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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA ELTON FERNANDO ROSSINI MACHADO A EFETIVAÇÃO DE FAIXAS DE SEGURANÇA EM RESERVATÓRIOS ARTIFICIAIS DE HIDRELÉTRICAS E OS SEUS ASPECTOS LEGAIS MARÍLIA 2012

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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA

ELTON FERNANDO ROSSINI MACHADO

A EFETIVAÇÃO DE FAIXAS DE SEGURANÇA EM

RESERVATÓRIOS ARTIFICIAIS DE HIDRELÉTRICAS E OS

SEUS ASPECTOS LEGAIS

MARÍLIA 2012

ELTON FERNANDO ROSSINI MACHADO

A EFETIVAÇÃO DE FAIXAS DE SEGURANÇA EM

RESERVATÓRIOS ARTIFICIAIS DE HIDRELÉTRICAS E OS

SEUS ASPECTOS LEGAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Pereira de Souza.

Machado, Elton Fernando Rossini A efetivação de faixas de segurança em reservatórios artificiais de hidrelétricas e os seus aspectos legais./Elton Fernando Rossini Machado -- Marília: UNIMAR, 2012. 119 f. Dissertação (Trabalho de Conclusão de Curso) -- Curso de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, Marília, 2012.

1. Meio Ambiente 2. Direito Ambiental 3. Faixa de Segurança em Reservatórios de Hidroelétricas I. Machado, Elton Fernando Rossini.

CDD -- 341.347

ELTON FERNANDO ROSSINI MACHADO

A EFETIVAÇÃO DE FAIXAS DE SEGURANÇA EM RESERVATÓRIO S

ARTIFICIAIS DE HIDRELÉTRICAS E OS SEUS ASPECTOS LEG AIS

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Roberto Pereira de Souza.

Aprovado em: __/__/____

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Coordenação do Programa de Mestrado em Direito

Considerações ______________________________________________________________

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Agradeço primeiramente a Deus, pelo dom gratuito da vida e da sabedoria.

À família, pela força e compreensão nestes momentos de superação.

Aos amigos do mestrado, verdadeiras amizades construídas ao longo da caminhada.

À minha namorada Rebeca, pelo apoio, incentivo e paciência.

À Dra. Rossana Curioni Mergulhão, em quem espelho os meus passos na fascinante vida

acadêmica.

Ao amigo Bruno Henrique Gonçalves, por me proporcionar o contato com a matéria no

âmbito jurídico, sem o qual o presente trabalho não existiria.

A EFETIVAÇÃO DE FAIXAS DE SEGURANÇA EM RESERVATÓRIO S

ARTIFICIAIS DE HIDRELÉTRICAS E OS SEUS ASPECTOS LEG AIS

RESUMO: O presente trabalho analisa o grau de efetividade da faixa de domínio dos reservatórios de hidrelétricas no Brasil. Sob a luz do direito ambiental, há a abordagem acerca da real necessidade da definição de áreas de segurança, bem como o estudo de seus impactos na natureza e respectivas soluções, sejam elas em seara administrativa ou judicial. São verificadas ainda as intervenções existentes em áreas de preservação permanentes (APPs), localizadas no entorno destes lagos, e quais as possibilidades de intervenção por particulares nestas terras protegidas. A apreciação da natureza jurídica destas áreas revela-se imprescindível para a discussão das medidas judiciais a serem adotadas em cada caso, notadamente nas hipóteses de expropriação de terras particulares pela concessionária responsável pelas atividades. Utiliza-se o método analítico dedutivo, inobstante casos pontuais também estudados. Realiza-se ainda uma abordagem histórica, resgatando assim o momento em que as atribuições da geração de energia elétrica foram delegadas a particulares, e quais as consequências desta transferência. Sob o aspecto econômico, são buscados os impactos do empreendimento no país e, sob o aspecto social, as principais consequências na vida da população ribeirinha. As leis e resoluções CONAMA são imprescindíveis para a proteção e regulamentação do uso destas áreas ambientalmente protegidas, motivo pelo qual também são estudadas no presente trabalho. A análise resultante deste estudo demonstra que a obediência a todos os procedimentos previstos para a implantação da usina hidrelétrica é fundamental, bem como que a existência da faixa de segurança no entorno dos reservatórios visa afastar qualquer empecilho ao correto funcionamento da usina, assegurando a preservação ambiental, desenvolvimento sustentável do país, e proteção à população que esteja próxima às áreas inundáveis. Aponta-se ainda interessantes sugestões visando melhorar o bom relacionamento da concessionária com a população ribeirinha, a fim de afastar conflitos no tocante à exploração sustentável da área sob concessão. Palavras-chaves: Meio ambiente. Direito ambiental. Faixa de segurança de reservatórios de hidrelétricas.

EFFECTIVE FOR A RANGE OF SAFETY IN ARTIFICIAL RESER VOIRS

HYDROELECTRIC AND ITS LEGAL ASPECTS

This paper analyzes the degree of effectiveness of the range area of hydroelectric reservoirs in Brazil. In light of environmental law, there is the approach on the real need to define the areas of security, as well as the study of their impacts on nature and their solutions, whether in administrative or judicial harvest. Are checked further interventions in areas of permanent preservation (APP), located around these lakes, and the possibilities of intervention by individuals in these protected lands. The legal nature of these areas appears to be essential for the discussion of legal measures to be adopted in each case, especially in cases of expropriation of private lands by the concessionaire responsible for the activities. We use the deductive analytical method, regardless of whether individual cases also studied. It also performs a historical approach, thus rescuing the moment when the powers of electricity generation have been delegated to private individuals, and the consequences of this transfer. Under the economic aspect, are sought the impacts of development in the country and, under the social aspect, the main consequences for the life of the local population. The laws and CONAMA resolutions are essential for the protection and regulation of the use of these environmentally protected areas, why are also studied in this work. The resulting analysis of this study demonstrates that compliance with all procedures for the implementation of the hydroelectric plant is essential, as well as the existence of the crosswalk in the vicinity of the reservoirs intended to eliminate any obstacle to the correct operation of the plant, ensuring environmental conservation , country's sustainable development and protect the population that is close to wetlands. Points are still interesting suggestions to improve the good relationship with the utility the local population, in order to avoid conflicts with regard to the sustainable exploitation of the area under concession. Keywords: Environment. Environment law. Range safety of hydroelectric dams.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Subestação da usina hidrelétrica de Bariri – SP – AES Tietê S.A........................ 32 Figura 2 – Comportas da barragem de Bariri – AES Tietê S.A.............................................. 37 Figura 3 – Hidrelétrica de Itaipu............................................................................................. 42 Figura 4 – Instalação de turbina na hidrelétrica de Itaipu....................................................... 43 Figura 5 – Comportas fechadas Jusante do reservatório de Bariri-SP.................................... 44 Figura 6 – Elementos estruturais da hidrelétrica..................................................................... 46 Figura 7 – Estrutura da área desapropriada............................................................................. 48 Figura 8 – Jusante do reservatório de Bariri-SP...................................................................... 59

LISTA DE ABREVIATURAS

ACP – Ação Civil Pública AI – Agravo de Instrumento ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica APP – Área de Preservação Permanente ART. – Artigo CDC - Código de Defesa do Consumidor CESP – Companhia Energética de São Paulo CF – Constituição Federal CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente CPC – Código de Processo Civil EIA – Estudo de Impacto Ambiental OAB – Ordem dos Advogados do Brasil PNMA – Política Nacional do Meio Ambiente PNRH – Política Nacional de Recursos Hídricos RIMA – Relatório de Impacto Ambiental STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10 1 O DIREITO E A NECESSIDADE DE GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA ... 13 1.1 DIREITO DE PROPRIEDADE....................................................................................... 13 1.2 PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL.................................................................... 15 1.2.1 Princípio do direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado................. 16 1.2.2 Princípio do poluidor – pagador.................................................................................... 17 1.2.3 Princípio da prevenção.................................................................................................. 18 1.2.4 Princípio da precaução.................................................................................................. 19 1.2.5 Princípio da função social da propriedade..................................................................... 21 1.2.6 Princípio da cooperação................................................................................................ 23 1.3 EVOLUÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL.................................................................... 25 1.3.1 Das águas....................................................................................................................... 26 1.3.2 O setor hidrelétrico........................................................................................................ 29 1.4 MEIO AMBIENTE E ECONOMIA................................................................................ 30 1.4.1 A economia e a exploração de energia elétrica............................................................. 34 1.4.2 Conflito entre demanda, necessidade de geração de energia e os interesses privados.. 38 1.4.3 A usina hidrelétrica de belo monte................................................................................ 40 2 INSTITUIÇÃO DA FAIXA DE SEGURANÇA ............................................................ 43 2.1 A DESAPROPRIAÇÃO E A FAIXA DE SEGURANÇA.............................................. 47 2.1.1 A natureza jurídica e a necessidade de registro perante o cartório................................ 50 2.1.2 Indenização.................................................................................................................... 55 2.2 RELAÇÃO COM A ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE............................. 58 2.3 LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE INDIVIDUAL....................................... 63 2.4 USOS INDEVIDOS DAS FAIXAS DE SEGURANÇA................................................. 66 3 RESPONSABILIDADE PELA CONSERVAÇÃO DAS FAIXAS DE SEGURANÇA E APPs.........................................................................................................

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3.1 MEDIDAS JUDICIAIS CABÍVEIS PARA ASSEGURAR A EFETIVIDADE DAS FAIXAS DE SEGURANÇAS E APPs..................................................................................

70

3.1.1 Natureza jurídica........................................................................................................... 73 3.1.2 Legitimidade.................................................................................................................. 74 3.2 MODIFICAÇÕES DA COMPETÊNCIA........................................................................ 75 3.2.1 Conexão......................................................................................................................... 77 3.2.2 Continência.................................................................................................................... 79 3.2.3 Litispendência................................................................................................................ 80 4 TUTELA COLETIVA ...................................................................................................... 84 4.1 AÇÃO CIVIL PÚBLICA................................................................................................. 87 4.1.1 Legitimidade.................................................................................................................. 89 4.1.2 Objeto............................................................................................................................ 90 4.1.3 Competência.................................................................................................................. 91 4.1.4 Tutelas sumárias e de urgência ..................................................................................... 92 4.1.5 Sentença e execução...................................................................................................... 94 4.2 AÇÕES COLETIVAS PARA PROTEÇÃO DE POSSUIDORES.................................. 94

CONCLUSÃO....................................................................................................................... 99 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 102 ANEXOS................................................................................................................................ 104

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INTRODUÇÃO

A instalação de usinas hidrelétricas sempre foi palco para grandes discussões dentre os

diversos setores da sociedade. O inicio das obras é antecedido por um intenso estudo das áreas

que sofrerão os impactos em consequência da formação do reservatório, tanto a montante

quanto a jusante da barragem.

Pesquisadores e técnicos unem forças para projetar a obra de maneira que esta

provoque a menor alteração possível no leito original do rio, nas suas margens, na fauna, na

flora, sempre aliada ao menor custo beneficio, delimitando o percurso que ocasione menores

alterações geográficas, evitando gastos demasiados nos cofres da concessionária.

Cabe observar também que sempre existirá conflito entre a engenharia e os

ambientalistas pela escolha do melhor lugar. Geralmente, o que é bom para um, poderá não

ser para o outro.

A engenharia procurará o local mais favorável topograficamente, onde terá maior

velocidade das águas, maior queda, maior volume da água, menor investimento em obras,

entre outros fatores. Os ambientalistas procurarão o local que causará o menor impacto ao

meio natural atual, preservando fauna, flora, quedas d’águas e corredeiras.

Para que as atividades da usina possam ser exercidas com eficiência, e de maneira

segura à população, livrando-a, por exemplo, de catástrofes, certas medidas de cunho

ambiental, administrativas e imobiliárias se fazem necessárias. Uma delas é a criação de uma

faixa de domínio no entorno de todo o reservatório hidroelétrico, chamada de faixa de

segurança.

Neste contexto, o presente trabalho propõe o estudo da mencionada faixa, analisando

todas as fases necessárias para sua implantação, assim como as respectivas consequências

delas obtidas.

Se por um lado, as atividades da usina são consideradas limpas (livres de poluentes),

por outro lado existem enormes áreas ribeirinhas livres de ocupações, especialmente para que

sejam alagadas em determinadas épocas. Na maioria das vezes, a população não se atenta ao

perigo e opta por ocupá-las, seja para exercer atividades de lazer, seja com o intuito de aferir

lucro com atividades turísticas ou de pesca.

Inobstante o perigo à vida das pessoas, a ocupação em faixa de segurança prejudica o

próprio funcionamento da usina, ficando à mercê de atividades poluidoras, comprometendo a

qualidade das águas e do entorno, podendo causar assoreamento do leito.

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Sendo assim, analisa-se a natureza jurídica destas ocupações, assim como as medidas

efetivas para a proteção destas áreas, sejam elas de natureza administrativa, ou até mesmo

judicial.

Para proporcionar a viabilidade dos estudos, são utilizados os métodos analítico,

histórico e dedutivo, como análise de casos pontuais, os quais demonstram importantes

resultados.

No primeiro capítulo, é abordada a importância da produção de energia elétrica para o

país, verificando a relação jurídica entre a administração pública e os proprietários de terras

cuja utilidade pública foi declarada pela União.

Posteriormente, analisa-se aplicação dos princípios do direito ambiental nas atividades

da usina, visando auxiliar a manutenção do meio ambiente sadio, sem óbice ao

desenvolvimento econômico.

Aborda-se ainda a evolução do direito ambiental e da legislação protetora da água,

mencionadas as atividades das usinas hidrelétricas, demonstrando assim o atual momento

legislativo.

Por fim, pontuam-se conflitos existentes entre demanda, e a necessidade de geração de

energia face aos interesses privados, exemplificados pelo estudo da construção da usina

hidrelétrica de belo monte, utilizada como parâmetro para demonstrar as conseqüências

trazidas à população ante o alagamento de grandes áreas. Assim, o presente trabalho traz

soluções que permitam valorizar o respeito e dignidade dos povos ribeirinhos, sem contudo

impedir o crescimento energético no Brasil.

No capítulo dois, o objeto de estudo é a necessidade de delimitação da faixa de

segurança, bem como os procedimentos necessários para sua efetivação, de modo a proteger a

área afetada à produção de energia elétrica. Nota-se que esta faixa, localizada às bordas do

reservatório, deverá permanecer livre e desimpedida para possíveis alagamentos em

atividades extraordinárias da usina, sem prejuízo à vida humana e ao meio ambiente.

Estas áreas são desapropriadas pelo ente público ou pela própria concessionária se

autorizada, com fundamento na utilidade pública decretada pelo poder executivo. São

caracterizadas como área de preservação permanente, de modo que toda e qualquer

intervenção estará sob o crivo da legislação ambiental, também estudada no presente trabalho.

Inobstante a responsabilidade trazida pela Constituição Federal e normas federais na

preservação de áreas ambientalmente protegidas, a concessionária de energia elétrica

desempenha importante papel na preservação das bordas dos reservatórios, adquirindo

deveres contratuais de conservação ambiental perante a ANEEL.

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No capítulo três, são analisadas as responsabilidades dos entes públicos,

concessionárias e particulares na conservação destas faixas de segurança, notadamente por

estas abarcarem área de preservação permanente. Propõem-se medidas judiciais para a

proteção na seara individual, bem como requisitos para a concessão de liminares, e

possibilidade de modificação de competência. As ações de reintegração de posse são

demandas bastante utilizadas nestas hipóteses, dada a natureza da ocupação em área pública.

No capítulo quatro, são estudados os aspectos relevantes acerca das medidas coletivas

utilizadas para a proteção ao meio ambiente, notadamente relacionados às faixas de

seguranças dos reservatórios. É verificado como o órgão ministerial poderá agir, assim como

estudada a crescente mobilização da população no combate à degradação ambiental.

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1 O DIREITO E A NECESSIDADE DE GERAÇÃO DE ENERGIA E LÉTRICA

1.1 DIREITO DE PROPRIEDADE

A existência do direito de propriedade advém de longa data, época em que já eram

citadas no remoto século V a.C., vindo, com o passar do tempo, a sofrer inúmeras alterações

em seu conceito.

No direito romano, a título de exemplo, as propriedades permitiam construção e

plantação num limite de duas jeiras de terra, visando assim à distribuição das propriedades da

forma mais justa possível entre todos. Posteriormente, surgiram as formas de aquisição das

terras pelas diversas maneiras até hoje conhecidas e utilizadas por nosso sistema, com alguns

outros instrumentos para tal distribuição.

Atualmente, é certo que o conceito de propriedade privada deve ser considerado em

harmonia com o direito de soberania do Estado, tendo em vista que esta é formada pelo

conjunto de terras particulares, num território público.

O jurista Carlos Roberto Gonçalves conceitua a propriedade como indicativo de toda

relação jurídica de apropriação de certo bem corpóreo ou incorpóreo, assim afirmando:

[...] pode-se definir o direito de propriedade como o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha.1

Todavia, nos antecipando ao capítulo em que tal assunto será abordado, tal conceito

vem sofrendo larga relativização, de modo que a supremacia do interesse público e os riscos

para a mantença do equilíbrio ambiental trouxeram algumas restrições para a utilização e a

aquisição da propriedade. Vejamos:

A propriedade, por seu turno, é um instituto que sofreu – e continuará a sofrer enquanto existir – profundas alterações ao longo do tempo, todas elas destinadas a adequá-lo às necessidades históricas da civilização, ajustando-o às novas realidades econômicas em constante mutação. [...] Por isso, o direito de propriedade necessita de constante atualização, na medida em que as circunstancias sociais, tecnológicas e políticas na comunidade, bem como as próprias indagações éticas que a relação homem/natureza inevitavelmente suscita, encontram-se em incessante modificação.2

1GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 229-230, vol. 5. 2 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no direito ambiental. 4. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais. 2010, p. 46.

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Tais explicações nos trazem a correta ideia de que, aliada ao princípio da função

social, a propriedade deixou de ser um direito absoluto, tendo em vista que, em dadas

situações, poderá sofrer limitações em seu uso, restrição, ou ainda a tão temida expropriação

pelo poder público, ou quem lhe faça as vezes.

O art. 5º, XXIII, da Constituição Federal em vigor, abaixo colacionado, reconhece o

direito à propriedade no tópico dos direitos e garantias individuais, dispondo ainda que a

propriedade atenderá a sua função social:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Interessante trazer à baila os ensinamentos de Paulo Affonso Leme Machado, que

afirma o seguinte:

A propriedade não é um direito individual que exista para se opor à sociedade. É um direito que se afirma na comunhão com a sociedade. O indivíduo não vive sem a sociedade, mas a sociedade também não se constitui sem o indivíduo.3

Reportando-se ao objeto do presente estudo, nota-se que as propriedades que ladeiam

as bordas de reservatório deverão ser desapropriadas, para que possam servir às atividades da

usina, portanto, passando por processo de desapropriação, culminando na desocupação das

pessoas que lá estejam inseridas.

Tratando do assunto, Guilherme Purvin cita José Afonso da Silva, que assim se

expressa:

Qualquer bem pode ser de propriedade publica, mas há certas categorias que são por natureza destinadas à apropriação pública (vias de circulação, mar territorial, terrenos de marinha, terrenos marginais, praias, rios, lagos, águas de modo geral etc.), porque são bens predispostos a atender o interesse público, não cabendo sua apropriação privada.4

Veremos, portanto, no decorrer do trabalho, como ocorre a transferência do patrimônio

para o poder público, bem como os direitos que os antigos proprietários possuem frente ao ato

expropriatório.

3 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2005,

p. 729. 4 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 278.

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Contudo, vale mencionar que as propriedades aqui citadas estão inseridas em área

ambiental, causando, na maioria das vezes, impactos negativos na natureza, necessitando de

rígida regulamentação neste sentido, norteada por princípios básicos e específicos deste ramo

do direito, a seguir analisados.

1.2 PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL

Incogitável adentrarmos o tema do presente trabalho sem ao menos comentarmos,

ainda que brevemente, os princípios que norteiam o direito ambiental, e que guardem certa

relação com a matéria ora abordada.

Isto porque são eles que nortearão todo o ordenamento, direcionando o real sentido da

norma na busca do atendimento de suas finalidades. E mais, quando colocados em prática,

criam força vinculante a específicos valores sociais, auxiliando na aplicação do direito

ambiental.

Afirma Lenio Luiz Streck que os princípios passam a representar a efetiva

possibilidade de resgate do mundo prático (facticidade) até então negado pelo positivismo,

possibilitando a superação do Direito enquanto regras.5 Assim, temos que os princípios abrangem situações infinitas, dada sua abstracidade.

Tanto é verdade que neles se projetam as normas, norteando os operadores de cada ciência, e

também no direito ambiental.

Entendermos os princípios significa dizer que, ao analisarmos determinada norma,

poderemos verificar sua legalidade, bem como seu real alcance, possibilitando entender

melhor a vontade legislativa na elaboração do ato.

Colacionamos aqui os dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, que assim se

expressa:

Princípio, já averbamos alhures, é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. [...] Violar um princípio é mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do principio atingido, porque representa insurgência

5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Neoconstitucionalismo e ‘o problema da discricionariedade dos juízes’ .

Disponível em <http://www.anima-pet.com.br/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf>. Acesso em: 14.set. 2011.

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contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra6. [grifo do autor].

Portanto, não existem dúvidas acerca da existência de princípios próprios e autônomos

no Direito Ambiental, notadamente na aplicação do direito ao estudo acerca das faixas de

segurança, demonstrando sua autonomia científica, o que justifica o seu estudo.

1.2.1 Princípio do direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado

Reconhecido na Conferência das Nações Unidas de 1972, e reafirmado pela

Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 e, ainda, pela Carta da

Terra, este princípio revela sua grande e vital importância ao depararmos com sua íntima

ligação com o direito à vida. Assim, tem sido reconhecido como novo direito fundamental,

com vistas à manutenção das condições ambientais.

Nos mesmos dizeres, José Afonso da Silva:

A referida Declaração do Meio Ambiente proclama que ‘o Homem é, a um tempo, resultado e artífice do meio do meio que o circunda, o qual lhe dá o sustento material e o brinda com a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral e espiritualmente. (...). Os dois aspectos do meio ambiente, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do Homem e para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma7.

Interessante abordagem faz a jurista Cristiane Derani, informando o seguinte:

A sociedade, voltada intensamente às relações de troca de mercadoria, induz à redução irrefletida de conteúdo do vocábulo ‘patrimônio’ ao conjunto de coisas que apresentam determinado valor pecuniário. (...) insisto em que o conteúdo de um patrimônio ultrapassa a realidade econômica que o visualiza como um conjunto de bens comerciáveis.8

É certo que a natureza está em perpétuo estado de transformação, e o seu patrimônio

ambiental garante uma existência sensata a cada geração, que deverá conservá-la.

Ora, nota-se que o interesse é geral, tendo em vista que o bem ambiental possibilita a

existência do ser humano, numa união de esforços públicos e privados objetivando a

6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Maleiros, 2008, p.

408-409. 7 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 59. 8 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 246.

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mantença dos recursos naturais. Certamente, todos da sociedade são atingidos pelo meio

ambiente, embora em graus variados, e de acordo com a posição da pessoa na sociedade.

Reportando-se ao objeto do presente estudo, temos que concessionárias responsáveis

pela operação das usinas hidrelétricas deverão recompor toda devastação que eventualmente

causar com sua instalação e subsequente funcionamento, para que a produção de energia não

possa comprometer o equilíbrio ambiental, ou a vida animal e vegetal ali existente.

O equilíbrio da ecologia não poderá ser comprometido com as atividades realizadas,

sendo que tais efeitos serão constatados por Estudos de Impactos Ambientais (EIA), bem

como o seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), que deverão negar licença ao

constatar comprometimento de mantença do equilíbrio supracitado.

1.2.2 Princípio do poluidor-pagador

O referido princípio tem por objetivo levar o poluidor a integrar, em seu processo

produtivo, o valor relativo às externalidades negativas originadas por suas atividades. Seria,

portanto, uma maneira de retirar da sociedade tal ônus impondo-o ao causador do dano, que

pagaria os custos das medidas preventivas e precaucionais.

Tal princípio nos remete a ideia equivocada de que seria lícito poluir ou causar

qualquer outro dano ambiental, já que o responsável estaria pagando por isso, ou mesmo

compensando os danos com outras medidas compensatórias.

No entanto, a real intenção desta proposição é agir no momento anterior à provocação

do dano, originando um maior cuidado naquele que pratica o ato.

Interessantes são os comentários de Terence Dorneles ao afirmar que “em razão da

limitação dos recursos naturais, entende-se que o mercado deve suportar o encargo,

principalmente à custa de quem aufere mais lucros com a exploração da natureza9”.

As usinas hidrelétricas também causam efeitos negativos, uma vez que as

externalidades, “[...] embora resultante da produção, são recebidas pela coletividade, ao

contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado10”.

Daí a importância das usinas arcarem com todos os custos necessários, visando a

neutralizar, diminuir ou eliminar os danos causados pela represagem, detendo a

responsabilidade objetiva e financeira pela proteção ambiental.

