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A EDUCAÇÃO NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL: IMITES E (lM)POSSIBILlDADES PARA A CLASSE TRABALHADORA Márcia Oardênia Lustosa Pires' Introdução É realmente maravilhosa a luta que a humanidade trava há tempos Irnemoriels: luta incessante, com a qual busca desfazer e romper todos os vinculos que o desejo de dominio de um só, de uma classe ou mesmo de todo um povo tenta lhe impor. É esta uma epopéia que teve inúmeros heróis e que foi escrita pelos historiadores de todo o mundo. O homem, que em certo momento se sente forte, com a consciência da própria responsabilidade e do próprio velor; não quer que nenhum outro lhe imponha sua vontade e pretende controlar suas ações e seu pensamento. (Antônio Gramsci) o presente capítulo objetiva refletir sobre a educação destinada à classe trabalhadora e as implicações desse modelo de escola para o desenvolvimento pleno da capa- cidade intelectual desse segmento, em face da condição de explorados e de dominados na sociedade capitalista. Assim, busca, em um debate com a perspectiva gramsciana, mostrar os limites que os trabalhadores encontram no exer- cício do "direito" à educação em uma sociedade na ,qual predominam os interesses dos que detêm o poder econó- mico e a decisão política. É bem verdade, como assinalam Marx e Engels (1980, p. 8), que a classe trabalhadora vivencia historicamente uma luta entre opressores e oprimidos, dominantes e dominados: • Mestranda do Programa de Pós-graduação em educação Brasileira na Uni- versidade Federal do Ceará; pesquisadora do Laboratório de Estudos do Tra- balho e Qualificação Profissional - LABOR/UFC;bolsista CNPq. r'E:KGAI\iI " BCCE/UFC

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A EDUCAÇÃO NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL:IMITES E (lM)POSSIBILlDADES PARA A CLASSE

TRABALHADORA

Márcia Oardênia Lustosa Pires'

IntroduçãoÉ realmente maravilhosa a luta que a humanidade trava

há tempos Irnemoriels: luta incessante, com a qual buscadesfazer e romper todos os vinculos que o desejo

de dominio de um só, de uma classe ou mesmo detodo um povo tenta lhe impor. É esta uma epopéia

que teve inúmeros heróis e que foi escrita peloshistoriadores de todo o mundo. O homem,

que em certo momento se sente forte,com a consciência da própria responsabilidade

e do próprio velor; não quer que nenhumoutro lhe imponha sua vontade e pretende

controlar suas ações e seu pensamento.

(Antônio Gramsci)

o presente capítulo objetiva refletir sobre a educaçãodestinada à classe trabalhadora e as implicações dessemodelo de escola para o desenvolvimento pleno da capa-cidade intelectual desse segmento, em face da condiçãode explorados e de dominados na sociedade capitalista.Assim, busca, em um debate com a perspectiva gramsciana,mostrar os limites que os trabalhadores encontram no exer-cício do "direito" à educação em uma sociedade na ,qualpredominam os interesses dos que detêm o poder econó-mico e a decisão política.

É bem verdade, como assinalam Marx e Engels (1980,p. 8), que a classe trabalhadora vivencia historicamenteuma luta entre opressores e oprimidos, dominantes edominados:

• Mestranda do Programa de Pós-graduação em educação Brasileira na Uni-versidade Federal do Ceará; pesquisadora do Laboratório de Estudos do Tra-balho e Qualificação Profissional - LABOR/UFC;bolsista CNPq.

r'E:KGAI\iI "BCCE/UFC

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A história de todas as sociedades que existiram até nos-sos dias tem sido a história das lutas de classes. Homemlivre e escravo, patricio e plebeu, senhor e servo, mes-tre de corporaçào e oficial. numa palavra, opressores eoprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guer-ra ininterrupta. ora franca, ora disfarçada; uma guerraque terminou sempre, ou por uma transformação revo-lucionária da sociedade inteira ou pela destruição dassuas classes em luta.

