmero de suas armas e de instrumentos para a execuo do mal. De fato, ao homem convm por sua natureza a prudncia e a virtude que de si se ordenam ao bem; mas quando o homem mau, usa delas como de armas para a execuo do mal. O homem sem virtude, quanto corrupo da potncia irascvel torna-se maximamente cruel e selvagem; quanto corrupo da potncia concupiscvel torna-se pssimo na busca do prazer venreo e na voracidade dos alimentos. Mas o homem pode ser reduzido justia pela ordem da cidade, de onde fica manifesto que aquele que instituiu a cidade livrou os homens que se tornassem pssimos e possibilitou-lhes que se tornassem timos segundo a justia e as virtudes .

IX.3) Questes polticas fundamentais.

O Comentrio Poltica mostra-nos, assim, que o homem por natureza um animal poltico, inclinado naturalmente a viver em sociedade, "mais do que as abelhas e do que qualquer outro animal gregrio" . Como de modo geral a natureza tende sempre a um mesmo fim, pareceria que disto se devesse concluir que h apenas um nico modo natural de se organizar uma sociedade humana. Entretanto, ao contrrio do caso das abelhas e dos outros animais gregrios, o Comentrio Poltica afirma, conforme veremos mais adiante, que a sociedade humana pode organizar-se de modos diversos.

Esta constatao a origem de algumas das importantes questes que devero ser tratadas neste captulo de nosso trabalho.

A primeira delas se, havendo formas diferentes em que a sociedade possa organizar-se, algumas delas no seriam melhores e preferveis a outras ou se todas so indiferentes entre si; e se, havendo algumas melhores e outras piores, no haveria alguma que fosse prefervel a todas as demais.

A segunda qual ou quais destas formas em que uma sociedade pode organizar-se pressuposto poltico do sistema educacional que viemos descrevendo neste trabalho.

IX.4) Premissas para a investigao da natureza da sociedade perfeita.

Vamos comear abordando a primeira das questes propostas, isto , se h formas melhores e preferveis de se organizar uma sociedade ou se todas so indiferentes entre si e se, algumas sendo piores e outras melhores, haver alguma que seja prefervel a todas as demais.

O Comentrio Poltica trata deste assunto em diversos locais ao longo de seus oito livros. As premissas de que se deve partir na colocao deste problema so apresentadas no incio do livro VII.

Quem quer investigar de modo certo e conveniente o problema da sociedade tima, diz o VII da Poltica, deve considerar primeiro qual o gnero de vida prefervel a todos os demais, e qual a operao excelente do homem. Pois, se no for manifesto qual seja a operao tima do homem, no poder ficar manifesto qual seja a sociedade tima, porque os homens que viverem nesta sociedade devero necessariamente alcanar a vida que , em si mesma, prefervel a todas as demais . A finalidade da sociedade tima dever ser o fim timo do homem, porque a sociedade no mais do que a ordem da sociedade, e a razo da ordem tomada de seu fim; portanto, para o conhecimento da sociedade tima necessrio primeiro conhecer qual o fim ou a operao tima do homem .

Ora, o bem do homem o ser perfeito do prprio homem, porque a bondade uma certa perfeio .

H, porm, trs gneros de bens para o homem: os bens da alma, os bens do corpo e os bens exteriores. A felicidade, sendo o bem perfeitssimo do prprio homem, deve reunir a todos estes trs. No h dvida de que, os bens do homem dividindo-se em trs partes, isto , nos bens exteriores, como as riquezas e os amigos, nos bens do corpo, como a sade e a vivacidade dos sentidos, e nos bens da alma, todos eles devem estar presentes nos que so felizes . Se algumas destas coisas faltasse, naquela parte haveria imperfeio; ningum diria ser feliz aquele que no tivesse alcanado alguma parte das virtudes, como a fortaleza, a justia, ou a prudncia .

Embora, porm, todos concedam que todos estes bens devem pertencer felicidade, h muita diferena entre os homens quando se lhes pergunta acerca da quantidade e do excesso. De fato, alguns dizem ser suficiente felicidade perfeita qualquer quantidade de virtude, mesmo que seja pequena, mas no que diz respeito riqueza e ao dinheiro, ao poder, glria, fama e a outras coisas semelhantes, dizem que estas devem pertencer felicidade num excesso infinito, querendo dizer com isso que a felicidade consiste principalmente nos bens exteriores, e apenas secundariamente na virtude .

Mas ns, diz o Comentrio ao VII da Poltica, reprovando o que estes dizem, afirmamos ser fcil mostrar pelas prprias operaes que nos so mais manifestas que a felicidade consiste principalmente nos costumes, isto , nas operaes provenientes de hbitos ordenados segundo a razo e na excelncia da perfeita operao do intelecto, acrescentada de uma pequena posse de bens exteriores, de preferncia abundncia inoportuna destes bens exteriores qual se acrescentam virtudes e operaes intelectuais deficientes. A felicidade, portanto, mais consiste na excelncia da virtude e da operao do intelecto do que nos bens exteriores .

Do que foi dito pode-se concluir em que consiste a felicidade de uma cidade. Dizemos ser feliz, e, portanto, tima, aquela cidade que opera o timo. Portanto, ser impossvel uma cidade ser feliz e tima sem virtudes morais e intelectuais .

Algum poderia objetar dizendo que a fortaleza, a justia e as demais virtudes no so de uma s e mesma natureza no homem e na sociedade. Mas a isto deve-se responder que a virtude de toda uma cidade e a virtude de um s homem so coisas de mesma natureza, ambas ordenando-se operao; elas no diferem seno como o todo da parte e como o maior do menor. De fato, a virtude moral da cidade agregada a partir das virtudes parciais dos cidados, e por isso a mesma a virtude do cidado e a virtude de toda uma cidade .