9TRENNEPOHL, Terence Dorneles. Manual de Direito Ambiental. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53. 10 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 143.

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Interessante os comentários de Guilherme José Purvin de Figueiredo, que afirma o

seguinte:

Esta externalização não constitui, em regra, uma rudimentar ‘estratégia consciente de eliminação secreta de custo’. A questão que está subjacente ao debate acerca das formas possíveis de internalização do custo ambiental da produção (e, também, de certa forma, do consumo) relaciona-se diretamente ao regime de propriedade do meio ambiente e, em especial, dos bens comuns a todos.11

Certo é que, se a usina realiza o alagamento de áreas represando rios, estará alterando

o equilíbrio natural do local, podendo ocorrer, em tese, disseminação de vida animal e

espécies vegetativas. Embora a energia produzida seja a chamada “energia limpa”, cuja

atividade por si só não polui, ela acaba por alterar o equilíbrio ecológico quando ativada, de

modo que todas estas consequências deverão ser internalizadas, com previsão e orçamento.

Algumas das alternativas encontradas e utilizadas é a realização de reflorestamentos, criação

de animais aquáticos para integrá-los aos rios, e outras medidas compensatórias.

1.2.3 Princípio da prevenção

Sua fundamentação legal advém da própria Constituição Federal, art. 225, e sua

construção é derivada da doutrina alemã. É premissa básica do direito ambiental agir

preventivamente em momento anterior à consumação do dano, levando-se em consideração

que sua reparação nem sempre é possível. Assim, medidas que evitem o surgimento de

atentados ao meio ambiente devem ser adotadas. Colacionamos os ensinamentos de Marcelo

Abelha:

Sua importância está diretamente relacionada ao fato de que, se ocorrido o dano ambiental, a sua reconstituição é praticamente impossível. O mesmo ecossistema jamais pode ser revivido. Uma espécie extinta é um dano irreparável. Uma floresta desmatada causa uma lesão irreversível, pela impossibilidade de reconstituição da fauna e da flora e de todos os componentes ambientais em profundo e incessante processo de equilíbrio, como antes se apresentavam.12

Nesses casos, os danos já são conhecidos pela ciência, havendo certeza de sua

ocorrência. A mera potencialidade do dano já é suficiente para que haja a aplicação do

princípio, agindo preventivamente, sempre fundada em estudos científicos.

11 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. .Direito de Propriedade no Código Florestal..4ª ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais. 2010, p. 128. 12 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2005,p. 203.

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Sendo assim, ante a dificuldade ou impossibilidade da reparação ambiental, visa-se a

paralisação de atividades poluidoras em razão dos resultados danosos para o meio ambiente.

1.2.4 Princípio da precaução

O princípio foi consagrado pela Declaração do Rio de Janeiro, em seu enunciado 15,

afirmando que, para proteger o meio ambiente, medidas de precaução devem ser largamente

aplicadas pelos estados segundo suas capacidades.

Possui a sua origem e o seu fundamento idênticos ao da prevenção. Tamanha é a sua

semelhança com aquele princípio que alguns autores chegam a afirmar existir entre eles

identidade integral. Observa-se que a maioria das jurisprudências cita os dois princípios em

suas decisões, sem ao menos diferenciá-los, conforme exemplo a seguir.

CUSTEIO DA PERÍCIA. ADIANTAMENTO DOS HONORÁRIOS PERICIAIS PELO RÉU. PERTINÊNCIA DIANTE DO PRINCÍPIO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. INCIDÊNCIA DE OUTROS PRINCÍPIOS ATINENTES AO DIREITO AMBIENTAL, COMO OS DA PREVENÇÃO, PRECAUÇÃO E POLUIDOR-PAGADOR. AGRAVO DESPROVIDO. A efetiva tutela do meio ambiente não prescinde de uma arejada exegese e de conseqüente implementação de princípios quais a instrumentalidade do processo, além de adequada incidência dos princípios da precaução, da prevenção, do poluidor-pagador e da responsabilidade objetiva do degradador.13

E ainda:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL - REQUERIDO QUE COSTUMEIRAMENTE PROVOCA DANOS AMBIENTAIS EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - DEFERIMENTO DO PEDIDO LIMINAR QUE ATENDEU AOS REQUISITOS DA FUMUS BONIS IURIS E DO PERICULUM IN MORA - OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DOS PRINCÍPIOS DA PRECAUÇÃO E DA PREVENÇÃO EM MATÉRIA AMBIENTAL - AGRAVO DESPROVIDO.14

No entanto, entendemos que as semelhanças entre os dois princípios cessam no

momento da análise dos efeitos do ato potencialmente danoso.

No princípio da precaução, não se conhecem os efeitos negativos que podem ocorrer

pela atividade danosa, de modo que a incerteza científica favorece ao meio ambiente.

13 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 990.10.119368-0, São Paulo-SP , 08 de abril de

2010. Disponível em <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 22 dez. 2011. 14 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 990.10.108041-9, São Paulo-SP , 08 de abril de

2010. Disponível em <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 22 dez. 2011.

20

Feliz foi Terence Dorneles ao afirmar que tal princípio evita que medidas de proteção

sejam adiadas se consideradas incertezas de dano ambiental:

Sem dúvida, a precaução pretendida deve ocorrer, no mais das vezes, por meio do implemento de políticas públicas consoante a máxima preservação do meio ambiente, pois que os procedimentos administrativos do Poder Publico, por meio de seu poder discricionário, representam a melhor forma de intervenção nas decisões que se adaptarem ao almejado desenvolvimento sustentável15.

O princípio da precaução repercute na esfera processual tendo em vista que, em

matérias ambientais, é possível a inversão do ônus da prova, incumbindo ao réu provar que

sua atividade não é nociva ao meio ambiente. Vejamos o que restou decidido em processo

tendo como parte a Hidrovia Paraguai-Paraná:

DIREITO AMBIENTAL. HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ. ANÁLIS E INTEGRADA. NECESSIDADE DO ESTUDO DO IMPACTO AMBIENTAL EM TODA EXTENSÃO DO RIO, E NÃO POR PARTES. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.O projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, envolvendo realização de obras de engenharia pesada, construção de novos portos e terminais, ampliação dos atuais, construção de estradas de acesso aos portos e terminais, retificações das curvas dos rios, ampliação dos rios de curvatura, remoção dos afloramentos rochosos, dragagens profundas ao longo de quase 3.500 km do sistema fluvial, construção de canais, a fim de possibilitar uma navegação comercial mais intensa, com o transporte de soja, minério de ferro, madeira, etc, poderá causar grave dano à região pantaneira, com persuasões maléficas ao meio ambiente e à economia da região. Necessário, pois, que se faça um estudo desse choque ambiental em toda a extensão do rio Paraguai, até a foz do Rio Apa. 2. Aplicação do principio que o intelectual chama de precaução, foi elevado à categoria de regra do direito internacional ao ser incluído na declaração do Rio, como resultado da conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente desenvolvimento. Rio/92. ‘Mais vale prevenir do que remediar’, diz sabiamente o povo. 3. Serviços rotineiros de manutenção, como por exemplo, as dragagens que não exijam grandes obras de engenharia, devem continuar. A navegação atual, a navegação de comboios de chatas no Rio Paraguai, permanece da maneira como vem sendo feita há anos, obedecendo-se às normas baixadas pela Capitania Fluvial do Pantanal e às orientações do IBAMA. 4. Havendo, como há, ordem judicial no sentido de os atuais portos e terminais continuarem operando o funcionamento dos mesmos não constitui crime, não podendo assim haver abertura de inquérito policial para apurar possível ocorrência de dano ambiental, tão-só pelo funcionamento. O não atendimento da decisão judicial implica prática do crime de desobediência16

15 TRENNEPOHL, Terence Dorneles. Manual de Direito Ambiental. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53. 16 BRASIL. Tribunal Reginonal Federal Ag. Reg. petição 200101000015170, Brasília-DF, Disponível em

<www.trf1.jus.br>. Acesso em 22 dez. 2010.

21

Sendo assim, em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza

científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas

visando a prevenir a degradação do meio ambiente, oriunda do ato potencialmente danoso.

1.2.5 Princípio da função social da propriedade

É considerado por Guilherme José Purvin17 um megaprincípio jurídico, dada a sua

magnitude, tendo em vista que o meio ambiente está por toda a parte, integrando todos os

demais princípios de Direito Ambiental que possam, direta ou indiretamente, relacionar-se ao

exercício do direito de propriedade.

Este princípio revela-se de fundamental importância ao tratar das limitações ao direito

de propriedade, notadamente após a sua referência expressa na Constituição Federal de 1988,

elencando-o como um dos princípios da ordem econômica (art. 170).

A ideia de função social foi trazida para o direito de propriedade no inicio do séc. XX,

ante o surgimento da necessidade de superação das concepções individualistas do direito

privado, nas quais o homem é considerado isoladamente.

Pois bem, não se fala mais que a propriedade possui uma característica intangível e

absoluta, deixando de lado o aspecto coletivo. Se o homem vive em sociedade, por óbvio que

deverá seguir regras, de modo que possa haver uma harmonia na convivência, atingindo um

bem-estar que não é só dele, mas sim de todos. Portanto, o possuidor deverá cuidar desta

propriedade, dando a ela correta função social, cumprindo assim os ditames da Constituição

Federal.

O jurista Guilherme José Purvin de Figueiredo esclarece:

A concepção de função social da propriedade está presente na filosofia positivista, que leva sempre o ponto de vista social em oposição à noção de direitos individuais. [...] O cumprimento das funções sociais destina-se a pacificar as relações sociais estabelecidas dentro de um sistema de rígida hierarquia, e de perpetuação das desigualdades. 18

Este autor 19 trouxe o entendimento do então ministro do STF, Eros Grau, que afirma

que a integração da função social no conceito da propriedade importa em que se coloque em

contestação a fórmula segundo a qual apenas não pode a propriedade ser usada de modo

contrário à utilidade social. Destaca-se também o Estatuto da Terra, Lei 4.504/64, que, em

17 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de.A propriedade no direito ambiental. 4ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 124. 18 Op. cit. p. 96. 19 Op. cit. p. 97.

22

meio à ditadura militar brasileira e tensões agrárias inesgotáveis, instituiu a função social da

terra aos bens imóveis rurais, objetivando o aumento da produção agrícola e a melhor

distribuição de terras entre o povo rurígena, primordialmente, não detentor de imóvel.

Apesar da insistente tentativa de controle do governo militar sobre as conturbadas

discussões e as invasões de terras, instituindo a desapropriação, não se pode negar que o

momento utilizado para se falar em função social merece grande destaque. Vejamos:

O Estatuto tinha deixado inscrito, como propósito básico, que a sua aplicação deveria atender a perfeita ordenação do sistema agrário do país, de acordo com os princípios da justiça social (art. 103), assegurando a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra (art. 2º).20

O seu art. 2º assim estipula:

Art. 2º: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta lei. §1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) Favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela

labutam, assim como de suas famílias; b) Mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) Assegura a conservação dos recursos naturais; d) Observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho

entre os que a possuem e a cultivam.

Atualmente, o próprio Código Civil especifica em seu art. 1.228 que o direito deve ser

exercido em conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas

naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a

poluição do ar e das águas, remetendo-nos, assim, ao princípio da função social da

propriedade.

Interessante também os ensinamentos de Cristiane Derani21, que afirma “[...] É por

este sentido dado à propriedade privada que se é capaz de exigir por meio do ordenamento

jurídico um uso privado compatível com o interesse público, buscando um equilíbrio entre o

lucro privado e o proveito social.”

Já é ultrapassada a ideia de que o interesse particular é o único ou o principal objetivo

a ser perseguido numa vida em sociedade, na qual o relacionamento entre pessoas é

imprescindível para a vida humana.

Sendo assim, temos que as áreas resguardadas à faixa de segurança de reservatório

cumprem sua função social, na medida em que servem para permitirem alagamentos

20SANTOS, Ozéias J. Santos. Estatuto da terra. São Paulo: Lawbook Editora, 2001, p. 21. 21 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico.3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 238.

23

intermitentes, dependendo da vazão de águas de suas comportas, de modo que devem estar

desocupadas. Inobstante o perigo oferecido para aqueles que a ocupam, são ainda Áreas de

Preservação Permanentes (APPs), de modo que a torna de uso restrito.

Qualquer atividade que venha a ser exercida deverá respeitar estas limitações impostas

pelo ditado principio, avaliando-se previamente o impacto ambiental para toda e qualquer

obra que seja potencialmente lesiva à qualidade de vida.

1.2.6 Princípio da cooperação

Este princípio nos ensina que a humanidade deve assumir a sua responsabilidade, seja

cidadão, indústria ou ente federativo, e, de forma cooperada, exercer uma tarefa sustentável,

de modo a contribuir para a manutenção da natureza para as gerações futuras, adotando

medidas que atenuem, ou mesmo que extingam, o impacto ambiental.

Fala-se também em esforço público porque a ele recai a atribuição de promover

atividades sociais, possibilitando ao ser humano o alcance a um tipo otimizado de existência,

que sozinho este não é capaz de alcançar. Efetivar os direitos estipulados no art. 225 da

Constituição Federal é assegurar o todo social, garantindo sua perpetuidade.

Sendo assim, o Estado e a sociedade devem trabalhar juntos nas corretas decisões de

políticas ambientais, inclusive no tocante ao cumprimento e criação de normas. Isto nos

remete a ideia de mútua responsabilização, de modo que a todos incumbe o dever de

preservação, fiscalização e participação em atividades que não obstem o desenvolvimento

sustentável, já que o objeto da proteção é de interesse geral. Isto porque os sistemas

ambientais não se enquadram perfeitamente nos limites territoriais fixados pelas fronteiras

artificiais criadas pelo homem entre distintas cidades, regiões ou países.

Ademais, a degradação ambiental causada em determinada localidade acaba,

evidentemente, afetando outros territórios como, por exemplo, o aumento generalizado da

temperatura da superfície da Terra pela emissão de substâncias poluentes.

E não é diferente no caso das usinas hidrelétricas que, dada a longa extensão do leito,

atinge distintas localidades e biodiversidades, de modo que governo, população e

concessionária deverão agir em conjunto para amenizar ou mesmo evitar os impactos.

Só teremos um meio ambiente protegido se todas as parcelas da sociedade tiverem o

dever de defendê-lo. Por isso é que a administração pública deve traçar metas e políticas a

serem cumpridas, harmonizando os setores da sociedade a determinadas posturas, balizadas

por normas específicas. Assim se expressa Cristiane Derani:

24

Ou seja, à medida que o cidadão, jurista ou não, trabalhe pela sua efetividade material e o Estado atue administrando, usando de seu poder de polícia, planejando e incentivando condutas a fim de dar plena concretização a esse direito. Este “dever-poder” ambiental manifesta-se no comportamento não apenas do Estado, mas também do cidadão.22

Este agir se faz presente por políticas públicas, que atingem a sociedade como um

todo, interligando as demais áreas referidas na Constituição Federal, obedecendo ao preceito

do art. 225, caput, que assim expressa:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Os parágrafos primeiro e seguintes desse mesmo artigo trazem um rol com inúmeras

obrigações a serem observadas pelo Poder Público, visando a assegurar a efetividade do

dispositivo previsto no caput, entre elas, a preservação e a restauração dos processos

ecológicos, a manutenção da integridade do patrimônio genético do país, a definição de áreas

de preservação em todas as unidades da federação, entre outras medidas preventivas e de

recuperação em caso de danos ambientais.

Esta norma impõe ao poder público a defesa e a preservação do meio ambiente, não

apenas quanto aos resultados imediatos, mas também àqueles mais distantes, a serem

observados pelas gerações futuras.

Forma-se, portanto, uma atuação conjunta entre Estado e sociedade, garantindo assim

proteção ainda maior ao meio ambiente.

Esse princípio abre também espaço para que os estados de nossa federação possam

firmar acordos entre si ou com municípios, ou até mesmo permitir a celebração de tratados

entre o Brasil e países interessados na proteção ambiental. Vejamos os ensinamentos de

Terence Dorneles:

As diretrizes de um desenvolvimento sustentável refletem a necessidade de conservação do meio ambiente, observados os princípios científicos e as leis naturais que regem a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas, a necessidade de compatibilização das estratégias de desenvolvimento com a proteção do meio ambiente, a adoção de medidas de prevenção de danos e de situações de riscos ambientais e a cooperação internacional23.

Pode-se, portanto, exigir posições positivas ou negativas a órgãos públicos, ou mesmo

particulares quando desrespeitada norma cogente. Quanto a esta primeira situação, afirmou

22DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 251. 23TRENNEPOHL, Terence Dorneles. Manual de Direito Ambiental. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53.

25

Ana Maria Marchesan que “a atividade dos órgãos e agentes na promoção da qualidade

ambiental assume a feição compulsória, permitindo que se exija do Poder Público [...] o

exercício efetivo das competências ambientais que lhe estão afetas”24.

Isto porque o patrimônio natural pertence a todos, de modo que os problemas

decorrentes da má conservação não escolhem a quem atingir. Assim, não há justificativa para

privar alguém de usufruir o bem natural, desde que cumpridas certas formalidades,

incumbindo a todos o dever de proteção.

Este raciocínio é recente, e passou por importantes alterações ao longo do tempo, na

medida em que as consequências do dano ambiental praticado sem restrições eram notadas. A

seguir, alguns destes momentos.

1.3 A EVOLUÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL

No Brasil, é certo que o direito ambiental é matéria recente e a adesão da população

aos novos costumes e parâmetros vem caminhando a passos pequenos. Tal fato deve-se à falta

de preocupação dos mais antigos com a manutenção do bem ambiental, até pela abundância

de recursos então existentes.

Podemos citar como exemplo o fato dos índios, antigos possuidores de terras em nosso

país, utilizarem técnicas de desmatamento e derrubada de árvores, que causavam enormes

degradações ao meio ambiente, empregando grandes queimadas, sem qualquer preocupação

com o reflorestamento.

Destarte, nossos colonizadores europeus também não tiveram qualquer preocupação

na adoção de técnicas de preservação ambiental. Ao contrário disso, interessavam-se tão

somente na exploração da mão de obra escrava existente àquela época, facilitando ainda os

caminhos por onde teriam acesso às riquezas, deixando-os livres e desimpedidos para o

trânsito de produtos obtidos ante a degradação. Nos dizeres de Guilherme Purvin:

A formação de um pensamento ambientalista num território periférico – uma colônia portuguesa da América do Sul – não teria, certamente, maiores repercussões na construção do pensamento ambiental europeu, mas não há dúvida que deixará marcas no Direito brasileiro. É, além disso, um elemento histórico que demonstra que a consciência ambientalista brasileira é herdeira de uma tradição secular de pensamento crítico que somente poderia ter nascido num território onde o meio ambiente foi continuamente vilipendiado pelo sistema da monocultura e do escravismo.25

24 MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELI, Silvia. Direito

Ambiental. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 43. 25 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Direito de Propriedade no Código Florestal. 4. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais. 2010, p. 158.

26

Com o passar do tempo, o Brasil continuou a utilizar suas terras de uma maneira não

sustentável, ligada diretamente ao interesse particular, explorando-a da maneira que melhor

lhe conviesse.

No tocante à positivação do direito, foi a Constituição de 1937 que trouxe, de maneira

pioneira, um indício de preocupação ambiental, inserindo em seu texto a expressão função

social, transferindo à lei ordinária o ônus de fixar os limites e conteúdo (art. 122, item 14) de

tal conceito.

A Constituição posterior, promulgada em 1946, nos trouxe a ideia social da

propriedade, contendo permissivo para a desapropriação por interesse social, dando a esta

norma novo preceito social e econômico.

Nossa atual Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, é a que trata

das questões ambientais de maneira mais incisiva e detalhada, trazendo garantias e princípios

que asseguram a proteção, além de traçar diretrizes governamentais a serem adotadas por

todos os governos das diversas esferas, indicando ainda ampla proteção infraconstitucional.

Foi ela, contudo, que derrogou algumas partes do Código de Águas, extinguindo, a título de

exemplo, o domínio privado da água, matéria está analisada a seguir.

1.3.1 Das águas

No tocante às águas, a preocupação pela sua manutenção também é recente. Desde os

primeiros registros existentes acerca da colonização do Brasil, a legislação colonial vinculava

este bem tão somente à destinação econômica, garantindo navegações e uso irrestrito em

propriedades.

Após a Independência, tivemos a promulgação do Código das Águas de 1934 (Decreto

24.643/34), sendo esta a primeira legislação brasileira específica sobre o assunto, criando o

interesse público no tratamento deste precioso bem.

Embora a sua promulgação seja de longa data, esta norma ainda é amplamente

aplicada, em consonância com a Lei 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos) e a

Lei 9.984/00 (Agência Nacional de Águas). Seus conceitos e regramentos são muito eficazes,

e nos trazem clareza suficiente das possibilidades existentes do uso da água, uso este racional

e dentro de certas limitações. Mostra-se moderna e atual, e é nela em que se baseia a

instituição da faixa de segurança, a seguir comentada.

Desde a sua implantação, na década de 30, o renomado jurista José Afonso da Silva

afirma que o referido código é um exemplo de preocupação e cuidado com a água, afirmando

27

que este contém norma rígida para controle público, visando à proteção jurídica contra todas

as formas de degradação:

O próprio Código de Águas já contém normas nesse sentido, como a do art. 68, que submete à inspeção e autorização administrativa: a) as águas comuns e as particulares, no interesse da saúde e da segurança; b) as águas comuns, no interesse dos direitos de terceiros, ou na qualidade, curso ou altura das águas públicas26.

O referido código, ainda em vigor na maior parte do texto, permitiu o controle e

incentivo do uso da água em diversos seguimentos, tais como o industrial e o hidroenergético.

E, ainda, cuidado quanto à qualidade das águas, dispondo sobre a poluição. Sua especificidade

acabou por derrogar o tímido dispositivo do Código Civil de 1916 que versava sobre o

assunto.

A seguir, tivemos o Código de Pesca, de 1938, o qual estabelecia condutas relativas à

recarga de efluentes e redes de esgoto nas águas dos rios e dos mares, e o Código Penal de

1940, que trouxe previsão do crime de envenenamento, corrupção ou poluição de água

potável.

A Constituição Federal de 1946 retirou o domínio das águas do poder municipal, e o

Código Florestal (Lei 4.771/65) tutelou de maneira indireta as águas, protegendo as florestas.

Em 1997, surgiu a Lei 9.433, intitulada como a Política Nacional dos Recursos

Hídricos, que trouxe a gestão do uso múltiplo das águas em nosso país em suas bacias

hidrográficas. Ela estipula diretrizes gerais, integrando a gestão dos recursos com a gestão

ambiental (art. 3º, III), usuários e governos (IV).

Essa política tem por fundamento o fato de a água ser um recurso limitado, dotado de

valor econômico, na medida em que a lei fixa, inclusive, prioridade de ordem na utilização em

caso de escassez (art. 1º).

José Afonso da Silva cita a lei como uma política que dará “organicidade e sistemática

às formas de proteção dos recursos hídricos brasileiros para além da simples proteção contra

poluição”.27

Posteriormente, a Lei 9.984/2000 criou a Agência Nacional de Águas (ANA),

autarquia federal que tem a finalidade de implementar a política nacional, integrando o

sistema.

Dentre suas atribuições, está aquela de supervisionar, controlar e avaliar as ações e as

atividades decorrentes do cumprimento da legislação federal pertinente aos recursos hídricos;

26 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 127. 27 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p 132.

28

disciplinar, em caráter normativo, a implementação, a operacionalização, o controle e a

avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH); outorgar e

fiscalizar o uso dos recursos hídricos em corpos e domínio da União; planejar e promover

ações para minimizar os efeitos das secas e inundações; implementar, em articulação com os

Comitês de Bacias Hidrográficas, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos de domínio da

União.

Em consonância com o novo desenho institucional estabelecido para o setor de recursos hídricos, a ANA terá um papel importante no novo contexto do estado regulador. Isso porque essa agência está encarregada de implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos e passou a ter a incumbência de outorgar o uso dos recursos hídricos de domínio da União, implementar a cobrança pelo uso dos recursos em rios federais, entre outras28.

Quanto à natureza pública da água, encontramos pensamento discordante de Celso

Antônio Pacheco Fiorillo e Renato Marques Ferreira, que assim explicam: “Como bem

ambiental que é, definida pelo art. 225 da Constituição Federal, a água desde 1988 deixou

portanto de ser considerada bem público, sendo incompatíveis com a Carta Magna os arts. 99,

I, e 100 do novo Código Civil”.29

Para esta justificativa, os autores afirmam que não existem impedimentos

constitucionais no sentido de que os rios e os mares possam ser utilizados, como bens

ambientais, em proveito da ordem econômica do capitalismo.

Não concordamos com tal afirmação. O fato do bem ambiental ser passível de

exploração por particulares, não retira o caráter público da água. Traduz este pensamento o

art. 1º, I, da Lei 9.433/97, a qual trata da Política Nacional de Recursos Hídricos. Esta assim

dispõe: “Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes

fundamentos: I - a água é um bem de domínio público”.