Nesse sentido, no âmbito de relações sociais elabora-das com base em um padrão de desenvolvimento capita-lista no qual convivem a acumulação de riqueza e miséria,pode-se afirmar que os trabalhadores se inserem em umuniverso marcado pela subetternidede' e pela etteneçéo',Enquanto submetidos a relações sociais de dominação e àcondição de explorados os trabalhadores enfrentam ne-cessidades históricas e socialmente produzidas que nãose limitam à satisfação no campo material, mas se consti-tuem também no ãmbito das necessidades espirituais".

I É importante sublinhar que o termo "subalternidade" é utilizado aqui naacepçào gramsciana, que conforme analisa Simionato (1995). diz respeito à

ausência de poder de mando, de poder de decisão, de poder de criação edireção.2 Cabe destacar que, numa perspectiva marxista de análise, para sobreviver,o homem trava uma relação com a natureza mediada pelo trabalho, todaviaentender essa relação intrinseca entre homem e natureza impõe perceber oemaranhado de questões nela imbricadas. Requer perceber essa atividadehumana vital em suas contradições, como uma relação antagõnica que seelabora em uma dada realidade e em um determinado momento histórico.Assim, sobre o processo de alienação do homem em relação à atividade querealiza para sobreviver, Marx (2004) afirma que: "Já que o trabalho alienadoaliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo,a sua atividade fundamental, aliena do mesmo modo o homem a respeito daespécie, transforma a vida genérica em meio a vida individual; depois, mudaesta última na sua abstração em objetivo da primeira, portanto, na sua formaabstrata e alienada." (p. 116).3 Convém esclarecer que a produção espiritual humana aqui é compreendi-da, conforme assinala Marx como a produção de bens não materiais ou cultu-rais (2004). ou como, no entender de Saviani (2005, p. 12). "I...) produção deidéias, conceitos, valores, simbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numapalavra, trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a cultura, isto é, oconjunto da produção humana."

MárciaGardéniaLustosaPires

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De acordo com Marx (2004), numa forma de organiza-r" social onde predomina a exploração humana por meio110 trabalho, ao trabalhador só resta sobr viv r om O rni-nlrno necessário à sua existência, apenas para 9 r ntlr ua111 ra reprodução como classe:

(... ) torna-se evidente que a economia politica 011 Id 1"<

o proletário, ou seja, aquele que vive, sem capltal li

renda, apenas do trabalho unilateral. abstrato, como sim-ples trabalhador. Por conseqüência, pode sugerir a l ede que ele, assim como um cavalo, deve receber 0-

mente o que precisa para ser capaz de trabalhar. (MARX,2004, p. 72).

Desse modo, considerando as condições objetivas deexistência da classe trabalhadora e de sua histórica "luta"pela sobrevivência em uma sociedade assentada em pata-mares desiguais, como pensar o desafio do exercicio dodireito à educação para os trabalhadores, uma vez que estesvivenciam dificuldades diversas, que dentre outros aspec-tos se expressam inclusive na impossibilidade de freqüen-tar a escola formal? Portanto, como pensar a viabilizaçãoda educação quando não se tem direito nem mesmo aomínimo necessário à sobrevivência?

Partindo de tais pressupostos, relativamente à escola-rlzaçáo dos trabalhadores, pode-se indagar, ainda: quaisas possibilidades de viabilização da educação para as mas-sas em um modelo de escola criado pela burguesia e, des-de o início, com sede em parãmetros elitistas?

Cabe considerar a noção de que refletir sobre a educa-ção, notadamente sobre o modelo de educação destinadoàs massas requer tecer considerações sobre a sua funçãona sociabilidade do capital - fenômeno esse expresso comouma realidade complexa e caótica na sociedade contem-porãnea e que tem em sua gênese histórica elementos re-levantes que nos ajudam a compreender melhor suas múl-tiplas faces e contradições. Com efeito, pensar a educa-ção numa dimensão de totalidade exige percebê-Ia comouma relação social situada em ãmbito determinado por

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aspectos socioeconõmicos e políticos que implicam modi-ficações no âmbito educativo.