Portanto, a vida tima do homem individualmente considerado e a vida tima de toda uma cidade a mesma . o que se deduz, ademais, da comum opinio de todos os homens, pela qual fica tambm manifesto que todos pretendem que a felicidade de um s homem e de toda a cidade seja da mesma e de uma s natureza. isto o que dizem todos os que falam a respeito da felicidade. Aqueles que colocam a felicidade do homem consistir nas riquezas, so eles tambm os que dizem ser feliz a cidade que possui riquezas em abundncia. Se algum, portanto, sustenta que a operao da virtude que faz a felicidade do homem, dever concluir daqui que a cidade feliz ser aquela que mais se esfora por alcanar e participar das aes virtuosas. Todos, portanto, confessam uma s e a mesma ser a felicidade de qualquer homem separadamente e de toda a cidade .

Ora, a felicidade do homem a perfeio do intelecto em relao ao primeiro e maior de todos os inteligveis, isto , a causa primeira. A felicidade prtica, a que provm apenas das virtudes morais, uma participao do intelecto quanto aos agveis pelo homem, e muito deficiente em relao natureza do primeiro inteligvel. Portanto, para cada homem, individualmente considerado, a felicidade contemplativa mais elegvel do que a felicidade prtica, alm de ser mais contnua, suficiente e deleitvel. Deve-se da concluir que a contemplao de toda a cidade mais elegvel do que a virtude poltica de toda a mesma cidade, e a virtude contemplativa de toda a cidade prefervel contemplao de um s homem .

Destas passagens do Comentrio Poltica pode-se deduzir que como o homem um animal naturalmente inclinado vida em sociedade, e que, ademais, necessita da sociedade para alcanar a vida das virtudes, tanto morais como intelectuais, a sociedade tima aquela organizada de tal maneira que, atravs dela, o homem alcana a excelncia na virtude e na inteligncia. Vale a pena voltar a mencionar que, no livro I do Comentrio Poltica, Toms de Aquino ressalta que a sociedade no foi feita apenas "para que os homens nela encontrassem o suficiente para poderem viver; a cidade existe no apenas para que o homem viva, mas para que o homem viva bem" , e viver bem, segundo o Filsofo, viver segundo a excelncia da virtude e da inteligncia . A natureza do homem tal que sem a sociedade ela no pode alcanar a virtude e a inteligncia; portanto, a sociedade que no se organiza de modo a proporcionar ao homem a possibilidade de alcanar tais objetivos, concedendo-lhe, ao contrrio, apenas bens materiais e uma vida em liberdade e segurana, estar causando ao homem um dano irreparvel, pois no h outro modo pelo qual o homem possa alcanar a felicidade que provm destas coisas seno atravs da sociedade.

IX.5) As formas possveis da organizao social.

Examinamos assim os pressupostos da sociedade otimamente constituda. Vejamos agora quais so as formas segundo as quais as sociedades realmente se organizam.

Em uma primeira e mais superficial anlise, o Comentrio Poltica diz que h seis espcies de ordenao das sociedades. De fato, toda cidade pode ser regida por um s governante, por alguns poucos, ou por muitos .

Se for regida por um s governante, se este for homem virtuoso e tiver como seu objetivo a utilidade comum dos sditos, o governo resultante ser chamado Reino e seu governante ser chamado rei. Se o governante for um homem mau trazendo todas as coisas para o seu prprio proveito, desprezando a utilidade dos sditos, o governo resultante ser chamado Tirania e o seu governante tirano .

Se, porm, a cidade for regida por poucos e estes poucos forem homens virtuosos que por causa da virtude buscam o bem da multido, teremos uma Aristocracia; se se tratarem de poucos que governam por causa do poder, da riqueza, e no por causa da virtude, trazendo o que de todos para sua prpria utilidade, teremos uma Oligarquia .

Semelhantemente, se a cidade for governada por muitos e se tratar de uma multido de homens virtuosos, este regime ser chamado Repblica; tal regime difcil de ser encontrado, porque difcil encontrar muitos virtuosos em uma cidade . A forma corrompida deste governo de muitos o Estado Popular, em que uma multido governa atendendo aos seus prprios interesses, mas no utilidade comum .

Deste modo temos, em princpio, segundo o Comentrio Poltica, trs formas de governo retas, o Reino ou Monarquia, a Aristocracia e a Repblica, conforme governem um s, poucos ou muitos; e trs formas de governo corrompidas, a Tirania, a Oligarquia e o Estado Popular, conforme governem um s, poucos ou muitos.

Entre estas formas h uma gradao de excelncia.

Dentre as formas retas de governo, a mais perfeita, diz o Comentrio, a Monarquia . No se trata, porm, da monarquia que vem mente dos homens do sculo XX quando ouvem falar neste nome. Na concepo do Comentrio, Monarquia o governo de um s, e no implica na existncia de uma Casa Real, nem de um poder irrestrito que transmitido hereditariamente de pai para filho antes mesmo que o herdeiro cresa e se possa saber que qualidades possuir para poder governar. Segundo o Comentrio, a Monarquia o governo de um s, que governa pela excelncia da virtude, e tendo em vista o bem universal, no sendo verdadeiro monarca aquele que no superexceder a todos os demais em todos os bens, dos quais os principais so os da alma . Mais adiante veremos o que o Comentrio entende precisamente por esta forma de governo que ele afirma ser a mais perfeita entre todas; apenas diremos por ora que a maioria dos exemplos histricos que vm mente dos homens de hoje quando ouvem falar de monarquia seriam, na concepo do Comentrio Poltica, no Monarquias, mas Tiranias, a mais abominvel de todas as formas de governo.

Logo aps a Monarquia, o melhor governo a Aristocracia; por ltimo vem a Repblica, a menos reta entre todas as formas retas de governo .