Ainda reforçando nossa posição, temos os ensinamentos de José Afonso da Silva, que

assim dispõe:

A água é um bem insuscetível de apropriação privada, por ser, como dissemos, indispensável à vida, ainda que na legislação e na doutrina se fale, freqüentemente, em águas do domínio particular e águas do domínio público. Isto não pode ter outro sentido, hoje, quanto às primeiras, que o de águas que se situam ou passam em propriedade do domínio privado, em assim, enquanto estão dentro dela, ficam sujeitas à apropriação e à administração do proprietário desse domínio. Tanto é certo isso que as águas correntes que transitam em uma propriedade privada, mesmo quando sejam

28 MACHADO, Carlos José Saldanha Machado (organizador). Gestão de Águas Doces. Rio de Janeiro:

Interciência, 2004, p. 79. 29 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia.Sâo Paulo:

Saraiva. 2010, 2. ed. p. 86.

29

daquelas tidas como de domínio particular, deverão seguir seu leito, porque não podem ser retidas em definitivo no poder do particular como coisa de sua propriedade privada. Toda água, em verdade, é um bem de uso comum de todos.30

Outro marco importante para o direito ambiental, atrelado às atividades de exploração

da água, se deu por meio da Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, que instituiu a Política

Nacional do Meio Ambiente (PNMA), que em seu art. 9º, enumerou os seus instrumentos.

1.3.2 O setor hidrelétrico

Inobstante, também existiu evolução da questão ambiental dentro do setor hidrelétrico.

No ano de 1927, o estado de São Paulo promulgou a Lei nº 2.250, que estabeleceu a

construção de escadas para possibilitar a subida de peixes em águas represadas.

Posteriormente, iniciou-se o processo de aproveitamento dos reservatórios para a criação de

estações de piscicultura para peixamento.

Em 1977, adveio a portaria SUDEPE n.º 1 (Superintendência do Desenvolvimento da

Pesca), a qual estabeleceu proteção à fauna aquática a ser exercida pelas construtoras de

barragem que alterem os cursos d’água.

Todavia, no final da década de 70, as hidrelétricas passaram a deparar-se com

inúmeros problemas atinentes a florestas e a locais urbanizados, que por óbvio, tenham

sofrido qualquer interferência em decorrência dos alagamentos ocorridos, ou mesmo da

construção da barragem, os quais exigiram mudança de postura e pensamento quanto às

consequências das obras, antevendo assim os impactos:

Nesse período além das estações de piscicultura, foram construídos hortos florestais com o intuito de reprodução de essências nativas para reflorestamentos principalmente utilizados na recuperação de áreas de empréstimo e de outras áreas degradadas nas regiões. Isto permitiu o grande desenvolvimento de projetos de recomposição da vegetação, destacando-se como pioneiros os trabalhos realizados pela CESP, COPEL e CEMIG.31

Pois bem, o avanço da legislação exigiu que fossem criados mecanismos legais que

regulamentassem o setor elétrico. Por isso, em 16 de setembro de 1987 foi estabelecida a

Resolução CONAMA nº 006, objetivando a definição de regras gerais para o licenciamento

30 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 8. Ed. São Paulo: Malheiros. 2010, p. 121. 31 Relatório de Análise Ambiental - Programa de Modernização de Usinas Hidrelétricas de Furnas Centrais

Elétricas S.A. – Fase 1. Disponível em < http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=1624837>. Acesso em 20 nov. 2011, p.10.

30

de atividades causadoras de impactos ambientais significativos. Essa resolução foi a primeira

a estabelecer regras gerais de licenciamento ambiental de obras de geração de energia elétrica.

Em 19 de dezembro de 1997, foi editada a Resolução CONAMA nº 237. Sua

importância consistiu na necessidade de revisão dos procedimentos e critérios utilizados no

licenciamento ambiental, efetivando a utilização deste sistema, visando ao desenvolvimento

sustentável e à melhoria contínua.

Em 2002, surgiu a Resolução CONAMA 302, que adotou em seu art. 2º, II, a

definição de Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno de Reservatório como sendo

o conjunto de diretrizes e proposições com o objetivo de disciplinar a conservação, a

recuperação, o uso e a ocupação do entorno do reservatório artificial.

Nota-se, por toda a matéria debatida no presente tópico, que o direito ambiental

apresenta larga evolução histórica, à medida que a necessidade de manutenção dos bens

ambientais é cada vez mais urgente. Indagou-se por alguns se a defesa do meio ambiente

deveria ser realizada de maneira setorial pela legislação, ou então tratada como um todo, dada

a integração destes elementos na natureza. Toma-se como exemplo a água, nos dizeres de

José Afonso da Silva, in verbis:

O problema ainda se complica mais em relação à água, sujeita ao “princípio da unidade do ciclo hidrológico, que, visto do ponto de vista jurídico, impõe a necessidade de uma regulamentação única para a água, porque se considera que é uma só a água que surge de um manancial, que aumenta de caudal até formar um rio que se evapora para logo cair de novo em forma de chuva, passando a aumentar o caudal de algum rio, ou caindo no mar, ou introduzindo-se na terra, para formar as correntes subterrâneas que afloram em forma de manancial, e outra vez recomeça o ciclo, perenemente”.32

Todavia, a resposta não poderia ser outra, senão a criação de leis específicas para cada

elemento da natureza, dada a dimensão dos bens naturais a serem tutelados, havendo o

cuidado do legislador em proteger cada setor da natureza na maneira apropriada, com

instrumentos jurídicos que permitam sua efetivação.

Pois bem, ressaltamos ainda que tais fatores ambientais interferem diretamente na

economia do país, notadamente nos existentes às bordas de reservatório, dada a importância

que a manutenção na natureza nestas áreas trará às atividades da usina. Vejamos a seguir.

1.4 MEIO AMBIENTE E ECONOMIA

32 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 40.

31

O crescimento econômico não se restringe ao custo social, com utilização maior de

capital e mão de obra, mas também ao custo ambiental, sendo certo que se utiliza de recursos

que são finitos.

Este tema é atual, pois não faz muito tempo que o homem se conscientizou que os

recursos ambientais são limitados, deixando para trás aquela ideia de que tudo o que era

oferecido pela natureza era inesgotável.

E é neste sentido que a economia ambiental interfere no cotidiano das pessoas, pois

ante o esgotamento dos recursos naturais, pelo aumento desenfreado do consumo, visa-se a

impedir que haja a tão temida escassez, norteando o consumo racional dos recursos naturais,

com o máximo de bem estar possível. Assim é que expressa Adriana Kieckhofer:

Porém, mesmo com a introdução do conceito de desenvolvimento econômico, a obsessão pelo crescimento econômico continua cedendo lugar à analise crítica de seus efeitos e de seus custos sociais. Sabe-se que muitos planos de desenvolvimento implementados em vários países conseguiram modernizar suas estruturas produtivas, mas isso nem sempre levou a uma melhoria do padrão de vida da maioria da população. [...] Com isso continuam surgindo teorias nessa linha destacando as externalidades principais do crescimento e analisando particularmente seus efeitos sobre sociedade e o meio ambiente. As relações entre o crescimento e a concentração da renda também passam a atrair o interesse de muitos estudiosos. Por fim, passam a ser discutidos a própria validade do crescimento e os limites para sua continuidade, essencialmente determinados pela exaustão das reservas naturais não renováveis. Surgem conceitos como economia do meio ambiente ou economia ambiental, ecodesenvolvimento, economia ecológica e desenvolvimento sustentável.33

Inobstante tal pensamento, a mudança de postura da população ainda é tímida, mesmo

ante a ocorrência de consequências deste uso desenfreado dos recursos, como grandes

furacões, terremotos, altas temperaturas e mudanças climáticas por toda parte do mundo.

Hoje é certo que a sociedade não suporta mais as consequências desses atos, de

maneira que se faz necessário pensar no desenvolvimento sustentável, para que, juntamente

com os aspectos sociais e o capitalismo, a sociedade evolua também neste sentido, adequando

o sistema de produção e as escolhas de políticas corretas, adequando o desenvolvimento

econômico ao meio ambiente.

Tais afirmações demonstram que o direito ambiental e o econômico se entrelaçam.

Nos dizeres de Cristiane Derani, “o direito econômico e ambiental não só se interceptam,

33 FERREIRA, Jussara Suzi Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima. Empreendimentos Econômicos e

Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Arte e Ciência, 2008, p. 25.

32

como comportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam: buscar a melhoria

do bem-estar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo.”34

Já Guilherme Purvin ressalta a sua importância pelo texto expresso na Constituição

Federal, em seu art. 170, VI. Senão vejamos:

O elo entre o Direito Ambiental e o Direito Econômico é tão forte que a Constituição Federal consagra a defesa do meio ambiente como um dos nove grandes princípios gerais da atividade econômica (art. 170, VI). A manifestação do Direito Ambiental na ordem econômica é particularmente intensa no momento da concessão de licenças ambientais para a instalação e funcionamento de atividades econômicas determinadas. Não há que se olvidar que a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural, que constitui, igualmente, um princípio geral da atividade econômica (art. 170, III).35

Notório também que o fato de que a oferta da energia elétrica também está relacionada

com o citado artigo, conforme os ensinamentos de Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Renata

Marques Ferreira:

A proteção do meio ambiente é objetivo explicitamente indicado pelo legislador (art. 1º, IV), assim como a proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta de produtos (art. 1º, III), guardando rigorosa sintonia com o art. 170 da Carta Magna.36

Pois bem, é notório que a energia elétrica traz avanço para a sociedade, bem como a

redução das desigualdades sociais. Nenhum povo alcança desenvolvimento pleno sem

energia, seja para os seus afazeres domésticos, seja para possibilitar a existência do mercado

financeiro. Gera luz, força para movimentar motores, controle do trânsito por meio dos

semáforos, trazendo segurança e organização.

Tamanha a importância deste avanço que o constituinte inseriu no inciso II do art. 3º

da Constituição Federal o desenvolvimento nacional como um dos objetivos da Federação.

Ora, é inegável que a geração de energia elétrica ocasiona um desenvolvimento econômico

significativo no país, demonstrando a importância da manutenção e investimento das usinas

hidrelétricas.

Isto porque as usinas hidrelétricas são as principais geradoras de eletricidade no Brasil,

consideradas forma de energia limpa, apresentando baixos índices de poluição em todas as

34 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 57-58. 35 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Direito de Propriedade no Código Florestal. 4. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2010, p. 44. 36 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia. 2. ed. .São

Paulo: Saraiva, 2010, p. 73.

33

suas fases de produção, distribuição e consumo. Vejamos, a titulo de exemplo, subestação

responsável pela distribuição da energia produzida:

FIGURA 1 – Subestação da usina hidrelétrica de Bariri – SP – AES Tietê S.A.

Fonte: acervo pessoal.

Todavia, todo estudo e cuidado devem ser adotados para que este desenvolvimento

não esbarre na negligência humana em desfavor da natureza.

Observa-se, portanto, que o alvo da junção do direito ambiental e do direito

econômico visa tão-somente a atender às necessidades da população, trazendo qualidade de

vida, trazendo bem estar à saúde física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito do homem

fruir de um meio ambiente saudável.

Pois bem, diante de todos estes fatores, notamos que o meio ambiente está

intrinsecamente ligado à economia. O direito econômico se faz presente para fixar normas e

parâmetros, visando nortear a economia do país, evitando abusos e oferecendo instrumentos

jurídicos a serem utilizados em momentos determinados. Assim afirma Cristiane Derani:

No cumprimento deste seu papel orientador da atividade econômica, atua o direito perseguindo duas finalidades gerais: por um lado defende os valores básicos do direito, expostos nos princípios constitucionais de liberdade, igualdade de oportunidades e justiça social: por outro, dispôs sobre objetivos de política e pratica econômica, perseguindo principalmente eficiência da economia.37

37 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 45.

34

Assim, o direito permite que o governo possa elaborar diretrizes, planejando melhor a

economia de acordo com a realidade econômica vivida, que sofre constantes mutações, o que

nos leva a entender o direito econômico como um processo, o qual visa a traçar uma ordem na

economia de mercado. Se não se pode traçar todas as hipóteses possíveis numa norma, traça-

se ao menos pilares que nortearão casos não previstos.

1.4.1 A economia e a exploração de energia elétrica

No Brasil, a exploração de geração de energia elétrica é realizada atualmente sob o

regime de concessão, existindo diversas metas a serem cumpridas pelas concessionárias,

previstas em contrato:

Os setores de energia elétrica e águas são exemplos claros dessa redefinição do papel do Estado brasileiro, cujos serviços passam a ser executados sob o regime de concessão, permissão ou autorização pelo setor privado, mas são regulados e fiscalizados por agências federais e estaduais. [...]38

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu art. 2º, XII, a possibilidade de a

União executar serviços essenciais por intermédio de empresas privadas, mediante

autorização, concessão ou permissão, deixando para trás aquela ideia de que somente o Estado

poderia executar serviços públicos essenciais:

Art. 21. Compete à União: XII – Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: [...] b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos.

Essa característica vem ao encontro do mercado capitalista atual, oportunidade em que

o Estado, com suas limitações e grandes funções inerentes à sua existência, transfere a

particulares a prestação de serviços públicos, visando a otimizá-los, permitindo a exploração

do mercado pela iniciativa privada (art. 173, CF).

Isto porque a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida

quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo,

assegurando à iniciativa privada a exploração de atividade econômica.

38 MACHADO, Carlos José Saldanha Machado (organizador). Gestão de Águas Doces. Rio de Janeiro:

Interciência, 2004, p. 100.

35

O jurista Hely Lopes Meirelles ensina que “só é admissível a atuação supletiva do

Estado na atividade econômica, não mais a interventiva, que se vinha praticando com tanta

frequência e ilegalidade antes da edição da atual Carta”39.

Diferente não foi com o modo de execução de atividades ligadas à energia elétrica:

Dada as características constitucionais, foi estabelecida à União, via Poder Legislativo, a faculdade de determinar quais seriam as atividades e os empreendimentos estratégicos ao setor elétrico brasileiro, que poderiam ser outorgados via instrumentos mais rígidos, tais como os estabelecidos via contrato de concessão, e quais os que poderiam ser estabelecidos por meio de instrumentos mais ‘precários’ [...]. Não existe dúvida de que algumas atividades relacionadas à energia elétrica (concessionárias de distribuição) possuem em sua conceituação o aspecto inerente a serviços públicos puros40.

Interessante observação faz José dos Santos Carvalho Filho, ao conceituar e

exemplificar os serviços delegáveis. Vejamos:

Serviços delegáveis são aqueles que, por sua natureza ou pelo fato de assim dispor o ordenamento jurídico, comportam ser executados pelo Estado ou por particulares colaboradores. Como por exemplo, os serviços de transporte coletivo, energia elétrica, sistema de telefonia, etc41.

A década de 90 foi importante para a decisão do futuro das usinas hidrelétricas, a

iniciar com mudanças estruturais no setor, privatizando a geração e a distribuição da energia

elétrica, e a criação de agências reguladoras em esferas federal e estadual. Tal movimento

visava à diminuição do papel do Estado nos setores estratégicos da economia42.

A privatização proporcionou maior eficiência econômica em um setor que, até então,

era controlado pelo governo e que não recebia investimentos suficientes para acompanhar a

demanda crescente do consumo energético no país.

Os recursos obtidos com capitais privados proporcionaram grande avanço no combate

ao déficit de energia, possibilitando a modernização das usinas existentes, e viabilizando a

construção de novas, investimentos estes imprescindíveis para o aumento da geração de

energia.

A privatização possibilitou também a existência de concorrência entre as

concessionárias, bem como o cumprimento de metas e obrigações contratuais perante a

ANEEL a fim de otimizar as suas atividades.

O jurista José dos Santos Carvalho Filho prossegue em suas explicações:

39 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 690. 40 CARNEIRO, Daniel Araújo. Pequenas Centrais Hidroelétricas. Rio de Janeiro:Canalenergia, 2010, p. 18. 41 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p. 310. 42 Vários autores. Uso e Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil. 2. ed. São Carlos: Rima, 2004, p. 114.

36

Quando se verifica o processo de privatização, por exemplo, na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e nos Estados Unidos, percebe-se a presença de três atores fundamentais no processo: o Estado, o capital privado e a sociedade civil. No Brasil, todavia, o processo tem sido marcado por dois atores, o Estado e o capital privado (internacional ou nacional), e um espectador, a sociedade civil, caracterizada por possuir pouco peso político e pouco poder de negociação no processo43.

Os setores de energia elétrica são exemplos claros dessa redefinição do papel do

Estado brasileiro, cujos serviços passam a ser executados sob regime de concessão, permissão

ou autorização pelo setor privado, mas são regulados e fiscalizados por agências federal e

estaduais.

Alessandro André Leme identifica diversos equívocos no processo de privatização

que, certamente, apontariam uma crise no setor elétrico:

Devido à forma pela qual a privatização ocorreu no Brasil, especialmente a do setor elétrico, houve uma redução drástica nos investimentos para geração de energia elétrica. Isso porque a opção do governo ao privatizar as empresas de distribuição ou de geração foi evitar ao máximo os gastos e/ou investimentos realizados pelas empresas, a fim de deixá-las mais atrativas para a competição no mercado44.

O primeiro fator interessante a ser trazido ao estudo é a natureza dessas

concessionárias, que possuem o formato de sociedades anônimas, com capital aberto e

negociáveis na Bolsa de Valores. Tal característica permite que suas ações possam ser

adquiridas por investidores, trazendo riquezas ao mercado nacional, com subsequente

crescimento da economia.

Inobstante, quanto maior o investimento, maior a capacidade de geração de energia

elétrica, permitindo ampliação da venda do volume de energia, dando origem a novos valores

derivados de lucros, e novos contratantes.

O crescimento do setor hidrelétrico tem sua importância justificada pelo aumento da

demanda de energia, na medida em que a produção derivada de suas atividades não causa

poluição, por isso chamada de geradora de energia limpa.

Ao analisarmos a própria gestão dos recursos hídricos, verificamos que ela não tange

tão somente a distribuição correta de água à população, mas também uma atividade

econômica. Vejamos:

43 FELICIDADE, Norma; MARTINS, Rodrigo Constante; LEME, Alessandro André. Uso e Gestão dos

Recursos Hídricos no Brasil. 2. ed. São Carlos: Rima, 2004, p. 118. 44 Op. Cit. p. 128.

37

É importante lembrar que, a gestão dos recursos hídricos é uma atividade econômica como qualquer outra, mas que traz consigo um custo marginal baixíssimo ou muito próximo a zero. Isso porque a água é um recurso natural renovável, de modo que o aumento na sua utilização, tanto no seu componente quantitativo quanto qualitativo, não está diretamente associado a um aumento apreciável no custo da oferta. [...] Nesse sentido, a cobrança pelo uso da água, além de se justificar como um instrumento eficiente de correção das distorções entre o custo social e o custo privado desse recurso, é especialmente apropriada para garantir os recursos financeiros necessários ao financiamento dos investimentos e os custos imprescindíveis à atividade de gestão dos recursos hídricos.45

De outro vértice, o controle da vazão das águas também contribui para o

desenvolvimento de várias cidades ribeirinhas, que não terão que enfrentar enchentes ou

mesmo secas em determinadas épocas do ano.

Não se pode negar que a incerteza de que causas naturais causem estragos em imóveis

ou em vias públicas é um empecilho à valorização de imóveis, impedindo o desenvolvimento

do mercado imobiliário e o crescimento populacional.

Isto afasta também a possibilidade de que empresários tenham interesse em instalarem

suas empresas ou indústrias na região, o que, por si só, é comprovada fonte de renda e de

emprego, com enriquecimento para o município e para as cidades ao redor.

Assim sendo, a existência de controle das águas que margeiam as cidades — com

abertura das comportas da usina em época de estiagem e o fechamento em época de chuvas —

traz ao município desenvolvimento como, por exemplo, recursos e investimentos sólidos

interessantes. Quanto às chuvas, dissertam Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Renata Marques

Ferreira:

[...] as chuvas são, em geral, abundantes no Brasil, com exceção do Sertão Nordestino (semiárido – quente, com chuvas escassas e mal distribuídas, local onde se encontra o polígono das secas): ocorrem chuvas o ano todo na Amazônia (clima tropical quente e úmido ou subúmido), assim como no Sudeste (tropical de altitudes) e Sul (subtropical ou temperado quente).46

A seguir, a imagem de duas comportas fechadas, visando ilustrar o presente

pensamento:

45 MACHADO, Carlos José Saldanha Machado. Gestão de Águas Doces. Rio de Janeiro: Interciência, 2004, p.

79. 46 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia. 2. ed. Sâo

Paulo: Saraiva, 2010, p. 76.

38

FIGURA 2- Comportas da barragem de Bariri- SP – AES Tietê S.A.

Fonte: Acervo pessoal.

Outro ponto importante para a análise é a exploração das áreas marginais pelo setor

hoteleiro, por clubes e por particulares, que se tornou um grande atrativo para empresas que

desejam investir no lazer e descanso dos usuários. Portanto, temos aqui mais um setor da

economia beneficiado.

Todavia, como largamente explanado, este uso deve ser controlado, porquanto se situa

em área de preservação permanente, regrada pela Lei Florestal (Lei 4.771/65), que também

será objeto do presente estudo.

E, para que a produção desta energia seja possibilitada, é necessária a observância das

faixas de seguranças nas bordas dos reservatórios, que implicará em espaçamento delimitado

e suficiente para ser alagado, de acordo com o trabalho de abertura das comportas,

possibilitado o controle do fluxo de águas.

Todavia, suas ocupações merecem atenção no presente trabalho, visto que a utilidade

pública sobrepõe-se ao interesse de particulares que queiram usar estas áreas, como

analisaremos oportunamente.

1.4.2 Conflito entre demanda, necessidade de geração de energia e os interesses privados

O Brasil é um dos países com maior quantidade de águas interiores, possuindo

aproximadamente 12% do total mundial. Frente a esta característica, houve uma opção

39

político-econômica no século passado pela produção da energia elétrica por meio de

hidrelétricas, afetando diretamente o modelo de desenvolvimento do país.

Os países desenvolvidos produzem 17% de sua energia elétrica por meio de fontes

renováveis contra os 19% da média mundial do resto do mundo. O Brasil produz 86% de sua

energia elétrica por meio de fontes limpas e renováveis, sendo que a hidrelétrica representa

80,6% da oferta interna de energia elétrica.

Atualmente, aproveitam-se 30% do potencial hidrelétrico disponível no País.

Estima-se que, em 10 anos, o Brasil precise aumentar a capacidade de geração de

energia elétrica em cerca de 60% diante de seu crescimento.

Como amplamente sabido, a grandiosidade do empreendimento para a construção das

barragens, bem como os impactos causados no meio ambiente, causam sérios movimentos

opostos a esta modalidade de geração de energia.

Ambientalistas e órgãos correlacionados demonstram as suas posições antagônicas, e

lutam para que as suas convicções sejam observadas, seja para impedir a realização do

empreendimento, evitando impactos a um meio ambiente já degradado, seja para defender o

crescimento da economia nacional com a instalação do empreendimento, ante a necessidade

de geração cada vez maior de energia,

No Brasil, muitos daqueles que são contra a instalação das usinas são os proprietários

das terras contempladas pela desapropriação, que as terão por desapropriadas, quando a bacia

hidrográfica situa-se em região urbanizada e industrializada.

Por este e outros motivos, faz-se necessário o prévio conhecimento da população sobre

as fases, os efeitos e os impactos do empreendimento, que deverão ser definidos com clareza,

constando consignados no contrato de concessão. Estes atos certamente diminuirão os efeitos

negativos que atingem, geralmente, o povo ribeirinho, que terão tempo para planejarem a

locomoção.

A Constituição Federal traz em seu art. 225 que, em tais hipóteses, deverá ser

realizado um estudo de impacto ambiental anterior à instalação de obra ou atividade

potencialmente causadora de degradação ambiental.

Esse estudo, conhecido como Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é um instrumento

de planejamento pelo qual são avaliados vários efeitos do empreendimento, entre eles o sócio-

econômico e o ambiental, vinculando o início das atividades à sua prévia aprovação,

resultante de rígido exame por equipes técnicas. Concluída esta segunda etapa, os estudos são

submetidos, respectivamente, à aprovação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL)

e ao órgão ambiental (IBAMA ou outro, conforme o caso).

40

O resultado desse estudo será um relatório, chamado Relatório de Impacto Ambiente

(RIMA), que conterá os dados necessários à compreensão das justificativas para a instalação

do empreendimento, diagnóstico ambiental, área de influência, qualidade futura ambiental,

dentre outros.

De outra sorte, é bem verdade que a devastação da natureza traz consequências, na

maioria das vezes, irreversíveis. A derrubada de árvores, por exemplo, como é sabido,

influencia diretamente na ocorrência de chuvas, necessárias para a manutenção da vida na

floresta. Sem elas, a seca torna-se um problema sério, colocando em risco a existência de

qualquer espécie animal ou vegetal na região e, quiçá, o funcionamento regular da usina.