Nesse sentido, é preciso considerar o momento histó-rico em que se propaga a falácia do "direito à educação",conforme previsto em lei (Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação - LDB, nº 9394/96) e sua efetivação prática. Em sumaé preciso considerar os (des)caminhos percorridos pelaeducação, suas principais mudanças a partir da consolida-ção da sociedade burguesa e sua promulgação como umdireito, principalmente quando destinada à classe traba-lhadora, em uma análise que contemple mais do que índi-ces quantitativos de evasão e fracasso escolar.

Como se pode perceber nas diversas mudanças ocor-ridas nesse âmbito, é expressa toda uma luta de interessese uma realidade socioeconõmica que merece ser enfatizada.Que interesses estão subjacentes ao fenõmeno demassificação da educação? O que melhor determina asmudanças que se engendram no âmbito legal da educaçãono atual momento vivenciado em nossa sociedade?

Classe Trabalhadora e Educação - Algumas tspect-fícídades Históricas

É importante ressaltar as especificidades históricas dasociedade capitalista em sua relação com a escola, e suasconseqüéncias para a classe trabalhadora, notadamenteno que tange ao propagado "direito à educação". Portanto,é importante percebermos o paradoxo em que se insere aeducação, num quadro social que, ao mesmo tempo emque favorece teoricamente o acesso à educação, não acei-ta a permanéncia deste segmento na escola formal, umavez que as condições objetivas das classes menosfavorecidas cerceiam esse direito.

Ao nos debruçar em uma análise histórica da educa-ção em diferentes épocas, vê-se que é verdadeiro o fato deque esta sempre se manifestou como uma propriedadequase exclusiva das classes dominantes. Durante grandeparte da história da humanidade, a educação formal, ou

Márcia Gardênia Lustosa Pires

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seja, a apropriação do legado histórico da humanidad ,cI.produção espiritual humana, não era acessível às grandmassas. Somente há bem pouco tempo, numa perspectivahistórica de análise, as transformações ocorridas na basede produção material provocaram mudanças sociais e eco-nõmicas que se refletiram na educação, favorecendo, as-sim, o acesso das massas à escola formal.

É oportuno lembrar que a escola, tal como hoje a co-nhecemos, resulta de um desenvolvimento social em rela-ção ao estádio mais primitivo da humanidade, pois, com odesenvolvimento das forças produtivas, o avanço da técni-ca e da ciência, e a complexidade crescente das rela-ções sociais, a perpetuação da produção material e espi-ritual humana exigiu a criação de uma instituição que seencarregue da transmissão, para as novas gerações, detodo o acervo de bens e conhecimentos produzidos pelogênero humano durante séculos e séculos de história.Já não se poderia mais transmitir espontaneamente todoo legado histórico da humanidade, assim surgindo a es-cola. Importa sublinhar, sublinhar, todavia, que, comoassinala Fonce:

(... ) conceito de educação, como uma função espontá-nea da sociedade, mediante a qual as novas gerações seassemelham as mais velhas, era adequado para a comu-nidade primitiva, mas deixou de sê-lo à medida que estafoi lentamente se transformando numa sociedade dividi-da em classes. (1982, p. 22).

Não se pode negar o percurso histórico de um~ insti-tuição que surge alicerçada em mudanças sociais funda-mentadas na produção material, pois o desaparecimentodos interesses comuns dos membros da comunidade e aconseqüente substituição por interesses antagõnicos im-plicará os fins da educação, como uma instituição que re-fletirá os interesses de uma nova forma de organizaçãosocial. Assim, é importante pensar sobre a.existência deuma escola que sempre esteve a serviço da classe domi-nante e não dos interesses de toda uma coletividade.

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Como anota, ainda Ponce (1982), a educação pode serconsiderada como "propriedade praticamente exclusiva dasclasses dominantes, a educação era, inicialmente, negadaquase que totalmente às classes menos favorecídas". Suaprincipal característica, porém, desde o aparecimento dasociedade dividida em classes, reside numa progressivapopularização da cultura. É oportuno esclarecer, entretan-to, que tipo de educação se destinou, nesse processo demudança social, à classe trabalhadora, quando se observaque, na civilização moderna (séc.XIX), com o desenvolvi-mento da indústria, instala-se um dualismo educacional des-tinando o ensino intelectual para as crianças filhas dos se-nhores das camadas dominantes e o técnico para os filhosdo estrato trabalhador. Tal fato evidencia uma proposta doemprego da educação formal para a perpetuação das desi-gualdades sociais, reproduzindo assim a divisão de classe.