Entre as formas corrompidas de governo, a pior de todas a Tirania ou ditadura, pois aquela que mais dista da forma excelente de governo. Depois da Tirania, a pior a Oligarquia, corrupo da Aristocracia, o melhor governo aps a Monarquia. A menos m e mais comensurada entre as formas corrompidas de governo a do Estado Popular, porque uma corrupo da Repblica, a menos reta entre as retas, pelo que o Estado Popular se torna o menos mau entre os maus, j que a transgresso do bem menor o mal menor .

Onde se situa a Democracia nesta classificao? O texto de Aristteles e o Comentrio Poltica utilizam o termo Democracia ora para a Repblica, ora para o Estado Popular. primeira vista esta constatao pode parecer desconcertante, uma vez que a Repblica classificada entre as formas retas de governo e o Estado Popular entre as formas viciadas e corrompidas. Entretanto, se considerarmos que o Comentrio afirma que o Estado Popular o menos corrompido dos governos corrompidos e a Repblica o menos reto dos governos retos, veremos, conforme ser dito mais adiante, que na realidade h pouca diferena entre ambos; da o fato de que o Comentrio freqentemente utiliza o termo Democracia indistintamente para ambos.

Desta maneira, considerando a pequena diferena entre a Repblica e o Estado Popular, e chamando a ambos pelo nome de Democracia, as formas de governo se reduziriam a cinco: Monarquia, Aristocracia, Democracia, Oligarquia e Tirania, em ordem decrescente de perfeio at alcanarem, com a Oligarquia e a Tirania, estados inteiramente fundados sobre uma transgresso da natureza humana.

Considerando, porm, mais atentamente a presente classificao, continua o Comentrio Poltica, verificaremos que esta classificao no a melhor, pois ela separa as formas de governo pelo que lhes acidental, e no pelo que constitui verdadeiramente suas diferenas especficas .

De fato, que os governantes sejam muitos ou poucos ou mesmo um s uma acidentalidade em relao ao regime de muitos, poucos ou de um nico governante.

Tais nomes so comumente dados a estes regimes porque em todos os lugares h uma multido de pobres, uma minoria de ricos e um nmero menor ainda de virtuosos. Da que a Democracia no difere da Oligarquia pela multido ou pela pequena quantidade de governantes seno por acidente; elas diferem, ao contrrio, em si mesmas, pela pobreza e pela riqueza. Por isso deve-se dizer que onde quer que haja quem domine por causa da riqueza, sejam muitos ou sejam poucos, esta seja uma Oligarquia; e onde quer que se governe tendo em vista a liberdade, da qual participam os pobres, esta seja uma Democracia .

Conclui-se, portanto, desta passagem e do restante do contexto do Comentrio Poltica que iremos expondo a seguir, que na verdade as formas de organizao da sociedade podem ser divididas nos seguintes modos principais: a Tirania, em que um s governa em proveito prprio; a Democracia, em que se governa tendo a liberdade como objetivo; a Oligarquia, em que se governa tendo a riqueza como objetivo; e o governo que tem como objetivo a virtude, que geralmente se consubstancia em uma forma especial de Monarquia que ser descrita mais adiante. Se retirarmos da lista a Tirania, que uma forma de governo inteiramente detestvel e corrompida, teremos que uma sociedade pode organizar-se segundo que seu objetivo essencial seja tutelar a liberdade, buscar a riqueza ou promover a virtude. Tanto a Democracia, que busca a liberdade, como a Oligarquia, que busca a riqueza, so desvios da verdadeira funo da sociedade que a promoo da virtude. Diz, de fato, o Comentrio:

"Na Oligarquia a justia sinnimo de riqueza; na Democracia, a justia sinnimo de liberdade; entretanto, manifesto que riqueza e liberdade no so bens absolutos; bens absolutos so os bens da virtude; portanto, manifesto que na Democracia e na Oligarquia temos apenas o bem segundo um determinado aspecto, no o bem absolutamente considerado" .

Aqueles que favorecem, a Democracia e a Oligarquia, continua o Comentrio,

"julgam mal o que seja o justo e o bem; tomaram o justo e o bem segundo um determinado aspecto e julgaram terem alcanado o justo e o bem absolutamente considerado" ;

e a causa porque fizeram isto foi o

"terem julgado por si mesmo; ora, a maioria freqentemente faz maus julgamentos por si mesmo, pois para o julgamento se requer a prudncia, e a prudncia pressupe a retido do apetite pela virtude moral, e o que perverte o apetite, perverte, por conseqncia, o julgamento da razo. Mas a maioria dos homens possui um apetite pervertido em relao a si mesmo, porque cada um afeioa-se demasiadamente a si prprio; este amor e afeto excessivo que cada um possui para consigo mesmo perverte a vontade do fim correto; por causa disso, os que julgam por si prprios freqentemente julgam mal. Somente um sbio no julga mal por si prprio; possui a virtude da prudncia e um apetite reto, conhece-se tal como , no se afeioa desordenadamente a si prprio; pelo que pode julgar corretamente de si prprio e dos demais" .

Nenhuma sociedade pode ser instituda tendo como objetivo ltimo o aumento da riqueza ; todo governante mais deve se preocupar com os homens do que com a posse dos bens inanimados, e deve buscar mais a virtude pela qual os homens vivam bem do que a multiplicao das posses a que se d o nome de riquezas . Nem tampouco uma sociedade pode ser instituda tendo como objetivo ltimo apenas o viver, de tal modo que a prpria vida em si mesmo seja o fim ltimo da sociedade . O fim para o qual a sociedade existe o prprio bem viver; bem viver viver feliz, o que significa operar segundo a virtude; aqueles que mais enriquecem a cidade na comunicao destas obras mais acrescentam civilizao, e a cidade mais pertence a estes do que aos que lhes so iguais na liberdade ou lhes so maiores pelo nascimento, mas lhes so menores e desiguais segundo a virtude .