Segundo Fiorillo47, o ciclo da água está ligado ao ciclo energético terrestre, que nada

mais é do que a distribuição de energia proveniente do Sol, o qual possibilita o transporte da

água do mar e da própria terra para grandes altitudes, de onde se derrama na forma de chuva.

No entanto, grande parte desta água que é evaporada está no solo úmido, existente

principalmente nas florestas, ante a grande quantidade de árvores que dificultam a luz solar.

Sem estas árvores, certamente, teremos menores volumes de águas evaporadas, diminuindo

assim a ocorrência de chuvas.

Vale aqui os dizeres de Hugo Nigro Mazzilli: “O uso irregular dos recursos naturais

destruirá ou contaminará os mananciais, promoverá a erosão, eliminará a vegetação, poluirá a

atmosfera, alterará o clima. Teremos danos incalculáveis com a degradação do habitat48” .

Diante dessa afirmação, indaga-se se chegou o momento de pensarmos em novas

maneiras de produção de energia, sem a ocorrência da irreversível degradação ambiental.

Cremos que a resposta é positiva.

Todavia, mesmo com tal transparência nesses procedimentos, nem sempre os

moradores locais são coniventes com a instalação de usinas hidrelétricas Vejamos um

exemplo, a seguir.

1.4.3 A usina hidrelétrica de Belo Monte

Atualmente temos assistido a diversas manifestações contrárias à instalação da usina

de Belo Monte, sendo construída no rio Xingu, estado do Pará. Ambientalistas, povos

indígenas e pessoas do meio artístico vêm apoiando campanhas e movimentos de oposição.

47 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia.2. ed. São

Paulo: Saraiva, 2010, p. 77. 48 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45.

41

Em linhas gerais, alegam devastação da floresta e a inevitável remoção de povos

indígenas de seu habitat natural.

De modo diverso, outros defendem a necessidade de desenvolvimento econômico do

país, que só ocorrerá com o aumento da produção de energia elétrica. Neste caso, estima-se a

produção de 11.233 MW por Belo Monte, colocando-a na posição de terceira maior usina do

mundo.

A referida oposição, aliada a estudos técnicos e consulta às populações afetadas, levou

à redução do projeto original, e o conselho nacional de política energética, em 2008, reduziu a

construção de seis usinas para apenas uma única, reduzindo a área inundada de 18.000 km2

para 503 km2.

Diversas ações socioambientais são realizadas pela concessionária visando a reduzir o

impacto ambiental como, por exemplo, o investimento em infraestrutura (escolas, postos de

saúde e saneamento básico) das cidades de Altamira e Vitória do Xingu, municípios afetados

pela usina.

Também existe nesses municípios um trabalho regular no resgate de animais e de

vegetais, bem como pesquisa de sítios arqueológicos, todas estas atividades no sentido de

preservar e permitir a perpetuação de espécies vegetais e animais.

Pois bem, a opção por um reservatório reduzido (503 km2) trará menor impacto

ambiental, pois se trata de usina a fio d’água, operando com nível constante de águas sem

alteração da cota natural alterada, ou seja, o reservatório da hidrelétrica será o próprio leito do

rio Xingu.

Podemos ainda notar uma preocupação da manutenção da navegação do leito ante a

existência de projeto de sistema de transposição de barcos pelos diferentes níveis do rio.

Quanto às espécies aquáticas do leito, há a inclusão de sistema de transposição de peixes,

permitindo suas movimentações ao longo da barragem na época de piracema.

Neste projeto da usina, foi prevista a geração de 20.000 empregos diretos para 2013 e

mais de 40.000 indiretos com entrega da obra em 2019, movimentando também neste sentido

o mercado local.

Sendo assim, a instalação desta usina é exemplo claro de posições acordadas entre

diferentes grupos de pessoas que pensam de diferentes maneiras, visando a aliar o

crescimento econômico do país com a continuidade da vida da população ribeirinha, sempre

preservando o meio ambiente.

A concessionária, neste caso a “Norte Energia”, não pode abrir mão de todas essas

questões sociais e ambientais, pois deve prezar pela interação com a sociedade, buscando a

42

solução dos conflitos nacionais-setoriais associados ao suprimento de energia, e interesses

locais-regionais dos diversos grupos sociais que, direta ou indiretamente, são afetados pela

implantação dos empreendimentos.

Deverão, portanto, ser empreendidos esforços a fim de assegurar a manutenção da

ordem nas cidades afetadas, não com o poder de polícia, mas sim com investimentos

suficientes para assegurar a normalidade na vida dos habitantes. Nesta fase de construção,

houve um acréscimo populacional no montante de aproximadamente 80% nas cidades que

terão terras alagadas, acréscimo este causado pelos trabalhadores e famílias que se instalam

próximos à construção para desempenhar labor. O município, todavia, não possui estrutura

para atender a toda esta demanda, seja na área da saúde, demanda alimentar, entre outras.

Tanto é verdade que os jornais não cessam divulgação da situação lastimável dos

hospitais, que não possuem leitos para todos os doentes. Cremos que, em tais casos, a

concessionária deve agir rapidamente, contando com planos emergenciais para a resolução

das consequências negativas advindas do aumento populacional, agindo em conjunto com os

governos locais, estaduais e federais, mesmo que para tanto sejam necessários maiores

investimentos financeiros para compra de ambulâncias, construção de postos de saúdes e

compras de medicamentos.

Pois bem, superada a análise desta usina hidrelétrica, passemos agora ao estudo acerca

da instituição das faixas de segurança no entorno dos reservatórios.

43

2 INSTITUIÇÃO DA FAIXA DE SEGURANÇA

No capítulo anterior, identificamos a importância das atividades das usinas

hidrelétricas no Brasil, bem como os seus efeitos em diversas áreas do direito, entre elas a

área ambiental e econômica. No entanto, se faz necessária a análise de áreas de proteção dos

reservatórios, possibilitando a geração de energia elétrica com segurança fornecida à usina e

aos ocupantes ribeirinhos.

A implantação de uma usina hidroelétrica é antecedida por um intenso estudo das

zonas que sofrerão os impactos ambientais. Pesquisadores e técnicos unem forças para traçar

o novo rumo do leito do rio, delimitando o percurso que cause menos alterações geográficas,

evitando gastos demasiados aos cofres da concessionária.

Nesta fase, poderão permitir, contudo, que o próprio relevo natural favoreça o

percurso das águas, aproveitando o que a própria natureza proporciona para aumentar o

volume hídrico desejado, ou mesmo criando reservatórios, os quais têm por finalidade

acumular parte das águas disponíveis nos períodos chuvosos, compensando assim deficiências

em épocas de secas, controlando as vazões naturais.

Vários fatores são levados em consideração na elaboração das usinas, tais como a

geografia do local, a quantidade de energia a ser gerada, quantidade de água que será

represada, fatores ambientais, climáticos e pluviométricos, entre outros, que serão

imprescindíveis na estruturação da usina. A barragem é construída para aumentar a diferença

de nível da água (queda) entre a tomada de água e a turbina. Vejamos a ilustração a seguir:

Figura 3 – Hidrelétrica de Itaipu

Fonte: Disponível em <http://megaconstrucciones.net84.net/?construccion=represa-itaipu>.

44

Para que haja uma queda capaz de gerar a energia pretendida, deverá ocorrer o

estrangulamento do rio, para que a água possa consequentemente cair com maior intensidade,

e o seu volume, com a força da gravidade, gere pressão nas turbinas, girando-as. Vejamos.

Figura 4 – Instalação de turbina na hidrelétrica de Itaipu

Fonte: Disponível em < http://megaconstrucciones.net84.net/?construccion=represa-itaipu>.

Os autores Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Renata Marques Ferreira49 afirmam que

mais de 90% da capacidade de geração de energia no Brasil baseiam-se na água e na força da

gravidade, tendo em vista que a pequena declividade favorece a formação de grandes lagos,

consistindo em energia potencial armazenada.

Ademais, é a redução da vazão que faz com que haja o aumento dos níveis de água,

causando enchentes, o chamado efeito remanso. Num rio, à medida que se chega a um volume

de água superior a sua vazão normal, o nível sobe e inunda as áreas ribeirinhas. E é a partir

daí que começamos a entender a necessidade da instituição das faixas de segurança.

Pois bem, o alagamento das áreas sofrerá estudos profundos, a fim de verificar a

quantidade de águas necessárias para cada trecho, utilizando-se como critério as cotas

existentes ao longo do percurso.

A cota altimétrica é a unidade de medição utilizada para marcação da altura do trecho

inundado, representando sempre a altitude acima do nível do mar. A medição topográfica é

49 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Curso de Direito da Energia. 2. ed. Sâo

Paulo: Saraiva, 2010, p. 71.

45

muito importante na delimitação da faixa de segurança, pois é a partir dela que será possível

delimitá-la para posterior desapropriação da área.

No entanto, indaga-se: no que consistiria a faixa de segurança? Este conceito pode ser

traduzido na área delimitada e preparada para possíveis inundações, decorrentes de atividades

extraordinárias da usina. Ou seja, é espaço reservado às margens do leito represado, ou borda

de reservatório, objetivando receber águas em hipóteses excepcionais, levando em

consideração a impossibilidade de armazenamento do reservatório, ou mesmo a necessidade

urgente de abertura de todas as comportas da usina para não ocorrer danos nas estruturas:

Figura 5 - Comportas fechadas do reservatório de Bariri – AES Tietê S.A.

Fonte: Acervo pessoal.

Seria então a faixa de segurança, que também é chamada de zona inundável, espaço

compreendido entre o mais alto nível admitido pela sua exploração normal e o nível de água

máximo possível (nível de máxima cheia).

João Eduardo Lopes e Raquel Chinaglia Santos, em seu trabalho, explicam as

hipóteses de alagamento da faixa de segurança:

Esta operação pode ser caracterizada pela ocorrência de uma cheia com perspectiva de esgotamento dos volumes de espera dos reservatórios, sendo necessário providenciar descargas defluentes totais que superam as limitações impostas por eventuais restrições, provocando danos. As enchentes que impliquem em decisões operativas em condições de emergência podem ocasionar situações criticas que coloquem em risco a própria segurança da barragem. Outra situação possível que caracteriza a

46

condição de emergência é a perda de comunicações da usina com o centro de operação Neste caso, o elemento encarregado da operação da usina deve estar autorizado a tomar as providencias cabíveis para as quais deve estar disponível uma sistemática de procedimentos bem definidos que, garantam a segurança da barragem. Em ambas as situações, é indispensável a existência de regras de operação que indiquem, a cada instante, qual a defluência deve ser programada de forma a garantir a segurança das estruturas dos aproveitamentos, sem provocar enchentes mais críticas do que as que ocorreriam sob condições naturais de escoamento.50

Os reservatórios são projetados com um volume útil, permitindo a acumulação de água

nas épocas chuvosas, e a liberação nas épocas de estiagem. Isto significa que os reservatórios

regularizam não somente a vazão utilizada, mas também regularizam a operação de outras

usinas localizadas a jusante51.

No Brasil, estas áreas estão atualmente desapropriadas em favor das concessionárias

detentoras do direito de exploração da usina, e são definidas em edital, que contém as

informações necessárias para a delimitação da área.

Para entendermos melhor todos estes pontos do trabalho, fazem-se necessárias breves

explicações sobre alguns conceitos utilizados para a instituição da faixa de alagamento.

A altura normal do leito é o chamado maximo normal, e a cota referente a esta altura é

o ponto inicial para a medição da faixa de segurança. A medida apresenta o nível da água na

bacia de inundação, o que significa dizer que o leito deverá estar normalmente em torno desta

cota em atividades normais operacionais.

O chamado maximo maximorum já aponta o nível mais elevado da superfície de água

para o qual a estrutura foi projetada. Corresponde ao nível de superelevação máxima na

possível ocorrência da cheia de projeto. Ao se aproximar dessa cota, o vertedouro da

barragem (equipamento que permite a passagem da água) fica aberto até a regularização da

cota. É a cota que delimita o final da faixa de segurança.

Compreende-se, portanto, que a faixa de segurança inicia-se na cota correspondente à

máxima normal de operação e tem o seu fim na cota correspondente ao maximo maximorum.

Nota-se que a faixa de segurança tem sua importância justificada. Sempre há a

previsão de possíveis irregularidades ou catástrofes na operação das usinas, podendo ocorrer

enchentes e inundações. Durante eventos de cheia excepcionais, admite-se que o nível da água

no reservatório supere o nível máximo operacional por um curto período de tempo.

50 Capacidade de Reservatórios . Disponível em http://www.fcth.br/public/cursos/phd5706/capacidade_de_reservatorios.pdf, acesso em 10.12.2011. 51 Ponto referencial, o qual indica a direção para onde as águas estão correndo.

47

A barragem e suas estruturas de saída (vertedor) são dimensionadas para uma cheia

com tempo de retorno alto, normalmente 10 mil anos no caso de barragens médias e grandes,

atingido o nível maximo maximorum. É a previsão utilizada pelos técnicos e

estudiosos.Vejamos.

Figura 6 – Elementos estruturais da hidrelétrica.

Fonte: Disponível em <http://www.educacional.com.br>.

Pois bem, mesmo com esta projeção de área inundável, protegendo as instalações da

usina e a integridade das pessoas nas margens ribeirinhas, nota-se que as concessionárias têm

desapropriado áreas relativas a cotas superiores ao maximo maximorum. Tal fato será melhor

abordado no próximo tópico.

2.1 A DESAPROPRIAÇÃO E A FAIXA DE SEGURANÇA

A desapropriação na instituição da faixa de segurança nas bordas de reservatório

possui alta relevância para a prestação dos serviços, sendo imprescindível para o seu

funcionamento. Isto porque associará aquelas terras à produção de energia elétrica, tornando-a

pública.

A desapropriação é instituto administrativo pelo qual o Poder Público transfere

propriedade de terceira pessoa para o seu patrimônio, seja por razões de utilidade pública ou

48

de interesse social. Na maioria das vezes, tal ato ocorre mediante o pagamento de

indenizações.

Neste sentido, José Carvalho Filho diz:

[...] o Estado contemporâneo foi assumindo a tarefa de assegurar a prestação dos serviços fundamentais e ampliando seu espectro social, procurando a proteção da sociedade vista como um todo, e não mais como um somatório de individualidades. Para tanto, precisou imiscuir-se nas relações privadas.52

E, ainda, Carlos Roberto Gonçalves:

A preponderância do interesse público sobre o privado se manifesta em todos os setores do direito, influindo decisivamente na formação do perfil atual do direito de propriedade, que deixou de apresentar as características de direito absoluto e ilimitado para se transformar em um direito de finalidade social.53

Nos casos das desapropriações em decorrência da represagem de rios, ela é

normalmente fundamentada na utilidade pública, daí a existência de benefícios com sua

instalação, trazendo inegáveis avanços para as localidades, conforme já demonstrado. Neste

sentido, alguns julgados.

COMPETÊNCIA RECURSAL – Ação possessória de bem público, porque constituído por área oriunda de desapropriação por utilidade pública e compreendida na faixa de formação de reservatório de usina hidroelétrica – Competência para julgamento das Egs. Ia a 13a Câmaras de Direito Público - Recurso não conhecido, determinada a remessa dos autos54.

Bem público Área declarada de utilidade pública destinada à formação do reservatório da Usina Hidroelétrica de Ilha Solteira Os bens públicos são inalienáveis, não admitem posse de particulares e são insuscetíveis de usucapião Sentença de procedência parcial - Recurso não provido55. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Imóvel rural 301,16 ha., declarado de utilidade pública e desapropriado para formação do reservatório da Usina Hidrelética de Três irmãos. Ocupação irregular na margem do reservatório. Preliminar de nulidade processual por quebra da isenção e imparcialidade do perito rejeitada. Não se caracteriza a parcialidade do perito engenheiro civil, por ter se utilizado de elementos técnicos fornecidos pela apelada, desde que acompanhou pessoalmente o reavivamento dos marcos divisórios da propriedade, ademais de não ter sido levantada qualquer impugnação técnica quanto às medidas descritas no laudo. Apelantes que não nomearam assistente técnico. Preliminar de ilegitimidade ativa e falta de interesse processual que se confundem com o mérito. As

52 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p. 733. 53 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 5. ed.. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 22, 5. v. 54BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. n° 990.10.012138-3 São Paulo - SP, Disponível em

www.tj.sp.jus.br. Acesso em 08 fev. 2012. 55 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. n° 9039207-53.2000, São Paulo - SP, Disponível em

www.tj.sp.jus.br. Acesso em 08 fev. 2012.

49

construções de alvenaria e demais benfeitorias de recreio erigidas situam-se dentro do imóvel rural expropriado, que abrange parte da área inundada e a Área de Preservação Permanente. Constatada a irregularidade da ocupação desta área, ademais de situar-se em faixa de segurança do reservatório, de rigor a procedência da ação. Sentença procedente. Recurso improvido, com determinação56.

Haverá, portanto, o devido processo legal na ação de desapropriação, embasado no

decreto expropriatório expedido pelo chefe do executivo, abrangendo todo o solo que esteja

situado abaixo de uma determinada cota às margens do curso d’água.

Pois bem, a medição da área a ser desapropriada é realizada por meio de estudos

técnicos, e nela estará delimitada sua abrangência, contendo obrigatoriamente a referida faixa.

Portanto, a faixa de segurança estará obrigatoriamente em área desapropriada.

Toma-se como exemplo, relatório de análise ambiental realizado pela AmbioConsult

Ltda., nas Usinas Hidroelétricas de Furnas Centrais, local cujo reservatório teve a área

desapropria na mesma cota da faixa de segurança:

O reservatório, no nível máximo normal de 768,00 m, ocupa uma área de 1.440 km², e apresenta uma capacidade de armazenamento total de 22,95 km³ de água, com um volume útil de 19,36 km³. A cota de desapropriação ou cota de segurança vai até a elevação de 469,3 m.57

Vejamos, outrossim, diferente situação na figura 7:

Figura 7 – Estrutura da área desapropriada

Fonte: Disponível em <http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=1624837>.

56 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. n° 990.10.085892-0, São Paulo - SP, Disponível em

www.tj.sp.jus.br. Acesso em 08 fevereiro de 2012. 57 Disponível em <http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=1624837>, acessado em

10.02.2012.

50

Pela análise anterior, nota-se que a extensão da área desapropriada, definida pela

projeção horizontal do nível da crista da barragem (considerada o ponto mais alto) em direção

às margens, ultrapassou aquela delimitada para a faixa de segurança, seja pela topografia do

local ou características do próprio reservatório, como volume de água, correnteza etc,

demonstrando assim diferente possibilidade.

Entendemos ser esta a opção mais acertada no que se refere à área desapropriada.

Atualmente, temos acompanhado mudanças climáticas devido ao efeito estufa, exercido sobre

o planeta. O fato de haver remoção de pessoas e coisas em cota superior à estipulada para a

faixa de segurança proporcionará maior precaução, evitando toda e qualquer sorte de desastres

que porventura ocorram, com consequências desconhecidas.

2.1.1 Natureza jurídica e a necessidade de registro perante o cartório

De outro canto, uma interessante questão a indagarmos é no tocante a necessidade de

regulamentar perante o respectivo cartório de registro de imóveis a desapropriação das terras

que pertenciam até então a particulares. Haveria esta necessidade? A resposta é positiva.

Todavia, assim o será apenas como mero procedimento administrativo, visto que a averbação

por si só não é apta a constituir, ou mesmo transferir, a titularidade. A expropriação já ocorreu

com o pagamento da indenização e posterior imissão, na posse definitiva, cujo mandado

servirá como titulo hábil para a transcrição no registro de imóvel.

Odete Medauar58 afirma que a declaração expropriatória somente anuncia que o bem

descrito será expropriado. Não se opera a transferência da propriedade ou da posse do bem;

todavia, desencadeará as demais fases do processo de desapropriação.

O renomado jurista Hely Lopes Meirelles assim define a declaração expropriatória:

A declaração expropriatória pode ser feita por lei ou decreto em que se identifique o bem, indique seu destino e se aponte o dispositivo legal que a autorize. Como se trata, entretanto, de ato tipicamente administrativo, consiste na especificação do bem a ser transferido compulsoriamente para o domínio da administração, é o mais próprio do executivo, que é o poder administrador por excelência.59

Importante observar ainda a relação que tal desapropriação guarda com as chamadas

áreas reservadas, trazida pelo Código de Águas, publicado em 1934, por intermédio do

Decreto n.º 24.643, no qual, dentre seus artigos, encontramos os seguintes dizeres:

58 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 418. 59 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 584.

51

Art. 14: Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das mares, vão ate a [sic]distancia de 15 metros para a parte da terra, contados desde ponto médio das enchentes ordinárias.

Em assim dizendo, a área desapropriada deverá respeitar a referida metragem para que

seu marco inicial seja, a partir do ponto médio das enchentes ordinárias, seguindo em direção

à margem, distanciado 15 metros. Isto porque essas áreas já são públicas dominicais,

inexistindo razão que sobre elas recaia processo desapropriatório.

Art. 11. São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular; [...] 2º, os terrenos reservados nas margens das correntes públicas de uso comum, bem como dos canais, lagos e lagoas da mesma espécie. Salvo quanto as correntes que, não sendo navegáveis nem flutuáveis, concorrem apenas para formar outras simplesmente flutuáveis, e não navegáveis.

Encontramos em nossas pesquisas divergência quanto ao marco inicial para a aferição

do terreno reservado, diferente daquele trazido no art. 15 do Código das Águas, qual seja, o

ponto médio das enchentes ordinárias. Vejamos o entendimento pretoriano abaixo:

Administrativo. Desapropriação cumulada com servidão. Terrenos reservados. Artigo 14 do Código de Águas. I – Para aferição da imersão dos terrenos reservados a contagem dos 15 m legais deve partir da margem histórica do curso d’água. Interpretação do artigo 14 do Código de Águas baseada em entendimento jurisprudencial. II – Eventualidade de inundação na área entre-cotas qualificante de situação incompatível com a destinação econômica originária do imóvel (sítio de lazer) e futura destinação com faixa de uso próprio do reservatório da hidroelétrica: fatores que justificam a conversão da servidão em desapropriação plena. III – É de se acolher a conclusão do vistor oficial em face da presunção de sua imparcialidade e equidistância em relação ao interesse das partes, mormente quando não demonstrado o seu desacerto. IV – Recurso do expropriado provido. Improvido o recurso adesivo da expropriante.60

Nesta brilhante decisão, prolatada pela relatora juíza Eva Regina, do Egrégio Tribunal

de Justiça de São Paulo, houve por bem entender que a metragem deveria ser iniciada a partir

da margem histórica do curso d‘água, qual seja, aquela inicial.

A eventualidade de inundação da área traz em si uma carga de incerteza tal que mais se assemelha a uma ameaça, mostrando-se incompatível com a ideia de lazer e acarretando restrição ao uso desta faixa para tal atividade. [...] Inviabilizada, assim, a exploração econômica da faixa entre cotas em

60BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. n° 94.03.029674-7, São Paulo - SP, Disponível em

www.tj.sp.jus.br. Acesso em 08 fevereiro de 2012.

52

relação à atividade desenvolvida originariamente no imóvel, afigura-se a tese do visto oficial e do autor pela sua desapropriação.61

Neste sentido, também decide o Superior Tribunal de Justiça:

Administrativo. Desapropriação. Terras reservadas. Margem Histórica. Juros compensatórios. Critério da inaplicabilidade do verbete nº 74 da súmula do extinto TRF. Honorários Advocatícios. Base de Cálculo. Atualização monetária. Incidência dos Juros Moratórios sobre os compensatórios. Possibilidade. Precedentes. A área correspondente aos terrenos reservados compreende a faixa de 15 m de largura, medida ao longo da margem histórica do rio.[...] 62

Assim sendo, temos que os terrenos reservados são terras públicas dominicais (ou

dominiais), excluídas assim da desapropriação por já pertencerem ao Poder Público.

Todavia, o que significa dizer, que a terra é pública dominial? Sem sombra de dúvidas,

indica que ela pertence ao poder público, sem destinação específica, de modo a não

caracterizar bem de uso comum do povo, ou mesmo de uso especial.

O Decreto-Lei 9.760/46, o qual trata dos bens imóveis da União, especifica em seu

artigo 4º:

4º São terrenos marginais os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a [sic] distância de 15 (quinze) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, contados desde a linha média das enchentes ordinárias.

A própria Constituição Federal define em seu art. 20, III, que os terrenos marginais e

as praias fluviais são bens da União, não deixando quaisquer dúvidas sobre o assunto:

Art. 20 . São bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

Caso contrário, certamente, pertencerão ao Estado em que o rio está localizado, senão

vejamos: “Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou

subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as

decorrentes de obras da União.”

61 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. n° 94.03.029674-7, São Paulo - SP, Disponível em

www.tj.sp.jus.br. Acesso em 08 fevereiro de 2012. 62 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp 51521- SP. Brasília - DF, Disponível em www.stj.jus.br. Acesso

em 08 fevereiro de 2012.

53

Pois bem, o Código Civil de 1916, anterior à atual constituição, carrega em seu bojo

definição de área dominical, contudo de difícil compreensão expressando no art. 99, parágrafo

único que “consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito

público a que se tenha dado estrutura de direito privado”. O citado dispositivo não traz uma

definição exata do que seria área dominical, levando à falsa ideia de que tais bens seriam de

natureza privada, ou mesmo com algumas destas características. Todavia, isto não é verdade.