Evidencia-se, pois, numa perspectiva histórica, o fatode que os processos educativos refletem as necessidadesde preparar as pessoas para os processos de trabalho epara a forma de organização social e política vigente. Enguita(1989) evidencia a noção de que a emergência e a prolifera-ção da indústria exigiram outro tipo de trabalhador, que

(... ) devia aceitar trabalhar para outro e fazê-lo nas con-dições que este outro lhe impusesse. Se os meios paradobrar os adultos iam ser a fome, o internamento ou aforça, a infância (os adultos das gerações seguintes) ofe-recia a vantagem de poder ser modelada desde o princi-pio de acordo com as necessidades da nova ordem capi-talista e industrial, com as novas relações de produçâo eos novos processos de trabalho. (ENGUITA,1989, p. 113).

Conforme abordado pelo referido autor, passagem dofeudalismo para o capitalismo industrial trouxe novas neces-sidades para a sociedade que emergia, contribuindo para osurgimento da escola para massas. Não obstante, a escolaseria o instrumento ideal para disciplinar o trabalhador. Nãoque estas tenham sido criadas necessariamente para estafinalidade, mas se poderia utilizá-Ias também para esse fim.

Márcia Gardênia Lustosa Pires

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Evidencia-se, portanto, que, como assinala Frig uo(2000), historicamente, a educação dos diferentes grup ssociais de trabalhadores se efetiva com a finalidade dhabilitá-los técnica, social e ideologicamente para o traba-lho. Sob este aspecto Ciavatta, corroborando com essa idéia(2002) pensa que o modelo de escola tradicional pretendiaeducar separando dos produtores o homem dirigente, osque estavam destinados ao conhecimento da natureza e daprodução daqueles que executavam as tarefas. Percebe-se,então, uma intenção em subordinar a função social da edu-cação para responder às demandas do capital e não ao de-senvolvimento pleno do potencial intelectual dos indivídu-os. Partindo dessa reflexão, torna-se cada vez mais neces-sário discutir acerca da formulação histórica de um modelode educação diferenciada, destinada aos que compõem osegmento dos menos favorecidos em nossa sociedade.

Nesse sentido, é preciso que se compreenda o estabele-cimento histórico das condições de existência da classe tra-balhadora, pois à medida que a classe dominante passa aassegurar a sua hegemonia, isto é feito mediante um projetoideológico fortemente repassado e absorvido pela classe do-minada. É nessa perspectiva que se evidencia a necessidadede se compreender melhor a imbricação existente entre aeducação e o capitalismo para o desenrolar histórico da hu-manidade. Como anota Marx e Engels (1998) a classe quedispõe dos meios de produção material possui igualmente osmeios de produção intelectual, de forma que o pensamentodaqueles a quem são recusados os meios de produçáo.inte-lectual está submetido igualmente ao estrato dominante.

Assim, enveredamos por alguns dos escritos de Antó-nio Orarnsci+ no intuito de melhor explorar essa temática,

• António Gramsci (1891-1937), pensador italiano, ativo líder do Partido Co-munista durante o período fascista de Mussolini, na Itália. Foi preso emvirtude de sua atuação política, onde na militãncia, lutou ao lado das massasoperárias em Turim. Suas idéias estão imbricadas com o movimento da histó-ria, da sociedade e com os desafios de sua época, baseadas nos pressupos-tos metodológicos da Teoria de Marx, numa linha dialética enquanto criticada política.

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revelando as estratégias e interesses do referido teórico,quando propõe uma educação que contemple verdadeira-mente o atendimento das necessidades das massas e apossibilidade de superação da sociedade de classes.