IX.6) Pressupostos polticos da educao para a sabedoria.

Do que fica exposto j transparece porque to difcil introduzir ou mesmo propor para as sociedades modernas uma educao como a que descrita neste trabalho.

No captulo III do presente mencionamos uma afirmao de Raissa Maritain feita a respeito de quando ela, em busca de conhecimento, dirigiu-se aos professores das Cincias da Natureza na Universidade de Paris; segundo ela,

"as matemticas eram o seu

mais alto cu intelegvel".

Uma afirmao semelhante pode-se fazer quanto s aspiraes polticas dos povos modernos; neste ponto, suas aspiraes mais elevadas no passam do ideal democrtico.

Para nos darmos conta deste fato, basta nos reportarmos aos numerosos textos de Teoria Geral de Estado que so utilizados em todos os primeiros anos dos cursos de Direito. Eis aqui, apenas para dar um exemplo, como um deles se expressa a respeito da Democracia:

"`Se houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente'.

Com tais palavras mostra Rousseau, no Contrato Social, o grau de perfeio que se prende a esta forma de governo: governo to perfeito, no seu pensamento, no quadra a seres humanos. O pensamento poltico que combate a Democracia mais de uma vez se escorou nesta passagem da obra do filsofo para abalar os fundamentos do regime democrtico.

Mas, respondendo a quantos fazem objeo ao sistema democrtico de governo, o reformista do liberalismo ingls, Lord Russel, dessa maneira se exprimia: "Quando ouo falar que um povo no est bastantemente preparado para a Democracia, pergunto se haver algum homem bastantemente preparado para ser dspota".

Nos dias correntes, a palavra Democracia domina com tal fora a linguagem poltica deste sculo que raro o governo, a sociedade ou o Estado que no se proclamem democrticos. De tal ordem anda o seu prestgio, que constitui pesado insulto, verdadeiro agravo, injria talvez, dizer a um governo que seu procedimento se aparta das regras democrticas do poder.

Marnoco e Souza, o afamado jurisconsulto portugus do comeo deste sculo, escreveu que a melhor justificativa do princpio democrtico "resulta da impossibilidade de encontrar outro que lhe seja superior" .

Este texto de Paulo Bonavides reflete muito bem o pensamento contemporneo a respeito da Democracia; no entanto, apesar dos elogios feitos a esta forma de organizao da sociedade, evidente que em uma Democracia no possvel implantar um sistema educacional que tenha como fim ltimo a contemplao. A razo que, conforme exposto no captulo V do presente trabalho, a educao para a contemplao exige o cultivo da virtude at excelncia como um de seus requisitos imediatos; em uma Democracia, porm, no possvel chegar-se a um consenso sobre o que seja a virtude, pois uma Democracia, enquanto tal, uma sociedade organizada sem compromisso com a virtude: a Democracia, diz o Comentrio Poltica, busca como ideal apenas a liberdade . Se a Democracia produz ou chega a ter algum compromisso com alguma virtude, apenas de modo indireto e circunstancial, na medida em que uma ou outra virtude so necessrias para assegurar a liberdade dos cidados. Mas se algum ato humano, ainda que seja um atentado direto contra a prpria ordem da natureza, no interferir com a liberdade de nenhum cidado, a Democracia no ver este ato como um vcio, mas como um direito a ser defendido e tutelado. Ora, num contexto como este no ser possvel chegar-se a um consenso sobre o que seja a virtude absolutamente considerada. E mesmo que, apesar da estrutura da sociedade, os educadores conseguissem chegar a um consenso sobre o que a virtude, as conseqncias prticas deste consenso, transformadas em Lei de Diretrizes a Bases, se constituiriam num atentado politicamente insustentvel contra a liberdade dos cidados. Mas sem este consenso sobre o que seja a virtude no se pode implantar uma educao que tenha como objetivo a contemplao. A concluso que da se tira que a educao para a contemplao, ainda que seja o anseio mais profundo da natureza humana, impossvel em uma democracia; preciso para tanto uma forma de organizao social mais elevada, cujo compromisso bsico seja essencialmente com a virtude, apenas por conseqncia com a liberdade.

Que sociedade o Comentrio aponta como tal algo de que trataremos mais adiante; vamos continuar, enquanto isso, com nossa argumentao.

Concedamos que, de fato, em uma sociedade democrtica, a educao para a contemplao no possa se transformar em Lei de Diretrizes e Bases obrigatria para toda a nao. Tal obrigatoriedade seria contra o princpio democrtico, que respeita a liberdade dos cidados que discordam deste tipo de educao; ou, mais precisamente, respeita a liberdade dos que discordam da existncia daquela entidade a que os filsofos chamam de virtude e que, desde que no interfiram na liberdade de ningum, querem a maior distncia possvel de uma vida virtuosa e que o Estado os ampare nesta sua deciso. Nada impediria, porm, que se houvesse pessoas que reconhecessem a excelncia da virtude e da contemplao, estas mesmas pessoas organizassem uma escola baseada nestes princpios e que pudesse ser freqentador por todos aqueles que assim o desejassem. Isto lhes seria reconhecido como um direito, amparado pela sociedade democrtica. Parece, portanto, que mesmo em uma sociedade democrtica pode-se, ao contrrio do que foi afirmado antes, implantar-se uma educao para a contemplao, para todos os que assim o quisessem.

Porm, examinadas as coisas mais atentamente, se isto fosse possvel, verificaramos que tais escolas seriam pequenas sociedades no democrticas sob a tutela jurdica de uma sociedade democrtica politicamente superior; de onde se seguiria novamente a concluso de que uma sociedade democrtica no suficientemente perfeita para promover, enquanto tal, este tipo de educao.