Emprestamos as palavras de José dos Santos Carvalho Filho, que assim ensina o

significado desta modalidade de terras:

Desse modo, são bens dominicais as terras sem destinação pública específica (entre elas, as terras devolutas, adiante estudadas), os prédios públicos desativados, os bens móveis inservíveis e a dívida ativa. Esses é que constituem objeto de direito real ou pessoal das pessoas jurídicas de direito publico.63

Para dar efetividade ao dispositivo supracitado, deve-se, portanto, a concessionária do

serviço afetado à produção de energia elétrica providenciar a desapropriação.

Vejamos o enunciado de Paulo Affonso Leme Machado:

Na implantação do reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das APPs criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do CONAMA64.

Sendo assim, por possuírem natureza pública, são insuscetíveis de usucapião,

alienação ou penhora. Vejamos o seguinte julgado:

BEM PÚBLICO DOMINICAL. USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 340, DO STF. CIVIL. ADMINISTRATIVO. USUCAPIÃO. ÁREA QUE CONFRONTA COM AS MARGENS DE CURSO DE ÁGUAS NAVEGÁVEIS. DECRETO N. 24.643/34. CÓDIGO DE ÁGUAS. TERRENOS RESERVADOS. BENS PÚBLICOS DOMINICAIS. NA HIPÓTESE, OS AUTORES PRETENDEM A AQUISIÇÃOORIGINÁRIA, POR USUCAPIAO, DE TERRENO QUE OCUPAM JHÁ MAIS DE 35 ANOS E QUE FAZ FRONTEIRA COM RIO DE ÁGUAS NAVEGÁVEIS. NA FORMA DOS ARTIGOS 14 E 31 DO CÓDIGO DE ÁGUAS, SUAS MARGENS SÃO TERRENOS RESERVADOS, BENS DOMINICAIS, COMO OS DEMAIS BENS PÚBLICOS, NÃO PODEM SER USUCAPIDOS. ADEMAIS, DESDE A VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL, OS BENS DOMINICAIS, COMO OS DEMAIS BENS PUBLICOS, NÃO PODEM SER ADQUIRIDOS POR USUCAPIAOL. SÚ,ULA N. 340 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. EXEFESE DOS ARGGIOS 66 E 67 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E DO ARTIGO 183 , PAR. 3. DA ONSTITUICAO FEDERAL. SENTENÇA

63 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p.1080. 64 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. Sao Paulo: Malheiros,

2005, p. 728.

54

PARTIALMENTE REFORMADA PARA EXCLUIR DE SEU ALCANCE A ÁRA ‘NON EDIFICANDI’. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO65.

A utilidade pública é definida pelo Decreto-Lei n.º 3.365/41, alterado pelo Decreto-Lei

nº 856, de 1969, e prevê no art. 5º:

Art. 5º Consideram-se casos de utilidade pública: f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;

Importante se faz também mencionar a Lei 9.074/95, a qual estabelece normas para

outorga e prorrogações das concessões, permissões de serviços públicos, dá outras

providênciase autoriza a ANEEL a declarar utilidade pública para fins de desapropriação.

Assim esclarece o art. 10º da Lei.

Art. 10. Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, declarar a utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica.

Outro ponto que merece nossa análise é no tocante à possibilidade da delegação dos

serviços públicos a particulares, e consequentemente, a possibilidade de desapropriação

realizada por concessionárias de energia elétrica, ou seja, empresas de natureza privada,

abrindo margem à grande discussão quanto a sua legitimidade, porquanto, em tempos

anteriores à Constituição Federal, era feita pelo próprio ente federativo. Explica-se.

Nota-se que a prestação de serviço público é incumbência do poder público, de modo

que o fato de ser exercido por particulares não descaracteriza a natureza da prestação.

Sendo assim, as empresas privadas estão dotadas de legitimidade para exercerem a

concessão de serviços, e mais, para procederem à desapropriação por utilidade pública. José

dos Santos Carvalho Filho66, ao explicar a ação de desapropriação, expõe: “O sujeito ativo da

ação é sempre o Poder Público ou a pessoa privada que exerce função delegada, quando

autorizada em lei ou no contrato”.

Segue ainda, dizendo que “no caso de desapropriação por utilidade pública, a

legitimação é sempre ampla, sendo conferida a todas as pessoas federativas e àquelas que

exercem função delegada, desde que autorizadas na forma da lei”67.

65 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apel. nº 2007.001.19942, Rio de Janeiro - SP , 31 de outubro

de 2007. Disponível em www.tjrj.jus.br. Acesso em 22 dez. 2011. 66 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p.799. 67 OpCit, ´p. 799.

55

2.1.2 Indenização

No tocante à desapropriação fundamentada na utilidade pública, para afetação da área

às atividades de geração de energia elétrica, a indenização a ser paga pelas terras

desapropriadas ao proprietário que perdeu o domínio deverá ser justa, prévia e em dinheiro,

conforme o disposto no art. 5º, XXIV da Constituição Federal.

Será prévia porque ocorrerá antes da transferência do bem, evitando assim atrasos no

pagamento. Justa porque corresponderá ao valor real do bem, livrando o expropriado de

prejuízos financeiros ante o pagamento de valores irrisórios e discrepantes com os praticados

pelo mercado. E, por fim, deverá ser realizado em dinheiro, em espécie entregue diretamente

ao proprietário ou mediante consignação em juízo.

José dos Santos Carvalho Filho68 explica que o pagamento do quantum ocorre

geralmente em duas parcelas, sendo a primeira por intermédio de depósito judicial,

possibilitando a imissão provisória na posse do bem e, posteriormente, mediante parcela

complementar, que corresponde à diferença entre o valor que a sentença fixou, com

acréscimos de juros.

Assim explica Hely Lopes Meirelles:

A justa indenização inclui, portanto, o valor do bem, suas rendas, danos emergentes e lucros cessantes, além dos juros compensatórios e moratórios, despesas judiciais, honorários de advogado e correção monetária69

Inobstante, deverão também ser consideradas as benfeitorias existentes na propriedade

para a apuração do quantum a ser pago, uma vez que esta é parte integrante da propriedade,

trazendo valorização econômica ao imóvel.

Vale informar ainda da existência de discordância quanto à pertinência do pagamento

face à indenização por benfeitorias levantadas após a ocorrência da desapropriação.

Acreditamos, com a devida vênia, que estas não merecem indenização, por tratar-se de

construções em área pública, portanto, desautorizada, até mesmo porque o antigo proprietário

terá ciência desta transferência.

Neste sentido, temos as seguintes decisões:

AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE C.C.DESFAZIMENTO DE CONSTRUÇÃO Procedência decretada corretamente em primeiro grau Área ocupada pelos acionados que é insuscetível de usucapião por se tratar de bem público de destinação especial Desocupação total da área invadida e

68 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 37. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2010, p. 809 69 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 665.

56

conseqüente remoção das construções e benfeitorias existentes que, destarte, é de rigor Descabimento, outrossim, da indenização reclamada, já que os réus não poderiam ignorar o vício que os impossibilitava de possuir a área legitimamente Apelo não provido.70

Nem há que se falar em posse de boa-fé, uma vez que o ocupante não poderia ignorar

o vício que o impossibilitava de possuir a área legitimamente. Ora, se alguém constrói em

área pública, por certo que o faz em área que não é de sua propriedade, não podendo alegar,

posteriormente, direito de retenção ou indenização:

“É de boa-fé a posse se o possuidor estiver certo de que a coisa efetivamente lhe pertence, ignorando que esteja prejudicando outrem, trata-se de erro escusável e ainda por não saber da existência de vício que lhe impede a aquisição da coisa. A posse de má-fé, inversamente, ocorre quando o possuidor tem ciência do vício ou obstáculo que impedia a sua aquisição... É importante frisar que as diferenças entre a posse de boa-fé e má-fé darão o contorno dos efeitos da posse: a percepção de frutos, benfeitorias realizadas na coisa e as eventuais indenizações”.

E, neste contexto, também não tem lugar a indenização por benfeitorias ou acessões:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. EXTRAPOLAÇÃO DEAUTORIZAÇÃO PARA CONSTRUÇÃO. INVASÃO DE ÁREA PÚBLICA. AUTORIZAÇÃO CANCELADA. DIREITOS À INDENIZAÇÃO E À RETENÇÃO DE BENFEITORIAS NÃO RECONHECIDOS. OCUPAÇÃO IRREGULAR. MÁ-FÉ. 4. Ficou caracterizado e bem destacado no julgamento de segundo grau que a ocupação exercida sobre o bem público foi de má-fé, sendo incontroverso que os réus não ignoravam o vício ou o obstáculo que lhe impediam a aquisição do bem ou do direito possuído, qual seja, a propriedade pública do imóvel. A posse de boa-fé só deixa de existir quando as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente. Direito à indenização repelido 71

Todavia, é importante esclarecer que o art. 26, §2º do Decreto-Lei 3.365/41, que

dispõe sobre desapropriações por utilidade pública, impõe o dever de indenizar benfeitorias

necessárias levantadas após a desapropriação, divergindo assim do posicionamento acima

explanado. Acompanhando o sentido da norma, ensina Hely Lopes Meirelles:

Quanto às benfeitorias, esclarece a própria lei, serão sempre indenizadas as necessárias, feitas após a desapropriação, e as uteis, se realizadas com a autorização do expropriante (§1º do art. 26). Repita-se que só se considera efetivada a desapropriação após acordo ou a instauração do processo judicial. A simples declaração de utilidade pública não importa ainda desapropriação e, por isso, admite a normal utilização do bem,

70

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 994.08.103874, São Paulo - SP, 28 de setembro de 2007. Disponível em www.tjsp.jus.br. Acesso em 07 jan. 2012.

71 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. nº 807.970-DF, Brasília - DF, 07 jan. de 2007. Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 07 jan. 2012.

57

independentemente de autorização do Poder Público. Enquanto não iniciada a desapropriação por atos de execução do decreto expropriatório, licito é ao proprietário construir e fazer as benfeitorias que desejar, ficando o expropriante obrigado a indenizá-las quando efetivar, realmente, a expropriação.72

Certamente, tal dispositivo merece reforma, tendo em vista não ser compatível com a

natureza pública do bem desapropriado, assim como com a jurisprudência dominante.

Já nos casos de desapropriação indireta, na qual ocorre a ocupação forçada da

propriedade, a indenização será requerida pelo proprietário via ação de indenização a ser

intentada face ao Poder Público no prazo de 5 anos (Medida Provisória 1.774-22 de 11.2.99).

Pois bem, outro ponto relevante é quanto à impossibilidade de indenização para

particulares que ocupem terrenos reservados, pois estes já pertencem ao Poder Público. Neste

sentido:

Os terrenos que margeiam os rios navegáveis são bens públicos dominicais, salvo se por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular. Assim, até prova em contrário, presume-se que os "terrenos reservados" pertencem ao domínio público, presunção que pode ser ilidida por documento idôneo, comprobatório da propriedade particular. A indenizabilidade dos ‘terrenos reservados’ passa, necessariamente, pela definição do domínio. Se a titularidade é do Poder Público, estas áreas devem ser excluídas do valor da indenização, tal como preconizado na Súmula 479 da Suprema Corte, segundo a qual ‘as margens dos rios navegáveis são domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização’. Por outro lado, se o particular comprova a concessão por título legítimo, nos termos do § 1º do artigo 11 do Código de Águas, o valor dos terrenos reservados deve ser incluído na indenização, à semelhança do que ocorre com os terrenos de marinha. O administrado, embora não proprietário, é titular do domínio útil, razão por que deve ser indenizado.73

Diferente posicionamento compartilha Hely Lopes Meirelles acerca da desapropriação

de terrenos reservados:

Interpretar a reserva dessas faixas como transferência de domínio é desconhecer a natureza e finalidade da servidão que as onera, e que visa, única e exclusivamente, a deixar livres as margens das águas públicas para o policiamento pelos agentes da Administração. Por isso mesmo, em caso de desapropriação indenizam-se também as terras reservadas. Nem poderia a lei despojar a propriedade particular sem indenização. Se o legislador assim agisse, praticaria um confisco, vedado pela nossa Constituição. 74

72 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.666. 73 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. nº 687.741/MS, Brasília - DF, 15 de fevereiro de 2007.

Disponível em www.stj.jus.br. Acesso em 07 jan. 2012. 74 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 524.

58

No entanto, este não é o entendimento atual, rechaçado também pela Súmula 479/STF,

que assim dispõe: "As margens dos rios navegáveis são domínio público, insuscetíveis de

expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização.”75 Assim sendo, os terrenos

pertencentes ao domínio particular devem ser indenizados em caso de desapropriação,

diferentemente dos terrenos reservados e dos terrenos marginais, especificados no art. 20, III,

da Constituição Federal.

Pois bem, superados esses pontos, vejamos agora o aspecto ambiental da faixa de

segurança, que estará sempre abrangida por norma protetiva neste sentido, porquanto área de

preservação permanente.

2.2 RELAÇÃO COM A ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

A faixa de segurança é de fundamental importância para a preservação das atividades

da usina hidrelétrica, bem como a manutenção da ordem e integridade das pessoas que

pretendam ali permanecerem, como já analisado oportunamente.

Todavia, esta faixa está também intrinsecamente ligada a questões ambientais, por se

tratar de Área de Preservação Permanente (APP), merecendo toda a sorte de cuidados para sua

preservação. No presente trabalho, nos ateremos à proteção das bordas de reservatórios.

O legislador de 1965, ao elaborar o Código Florestal, entendeu por bem preservar as

margens dos rios ou reservatórios, dentre outras proteções também importantes, evitando o

assoreamento do leito, garantindo a estabilização de suas margens. Tal fato poderia interferir

diretamente na produção de energia elétrica, pois a degradação das matas ciliares causa o

rebaixamento do nível do reservatório, culminando num possível racionamento de energia

elétrica.

Sendo assim, o reservatório artificial e a APP passam a ficar unificados na sua

implantação.76

A lei também almeja garantir a manutenção das características naturais da região,

estipulando vedação a qualquer intervenção não autorizada. Vejamos o disposto na Lei

4.771/65:

Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais;

75 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 479. Disponível em www.stf.jus.br. 76 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª ed. Sao Paulo: Malheiros,

2005, p. 728.

59

A norma que traz a especificação exata quanto ao espaço preservado é a resolução

CONAMA 302, de março de 2002, que assim expressa em seu artigo 3º:

Art 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida a partir do nível máximo normal de I - trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais; II - quinze metros, no mínimo, para os reservatórios artificiais de geração de energia elétrica com até dez hectares, sem prejuízo da compensação ambiental. III - quinze metros, no mínimo, para reservatórios artificiais não utilizados em abastecimento público ou geração de energia elétrica, com até vinte hectares de superfície e localizados em área rural.

Analisando as normas supracitadas, concluímos que não é o Código Florestal que

estipula as metragens referentes às áreas de preservação permanente em bordas de

reservatório, mas apenas estipulam que tais regiões serão alvo da proteção, permitindo assim

sua complementação pelas resoluções CONAMA.

Portanto, a regra é a seguinte: 100 metros de área de preservação permanente para

bordas de reservatórios artificiais em zonas rurais; e 30 metros da referida área em bordas de

reservatórios situados em zonas urbanas, desde que o reservatório seja utilizado para geração

de energia elétrica, salvo o permissivo do par. 1º da resolução:

§1º Os limites da Área de Preservação Permanente, previstos no inciso I, poderão ser ampliados ou reduzidos, observando-se o patamar mínimo de trinta metros, conforme estabelecido no licenciamento ambiental e no plano de recursos hídricos da bacia onde o reservatório se insere, se houver.

Nota-se, portanto, que as definições das APPs são utilizadas para que cumpram a

função ambiental, preservando recursos hídricos, paisagem, estabilidade geológica,

biodiversidade, fauna, flora e solo, assegurando o bem estar das populações humanas, dizeres

estes estampados no inciso II do art. 2º da resolução CONAMA. Tomamos a liberdade de

colacionar no presente trabalho a figura a seguir, ilustrando assim a importância da mata ciliar

nas bordas de reservatório.

60

Figura 8 – Jusante do reservatório de Bariri - SP

Fonte: Acervo pessoal.

Assim preleciona Paulo Affonso Leme Machado:

Ao se fazer um reservatório de águas, especialmente para o funcionamento das hidroelétricas, surge a necessidade de que esse entorno hídrico tenha vegetação ou seja florestado. Até a MP 2.166-67/2001 os empreendedores públicos ou privados somente previam investir, nessa parte do projeto, na área a ser ocupada pelas águas. Os proprietários confrontantes com o reservatório ficavam com o ônus de criar e manter as novas APPs.77

Sendo assim, ficam proibidas quaisquer intervenções ou supressões que causem

degradação ou remoção da vegetação ciliar, salvo em raras hipóteses, nos moldes do §1º do

art. 2º do Código Florestal:

§ 1° A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social.

A resolução CONAMA 369, que dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade

pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, e que possibilitam a intervenção ou

supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente (APP) especifica melhor tais

hipóteses:

Art. 1º Esta Resolução define os casos excepcionais em que o órgão ambiental competente pode autorizar a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente APP para a implantação de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social,

77 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. Sao Paulo: Malheiros,

2005, p.728.

61

ou para a realização de ações consideradas eventuais e de baixo impacto ambiental.

Certo é que a outorga e utilização de recursos hídricos almejando a produção de

energia elétrica estão subordinadas ao Plano Nacional de Recursos Hídricos (lei 9.433/97). A

outorga dos recursos é onerosa, nos moldes do inciso IV do art. 12 da lei, que assim expressa:

Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;

Interessante este aspecto urbanístico da lei, tendo em vista sua aplicação também em

regiões distante das rurais. A função social da propriedade urbana é regulamentada no §2º do

mencionado dispositivo, revelando que o proprietário deverá aproveitar economicamente em

condições de equilíbrio com os interesses da coletividade, o que se verifica quando o seu uso

se coaduna com as exigências de ordenação das funções sociais da cidade e com o bem-estar

de seus habitantes.

Nestes termos, certamente teremos uma ordenação da ocupação espacial, visando

contribuir com o equilíbrio do meio habitado em âmbito municipal.

Todavia, esta restrição não é absoluta. Permite-se supressão da vegetação nas áreas de

preservação permanente, nos termos do art. 4º, §2º do Código Florestal.

Matéria que se indaga constantemente pelos ocupantes de áreas protegidas é a

relacionada ao direito adquirido, sustentando que estariam ali há longa data, antes mesmo dos

locais de inundação, sendo certo que àquela época não havia preservação no local.

Consequentemente, com a inundação, ganham proteção legal por tratar-se de borda de

reservatório artificial.

Pois bem, o correto é que não há que se falar em direito adquirido em matéria

ambiental, pois se estaria falando sobre direito de degradar o meio ambiente. Vejamos

jurisprudência acerca do assunto:

“PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA 282 DO STF. FUNÇÃO SOCIAL E FUNÇÃO ECOLÓGICA DA PROPRIEDADE E DA POSSE. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVA LEGAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELO DANO AMBIENTAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. DIREITO ADQUIRIDO DE POLUIR. 1. A falta de prequestionamento da matéria submetida a exame do STJ, por meio de Recurso Especial, impede seu conhecimento. Incidência, por analogia, da Súmula 282/STF. 2. Inexiste direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente. O tempo é incapaz de curar ilegalidades ambientais de natureza permanente, pois

62

parte dos sujeitos tutelados as gerações futuras carece de voz e de representantes que falem ou se omitam em seu nome. 3. Décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade. PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO CÂMARA RESERVADA AO MEIO AMBIENTE AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0279669-41.2011.8.26.0000 - CARAGUATATUBA - VOTO Nº 20.277 de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente 4. As APPs e a Reserva Legal justificam-se onde há vegetação nativa remanescente, mas com maior razão onde, em conseqüência de desmatamento ilegal, a flora local já não existe, embora devesse existir. 5. Os deveres associados às APPs e à Reserva Legal têm natureza de obrigação propterrem, isto é, aderem ao título de domínio ou posse. Precedentes do STJ. 6. Descabe falar em culpa ou nexo causal, como fatores determinantes do dever de recuperar a vegetação nativa e averbar a Reserva Legal por parte do proprietário ou possuidor, antigo ou novo, mesmo se o imóvel já estava desmatado quando de sua aquisição. Sendo a hipótese de obrigação propterrem, desarrazoado perquirir quem causou o dano ambiental in casu, se o atual proprietário ou os anteriores, ou a culpabilidade de quem o fez ou deixou de fazer. Precedentes do STJ. 7. Recurso Especial parcialmente conhecido e, essa parte, não provido78.

Todavia, Guilherme Purvin traz à baila em sua obra entendimento diferenciado,

afirmando que a remoção das intervenções nem sempre é a melhor alternativa, pois em dadas

circunstâncias, poderá causar grande impacto ao meio ambiente:

Aplicando-se porém o princípio da proporcionalidade, quando a reversão ao status original de APPs exigir a realização de obras de tal porte que acarretem significativo impacto ambiental e de vizinhança (arts. 36 a 38 do Estatuto da Cidade: demolições, retirada de camada asfáltica, problemas de trafego, poluição sonora e visual, dentre outros) e ainda, naquelas em que o custo da recuperação seja despropositado, não deverá ela ser exigida. Este é o quadro normalmente verificado em áreas urbanas de grande densidade populacional e de inexistência de instabilidade ambienta provocada pela intervenção antrópica no ambiente. [...] Contrário Senso, desde que os custos com a demolição de obras situadas em áreas de preservação permanente e o impacto ambiental provocado pelas próprias obras sejam de pequena monta, se comparados com os benefícios trazidos pela revitalização da APP, a exigência de sua recuperação será pertinente79.

A competência do CONAMA é definida pelo art. 8º da Lei 6.938/81, que estabelece

no inciso I a atribuição de definir normas para o licenciamento de atividades efetiva ou

potencialmente poluidoras. E ainda, os incisos IV e VII, que dispõem competência normativa.

78 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. nº 948921-SP, Brasília - DF, 23 out. de 2007. Disponível em

www.stj.jus.br. Acesso em 07 jan. 2012. 79 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de.Direito de Propriedade no Código Florestal. 4. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais. 2010, p. 228-229.

63

Existem posicionamentos que discordam do dispositivo citado, argumentando que

resoluções expedidas por órgãos subalternos à Presidência da República não teriam natureza

de lei e, consequentemente, nenhuma validade se aplicadas em estados e municípios80.

Feririam, portanto, o principio da legalidade, pois seriam qualificados como atos de natureza

derivada.

Todavia, não é este nosso posicionamento. Acreditamos seja possível tal atribuição

desde que não inovem no ordenamento, sob pena de ferirem regra de competência estipulada

na Constituição Federal, atribuição esta do Poder Legislativo ou, em caráter residual, no

Executivo. Portanto, o CONAMA está apto a regulamentar algo já instituído pela legislação,

preservando o princípio da reserva legal.

Guilherme Purvin cita Luís Carlos Silva Moraes:

O CONAMA não pode criar nada que já não tenha ao menos uma genérica previsão em dispositivo de lei (limites máximos e mínimos). Pode interpretar os dizeres da lei em fatores físicos, químicos e geográficos, com a realidade factual, sempre vinculado à proteção do bem jurídico que, em ultima análise, assim o é também por instituição legal, nunca por normativo administrativo.[...] Atos de controle e manutenção são inerentes ao exercício do poder de policia, ou seja, de fiscalizar preventiva ou repressivamente bem jurídico já instituído81.

Também nesta linha citamos Paulo Affonso Leme Machado82, que afirma que as

resoluções CONAMA não têm força obrigatória quando ultrapassam os limites indicados em

lei.

As resoluções são meros instrumentos que visam a concretizar a aplicação do Direito

Ambiental, não havendo que se falar em qualquer hipótese de inconstitucionalidade. Todavia,

se a resolução tender a alterar o sentido na norma em vigor, ou mesmo inovar no

ordenamento, estaremos diante de uma inconstitucionalidade (se ferir a constituição) ou

ilegalidade (se norma contrariada por lei).

2.3 LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE INDIVIDUAL

A propriedade é composta por diversos direitos, como o direito de gozar, usar, dispor e

reaver, tornando assim um direito complexo.

80 Op. cit. p. 236. 81 Op. cit. p. 236. 82 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. Sao Paulo: Malheiros,

2005, p. 731.

64

Inobstante, o seu uso sofre algumas limitações, sejam elas de ordem civil, ambiental,

administrativa, ou até mesmo para atender ao interesse público. Elas podem ser voluntárias

(como o usufruto), ou mesmo decorrentes da natureza do direito de propriedade, como os

relacionados à vizinhança.

Pois bem, as limitações que interessam ser observadas no presente trabalho são

aquelas em razão da localidade em que se situam, qual seja, em borda de reservatório, ou

próximo ao leito do rio.