GramsCÍ e a Educação das Massas

Ao considerarmos as condições em que se efetiva aeducação da classe trabalhadora notamos que a garantia eo exercício do direito à educação desse segmento esbar-ram em contradições sociais que obstaculizam a efetivaçãoprática dessa atividade essencial do indivíduo. Portanto,nos reportamos aqui à proposta de educação gramsciana,que teoriza a perspectiva unitária de formação do homem eenfatiza a necessidade de se formar homens "ornnilateraís".produtores, mas também dirigentes (CIAVATIA,2002), poracreditarmos ser esta a mais adequada ao atendimentodas necessidades da classe trabalhadora.

As reflexões de Gramsci apontam para uma preocupa-ção constante com a formação das classes subalternas,tendo como base a elevação cultural das massas, numaperspectiva revolucionária. Neste sentido, Gramsci consi-dera a possibilidade de ascensão intelectual das classesmenos favorecidas, a partir de uma proposta educativa quefavoreça ao proletariado também produzir os seus intelec-tuais, para a consecução de sua hegemonia e, assim, aspi-rar à direção da sociedade (SIMIONATIO, 1995).

Como ressalta Nosela (2004), os escritos do socialistaAntônio Gramsci deixam transparecer a idéia de que estevivenciou um contexto social e político conflituoso. ou seja,um momento histórico de grande efervescência social noqual se confrontavam ideologias burguesas e proletárias.Como membro do Partido Socialista Italiano, a estratégiade Gramsci consistia em "voltar-se ao preparo em profun-didade das mentes dos operários" para formar a médio ecurto prazo os quadros necessários à tomada de poder porparte do proletariado. (NOSELA,2004, p. 42).

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Gramsci atribuía fundamental importância à esf r dacultura na formação de uma nova consciência social po-lítica das classes subalternas e com relação à educaç O

das massas. É oportuno enfatizar, porém, o que ele assina-la referido teórico sobre o aspecto da cultura ter sido con-cebida como "saber enciclopédico", no qual o homem écompreendido apenas como um recipiente pronto a rece-ber este saber e a classificá-lo e posteriormente responderaos fatos da existência concreta:

Essa forma de cultura é realmente prejudicial, sobretu-do para o proletariado. Serve apenas para criar margi-nais, pessoas que acreditam ser superiores ao resto dahumanidade porque acumularam na memória um certonúmero de dados e de datas que vomitam em cada oca-sião, criando assim quase que uma barreira entre elas eas demais pessoas. Serve para criar aquele tipo deintelectualismo balofo e incolor (... ) intelectualismo quegerou toda uma caterva de presunçosos e sabichões,mais deletérios para a vida social do que os micróbiosda tuberculose e da sífilis o são para a beleza e a saúdefísica dos corpos. (GRAMSCL2004, p. 57).

No entender de Nosella (2004), sobre o aspecto daformação cultural, Gramsci defende as atividades forrnativo-culturais para o proletariado em geral, rejeitando a idéiade uma formação cultural abstrata, enciclopédica e bur-guesa, que disperse a ação das massas. Desta feita, talfato nos conduz a refletir sobre a escola que se apresentano atual modelo de sociedade, e que se constitui como umJocus privilegiado da transmissão de conhecimentos cíen-tíficos. de cultura e de todo um conjunto de valores quecontribuem para a formaçâo dos indivíduos. Numa pers-pectiva gramscíana. no entanto, compreendemos que essatransmissão de conhecimentos não pode estar dissociadada realidade de vida dos sujeitos, notadamente do conhe-cimento necessário à emancipação humana e superaçãode uma forma de organização social que subjuga grandeparte da humanidade a uma classe que se afirmou histori-camente como opressora.

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Preocupando-se com esse aspecto, Gramsci defendeentão a necessidade de haver uma unidade entre escola evida, um nexo entre instrução e educação, observando queos contrastes entre a realidade de vida e a cultura que re-cebem as camadas populares contribuem para um distan-ciamento entre a instrução recebida na escola e sua aplica-ção à vida prática. Assim destaca:

(... ) a consciência da criança não é algo 'individual' (emuito menos individualizado), é o reflexo da fração desociedade civil da qual participa, das relações sociaistais como elas se concentram na família, na vizinhança,na aldeia, etc. A consciência individual da esmagadoramaioria das crianças reflete relações civis e culturais di-versas e antagônicas às que são refletidas pelos progra-mas escolares: o "certo" de uma cultura fossilizada eanacrônica, não existe unidade entre instrução e educa-ção. (GRAMSCI, 1989, p. 131).