Dissemos, entretanto, se isto fosse possvel, porque uma situao como esta no seria algo facilmente sustentvel. O ser humano um animal naturalmente poltico, que necessita, portanto, por esta razo, no apenas da escola, mas da verdadeira e plena sociedade para o seu aperfeioamento. Uma escola organizada nestas condies no contaria com amparo positivo algum por parte da sociedade a que pertence para o aperfeioamento que pretende de seus alunos; a sociedade democrtica, enquanto tal, seria incapaz de compreender o que estaria acontecendo naquela escola: a forma especial de educao que ela ministra seria um problema interno que nada teria a ver com a sociedade; esta prestaria um auxlio meramente negativo, na medida em que tutelaria a escola contra os que desejassem negar diretamente o seu direito de existncia.

Mas a sociedade democrtica que assim agisse estaria indo contra um dos princpios fundamentais do Comentrio Poltica: aquele segundo o qual no apenas para existir ou viver que os homens se reuniram em sociedade; ao contrrio, a natureza do homem tal que ele necessita da prpria sociedade, e no apenas da escola, para alcanar o fim ltimo de sua vida, e nada pode substitu-la neste papel, pois trata-se de algo que pertence natureza do homem enquanto tal. A sociedade que apenas garante o direito de existncia de uma escola como esta est simplesmente se omitindo naquilo que precisamente o seu dever fundamental.

Ademais, ainda que uma escola como esta se dispusesse a existir em uma sociedade democrtica, uma anomalia que a parte seja hierarquicamente superior ao todo. Um general dificilmente conseguir seguir a carreira de cabo, ainda que o queira, e ainda que as instituies jurdicas o amparem. Se no por outros motivos, os demais cabos e sargentos procuraro encontrar um modo de impedir-lhe a carreira. No se pode dizer que seja impossvel que ele persevere, mas grande a possibilidade de que ele acabe sendo expulso ou que, com o tempo, v perdendo as qualidades prprias de um general.

Por conseqncia, devemos concluir que a educao para a contemplao exige como pressuposto uma sociedade estruturalmente comprometida com o bem mximo do homem, uma sociedade em que suas instituies e suas leis, mais do que ao ideal da liberdade, estejam voltadas para o ideal da virtude, absolutamente considerada.

IX.7) A sociedade perfeita.

Esparsos ao longo de seu extenso texto, o Comentrio Poltica apresenta numerosas indicaes acerca dos princpios sobre os quais deve constituir-se a sociedade tima; neste e nos tens seguintes examinaremos alguns dos mais significativos.

O Comentrio afirma que nem sempre ser possvel estabelecer-se a sociedade tima; quando, porm, isto for possvel, isto se realizar sob a forma do governo de um s, isto , uma monarquia. Monarquia em grego significa "um s princpio"; este, diz o Comentrio Poltica, quando estabelecido com as caractersticas descritas mais adiante, o melhor de todos os governos:

"Entre as polticas retas, a Monarquia a tima e a mais reta das sociedades, sendo por isso regra e medida das demais" .

Mas para que a Monarquia seja a mais reta das sociedades, no suficiente que apenas um governe. A Tirania tambm o governo de um s, e no entanto a mais abominvel de todas as formas de governo. Para que uma monarquia seja uma sociedade tima necessrio que aquele que ir governar

"difira dos sditos, segundo a natureza, pela grandeza da bondade e que, todavia, seja algum do mesmo gnero que os sditos, ao menos segundo a espciehumana; melhor ainda se puder pertencer ao mesmo povo.

O governante da sociedade tima dever possuir sobre os sditos uma prerrogativa natural de perfeio, pelo que dever diferir dos demais por natureza, pois, a no ser que pela bondade natural seja melhor do que os sditos, no seria justo que dominasse com plenos poderes sobre pessoas que lhe fossem iguais.

Esta forma de governo se assemelha ao governo do pai em relao aos filhos, o qual governa, em primeiro lugar, pelo amor, porque ama por natureza aos filhos, e, em segundo lugar, pela idade, por possuir uma prerrogativa natural sobre os filhos" .

Conforme dissemos, no sempre que ser possvel estabelecer tal forma de governo em alguma sociedade. Para tanto ser necessrio que na sociedade que ir ser assim governada se encontrem homens que excedam em muito aos demais na excelncia das virtudes:

"Quando isto no for possvel, e todos os homens forem quase iguais pelas virtudes naturais, o correto ser que todos participem igualmente do governo" ,"no simultaneamente, porque no seria possvel, mas em turnos, de tal modo que cada um governe em determinado ano ou em qualquer tempo ou ordem determinada e que todos possam, em tempos diversos, participar do governo" ."O melhor seria que a sociedade fosse disposta de tal modo que fossem sempre os mesmos que governassem; isto, porm, somente possvel quando na cidade se encontram alguns homens muito mais excelentes do que os outros pelos quais a cidade possa ser governada sempre" .

IX.8) Requisitos para a implantao da sociedade perfeita.

Vrias passagens do Comentrio Poltica levam concluso de que somente possvel implantar uma sociedade perfeita se a sociedade j contar com homens que tenham alcanado a excelncia nas virtudes morais e intelectuais. Isto implica por sua vez em um desafio incomumente rduo para o surgimento da sociedade perfeita; pois a natureza do homem tal que, conforme vimos, necessita da sociedade para alcanar a excelncia na virtude e na inteligncia; mas, por outro lado, para cumprir convenientemente esta funo, a sociedade necessita de homens com estas mesmas qualidades. Por isso to difcil surgirem tais sociedades; a formao dos que so necessrios para constitu-la um trabalho em que preciso como que vencer a prpria natureza.