Como já anunciado, a Constituição Federal expressa em seu art. 20, que pertencem à

União os lagos, rios e qualquer corrente de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem

mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território

estrangeiro ou deles provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais, mar

territorial, os potenciais de energia hidráulica e os depósitos de águas decorrentes de obras da

União.

Por primeiro, chama-se a atenção para o fato de que as águas que banham determinada

propriedade não são de domínio do proprietário, pois “Toda água, em verdade, é um bem de

uso comum de todos. Tanto que ninguém pode, licitamente, impedir que o sedento sorva a

água tida como de domínio particular”169.

Por seu turno, o Código de Águas (Decreto nº 24.643/34) declarou que as quedas

d’águas e outras fontes de energia elétrica não integram as terras em que se encontrem (art.

145).

Por segundo, também não pertencem a particulares os terrenos marginais.

A nova ótica do direito ambiental, como já afirmado, nos ensina que o interesse

coletivo sobrepõe-se ao individual. Ora, ao analisarmos este direito difuso, em qualquer de

suas vertentes (seja em relação às águas, terra ou vegetação) tem-se que, por estar localizado

em meio à sociedade e ser de relevante interesse sua manutenção (garantindo até mesmo a

manutenção da vida futura), ela exige de seus proprietários a preservação e a manutenção do

bem ambiental, de acordo com o local em que se situam. E, mais do que isso, a própria

intervenção do Estado na propriedade privada.

A doutrina de Cristiane Derani informa o presente pensamento:

A economia parte da dominação e transformação da natureza e é por isso dependente da disponibilidade de recursos naturais. Esta dominação/transformação está direcionada à obtenção de valor, que se materializa em forma de dinheiro, riqueza criada. Como equilibrar riqueza coletiva existente e esgotável com riqueza individual e criável é a grande

169 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p 122.

65

questão para a conciliação entre economia e ecologia Não há verdadeiro progresso com deterioração da qualidade de vida, e será ilusório qualquer desenvolvimento à custa da degradação ecológica – alerta o professor Fábio Nusdeo. Este impasse coloca-nos o desafio da coordenação das práticas individuais com os interesses coletivos. É por isso que a questão da apropriação dos recursos naturais tem a vocação de chamar à revisão das clássicas dicotomias (público-privado, estado-sociedade, economia-ecologia), que, na verdade, sempre se constituíram como revelações alternadas do todo indissociável. É imperioso ao jurista empreender a tarefa nada fácil de iluminar o público no privado, o privado no público, a sociedade no Estado e o Estado na sociedade, a economia na ecologia, a ecologia na economia. Um caminho que me parece evidente é pela prática jurídica voltada à coordenação dessas manifestações, antes representadas de maneira segmentada.170

As matas ciliares que estejam fora da área desapropriada também ganham fundamental

importância se verificarmos que a propriedade particular está localizada em Área de

Preservação Permanente, tendo em vista a proximidade do reservatório artificial. Sendo

assim, deverá ter cuidado em seu manuseio, necessitando sempre a busca de autorização do

órgão ambiental competente para qualquer intervenção que deseje realizar em sua

propriedade.

Nota-se que, neste caso, mesmo sendo dono da propriedade, o seu uso está restrito a

algumas condições para que o bem ambiental seja mantido e protegido.

Fator interessante, e que se observa muitas vezes, é a alegação do proprietário que sua

estada no local advém de longa data e, portanto, anterior ao alagamento da área, de modo que

não se trataria de APP em borda de reservatório antes da inundação. Consequentemente, não

estaria ele abarcado pela norma ambiental.

Tais alegações, por óbvio, são facilmente superadas, tendo em vista a inexistência de

direito adquirido em matéria ambiental. E, ainda, nota-se que a lei não faz qualquer restrição

ou exclusão para que áreas abarcadas nos limites definidos pela lei sejam desconsideradas

Áreas de Preservação Permanente.

Patrícia Lemos explica em sua obra a necessidade atual que a propriedade desenvolva

um conteúdo de satisfação social, conhecida como a publicização da propriedade:

O que acontece com o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito de propriedade é o afastamento da concepção clássica.[...] Trata-se do estabelecimento da utilização da propriedade em conformidade com a sua função socioambiental.171

170 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 102. 171LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio Ambiente e Responsabilidade Civil do Proprietári – Análise do nexo

causal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 27-28.

66

Paulo Affonso Leme Machado critica o fato das APPs em propriedade privada não

exigirem averbação no Registro de Imóveis, de modo semelhante à Reserva Legal Florestal:

A demarcação tem também um efeito pedagógico, pois os proprietários privados se autoconscientizam da função social de seus imóveis, e no caso das áreas urbanas educa-se a população e comprova-se a boa governança ambiental172.

Sendo assim, o proprietário deverá sempre se ater ao preceito de que embora sua

propriedade seja particular ela desempenha uma função ambiental e social, devendo ele

obedecer às restrições que a lei lhe impuser, não havendo mais que se falar naquele conceito

antigo de propriedade, isto é, absoluta e intangível.

2.4 USOS INDEVIDOS DAS FAIXAS DE SEGURANÇA

É frequente o trabalho desempenhado pelas concessionárias de energia hidrelétrica

visando a combater a ocupação e, consequentemente, o uso indevido das faixas de segurança.

A faixa de segurança, em regra, deve manter-se desocupada, permitindo em raríssimas

e determinadas situações, sua ocupação a bem do interesse público. Tais permissivos estarão

especificados no edital na Aneel, que avaliará os atos que são pertinentes para o local

específico, a saber, sempre aqueles que causem baixo impacto, também constante na

resolução Conama n.º 369.

Pois bem, a ocupação deverá sempre ser autorizada pela concessionária responsável,

bem como acompanhada das licenças ambientais competentes, expedidas por órgãos

ambientais. Se autorizada, a concessionária celebrará contrato de concessão de uso, com prazo

determinado e valores a combinar.

Por tratar-se, em sua maioria, de extensas áreas atreladas à produção de energia

elétrica, as concessionárias necessitam de amplo projeto para a fiscalização das áreas de

entorno do reservatório, com aporte dos órgãos ambientais de fiscalização, utilizando-se

inclusive de instrumentos aéreos e aquáticos, tendo em vista a existência de ocupações não

constatadas por meio terrestre.

Geralmente, o uso da faixa é exercido por pescadores que ali se instalam para terem

fácil acesso às águas e, assim, proverem seu sustento. Outras vezes, por particulares que

instalam atividades de extração de areia às margens do leito imóvel.

172 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros,

2005, p. 728.

67

Em meio às intervenções particulares não autorizadas, existem ainda ocupações para

atividades de recreação e lazer, que constroem ali verdadeiros clubes e colônias de férias,

buscando associados para frequentarem suas instalações, muitas vezes permitindo o acesso às

águas para pesca, ou mesmo outras atividades de lazer.

Nestes termos, a E. Câmara Reservada ao meio ambiente, em São Paulo:

Agravo de Instrumento Ação de reintegração de posse c.c. pedidos de demolição das construções e de reparação de danos ambientais Indeferimento da liminar Área de preservação permanente situada às margens de represa Necessidade de reflorestamento Permanência do réu, que, com certeza, contribuirá, ainda mais, para a degradação ambiental da área em litígio Preponderância do interesse coletivo, no que respeita à preservação ambiental, sobre os interesses particulares do posseiro – Ocupação há mais de ano e dia antes do ajuizamento da ação, que, no caso, não inviabiliza a concessão da liminar - Aplicação do art. 924, do CPC - Recurso provido.173

A restrição ao uso, além de preservar o meio ambiente e dar segurança ao correto

funcionamento do reservatório, controla também o uso da água que, embora direito dos

cidadãos, deve ser regulamentada para que os diversos interesses por este recurso natural

sejam compatibilizados. O aumento da pressão exercida sobre o reservatório decorrente do

impacto das atividades humanas pode causar estresse às comunidades aquáticas,

principalmente a ictiofauna, assim como poluição, toxidez e assoreamento do rio.

Em todas essas atividades, bem como em qualquer outra ocupação desautorizada,

deverá a concessionária utilizar-se dos meios legais disponíveis para a retirada dos invasores,

trabalhando conjuntamente com o Ministério Público, se for o caso. Esses e outros pontos

serão estudados adiante, com maior vagar.

173 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. AI nº 2510925320118260000, São Paulo - SP, 09 de

fevereiro de 2007. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 07 jan. 2012.

68

3 RESPONSABILIDADE PELA CONSERVAÇÃO DAS FAIXAS DE

SEGURANÇA E APPs

Conforme já abordado, a faixa de segurança desempenha importante papel para a

manutenção do meio ambiente sadio, bem como para assegurar o correto funcionamento da

usina hidrelétrica.

No presente estudo, também foi verificado que a faixa de segurança abrange desde a

cota máxima normal de operação do rio até a cota maximorum, cuja medida é aferida após

profundos estudos e analises técnicas, levando em conta a topografia do local.

É certo ainda que a faixa de segurança será abrangida pela área de preservação

permanente, porquanto se situa na borda do reservatório, de acordo com o especificado na

resolução Conama nº 302/2002.

Sendo assim, perguntamos: haveria diferenciação quanto à responsabilidade pela

conservação das faixas de segurança e das áreas de preservação permanente? A resposta pode

ser obtida pelo teor do artigo 22 da Lei 4.771/65, isto é, o atual Código Florestal.

Art. 22. A União, diretamente, através do órgão executivo específico, ou em convênio com os Estados e Municípios, fiscalizará a aplicação das normas deste Código, podendo, para tanto, criar os serviços indispensáveis.

Nota-se que o Código Florestal observa que as Áreas de Preservação Permanente

(APPs) serão fiscalizadas pela União, desde que não haja convênio celebrado com o

respectivo estado ou município, ocasião que será deste a competência.

No entanto, a lei faz uma ressalva no parágrafo único do artigo. Vejamos:

Parágrafo único. Nas áreas urbanas, a que se refere o parágrafo único do art. 2º desta Lei, a fiscalização é da competência dos municípios, atuando a União supletivamente.

Ou seja, se a APP estiver dentro do chamado “perímetro urbano”, a competência será

municipal, atuando a União naquilo que houver omissão, ou mesmo para regras gerais da

Constituição.

Neste sentido, Guilherme José Purvin de Figueiredo:

Este dispositivo do Código Florestal, de uma clareza meridiana, não só prevê expressamente o poder de policia municipal em APPs urbanas, como estabelece a competência supletiva da União para proceder a esta fiscalização.174

174 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvinde. Direito de Propriedade no Código Florestal. 4. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2010, p. 241.

69

Assim, a primeira conclusão que nos cabe é que toda a área ambiental abrangida pela

faixa de segurança também será fiscalizada e conservada pelo Poder Público, pois nela está

contida a APP.

Inobstante, não somente a faixa de segurança, mas também toda a área de entorno

desapropriada em favor da concessionária, deverá ser fiscalizada por ela, devendo ainda

constar tais atribuições em contrato de concessão de uso celebrado com a União, por

intermédio da Aneel.

Ora, nada mais justo e coerente do que se atribuir à empresa responsável pelo

funcionamento e administração do reservatório poderes para fiscalizar tais áreas, visto que,

em sua ação ou omissão danosa, concorrerá em penalidades administrativas e penais,

conforme o ato previsto no contrato ou legislação.

E não é só, deverá ainda a concessionária fiscalizar o cumprimento das cláusulas

contratuais firmadas com os ocupantes para que seja assegurado o exercício dos atos previstos

e aprovados tanto por ela quanto pelos órgãos ambientais sem que, contudo, se retire qualquer

poder de fiscalização do poder público.

Ademais, não é porque a área é pública que esta não sofrerá também a intervenção de

órgãos estatais em sua fiscalização, ou até mesmo eventual responsabilização. Vejamos:

Assim, se constitui um contrassenso falar em poder de policia ambiental aplicada aos espaços públicos, o mesmo ano ocorre no que concerne ao dever da administração de desfazer os atos administrativos que não se encontrem sob a égide da lei. Vale dizer, cabe à administração adequar-se às exigências legais do art. 2º. do Código Florestal também seus bens, sejam eles de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais (art. 99, I, II e III, do Código Civil)176.

Não podemos nos esquecer de mencionar também o disposto no inciso IV do art. 4º da

Lei 9.427/96177, que atribui a Aneel a fiscalização pelo correto cumprimento dos contratos e

da prestação dos serviços de energia elétrica, abarcadas assim também a ocupação irregular

das faixas.

Há ainda disposição de lei para a fiscalização quanto ao uso dos recursos hídricos,

cabendo ao órgão público emissor da outorga fazê-lo:

A responsabilidade civil, administrativa e criminal do órgão público que emitir a outorga não termina com esse ato. Cumpre a esse órgão público ‘regulamentar e fiscalizar os usos’ (arts. 29, II, e 30, I, da Lei 9.433/97).178

176 Op. cit. p. 242. 177 Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, disciplina o regime das concessões de serviços

públicos de energia elétrica e dá outras providências. 178 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros,

2005, p. 464.

70

Como se verá adiante, a omissão assume grande relevância quando se refere a deveres

impostos por leis, conforme Lemos179, respeitando ainda ao dever genérico de vigilância para

que não ocorram danos ao bem ambiental.

3.1 MEDIDAS JUDICIAIS CABÍVEIS PARA ASSEGURAR A EFETIVIDADE DAS

FAIXAS DE SEGURANÇA E APPs

Tendo a concessionária a posse direta do bem público, não apenas pela qualidade que

a natureza jurídica da propriedade lhe confere, mas também pelo pagamento da indenização e

contrato de concessão firmado com a União, poderá ela utilizar-se de medidas reintegratórias

da posse, visando reaver o bem daquele que o possua em desacordo com as normas e as

condições impostas.

Sendo assim, comprovada a invasão dentro da área de concessão, estará configurado

esbulho possessório, autorizando a presente medida.

O esbulho, como cediço, ocorre na impossibilidade da concessionária exercer a posse

direta do bem ocupado.

O art.1.210 do Código Civil regulamenta a matéria, preceituando os seguintes dizeres:

Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

Indaga-se, contudo, se a correta medida judicial nestes casos para a remoção de

pessoas ou de bens na propriedade seria a ação de imissão na posse, tendo em vista que a

concessionária não teria exercido, em nenhum momento, qualquer ocupação na área objeto da

demanda.

É que a ação de imissão na posse tem natureza petitória, e é exercida especialmente

por aqueles que possuem o direito à propriedade do bem, mas ainda não exerceram posse por

impedimento de quem ali permanece.

Tal argumentação é utilizada por muitos dos réus ocupantes nas defesas de ações

propostas pelas concessionárias, almejando assim obstaculizar o prosseguimento do processo

por inadequação da via processual.

Todavia, tal argumentação não é correta. Por primeiro, temos que a área não é de

propriedade da concessionária, estando tão somente sob sua concessão. Sendo assim, tal fato,

por si só, afasta o uso de qualquer medida petitória para a obtenção da retirada da ocupação. 179 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 101.

71

Por segundo, temos que a área é pública, tendo em vista tal natureza, haverá o

exercício de detenção na área, e não de posse.

A moderna doutrina e jurisprudência seguem este entendimento, afirmando que o

ocupante de área indisponível e insuscetível de ocupação não pode ser considerado possuidor,

mas sim detentor, o que autoriza a reintegração independentemente do período em que

perdura a detenção:

REINTEGRAÇÃO DE POSSE - BEM PÚBLICO - BEM COMUM DE USO DO POVO – MERA DETENÇÃO - FATOS INCONTROVERSOS - REINTEGRAÇÃO DEVIDA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE (...) SENTENÇA MANTIDA.180

REINTEGRAÇAO DE POSSE – Demandante empresa concessionária de serviços públicos – Companhia Energia de São Paulo (CESP) – Área destinada à construção da Usina Hidroelétrica de Porto Primavera, ocupada pela apelante, em mera detenção – interesse particular que não pode se sobrepor ao interesse público – sentença de procedência mantida – Procede à reintegração de posse promovida por empresa concessionária de serviços públicos, para reaver imóvel de sua propriedade, ocupada indevidamente por particular, em mera detenção, pois a vontade do particular não pode se sobrepor ao interesse público. Ausência de comprovação de cessão pela CESP de parte de área ao Município e ausência de prova de permissão de uso deste ao requerido. Esbulho possessório caracterizado. (...) Recurso não provido. 181

Isso porque os bens públicos de uso comum do povo e de uso especial são

inalienáveis, na forma do art. 100 do Código Civil. Portanto, não geram posse a particulares e

são insuscetíveis de usucapião (art. 183, § 3º da CF e art. 102 do Código Civil). Vejamos:

"Presentemente, por aplicação da doutrina de Jhering, que reuniu, numa única idéia, os elementos corpus e animus definidos na lição de Savigny, tem-se que posse é o direito reconhecido a quem se comporta como proprietário. Posse e propriedade, portanto, são institutos que caminham juntos, não havendo de se reconhecer a posse a quem, por proibição legal, não possa ser proprietário ou não possa gozar de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. Sabe-se que os imóveis públicos, por expressa disposição do art. 183, §3°, da CF/88, não são adquiridos por usucapião. Tem-se conhecimento também de que eles, assim como os demais bens públicos, somente podem ser alienados quando observados os requisitos legais. Dai resulta a conclusão de que se o bem público, por qualquer motivo, não pode ser alienado, ou seja,

180 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 372.834.5/3-0009, São Paulo - SP, 09 de

fevereiro de 2010. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 07 jan. 2012. 181BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 246.214.5, São Paulo - SP, 29 de janeiro de

2007. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 07 jan. 2012.

72

não pode se tornar objeto do direito de posse de outrem que não o Estado182.

E ainda: Usucapião Bem público Imóveis adquiridos pela autora por meio de ação expropriatória e desapropriação amigável Bens que, a partir do momento em que foram desapropriados, tornaram-se bens públicos de uso especial Art. 99, II, do atual CC Caso em que, sendo bens públicos, não podem ser usucapidos Art. 102 do atual CC e Súmula 340 do STF Caso em que não se legitima o reconhecimento da usucapião em favor do réu, relativamente ao imóvel registrado sob a matrícula nº 17.774 do CRI da comarca de Atibaia Apelo da autora provido em parte. Possessória

Reintegração de posse - Necessidade de estarem preenchidos os requisitos do art. 927 do CPC para a caracterização do pedido como possessório Insuficiente que o autor comprove que tenha direito à posse - Art. 485 do anterior CC Posse que consubstancia um estado de fato, devendo ser demonstrada, suficientemente, quando for negada pelo réu.

Possessória Reintegração de posse Autora que não se desincumbiu de seu ônus probatório Posse sobre os imóveis em questão não comprovada Documentos juntados pela autora que não se prestam ao fim pretendido Caso em que se discute a posse, não o domínio Ação de reintegração de posse improcedente Apelo do réu provido em parte.183

Sendo assim, o ocupante da área não possui posse, mas apenas mera detenção da

propriedade, uma vez que ocupa área de utilidade pública, não havendo que se falar em

comprovação do tempo de ocupação da concessionária para fins de expedição de liminar, se

necessário. Nesses termos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Reintegração de Posse - Liminar deferida – Comprovado o esbulho de área pública por parte dos réus é de rigor a imedita expedição de mandado de reintegração de posse, em observância ao art. 928 do CPC – Aocupação de bem público é mera detenção e não gera direito de posse. Recurso improvido185.

"POSSESSÓRIA - Reintegração de posse - Bem público é inalienável, fora de comércio, não podendo ser objeto de propriedade ou posse pelo particular - Liminar concedida - Matéria de ordem pública,

182 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Resp. nº 556721/DF, Brasília - DF, 15 de setembro de 2005.

Disponível em <www.tsj.jus.br>. Acesso em 15 jan. 2012. 183BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 9218941-51.2006.8.26.0000. São Paulo - SP,

09 de novembro de 2011. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 15 jan. 2012. 185 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. AI. nº 20259-36.2011.8.26.0000, São Paulo - SP, 21 de

fevereiro de 2011. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012.

73

indisponível e imprescrilível, sendo irrelevante o tempo da ocupação - Recurso provido"186.

AGRAVO DE INSTRUMENTO Reintegração de Posse Pretensão objetivando a revogação da liminar que concedeu a reintegração na posse do bem público Inadmissibilidade. Presença dos requisitos legais Ocupação de área pública Posse que equivale à mera detenção, não gozando da proteção civil da lei, nem gerando direitos à manutenção Recurso improvido187.

Tal bem é indisponível e, portanto, não pode ser livremente utilizado por particulares,

contrariando os interesses da Administração Pública e da coletividade. Veja-se que, no

vertente caso, não há que se falar no exercício da posse pelo ocupante e sim detenção,

portanto, desautorizada.

Ressalte-se ainda que as obrigações de fazer e não fazer é de extrema importância nos

assuntos atinentes à proteção ambiental, uma vez que a Constituição Federal impõe ao Poder

Público e à coletividade deveres positivos e negativos, visando a manter o equilíbrio

ecológico (art. 225, CF), corroborados ainda com o disposto no art. 461 do CPC, que permite

ao magistrado conceder tutela específica para assegurar o resultado prático equivalente ao do

inadimplemento, inclusive, autorizando o deferimento liminar de tais provimentos, se

relevante o fundamento e justificado o receio de ineficácia do provimento final.

3.1.1 Natureza jurídica

Quanto à natureza jurídica desta ação, inobstante abarcar matéria ambiental — como o

fato de prejudicar a qualidade das águas, regeneração da mata auxiliar, e outras matérias

correlatas — podemos afirmar com toda a certeza de que tais demandas possuem natureza

possessória, tendo em vista o esbulho praticado.

Assim, preleciona Elpídio Donizetti:

No juízo possessório, busca-se exercer as faculdades jurídicas oriundas da posse em si mesma considerada, sem cogitar qualquer outra relação jurídica. No juízo possessório (iuspossessionis), protege-se a posse pelo simples fato de ser ela um direito subjetivo digno de tutela. O fundamento da pretensão é a posse.188

186 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. AI. nº 86019-5, São Paulo – SP, 06 de outubro de

1998. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012. 187 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 0031631-79.2011.8.26.000, São Paulo - SP,

29 de abril de 2011. Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012. 188 DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008,

p. 868.

74

Como regra, estas ações deverão conter em seu acervo documental prova da posse de

má-fé do ocupante, constituído em mora, comprovada pelo recebimento da notificação para

desocupação voluntária, ou mesmo para proceder à regularização da área, quando possível.

Sendo assim, configurada a recusa da restituição do imóvel, nascerá o direito à sua

reintegração. Vejamos alguns casos análogos:

AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Julgamentoantecipado da lide. Admissibilidade artigo 330, I, doCPC.REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Área de terras pertencenteà CESP, localizada em área de preservação permanente.Comprovada de forma adequada a alegação inicial, tendosido o réu notificado para desocupar a área ocupadaindevidamente. Sentença de procedência parcial da açãomantida. Bem público. Descartada a hipótese de posse porparte do particular, não sendo passível de usucapião.APELAÇÃO NÃO PROVIDA189.

REINTEGRAÇÃO DE POSSE - OCUPAÇÃO DO IMÓVEL POR TERCEIRO SEM ANUÊNCIA DA AUTORA – NOTIFICAÇÃO PARA DESOCUPAÇÃO - ESBULHO CONFIGURADO. O apelante entrou na posse do imóvel, mas a autora já a exercia. Notificado extrajudicialmente, permaneceu no imóvel a configurar o esbulho possessório. Recurso desprovido190.

Todavia, entendemos que, em alguns casos, esta notificação poderá ser dispensada

tendo em vista a gravidade do dano ambiental corrente ou iminente, necessitando de urgente

providência para sua interrupção. Esta justificativa deverá estar evidente, notadamente para

fins de concessão de liminares.

3.1.2 Legitimidade

A legitimidade para a propositura das referidas ações de reintegração de posse

pertencem à concessionária responsável pela geração de energia elétrica, conforme o contrato

de concessão celebrado entre as partes.

Ademais, por toda a matéria já debatida, nos resta claro que a concessionária tem

plenos poderes para defender a área sob sua concessão. Seria até mesmo um contrassenso

deixarmos esta atribuição aos entes administrativos, pois o objetivo de delegar esta

competência foi justamente deixar à cargo da vencedora do processo licitatório todos os

189 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 9163818-34.2007.8.26.0000, São Paulo - SP.

Disponível em <www.tjsp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012. 190 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apel. nº 1.236.970-5, São Paulo - SP. Disponível em

<www.tjsp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012.

75

cuidados atrelados ao objeto do contrato, de modo que o Estado agirá oportunamente somente

em caso de omissão, depois de excluídas todas as alternativas para que haja o respeito a esta

regra.

Importa comentar ainda que as Ações Civis Públicas interpostas pelo Ministério

Público face às concessionárias, ocupantes e entes da federação, almejando cessar danos

ambientais pela ocupação irregular, serão estudadas em detalhe.

3.2 MODIFICAÇÕES DA COMPETÊNCIA

O Código de Processo Civil estipula e distribui determinadas competências ao longo

do território nacional, de acordo com o local do fato, valor da causa, ou mesmo matéria

discutida na demanda, de modo que cada juízo terá sua própria atribuição.