Portanto, Gramsci enfatiza a necessidade da fusão en-tre trabalho e educação, numa perspectiva unitária de for-mação do homem político e produtor ao mesmo tempo, apartir de um modelo de escola capaz de contribuir para aelevação do potencial intelectual das massas, e que forne-cesse uma formação cultural geral. humanistica. mas quetambém pudesse atender a função produtiva na sociedademoderna. Tal proposta era contrária aos princípios da es-cola dual de Giovane Gentile (1875 - 1944) - filósofo epolítico italiano que, como ministro da Educação, de 1922a 1924, realizou uma reforma geral do ensino na Itália parao governo fascista." Gramsci propõe a criação de:

(... ) uma escola única inicial de cultura geral, humanísta.forrnatíva. que equilibre equanimemente o desenvolvi-mento da capacidade de trabalhar manualmente (tecní-

5 A esse respeito ver Portela (2003). Segundo esse autor a proposta de Gentilede reforma geral do ensino da Itália, visava impedir ás classes subalternas oacesso á cultura, sendo portanto, uma reforma totalmente antídemocrática.que reservava apenas ao homem das classes superiores o desenvolvimentodo espirito.

Márcia Gardénia Lustosa Pires

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carnente. industrialmente) e o desenvolvim nto das ca-pacidades de trabalho intelectual. Deste Upo d colaúnica, através de repetidas experiências de ori nl çàoprofissional, passar-se-àa uma das escolas espe iallzadou ao trabalho produtivo. (GRAMSCL 1989, p. I 18).

Podemos garantir que o legado teórico de Gramsciapresenta como instrumento que permite elaborar um pro-.J to revolucionário a partir da educação e da cultura. Comon sinala Simionato (1995), a preocupação de Gramsci àultura está relacionada com a luta pela emancipação po-

litica do proletariado e às condições de subalternidadeintelectual às quais são submetidas às classes trabalha-doras. Para ele a cultura é um instrumento de emancipa-ção política da classe operária, uma vez que, a partir dela,e criam possibilidades de tomada de consciência pelosujeitos sociais. Nesta perspectiva, a cultura apresenta-se

como condição necessária ao processo revolucionário,sendo capaz de instaurar uma nova ordem para a liberda-de e a democracia.

Dessa forma, diante de um modelo de escolarizaçãoque contribui para perpetuação das desigualdades de clas-se, é preciso considerar a realidade social e histórica emque se produzem a educação das camadas pobres e o deficitcultural destes, quando verificamos que, para muitos dosalunos da escola pública, o Ensino Fundamental constitui,a única experiência escolar e, que provavelmente, estesalunos, antes de estarem na escola, não vivenciaram situa-ções favoráveis de estimulação em leitura, não convive-ram, em ambientes letrados intencionalmente preparadospara essa aquisição. Essessujeitos, ao contrário dos filhosdas classes abastadas convivem em um contexto desfavo-rável ao aprendizado e ao desenvolvimento de seu poten-cial intelectual. Sobre isso, acentua Gramsci:

Numa série de famílias, particularmente das camadasintelectuais, os jovens encontram na vida familiar umapreparação, um prolongamento e uma integração da vidaescolar, absorvendo no "ar", como se diz, uma grande

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quantidade de noções e de aptidões que facilitam a carrei-ra escolar propriamente dita: eles já conhecem, e desen-volvem ainda mais, o conhecimento da língua literária, istoé, do meio de expressão e de conhecimento, tecnicamentesuperior aos meios possuídos pela média da populaçãoescolar dos seis aos doze anos. (1989, p. 122 e 123).