Para que surja a sociedade tima, diz o Comentrio Poltica,

" preciso que na sociedade haja muitos homens virtuosos que excedam aos demais na virtude; suposto isto, a sociedade poder ser governada pelo regime timo. No sendo este o caso, a melhor forma de governo para esta sociedade ser um regime timo apenas por suposio, um regime que no o timo absolutamente considerado", mas apenas sob um certo aspecto .

evidente, continua o Comentrio, "que a natureza do governo deve ser tomada de seu fim. O fim, porm, da poltica correta a felicidade da vida; por isso sero necessrias tantas pessoas virtuosas na sociedade quantas forem necessrias para dirigir e legislar a cidade para que esta possa viver feliz, e tantos homens virtuosos devero governar quantos sejam necessrios para que pela sua prudncia estabeleam ou constituam a cidade" .

Quando se verificam estas condies, diz ainda o Comentrio, o governo timo se segue com uma certa naturalidade; no uma disposio arbitrria do homem, mas uma instituio que pertence s prprias coisas da natureza; de fato, somente se pode constituir a monarquia perfeita quando

"algum homem difere dos demais segundo a virtude de tal modo que sua virtude exceda a virtude de todos os demais.

Neste caso justo que esta sociedade seja governada por uma Monarquia, sendo isto algo que pertence natureza, pois segundo a natureza que aquilo que excede a todos os demais em virtude governe aos demais. Portanto, se a virtude de algum homem excede a de todos os demais, natural que este homem seja rei. Este homem no dever governar em parte, mas em tudo, nem por algum tempo, mas para sempre. De fato, a parte no pode exceder o todo, mas este homem excede em virtude a todos os outros; portanto, os demais so parte em relao a ele, de onde que acontecer que todos passaro a obedec-lo como que por uma inclinao natural" .

Para muitos leitores tais afirmaes podero parecer, primeira vista, um exagero inteiramente fora dos domnios da realidade. Trata-se novamente, porm, de outro problema de falta de perspectiva. As pessoas normalmente no fazem idia de quo longe podem ir as possibilidades da virtude e ao que, por conseqncia, o Comentrio Poltica estava se referindo quando afirmava que o verdadeiro monarca deve exceder na virtude a todos os demais sditos. O prprio Comentrio levou em considerao esta possvel dificuldade do leitor e, em algumas passagens, tentou se fazer explicar o quanto pde:

"Deve-se considerar, diz o Comentrio, que algum pode alcanar a virtude perfeita e a sua operao de duas maneiras: de um modo segundo o comum estudo dos homens; de outro modo, alm do modo e do comum estudo dos homens, o que se denomina de virtude herica. A virtude herica aquela segundo a qual algum, pela virtude moral e intelectual, alcana a operao de qualquer virtude acima do modo comum dos homens; trata-se de um modo divino de ser, que se realiza atravs de algo divino existente no homem, que a inteligncia. assim que se expressa Aristteles: este homem, de fato, que excede de tal maneira a todos os demais, dito ser entre eles como um deus" .

"Os que excedem de tal maneira aos demais na virtude no so verdadeiros cidados", continua o Comentrio .

"No devem, entretanto, por este motivo, serem expulsos da cidade e transferidos para outros lugares; isto seria contra a razo, porque trata-se de algum que alcanou o timo. No devem, porm, por outro lado, ser levados ao governo como aos demais, de tal maneira que s vezes governem e outras vezes sejam sditos. Sendo tal homem timo, ser digno e justo que todos alegremente lhe obedeam, e que ele seja o governante, seja um s ou mesmo vrios" .

O Comentrio afirma em vrias passagens que a multido deve governar quando ningum se sobressai manifestamente na virtude; neste caso, se apenas um s governasse,

"os demais seriam desonrados, o que seria inconveniente" e fonte de rebelio .

Mas o caso de que estvamos tratando era completamente diverso. Tratava-se, de fato, de

"algum que excede a todos os demais na virtude; neste caso apenas ele deve governar. A razo disto que mais convm governar aquele que mais se aproxima do governo natural e ao prprio modo como governado o Universo; mas algum que excede dessa maneira aos demais na virtude realiza tal aproximao, conforme vemos no Universo, no qual h um s governante. Ora, o governo do Universo um s e timo, pelo que na cidade aquilo que mais uno e melhor o que mais se aproxima semelhana do governo do Universo e do governo natural" .

IX.9) Definio da forma excelente de governo.

No Comentrio ao III da Poltica encontramos uma passagem em que o comentador define a Monarquia apontada como a mais excelente forma de governo:

" o estado no qual a multido se submete por uma inclinao natural a algum sobre excelente a todos os demais na virtude" .

Uma sociedade assim organizada, afirma o Comentrio,

"dura muito tempo, porque o governante reina sobre homens bons e de acordo com a virtude, pelo prprio desejo dos sditos" .

O Comentrio deixa a entender claramente que um sistema de governo como este no uma utopia idealizada por algum pensador em busca de originalidade; no tambm uma inveno humana que precise ser imposta artificialmente; ao contrrio, algo ao qual se ordena a natureza humana e que comea a manifestar-se medida em que aos homens ou a uma boa parte dos mesmos se lhes possibilita o acesso virtude e vida da inteligncia, que so tambm o seu fim ltimo, sua aspirao mais profunda, e a sua felicidade.

IX.10) As leis da sociedade perfeita.

Em uma sociedade assim organizada, diz o Comentrio, as leis tm como objetivo promover a virtude:

"De fato, esta a verdadeira finalidade de toda lei. De onde que, se no for proporcionada virtude, nem sequer ser lei" .

E tambm:

"Aos governantes e legisladores prprio fazer leis e introduzir costumes pelos quais se formam bons cidados, fazendo as leis considerando as partes da alma que devem ser dispostas s virtudes e s suas operaes, devendo ser mais solcitos em ordenar as melhores e aquelas que possuem razo de fim, como as partes principais da alma e suas aes, pois assim que procede a prpria natureza, sendo mais solcita com o que mais nobre" .