No tocante às ações possessórias, notadamente quanto à ação de reintegração de posse,

o art. 95 do CPC informa que as ações possessórias serão propostas no local em que é

exercida a posse e, consequentemente, o esbulho possessório. É o que expressa o artigo a

seguir copiado:

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova.

A competência, segundo Donizete, nada mais é do que a demarcação dos limites em

que cada juízo pode atuar, sendo a medida da jurisdição para o caso específico191.

Sendo assim, no momento da propositura da ação, tais regras deverão ser observadas,

sob pena de prorrogação da competência (se relativa), ou mesmo o deslocamento dos autos

para o juízo competente.

Ocorre que, em determinados casos, mesmo quando a ação é proposta no juízo

competente, o juiz deverá declarar-se incompetente para a apreciação da causa, seja de ofício

ou por provocação, remetendo-o a juízo diverso. Teremos então a chamada “modificação de

competência”.

Este tema passa a ter especial importância para o trabalho, na medida em que é comum

a existência de ações civis públicas tramitando, em sua maioria, propostas pelos Ministérios

Públicos Estaduais, ou pelo Federal, a fim da apuração de eventuais danos ambientais em

191DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008,

p. 111.

76

Área de Preservação Permanente e, se o caso, com solicitação de aplicação de penalidades,

todas previstas pela Lei 7.347/85.

O jurista Fredie Didier Júnior cita os seguintes ensinamentos em sua obra:

Conexão e continência são espécies de relação entre causas pendentes. Essa relação é fato jurídico processual que determina a modificação legal da competência, de modo que as causas sejam reunidas em um mesmo juízo, para que sejam processadas e resolvidas simultaneamente. 192

Havendo conexão ou continência, a distribuição da ação será realizada por

dependência à anteriormente proposta, evitando a existência de decisões contraditórias

abarcando uma mesma relação fática ou de direito trazendo, portanto, segurança jurídica para

as partes envolvidas.

Interessante se faz comentar sobre a possibilidade de ações tramitando em juízos

diferentes, cada qual com competência absoluta distinta. Indaga-se: haveria a possibilidade de

possível conexão ou continência entre ações?

A resposta é negativa tendo em vista que a regra de modificação de competência é

válida apenas quando se trata de competência relativa, e aqui temos juízos com competência

quanto a matérias distintas, portanto, absoluta. Vejamos caso análogo:

PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. IMPRORROGABILIDADE. COMPETÊNCIA DOS TRF'S PARA DISPOR SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS JUÍZOS QUE LHE SÃO VINCULADOS. ART. 96, I, B DACONSTITUIÇÃO FEDERAL C/C O ART. 3º DA LEI 9.788/99. - Compete aos Tribunais Regionais Federais dispor sobre a jurisdição e competência dos juízos que lhe são vinculados, consoante se depreende da leitura do art. 96, I, b da CF/88 c/c o art. 3º da Lei9.788/99. - Estabelecida por meio da Resolução nº 06/99-TRF 5ª Região a competência privativa da 9ª Vara da Seção Judiciária do Ceará para o processamento das execuções fiscais, é inadmissível a remessa do feito executivo a uma das varas não especializadas, sob o fundamento de conexão, eis que a hipótese é de competência material, absoluta e improrrogável. - Inaplicabilidade, ao caso concreto, do art. 106 da Lei Processual Civil, que disciplina hipótese de prorrogação de competência. - Agravo de instrumento desprovido.193

Aqueles que defendem a reunião mesmo em tais hipóteses embasam suas justificativas

no parágrafo único do art. 2º da Lei 7.347/85, o qual define a prevenção do juízo para todas as

ações posteriores intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto194.

192 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Direito Processual Civil. 5. ed, vol. 1, Salvador: Jus Podivm, 2005, p. 142. 193 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AI nº 2003.05.00.016965, Brasília - DF. Disponível em

<www.stj.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012. 194 Neste sentido, Marcelo Abelha Rodrigues, Nelson Nery Jr., e Fredie Didier Jr.

77

No entanto, não nos parece ser a mais acertada das decisões, tendo em vista violação

da disposição acerca das competências regradas no Código Processual Civil. E, ainda, a

própria lei retromencionada estipula os limites territoriais da decisão, que ficará adstrita ao

âmbito jurisdicional do seu órgão prolator. Vejamos:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Sendo assim, nosso objeto de estudo será verificar a ocorrência de qualquer das

modalidades de modificação de competência no momento da propositura da ação de

reintegração de posse pelas concessionárias, em existindo Ação Civil Pública que contemple a

mesma área ocupada.

Importante ainda observar o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli, que apresenta a

possibilidade de existirem ações individuais e coletivas sobre o mesmo assunto. Vejamos:

O ajuizamento de ações civis públicas não impedirá a propositura de ações individuais que tenham por objeto pretensões diferenciadas por danos variáveis, ainda que fundadas nos mesmos fundamentos fáticos. E a hipótese inversa também é verdadeira. [...] Correndo simultaneamente ações individuais por danos diferenciados e a ação civil pública ou coletiva em defesa de interesses difusos e coletivos, dificilmente a reunião dos processos atenderia a fundamentos de oportunidade. Se convier, poderá justificar-se a reunião por conexidade (como em ação civil pública ambiental e ação individual para impedir o mau isso da propriedade vizinha), ou por continência (se o objeto da ação civil pública for mais abrangente)195.

Neste pensamento, existindo a possibilidade de não ocorrer modificação de

competência, de igual modo também não será abalado o juízo pelo qual tramita a segunda

ação proposta, até mesmo porque não guarda qualquer identidade em sua natureza, conforme

já apresentado.

Admitida a reunião dos processos, o autor da ação individual poderá intervir como

litisconsorte na Ação Civil Pública.

3.2.1 Conexão

195 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 69-

70.

78

A conexão está prevista no art. 103 do Código de Processo Civil, que assim expressa:

“Art. 103. Reputam-se conexas duas ou mais ações, quando Ihes for comum o objeto ou a

causa de pedir.”

O referido artigo determina modificação da competência quando comum o objeto

versado na demanda ou, ainda, a causa de pedir. Sobre a matéria, leciona Humberto Theodoro

Júnior:

Todo processo tem como objetivo a composição da lide ou litígio, cujos elementos essenciais são os sujeitos, o objeto e a causa petendi. O que caracteriza a conexão entre as várias causas é a identidade parcial dos elementos da lide deduzida nos diversos processos196.

Sendo assim, se existir identidade de pedido/objeto, ou mesmo causa de pedir, seja ela

mediata ou imediata, entre a ação proposta e as ações civis públicas, poderemos falar em

conexão.

Não paira grandes dúvidas no tocante à causa de pedir próxima e remota nas

demandas reintegratórias. A causa de pedir próxima refere-se ao fato gerador do direito

pretendido, e que originou a propositura da medida judicial: o esbulho possessório.

Já no tocante à causa de pedir remota, ou seja, o fundamento jurídico que justifica o

pedido (afirmação de um determinado direito) das ações reintegratórias é a posse.

O pedido, como diferente não poderia ser, é a reintegração na posse do imóvel

esbulhado. Neste sentido:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. AÇÃO CIVILPÚBLICA E O MANDADO DE SEGURANÇA - INOCORRÊNCIA DA CONEXÃO AVENTADA PELO JUIZ SUSCITADO. Verificando-se que inocorre relevante conexão (art.105 do CPC) entrea ação de reintegração de posse em curso no Juízo suscitante e as demandas remetidas pelo Juízo suscitado, acolhe-se o conflito e proclama-se que esse último é o competente para deslindar a ação civil pública e o mandado de segurança que lhe foram originariamente distribuídos197.

Pois bem, a dúvida e motivo de altas divergências estão na análise destes requisitos na

Ação Civil Pública, a fim de verificar se é o caso ou não de modificação da competência,

senão vejamos.

O Ministério Público vem realizando um trabalho grande e minucioso no sentido de

obstar os danos ambientais causados pelos ocupantes irregulares nas bordas dos reservatórios

196 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004,

p. 168, v.1. 197 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Industrial. CCP180596 - 0001805-61.1996.807.0000, Brasília - DF.

Disponível em <www.tjdft.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012.

79

(e que será mais bem estudado no capítulo seguinte), seja por falta de licença para a ocupação,

seja por extrapolarem os limites da utilização da área de preservação permanente.

O pedido destas ações resume-se ao requerimento de fazer cessar os danos ao meio

ambiente, ou ainda obstar a iminência deles, pedido este acompanhado de multas e obrigações

de fazer.

Todavia, o órgão ministerial não detém a competência para solicitar a reintegração da

área, visto que age representando a coletividade a quem protege, tendo em vista o direito

difuso discutido. Ora, se não bastasse, a coletividade não está legitimada a retomar a posse de

local que nunca deteve, pois sendo pública a área, não significa que seja de uso de todos, mas

sim que pertence ao poder público, nestes casos, sob outorga da concessionária.

Só nos resta, portanto, analisar a causa de pedir. Como causa de pedir próxima,

teremos o próprio ato da ocupação desautorizada, sem qualquer autorização do órgão

competente, ou mesmo atos que sejam realizados de maneira desarrazoada, violando a

legislação ambiental vigente.

Já a causa de pedir remota desta mesma Ação Civil Pública consiste no dever de todos

de zelarem pelo meio ambiente, eximindo-se de atividades nocivas.

Assim, num primeiro momento, não é possível a constatação de qualquer semelhança

entre as duas ações, incorrendo na chamada conexão. Mas por que há, então, tamanha

divergência quanto a este assunto? Explica-se.

Muitas das concessionárias inserem em suas causas de pedir o dano ambiental causado

pelo ocupante, tendo em vista que tal fato auxilia na construção de teses jurídicas visando à

obtenção das liminares e, consequentemente, almejando a remoção imediata daquele que

comete o esbulho possessório.

Assim sendo, esta causa de pedir acaba guardando identidade com a ação civil pública,

embora não seja a fundamental causa de pedir das ações possessórias.

Importante ainda observar que pode até ocorrer a hipótese das ações reintegratórias

conterem pedido de cessação dos danos ambientais na área, de modo que haveria também

identidade de pedido com a Ação Civil Pública.

3.2.2 Continência

Quando falamos na continência, falamos também na relação de causas pendentes,

havendo identidade na causa de pedir (o que já ocorre na conexão). Todavia, o pedido de uma

80

ação abrange o pedido da outra. Vejamos o que expressão art. 104 do Código de Processo

Civil:

Art. 104. Dá-se a continência entre duas ou mais ações sempre que há identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras.

Interessante o exemplo adotado por Elpídio Donizetti:

A propõe contra B ação declaratória para reconhecimento de dívida. Em ação distinta, o autor da ação declaratória pleiteia a condenação de B no pagamento da mesma dívida (as partes e a causa de pedir são idênticas, mas o objeto da ação condenatória é mais amplo, abrangendo o da ação declaratória)198.

Pois bem, reportando-se ao objeto em estudo, poderíamos perguntar se uma ação de

reintegração de posse ajuizada pela concessionária de energia elétrica ou uma Ação Civil

Pública, tendo como legitimado ativo o Ministério Público, para a desocupação de áreas de

preservação permanente, sob concessão daquela, seriam continentes?

A resposta, certamente, é negativa, pois é latente a inexistência quanto à identidade de

partes. Portanto, superada tal alegação.

3.2.3 Litispendência

A litispendência é instituto criado a fim de trazer subsídios para possibilitar a

identificação de demandas idênticas, visando a impedir que se possam tramitar, ao mesmo

tempo, duas ou mais ações com idênticas partes, causa de pedir e pedido, nos moldes do

artigo expresso no CPC e abaixo transcrito:

Art. 301. § 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. § 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

Nota-se que o Código veda expressamente o trâmite de duas ações idênticas, evitando

assim a duplicidade de sentenças, respeitando o instituto da coisa julgada e o da segurança

jurídica.

Para Nelson Nery Junior, é esta a definição:

198

DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 120.

81

Ocorre a litispendência quando se reproduz ação idêntica a outra que já está em curso. As ações são idênticas quanto têm os mesmos elementos, ou seja, quando têm as mesmas partes, a mesma causa de pedir (próxima e remota) e o mesmo pedido (mediato e imediato). A citação válida é que determina o momento em que ocorre a litispendência (CPC 219 caput). Como a primeira já fora anteriormente ajuizada, a segunda ação, onde se verificou a litispendência, não poderá prosseguir, devendo ser extinto o processo sem julgamento do mérito (CPC 267 V).199

Temos, portanto, que a litispendência ocorrida entre duas demandas individuais, não

importará na reunião de processos, mas sim na extinção do último, sem resolução de mérito,

impedindo o autor, contudo, de propor nova ação (art. 268 do CPC).

Quanto à litispendência no âmbito das ações coletivas, a regra é diferente, tendo em

vista tratamento regulado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que assim

dispôs:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

Não acreditamos, portanto, que tal instituto possa ocorrer entre as demandas

estudadas, tendo em vista disposição expressa do art. 104 do Código de Defesa do

Consumidor. Aliás, só se falaria em litispendência se a Ação Civil Pública fosse destinada a

interesses individuais homogêneos, com postulação daquilo que há de comum com o objeto

pleiteado pelo particular200.

199 NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 6. Ed., São Paulo: RT, p. 655. 200 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 70.

82

De outro canto, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes201, com opinião diversa, acredita

na possibilidade de ocorrer a litispendência entre demandas individuais e coletivas. E, ainda,

afirma que a litispendência pode ocorrer também entre duas ou mais ações coletivas.

A grande crítica trazida por este se refere à impossibilidade do desmembramento do

objeto tutelado, possibilitando que outro legitimado, incluso na ação coletiva, ingresse com

nova demanda, com pedido e causa de pedir idênticos àquela. E explica:

[...] Os interesses difusos e coletivos não comportam – material ou logicamente - a convivência de várias ações, diante de pretensões e fundamentos idênticos. Do contrário, a emissão de inúmeros pronunciamentos judiciais diversos ou contraditórios poderia estabelecer padrões de conduta incompatíveis: um juiz, por exemplo, autorizando a realização de determinada atividade provocadora de barulho, apenas no período da tarde; outro somente pelas manhãs; um terceiro proibindo-a terminantemente a qualquer hora; e, por fim, um que a facultasse em geral202.

Destarte, Celso Antônio Pacheco Fiorillo entende também a impossibilidade de

ocorrência de litispendência entre ação coletiva e ação individual:

[...] Não há se falar em litispendência entre uma ação coletiva e uma individual, porquanto não haverá obrigatoriamente coincidência entre os legitimados ativos. Na ação coletiva, a sociedade como um todo, ou então um determinado (ou determinável) grupo de pessoas, estará postulando no processo sob a condução de um dos entes legitimados. Na ação individual, o titular do direito estará, como regra, defendendo direito próprio203.

Sendo assim, sob a ótica desse autor, não se pode admitir a existência de mais de uma

ação coletiva com identidade de objeto, bem como a ação coletiva e a ação individual

tramitando concomitantemente, salvo se a individual tratar de interesse individual

homogêneo, passível também de defesa singular.

Reportando-nos ao caso em tela, portanto, verificamos a possibilidade de existir

concomitantemente as demandas reintegratórias da concessionária e as Ações Civis Públicas.

Por primeiro, porque tutelam direitos diferentes, porquanto possuem naturezas distintas

(demandas possessórias versus demandas coletivas na defesa do meio ambiente).

Por segundo, e nos remetendo ao pensamento de Aluisio Mendes — que aponta a

possibilidade de litispendência em alguns casos —, se esta abre exceção para demandas

individuais que discutem interesses individuais homogêneos, muito mais razão haverá para a

201 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional.. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2002, p. 261, v.4. 202 Op. Cit. p. 260. 203Fiorillo, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12.ed, São Paulo: Saraiva, 2011, p.

646.

83

não caracterização da litispendência no tocante a demandas em que entes legitimados para a

propositura da ação coletiva não a possuam: demandas reintegratórias.

Portanto, e por estas razões, a inexistência da litispendência nos parece a posição mais

acertada.

Superado o tema, passemos à analise da tutela coletiva na defesa dos direitos difusos.

84

4. TUTELA COLETIVA

No capítulo anterior, estudamos as possibilidades de defesa judicial da posse por

intermédio de demandas possessórias, utilizada pelas concessionárias. Analisamos ainda a

possibilidade de modificação de competência face à existência de ações coletivas.

Pois bem, continuando nossas pesquisas, analisaremos a defesa em juízo das áreas

ambientais por intermédio de ações que tutelam os direitos difusos, no presente caso, o meio

ambiente, bem como o modo como a coletividade ribeirinha poderá se organizar visando à

proteção de suas propriedades.

A busca pela efetividade da prestação jurisdicional, bem como pelo acesso à Justiça,

têm ganhado novos estudos, assim como possibilita novas perspectivas no atual estágio do

Direito. Desde tempos remotos, buscam-se maiores simplicidade e celeridade nos trâmites

processuais a fim de que esses possam ser não apenas menos formais, mas também que os

resultados que deles advenham tenham direta relação com o direito material pretendido.

Em outras palavras, o que se preza hoje num processo é que ele possa, de fato, ser

instrumento apto à conquista do direito material pretendido, jamais se colocando como óbice

para qualquer efeito que do processo se pretenda obter.

E nesta busca de meios eficazes para a obtenção do resultado prático da demanda é

que as ações para tutelas coletivas começaram a surgir, tendo em vista que estes direitos, dada

a extensão que possuem, ganham proteção, evitando assim demandas individuais que somente

tumultuariam os juízos, fazendo nascer ainda a possibilidade de decisões conflitantes entre

fatos idênticos.

A questão econômica envolvida também torna a ação coletiva bem atrativa, pois

dependendo do baixo valor do dano, não compensaria uma pessoa ingressar individualmente

em juízo para discuti-lo, arcando sozinho com os honorários advocatícios e com as custas do

processo. Nas ações coletivas, podem individualmente beneficiarem-se dessas ações, o que

também é interessante.

Desse modo, o processo em que se pleiteia a tutela coletiva cumpre importante papel,

trazendo equilíbrio às partes, evitando decisões contraditórias e simplificando num único

procedimento o instrumento apto a conceder tutela jurídica a uma parcela da população, por

meio de um único processo.

Nesta ação ocorre a legitimação extraordinária, quando uma pluralidade de pessoas

titulares do direito é substituída por um órgão que tenha legitimidade para lhes representar,

agindo este em seu próprio nome.

85

A ação coletiva pode, portanto, ser definida, sob o prisma do direito brasileiro, como o direito apto a ser legítima e autonomamente exercido por pessoas naturais, jurídicas ou formais, conforme previsão legal, de modo extraordinário, a fim de exigir a prestação jurisdicional, com o objetivo de tutelar interesses coletivos, assim entendidos os difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos.204

A primeira lei que previu a defesa judicial dos interesses coletivos no Brasil por

entidades e organizações foi a Lei 1.134, de 1950, atribuindo esta legitimidade a associações

de classe sem caráter político. Desta forma, estabeleceu o estatuto da Ordem dos Advogados

do Brasil (OAB), em 1963, representar os interesses gerais dos advogados e individuais, em

juízo e fora dele.

Posteriormente, ingressaram no ordenamento mais dois institutos, a Ação Popular

(cuja regulamentação ocorreu em 1965, com a Lei 4.717), e a Ação Civil Pública (Lei nº.

7.347/85).

Passado alguns anos, a atual Constituição foi promulgada, trazendo dois dispositivos

que discorrem sobre a tutela coletiva: o art. 5º e o art. 8º :

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

O jurista Hugo Nigro Mazzilli conceitua o interesse público como bem geral, portanto,

de interesse da coletividade, classificando-o ainda como primário — que é o bem geral —, e

secundário — que se refere ao modo pelo qual os órgãos da administração veem o interesse

público.

Entre estas duas modalidades de interesse, está o metaindividual (ou coletivo), assim

definido:

(...) referentes a um grupo de pessoas (como os condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os

204 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2002, p. 26, v. 4.

86

empregados do mesmo patrão). São interesses que excedem o âmbito estritamente individual mas não chegam a constituir interesse público205. [...] Falar em devido processo legal em sede de direitos coletivos lato sensu é fazer menção à aplicação de um outro plexo de normas e não do tradicional Código de Processo Civil, sob pena de assim violarmos a Constituição, impedindo o efetivo acesso à justiça. Esse outro plexo de normas inova o ordenamento jurídico, instituindo o que passaremos a chamar de jurisdição civil coletiva. Esta é formada basicamente por dois diplomas legais: o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.345/85)206.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) trouxe importante orientação

quanto às modalidades de direitos coletivos, classificando-os em interesses difusos, interesses

coletivos em sentido estrito e, finalmente, interesses individuais homogêneos.

O interesse difuso caracteriza-se pela indivisibilidade do direito, atingindo ainda um

número indeterminado de pessoas reunidas por circunstâncias de fato. É o caso do meio

ambiente.

Já o interesse coletivo, a exemplo do anterior, também não permite o seu

fracionamento, atingindo um grupo determinado ou determinável de pessoas reunidas por

alguma relação jurídica. A título de exemplo, podemos citar as pessoas participantes de

determinado contrato.

Já os interesses individuais homogêneos têm também uma origem comum, atingindo

pessoas determinadas, ou determináveis, mas que provocaram danos ou responsabilidades que

podem ser divisíveis, com extensão em diferentes proporções para cada pessoa. Como

exemplo, consumidores de produto com defeito, que terão diferentes prejuízos.

Sendo assim, recentemente, surgiu uma maior preocupação com a defesa desses

interesses, motivo pelo qual se iniciou a criação e a estipulação de regras específicas para

dados direitos e, dentre elas, surgiu a ação coletiva. Fredie Didier Júnior explica as

justificativas para sua aceitação em nosso ordenamento:

Eis os principais argumentos, os três retirados do trabalho de Ada Pellegrini Grinover: a) art. 5º, §2º, da Lei Federal n. 7.347/85 permite o ingresso do Poder Público e das associações como litisconsortes de qualquer das partes, inclusive a passiva; b) a não – observância da convenção coletiva de consumo (art. 107 do CDC) implicará uma lide coletiva que pode gerar uma demanda judicial em que as entidades de proteção ao consumidor estejam no pólo passivo; c) o art. 83 do CDC determina que para a defesa dos direitos coletivos (lato sensu) são inadmissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; d) acaso não se admita a ação coletiva passiva, não poderíamos explicar a ação rescisória de sentença

205 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 4. 206Fiorillo, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed, São Paulo: Saraiva, 2011, p.

620.

87

proposta pelo réu da ação coletiva originaria, o mandado de segurança contra ato judicial impetrado pelo réu na ação coletiva e os embargos à execução coletiva, todas demanda coletivas passivas, já que o legitimado extraordinário coletivo estaria no pólo passivo da causa207.

Pois bem, dentre todas as tutelas coletivas existentes, as Ações Civis Públicas possuem

grande relevância na proteção dos direitos das usinas hidrelétricas face aos possuidores

irregulares em suas áreas. Isto porque ela ajudará na manutenção da flora existente em área de

preservação permanente, punindo os seus agressores.

4.1 AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Embora sem qualquer caráter possessório, a Ação Civil Pública é o principal

instrumento utilizado pelas promotorias do meio ambiente para a extinção do dano ambiental

no entorno dos reservatórios, de certa forma, auxiliando no controle das ocupações pelas

concessionárias de energia elétrica.

Totalmente lícita se faz a cumulação nos pedidos de multa a ser arbitrada pela

perpetuidade da ocupação, seja ela pelo não cumprimento da ordem judicial, ou mesmo para

inibir futuras invasões que porventura possam ocorrer.

Como já anunciado acima, entendemos que estas ações não guardam qualquer relação

com as ações individuais, seja ela relação prejudicial ou que importe na modificação de

competência das reintegratórias, tendo em vista a natureza ambiental da demanda, de interesse

coletivo.

A Ação Civil Pública adveio ao ordenamento pela Lei 7.347/85, oferecendo pela

primeira vez a defesa dos interesses supraindividuais, notadamente quanto à proteção do meio

ambiente, tarefa esta restrita até então às ações individuais.

Sua natureza é de ação, adotada de especial rito processual. O renomado jurista José

Afonso da Silva208 apresenta a Ação Civil Pública como típico e mais importante meio

processual existente de defesa ambiental.

A vigência da lei é explicada por José dos Santos Carvalho Filho: “A referida lei,

embora nascida sob a égide da Carta anterior, foi recepcionada pela vigente Constituição, que,

207DIDIER JÚNIOR, Fredie. Direito Processual Civil. 5. ed, , Salvador: Jus Podivm, 2005, p. 197, v.1. 208 DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 322.

88

inclusive, passou referir-se expressamente à Ação Civil Pública, fato que não ocorria

anteriormente”. 209

O requerimento visado no instrumento sob análise está delineado no art. 3º da lei da

Ação Civil Pública, que assim dispõe: “Art. 3º A ação civil poderá ter por objeto a

condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.”

Desse modo, e nos reportando à matéria ambiental, os entes autorizados pela lei

poderão interpor a Ação Civil Pública visando a que o legitimado passivo seja compelido à

prática de algum ato, ou se abstenha da continuidade das atividades prejudiciais ao meio

ambiente.