É fato que aspectos como a formação política e amilitãncia de Gramsci, aliados ao conflituoso momento his-tórico por este vivenciado, concorreram significativamen-te para a riqueza de suas contribuições teóricas. Assim,percebemos também que a consolidação histórica da divi-são fundamental que se expressava entre a escola clássicae proflssional. em que a primeira se destinava às classesdominantes, fomentaram nesse intelectual uma preocu-pação com o aspecto dual da educação naquele momen-to histórico. Essa questão foi assinalada por Gramsci(1989, p. 118) como um esquema racional em que "L ..) aescola profissional destinava-se às classes instrumentais,ao passo que a clássica destinava-se às classes dominan-tes e aos intelectuais."

Neste sentido pensar sobre os contrastes entre a reali-dade de vida e a cultura que recebe a classe trabalhadoracontribui para percebermos o distanciamento evidenciadoentre a instrução que recebem na escola e sua aplicação àvida prática, diante das dificuldades sociais e econõmicasenfrentadas por estes. Assim, percebemos que os jovens eadultos que freqüentam à escola à noite são a expressãodos obstáculos enfrentados por estes na construção dodireito à educação.

Assim, a proposta gramsciana de "escola unitária" in-corpora, assim, aspectos políticos e econômicos a fim, deque a escola atenda a sua função:

(... ) a escola unitária requer que o Estado possa assumiras despesas que hoje estão a cargo da família, no quetoca a manutenção dos escolares, isto é, que seja com-pletamente transformado o orçamento da educação na-cional. ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-

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o mais complexo: a inteira função de educação e forma-ção das novas gerações torna-se, ao invés de privada,pública, pois somente assim pode ela envolver todas asgerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI,1989, p. 121).

Nessa perspectiva, pensar sobre a educação de tina-(I I à classe trabalhadora na atual sociedade requer tran -( nder ao aparente, buscando a essência da realidade naqual se alicerçam e se reproduzem as diferenças social.

uestionar o baixo rendimento escolar das escolas públl-(H , quando comparado ao de outras escolas destinadasI s segmentos mais abastados da sociedade, exige perce-h r não somente os entraves pedagógicos que agravam osIiroblemas de escolarizaçáo de grande parte das crianças(I s estratos sociais menos favorecidos; pois apesar de osIndices estatísticos apontarem maiores possibilidades deI esso à educação no contexto atual, estes revelam tarn-I) m uma série de dificuldades enfrentadas pelos alunosele escola pública no exercício do direito à educação, con-I rme expressam os dados do Sistema de Avaliação Edu-

cional - SPAECE.6O desafio expresso é o de refletir sobre a escola, na

forma como foi pensada e secularizada, e a respeito daImpossibilidades de esta atender adequadamente aos seg-mentos mais pobres da sociedade. Como anota Gramsci:

A humanidade necessita de um outro banho de sanguepara cancelar muitas destas injustiças: e, quando issoocorrer, que os dominantes não se arrependam por te-rem deixado as massas no estado de ignorãncia e deferocidade em que se encontram agora! (2004, p. 46).

Nesse sentido, é oportuno aprofundar o debate sobre• sa temátíca, recobrando a teoria gramsciana, no sentido

~o Sistema de Avaliação da educação Básica - SAEBe o Sistema Permanented Avaliação Educacional - SPAECEsão dois tipos de avaliação de desempe-nho aplicados a partir da década de 90, constituindo-se instrumentos infor-mativos sobre a realidade escolar.

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de questionar a viabilidade do acesso à escola para os tra-balhadores e os novos matizes do dualismo educacionalno vigente modelo de sociabilidade. É preciso, portanto,pensar em uma proposta de educação que contemple oatendimento das necessidades das massas e a superaçãoda sociedade de classes. numa outra perspectiva de edu-cação contrária a proposta de educação burguesa, umavez que se percebe que no atual modelo de sociabilidade,tal proposta de educação não se propõe a contribuir parao desenvolvimento pleno dos sujeitos e muito menos asuperação da sociedade de classes. Assim, indagamos:quais as possibilidades de viabilização das camadas popu-lares à educação em um modelo de escola criado pelaburguesia e, que visa, tão-somente, ao atendimento asdemandas do capital?

Referências Bibliográficas

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Márcia Gardênia Lustosa Pires

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A Educação na Sociabilidade do Capital: (Im}possibilidades para aClasse Trabalhadora