IX.11) A escolha do governante.

Conforme dissemos, a Monarquia que o Comentrio Poltica aponta como o regime perfeito nada tem a ver com a formao de uma casa real ou com o poder hereditrio. Na sociedade organizada tendo a virtude como fim, o governante deve ser

"escolhido por eleio e no por sucesso; apenas acidentalmente o governante poderia ser melhor escolhido por sucesso hereditria. De fato, geralmente o melhor mais facilmente encontrado dentro da multido do que ser algum j determinado; ademais, a eleio um ato da vontade determinado pela razo" .

Com isto o Comentrio d a entender que na sociedade voltada para a virtude o governante deve ser escolhido, isto , eleito, e no receber o governo por hereditariedade. Mas a concepo que S. Toms de Aquino e o Comentrio Poltica fazem do modo de proceder a esta eleio totalmente diferente das eleies democrticas. Nas democracias modernas os candidatos interessados em governar fazem campanha para convencerem os eleitores que so as pessoas mais aptas para o governo. Para Toms de Aquino e os filsofos gregos, entretanto, em uma sociedade voltada para a virtude no poderia haver incoerncia maior do que esta. J vimos no captulo III e no captulo VI deste trabalho afirmaes de Plato segundo as quais os homens sbios e de virtude no desejam o governo, e mais devem ser forados a aceit-lo do que se esperar que o faam espontaneamente. Na Summa Theologiae diz tambm S. Toms de Aquino que no sinal de sabedoria, mas de

"presuno, que algum deseje colocar-se acima dos outros para que lhes possa fazer o bem" .

Por estes motivos, de se esperar que numa sociedade perfeita nenhum governante se oferea para qualquer cargo; muito menos que faa campanha para convencer aos outros de que ele o melhor; ao contrrio, o que de se esperar que, na maioria das vezes, sequer desejem o governo. Mas, afirma o Comentrio Poltica, no por isso que ele deixar de governar:

"Se algum for digno de governar, afirma o Comentrio Poltica, deve assumir o cargo, quer queira, quer no queira, porque o bem comum deve ser preferido vontade prpria" .

IX.12) Dificuldade de implantao da sociedade perfeita.

muito difcil organizar uma sociedade com as caractersticas apontadas, conclui o Comentrio:

"No se fazem muitas Monarquias, e, se se fazem, so em sua maioria Tiranias em vez de verdadeiras Monarquias.

A razo que a verdadeira Monarquia deve ser um governo voluntrio, em que o monarca governe a sditos que o aceitem voluntariamente e que, ainda assim, seja senhor de todos os principais do reino. Ora, muito difcil encontrar algum que governe desta maneira a muitos e voluntariamente e que ao mesmo tempo seja digno de ser senhor de todos os maiores do reino.

Uma outra razo que, para isso, a proporo da dignidade e da honra do monarca para com os sditos deve ser a mesma que a da virtude do monarca virtude dos sditos. A virtude do governante deve, portanto exceder a de todos ou da maioria; nem sempre possvel encontrar algum assim, ou pelo menos muito difcil.

Por isso, quando algum se torna monarca, geralmente isso se d contra a vontade dos sditos, e por isso mesmo no reina durante muito tempo.

Ora, se algum reina recorrendo fraude ou violncia, este no o verdadeiro monarca, mas um tirano que governa os sditos contra a vontade deles" .

IX.13) A tendncia geral Democracia.

Vemos assim que o Comentrio Poltica no tem a inteno de esconder as dificuldades no estabelecimento da sociedade tima. Ao contrrio, alm das que j foram mencionadas, ele aponta tambm para a existncia de uma tendncia geral de todas as sociedades, inclusive das Monarquias, a se transformarem em Democracias e a assim permanecerem.

Antes de mostrarmos como o Comentrio chega a esta concluso, devemos chamar a ateno para a relevncia do fato aqui apontado para os dias de hoje. Pois, considerando a argumentao de que o Comentrio se utiliza para evidenci-la, observa-se que ela vale de modo especial para as sociedades historicamente isoladas. Depreende-se, dos argumentos do Comentrio, que quando a uma sociedade permitido viver apenas a sua prpria histria, com um mnimo de interferncias externas, h uma tendncia geral a que estas sociedades se acabem transformando em Democracias.

Ocorre porm que nunca, na histria da humanidade, houve civilizaes inteiramente isoladas; ao contrrio, sempre elas se conquistavam umas s outras e at mesmo o Imprio Romano, aparentemente to auto suficiente, teve que sofrer as invases dos brbaros. A primeira vez na histria em que parece ter surgido uma civilizao que no possa mais sofrer influncias externas sobre si prpria no momento presente, em que as comunicaes e o progresso tecnolgico fizeram do globo terrestre como que uma s comunidade humana. Da a relevncia do argumento que vamos examinar.

Diz o Comentrio que no incio de todas as sociedades o regime era monrquico. Ao fazer esta afirmao, o Comentrio no est se referindo sociedade tima que ele acabou de descrever, mas a uma forma de governo baseada no poder de um s governante e que apresenta algumas caractersticas que lembram o regime que foi descrito nas pginas precedentes:

"As cidades, diz o Comentrio, no princpio eram regidas por um s rei, porque era mais fcil encontrar um sbio do que muitos, e por isso o governo real foi concedido pela primeira vez a um s.

Ademais, no incio, as cidades eram pequenas, e por isso era suficiente um s para govern-las.

Ademais, escolheram para si um rei por causa de algum benefcio que haviam alcanado atravs dele, seja porque por eles lutou contra os seus inimigos, seja porque descobriu alguma arte que lhes fosse necessria, todas estas coisas sendo obras de um homem bom. Por este motivo, a este homem, como a algum bom e virtuoso, o tomaram como rei" .

Mas, continua o Comentrio, aos poucos esta monarquia foi se transformando em Aristocracia:

"Aconteceu, porm, depois, que muitos se exercitaram nas obras da virtude, pelo que muitos se tornaram virtuosos. Estes, em seguida, procuraram instituir o governo de muitos, pois eram todos semelhantes na virtude, e deixaram de sustentar o governo real, instituindo o governo dos iguais na virtude. Ora, esta forma de governo a Aristocracia; depois, portanto, da monarquia, veio a Aristocracia" .

Com o passar do tempo, porm, a Aristocracia transformou-se em Oligarquia. assim que o Comentrio narra o acontecido:

"Ocorreu depois que estes governantes se tornaram ricos com os bens comuns, e, inclinando-se aos prazeres destitudos da razo, passaram a governar por causa da riqueza; deste modo o Estado Aristocrtico se converteu em Estado Oligrquico. Transformaram a riqueza em objeto de honra, e fizeram com que os homens tivessem que governar por causa delas" .

O passo seguinte foi o advento da Tirania:

"Ocorreu ento que um dos governantes se tornou mais rico do que os outros, mais poderoso pelas suas amizades, e com isto acabou por subjugar aos demais. Deste modo, converteu o Estado Oligrquico em uma Tirania, governando apenas para o seu prprio interesse" .

Surge, ento, quando a Tirania chega ao extremo, o Estado Democrtico:

"Aps a Tirania adveio a Democracia. De fato, como o tirano oprimisse at os homens ricos para poder obter lucros torpes, os prprios cidados que conduziam esta poltica extorsiva, desviando parte do lucro torpe do tirano, incitaram uma multido mais forte e fizeram com que ela se insurgisse contra o tirano. Aconteceu assim que o povo se rebelou, expulsando o tirano e ficando com o poder, instaurando-se com isto uma Democracia. Esta a causa porque em muitas cidades governa o povo, porque o povo numeroso e por isso detm o poder. Todavia, l onde o povo domina, introduz alguma coisa das demais formas de governo;nomeia, de fato, alguns homens que daro as ordens e nomeia tambm algum que esteja acima destes" .

Com estes argumentos o Comentrio aponta para a existncia de uma tendncia histrica em todas as sociedades pela qual, com o tempo, acabam se transformando em Democracias. Percebe-se, deste modo, como difcil estabelecer entre os homens uma sociedade propcia virtude e contemplao, muito embora seja esta a aspirao mais profunda do homem e, correlativamente, a obrigao fundamental da sociedade. Trata-se, na verdade, de um dos problemas mais difceis com que se pode defrontar a sociedade humana.

In libros Politicorum Expositio, L.I, l. 1, 16.

Idem,L.I,l.1,17-18.

Idem, L.I, l.1, 19.

Idem, L I, l.1, 25.

Idem, L.I, l.1, 26.

Idem, L.I, l.1, 27.

Idem, L.I, l.1, 28.

Idem, L.I, l.1, 29.

Idem, L.I, l.1, 31.

Idem, L.I, l.1, 32.

Idem, L.I, l.1, 34-35.

Idem, L.I, l.1, 40-41.

Idem, L.I, l.1, 36.

Idem, L.VII, l.1, 1047.

Idem, L.VII, l.1, 1048.

Idem, L.VII, l.1, 1049.

Idem, loc. cit..

Idem, L.VII, l.1, 1050.

Idem, L.VII, l.1, 1051.

Idem, L.VII, l.1, 1052.

Idem, L.VII, l.1, 1057.

Idem, loc. cit..

Idem, L.VII, l.2, 1059.

Idem, L.VII, l.2, 1060.

Idem, L.VII, l.2, 1082.

Idem, L.I, l.1, 31.

Idem, L.VII, l.1, 1052.

Idem, L.II, l.7, 242.

Idem, loc. cit..

Idem, loc. cit..

Idem, loc. cit..

Idem, loc. cit..

Idem, L.IV, l.1, 539.

Idem, loc. cit..

Idem, loc. cit..

Idem, loc. cit..

Idem, L.III, l.6, 398.

Idem, loc. cit..

Idem, L.III, l.7, 400.

Idem, loc. cit..

Idem, L.III, l.7, 401.

Idem, L.III, l.7, 404.

Idem, L.I, l.10, 155.

Idem, L.III, l.7, 404.

Idem, L.III, l.7, 412-413.

Bonavides, Paulo: Cincia Poltica; So Paulo, Forense, 1986; pgs.319-321.

In libros Politicorum Expositio, L.III, l.4, 381.

Idem, L.III, l.13, 474.

Idem, L.I, l.10, 154.

Idem, L.II, l.1, 183.

Idem, L.II, l.1, 182.

Idem, L.II, l.1, 183.

Idem, L.IV, l.1, 532.

Idem, L.III, l.1, 455.

Idem, L.III, l.16, 525.

Idem, L.III, l.12, 463.

Idem, L.III, l.12, 469.

Idem, L.III, l.12, 473.

Idem, loc. cit..

Idem, L.III, l.12, 473.

Idem, L.III, l.16, 524.

Idem, L.V, l.10, 882.

Idem, L.II, l.13, 297.

Idem, L.VII, l.11, 1207.

Idem, L.III, l.14, 504.

Summa Theologiae, IIa IIae, Q.185 a.1.

In libros Politicorum Expositio, L.II, l.14, 315.

Idem, L.V, l.10, 884.

Idem, L.III, l.14, 409.

Idem, L.III, l.14, 500.

Idem, L.III, l.14, 501.

Idem, L.III, l.14, 502.

Idem, L.III, l.14, 503.