Podemos citar como exemplo a situação descrita por Paulo Affonso Leme Machado:

Cabe ação civil pública para o cumprimento da obrigação de fazer contra o usuário da água (pessoa física ou jurídica, privada ou pública) que infringir as obrigações do art. 12 da Lei 9.433/97, agindo sem a outorga de uso das águas210.

Afirma ainda a mencionada lei que o valor das condenações obtidas nas Ações Civis

Públicas visarão a recompor os bens e interesses lesados no aspecto supraindividual, criando

assim um fundo próprio.

Por fim, trazemos ao presente trabalho a opinião de Paulo Affonso Leme Machado

sobre o surgimento e eficácia da ação comentada. Vejamos:

A ação civil pública pode realmente trazer a melhoria e a restauração dos bens e interesses defendidos, dependendo, contudo, sua eficácia, além da sensibilidade dos juízes e do dinamismo dos promotores e das associações, do espectro das ações propostas. Se a ação ficar como uma operação ‘apaga incêndios’ muito pouco se terá feito, pois não terá peso para mudar a política industrial e agrícola, nem influenciará o planejamento nacional. Ao contrário, se as ações forem propostas de modo amplo e coordenado, poderemos encontrar uma das mais notáveis afirmações de presença social do Poder Judiciário211.

Entrementes, é de praxe constatar o trabalho desenvolvido pelas concessionárias de

energia elétrica visando ao impedimento da propositura de tais tutelas coletivas. Antecipam-se

a este momento, auxiliando as promotorias no combate ao desmatamento, neste sentido,

celebrando inclusive Termos de Ajustamento de Conduta (TACs).

209 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p. 1006. 210 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. Sao Paulo: Malheiros,

2005, p. 459. 211 MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros,

2005, p. 366.

89

Isto porque as concessionárias também compõe o polo passivo desta demanda, não

somente porque são possuidoras da área desapropriada, mas também pelo dever de

fiscalização dessas áreas, em tese, possuindo responsabilidade na degradação.

Encontra-se esse fundamento no fato do dano ambiental, normalmente, possuir caráter

contínuo, cujos prejuízos ao meio ambiente se propagam e até se agravam com o correr do

tempo caso não sejam reparados. Neste caso, é o que se apresenta mais justo, por ir à busca do

real causador do dano, ou daquele que permite sua ocorrência. Vejamos o art. 225 da

Constituição Federal.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Se isso não bastasse, há ainda a previsão do art. 14 da Lei nº 6.938/1981, o qual dispõe

acerca da reparação do dano causado como um dos objetivos da política nacional do meio

ambiente:

Art. 14. A Política Nacional do Meio Ambiente visará: VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigaçãoe recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.

Sendo assim, será válida qualquer medida que as concessionárias possam

primariamente adotar antecipando-se à propositura das Ações Civis Públicas, para que essas

mesmas concessionárias não sofram, dada à responsabilidade objetiva do dano ambiental,

condenação por falta de fiscalização no entorno dos reservatórios.

4.1.1 Legitimidade

A legitimidade ativa está no art. 5º da lei, e deverá ser analisada conjuntamente com o

art. X do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e, diferentemente das ações em geral, não

é genérica. O citado dispositivo estipula que a ação poderá ser proposta por Ministério ou

Defensoria Pública, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquia, empresa pública,

fundação ou sociedade de economia mista, ou associação constituída há pelo menos um ano,

90

que possua a chamada representatividade adequada, e com autorização em estatuto ou com

deliberação de assembléia.

Sendo assim, cada órgão avaliará a necessidade da interposição da ação, analisando o

interesse discutido.

Fala-se ainda em legitimidade autônoma, pois qualquer um dos legitimados poderá

ajuizar a ação; concorrente, porquanto qualquer ente poderá interpor o instrumento — em

conjunto ou separadamente —, e disjuntiva, pois o ajuizamento da ação por um deles não

exclui a do outro.

Sendo assim, poderá existir litisconsórcio ativo entre os legitimados, ou mesmo a

figura do assistente litisconsorcial.

O foco dado no presente trabalho, como diferente não poderia ser, é no tocante às

ações interpostas pelo Ministério Público, que tem realizado intenso trabalho de fiscalização

das áreas sob concessão das usinas hidrelétricas, e daquelas que margeiam o reservatório.

Aliás, é este órgão ministerial o principal defensor dos interesses indisponíveis da sociedade.

Frisa-se, contudo, que a legitimação ordinária para eventuais lesados pleitearem em

juízo direito abarcado em ação coletiva é possível, obedecendo às regras apresentadas no

capítulo anterior.

Quanto à legitimidade passiva, o jurista Hugo Nigro Mazzilli observa a seguinte

informação, de grande interesse a este trabalho:

Se a ação civil pública ou coletiva tiver por objeto pedido que possa ser feito em ação popular, analogicamente deverá ser proposta contra as mesmas pessoas que seriam as legitimadas passivas para a ação popular212.

Nota-se, portanto, que a lei não se preocupou com qualquer especificidade, podendo

haver qualquer pessoa no polo passivo, seja física, jurídica, pública ou privada, desde que

violadora do direito.

4.1.2 Objeto

Com a Ação Civil Pública, espera-se atingir a proteção do patrimônio público e social,

do meio ambiente, e de outros interesses coletivos e difusos, sendo que o foco no presente

trabalho será a utilização deste instrumento de defesa ambiental.

Importantes definição e classificação são trazidas à baila por José Afonso da Silva, que

assim preleciona: 212 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 91.

91

O objeto mediato da ação, portanto, consiste na tutela do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito do consumidor e dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 1º da Lei 7.347/85), que, em face da Constituição vigente, não podem mais ser considerados meros interesses difusos, mas formas de direitos humanos fundamentais, ditos de terceira geração. O objeto mediato será a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou de não - fazer (art. 3º)213.

E segue: A vigente redação do art. 1º da LACP permite a defesa de interesses metaindividuais relacionados com o meio ambiente, o consumidor, o chamado patrimônio cultural (bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), a infrações à ordem econômica, e, ainda, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.214

Passemos agora a breves comentários quanto à competência para estas ações.

4.1.3 Competência

A competência na Lei da Ação Civil Pública é absoluta, e veio delineada no art. 2º,

que assim expressa:

Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa. Parágrafo único A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto.

Sendo assim, a ação será proposta no local do dano, facilitando a coleta de provas.

Caso o dano seja nacional ou regional, a ação será proposta na capital do Estado ou no

Distrito Federal.

Segundo as lições de Hugo Nigro Mazzilli:

Ressalvada a competência da justiça federal, os danos de âmbito nacional ou regional em matéria de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos serão apurados perante a justiça estadual, em ação proposta no foro do local do dano; se regional, no foro da Capital do Estado; se nacional, no Distrito Federal, aplicando-se as regras do CPC nos casos de competência concorrente.215

213DA SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 323. 214 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10. ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 41. 215 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses difusos em juízo. 10ª ed, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 74.

92

Quanto ao fato da ação tramitar pela Justiça Federal, interessante se faz buscarmos os

comentários de Álvaro Luiz Valery Mirra, que explica prevalecer orientação de não ser

qualquer interesse que autoriza o ingresso desses entes da União em acompanhar a

demanda.216

Sendo assim, e reportando-nos à matéria ambiental, o fato do dano atingir bens da

União, como mares ou praias, não é fato autorizador que caracterize intervenção da União,

pois o meio ambiente é bem de uso comum. Neste sentido:

Competência – Ação Civil Pública – Reparação de danos causados ao meio ambiente – Julgamento afeto à justiça estadual, ainda que a área em litígio pertença a União. A justiça Estadual é competente para processar e julgar ação civil pública de reparação de danos causados ao meio ambiente, ainda que a área em litígio pertença à união217.

4.1.4 Tutelas sumárias e de urgência

Em seu bojo, a lei que rege a Ação Civil Pública prevê a possibilidade de concessão de

liminares no processo, dependendo da urgência e da necessidade do provimento. Vejamos o

art. 12 da lei 7.347/85: “Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem

justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.”

Sabe-se que a Ação Civil Pública possui legislação e procedimento próprio,

diferenciados dos ritos processuais previstos no Código de Processo Civil. Inobstante, ante a

sua impossibilidade de prever todas as situações possíveis, permite este a utilização da

legislação processual civil frente a eventuais omissões legislativas, de acordo com o Código

de Defesa do Consumidor:

Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

Permite-se a utilização deste diploma consumerista por autorização expressa da Lei

7.347/85, que assim expressa em seu conteúdo:

Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.

216 MIRRA, Álvaro Luiz Valery in MILARÉ, Édis. Ação civil pública. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002, p.45. 217 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. nº 21.564-5/5, São Paulo-SP, 25 de jan. 1998. Disponível

em <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 12 jan. 2012.

93

Destarte, outra conclusão não é possível senão aquela que permite a concessão de

medidas liminares nesta demanda, exigindo os mesmos requisitos já amplamente conhecidos:

o fumus boni iuris e o periculum in mora. Essa decisão liminar é interlocutória, podendo ser

impugnada pelo recurso de agravo.

Nos dizeres de José dos Santos Carvalho Filho:

O que é importante acentuar é a própria existência da tutela preventiva. Desde que presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris, poderá o juiz conceder a medida liminar para evitar a consumação do dano ao meio ambiente, aos consumidores, ao patrimônio publico, à criança e ao adolescente, aos deficientes etc. E essa medida liminar, como visto, tanto poder se concedida em ação cautelar especifica e preparatória da ação principal ou na própria ação civil pública principal218.

Esta tutela poderá ser repressiva (quando o agente já consumou a conduta danosa),

visando a sua cessação, ou preventiva (quanto o dano está prestes a ocorrer), visando multas

ou obrigação de fazer, visando a obstar a ocorrência do mal iminente.

Importante observação é feita por Silvia Cappelli, ao afirmar:

Ao contrário do que ocorre em outros remédios jurídicos que também prevêem a concessão de medida liminar, como é o caso do mandado de segurança, na ação civil pública, o requerimento de liminar é a regra porque dificilmente o meio ambiente, diante da lesão ou ameaça de lesão, pode aguardar o devido processo legal até a prolação da sentença. De fato, a experiência tem demonstrado que ou o judiciário defere e mantém a liminar, ou o status quo ante não poderá ser restabelecido após o período de instrução e recursos. Assim, a liminar na ação civil pública, como adverte Ferraz não é um provimento excepcional [...].219

Cumpre, por derradeiro, salientar a existência de disposição expressa permissiva ao

presidente do tribunal suspender a liminar, caso se verifique que sua execução poderá tornar-

se mais gravosa, nos termos do art. 12, §1º da lei.

Percebe-se, pela sistemática da lei, que a intenção é a de que todo aquele que se sentir

lesado poderá dar início à fase executória, afastando assim o cerceamento do devido processo

legal, e do acesso à ordem jurídica justa.

Caso qualquer dessas pessoas abandone o processo, ficará a cargo do Ministério

Público a execução ou a liquidação da sentença, salvo se existirem óbices de ordem

218 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2009, p. 1009. 219 MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELI, Silvia. Direito

Ambiental. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 221.

94

processual, ou na hipótese de defesa de interesses individuais homogêneos — o assunto não

contiver relevância social suficiente220.

4.1.5 Sentença e execução

A sentença proferida na Ação Civil Pública será executada nos mesmos autos e foro da

fase de conhecimento.

Antes mesmo do surgimento da Lei 11.232/2005, a qual alterou o processo de

execução no sistema processual civil, tornando mera fase do processo de conhecimento (e não

nova ação), a Lei n.º 7.347/85 já previa, em algumas hipóteses, a existência do sincretismo

processual, pois, conforme explica Hugo Nigro Mazzilli 221 , “à medida que o juiz ia

conhecendo, também ia executando suas decisões, de maneira que nelas não havia um

subsequente processo e execução”.

O modo pelo qual se dará a execução será diferente se o objeto pertencer a direitos

coletivos ou direitos individuais homogêneos, ou ainda, se difuso.

Neste último, qualquer legitimado poderá cumprir a sentença, beneficiando assim aos

demais, porquanto direito indivisível. Já quanto às outras duas espécies de direito, o lesado

poderá executar a parte que lhe seja cabível. No tocante aos direitos individuais homogêneos,

qualquer legitimado poderá, e o Ministério Público deverá habilitar-se.

4.2 AÇÕES COLETIVAS PARA PROTEÇÃO DE POSSUIDORES

Importante tema a ser abordado no presente trabalho é a possibilidade de utilização de

instrumentos jurídicos coletivos para a proteção do direito dos possuidores das áreas que

margeiam os reservatórios, direta e indiretamente afetados pelo represamento.

Como já estudado, a população ribeirinha é a que sofre os maiores impactos oriundos

das atividades da usina. Isto ocorre desde o inicio da construção, oportunidade em que

ocorrerá desvio de leito, desmatamento, abertura de vias para a passagem de caminhões e

tratores, até a fase do efetivo funcionamento das suas operações normais, como a

desapropriação da propriedade, e possível alagamento da área ocupada.

220 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 19. ed, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 492. 221 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 19. ed, São Paulo: Saraiva, 2006, p.

481.

95

Observamos ainda no presente trabalho situações de desapropriação e audiências

públicas que devem ocorrer regularmente, com oitiva dos setores públicos e população

interessada.

Todavia, não podemos fechar os olhos às diversas manifestações de povos que não

concordam com determinadas posturas, estudos de impacto ambientais realizados, e outros

fatores que não são do agrado de todos, como o não atendimento de preceitos determinantes

de participação dos povos afetados.

Nestas ocasiões, em que os fundamentos para a indignação ultrapassem a mera

comoção por obras que sigam contra suas convicções, a população poderá organizar-se para

lançar mão de medidas judiciais específicas, visando a obstaculizar o empreendimento, ou

requerendo a nulidade de algum ato eivado de vício.

A ação civil pública, tema já estudado em tópicos anteriores, poderá ser utilizada para

exigir cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, seja no tocante ao meio ambiente,

problemas relacionados a atos que atinjam populações que estejam próximas ao impacto, ou

mesmo para proteção do patrimônio público e social.

Poderão, assim, acionar o Ministério Público para que impetre a ação. O órgão

representará a coletividade, e poderá apurar a denúncia previamente por intermédio de

inquérito civil. Poderá ainda a sociedade procurar associações destinadas à proteção ao meio

ambiente, ou que detenham a pertinência temática referente ao tema almejado.

Podemos citar como exemplo do aqui exposto a ação civil pública impetrada pelo

Ministério Público Federal em Santa Catarina, face à FATMA (Fundação do Meio Ambiente),

a Hidrelétrica Pardos S/A e o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos

Naturais Renováveis) requerendo a suspensão imediata do licenciamento ambiental da

Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Rio dos Pardos, localizada no município de Porto União.

Vejamos:

Conforme a ação, ajuizada pelo procurador da República em Caçador, Anderson Lodetti Cunha de Oliveira, as licenças ambientais prévia e de instalação, concedidas pela Fatma, contêm diversas irregularidades, entre as quais a falta de estudos adequados dos impactos da obra sobre a fauna, além dos possíveis impactos sobre a comunidade indígena Xokleng, localizada a 1,5 km da barragem. O estudo de impacto ambiental (EIA) apresentado pelo empreendedor, a Hidrelétrica Pardos, que serviu de base para a emissão das licenças da Fatma, não foi elaborado a partir de pesquisa de campo, observações e

96

monitoramento da fauna local, mas por meio de um levantamento exclusivamente bibliográfico.222

No caso citado, foi requerido liminarmente a suspensão do licenciamento ambiental e

a suspensão do inicio das atividades da usina. Houve também pedido para que o Ibama

verificasse os impactos ambientais, determinando medidas para cessá-los.

Pois bem, outro instrumento importante que poderá ser utilizado pelo cidadão que

sentir-se prejudicado é a ação popular, consagrada no art. 5º, LXXIII, da Constituição

Federal. Ela poderá ser intentada sempre que o objetivo for o de anular ato lesivo ao meio

ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Sendo assim, qualquer pessoa no gozo de seus direitos políticos poderá lançar mão

deste remédio constitucional, seja para apontar irregularidades em obras, pedir a anulação de

atos lesivos ao meio ambiente, pagamento de perdas e danos, ou mesmo para pedir o retorno

da situação no status quo ante.

Trazemos à baila, exemplificando o exercício de tal direito, decisão do Tribunal de

Justiça de São Paulo, que julgou procedente ação popular que visava à correção de ato

omisso, consistente na divulgação dos níveis de poluição na região metropolitana de São

Paulo de modo ineficiente. A seguir, decisão.

Convém observar, como bem realçou a ilustre magistrada de primeiro grau, que a principal providência pleiteada pelo autor é a divulgação, pelos réus, de forma eficiente, dos níveis de poluição que configurem estados de atenção, alerta e emergência, como isso ocorrer. A prova dos autos está a indicar que, ainda tenha havido certa divulgação, ela se mostrou insuficiente para alcançar os objetivos previstos na legislação. Essa divulgação deve ser mais ampla, de forma a alcançar todos os segmentos da sociedade, e não somente aqueles que lêem Jornais. [...]Por isso a correção das medidas determinadas na r. sentença apelada: a) efetivação de medidas previstas em lei para diminuir os níveis de poluição ambiental; b) elaboração e colocação em prática de programa de conscientização popular, em todos os meios de comunicação social, de forma abrangente; c) ampla divulgação quando a poluição atmosférica atingir os níveis de atenção e alerta.223

De igual modo, ocorreu o julgamento de um agravo de instrumento nos autos de uma

ação popular, movida face ao Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São

Paulo DAEE e outros, objetivando reformar decisão que cassou liminar para a exploração de

poço profundo aberto na cidade de Ribeirão Preto — SP. O relator deste recurso acabou por

222 Disponível em <http://www.observatorioeco.com.br/justica-pode-suspender-licenca-de-usina-hidreletrica-em-

sc>. Acesso em 25 mar de 2012. 223 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apel. nº 9152745-46.1999.8.26.0000, São Paulo-SP, 06 de mar.

2012. Disponível em <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2012.

97

indeferir o pleito, tendo em vista que a utilização do poço era controlada, não causando danos

ao aquífero, atendendo assim a milhares de pessoas que necessitavam das águas. Vejamos.

AGRAVO DE INSTRUMENTO Ação Popular Ambiental Insurgência em face da decisão que concedeu medida liminar para tornar sem efeito a suspensão da licença de perfuração expedida pelo DAEE Inexistência de risco de dano ao meio ambiente Interesse metaindividual atendido - Decisão de caráter cautelar em conformidade com o controle e fiscalização das atividades ambientais de interesse coletivo Recurso não provido. 224

Fato importante a corroborar com os estudos realizados é uma campanha atual do

Instituto de Justiça Ambiental e ONG VEDDAS, em parceria com o Movimento Brasil Pelas

Florestas. O movimento incentiva a propositura de ações populares visando a impedir a

construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. O cidadão interessado poderá entrar no

site225, e enviar os documentos necessários para que advogados impetrem demandas desta

natureza.

Vejamos o artigo abaixo.

Pessoas de diferentes cidades brasileiras ingressaram hoje (08) na Vara Ambiental do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) com a Ação Popular nº 5059088-86.2011.404.7100 contra a União Federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) para que a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte seja imediatamente interrompida. “Os autores propõem esta ação, já que se sentem no dever de atuar em solidariedade a outros brasileiros, neste caso, minorias francamente excluídas, e em defesa da natureza e da fauna ameacada de extinção”. [...] os autores também pedem que as pessoas que foram removidas de suas propriedades possam retornar; que a Licença Ambiental aprovada pelo IBAMA seja anulada; que sejam realizados estudos sobre as possibilidades de geração de energias menos impactantes ao meio ambiente e à sociedade; entre outros.226

Cremos que esta iniciativa é muito bem vinda, tendo em vista que analisará aspectos

importantes da construção da usina, e possíveis danos ambientais não detalhados no EIA.

Todavia, deverá ser utilizada com razoabilidade, evitando multiplicidades desnecessárias de

cidadãos no polo ativo, ou até mesmo inúmeras demandas idênticas, tumultuando assim o

poder judiciário brasileiro.

224 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. AI. nº017735-62.2011.8.26.0000, São Paulo-SP, 03 de out. 2011.

Disponível em <www.tj.sp.jus.br>. Acesso em 01 abr. 2012. 225 Disponível em <http://veddas.org.br/projetos-e-campanhas/163-acaopopularbelomonte.html>. Acesso em 01

abr. 2012. 226 Disponível em <http://observatorioambiental.com.br/2011/11/08/acao-popular-tenta-impedir-a-construcao-

da-usina-de-belo-monte>. Acesso em 01 abr. 2012.

98

Nota-se, portanto, que existem instrumentos jurídicos para proteção dos direitos dos

possuidores de terras localizadas às margens dos reservatórios, visando a afastar

arbitrariedades e ilegalidades nos procedimentos da concessionária, ou mesmo omissão do

poder público, exigindo cuidado e prudência no manuseio de tais ações, assim como se exige

daqueles colocados à disposição das concessionárias de energia elétrica.

O importante é que todas as partes colaborem na proteção do meio ambiente e no

desenvolvimento econômico do país, identificando fatores que exijam real intervenção do

poder judiciário, sabendo exigir a proteção dos seus direitos, superando assim meras

convicções ou expectativas sobre o tema.

99

CONCLUSÃO

O presente estudo objetivou o estudo das áreas de seguranças localizadas em

reservatórios hidrelétricos artificiais, observando-se sua regulamentação e aspectos correlatos

a diversas áreas do direito.

Certo é que o Brasil necessita aumentar a demanda de energia elétrica, almejando

suportar o crescente aumento do consumo.

Tal fato justifica a implementação de melhorias nas usinas existentes, e grande

investimento na renovação de maquinas. Inobstante, justifica também a construção de novas

hidrelétricas, assunto em alta nos dias atuais, criador de diversos movimentos contrários à sua

criação.

A geração de energia no Brasil é realizada por concessionárias, que recebem a outorga

da União por intermédio de contrato com a ANEEL, por prazo determinado, para a

exploração desta atividade, antes exercida pelo próprio estado.

No entanto, para que as usinas tenham sua máxima produtividade garantida, são

necessárias áreas de domínio nas bordas dos reservatórios. Estas são delimitadas por meio de

estudos técnicos, que apontam qual a região necessária à desocupação.

A referida faixa visa assim a possibilitar que as águas atinjam cotas mais altas,

atividade necessária para a regularização da vazão das comportas, quando abertas. Isto

certamente impede que a barragem possa sofrer danos estruturais.

O estudo e delimitação desta área pelos técnicos levam em consideração a crista da

usina, bem como a topografia do local alagado, podendo ser igual ou inferior à área

desapropriada. Entendemos, por oportuno, que a desapropriação de área maior do que a faixa

é importante para evitar o alagamento por causas naturais não previstas pelo homem, que vive

numa época em que fenômenos naturais desastrosos inovam-se a cada dia, dada à quantidade

de poluentes lançados no planeta; portanto, inimagináveis.

Atualmente, a desapropriação dessas áreas destinadas à faixa de segurança são

realizadas pela própria concessionária, poder este outorgado pela União.

A ocupação deverá sempre ser autorizada pela concessionária responsável, bem como

acompanhada das licenças ambientais competentes, expedidas por órgãos ambientais quando

permitida.

Se autorizada, a concessionária celebrará contrato de concessão de uso, com prazo

determinado e valores a combinar. Assim, trará fomento à região, com atos sustentáveis,

100

respeitando e mantendo o meio ambiente, motivo pelo qual trazem em sua essência o aspecto

econômico e ambiental da matéria.

O dever de fiscalização dessas áreas incumbe aos governos municipais e federais,

inobstante o da concessionária, que possui a concessão de uso da área. Ao governo, porquanto

situada em área de preservação permanente. Se localizada em perímetro urbano, a

competência será municipal; se rural a área, a competência será da União. Quanto à

concessionária, o dever de fiscalização decorre da própria natureza do contrato celebrado com

a ANELL.

A APP em borda de reservatório possui área abrangida por 100 metros em áreas rurais,

e 30 metros em áreas urbanas, sendo que a primeira poderá ser modificada, se respeitada a

metragem mínima de 30 metros, e estabelecido no licenciamento ambiental e plano de

recursos hídricos.

Faz-se necessária ainda a regularização da área desapropriada em cartório de registro

de imóveis. Todavia, não é ela que determina o momento da expropriação, fixado pelo

pagamento da indenização ao proprietário.

Concluímos ainda que as ações coletivas são importantes instrumentos para a proteção

das bordas de reservatórios, tendo em vista sua característica ambiental. Citamos, entre todas

as existentes, a ação civil pública, a mais utilizada pelos legitimados, principalmente pelo

Ministério Público e organizações da sociedade.

A população, outrossim, também pode valer-se desta ação se representadas, apensar

das inúmeras ações populares que atualmente presenciamos visando a obstar a construção de

usinas que causem impactos negativos.

Por fim, notou-se que as faixas de segurança são importantes para a produção de

energia nas usinas hidrelétricas, assegurando o correto desenvolvimento das atividades,

evitando a formação de erosões, acumulação de lixo, e lançamento de pesticidas nas águas,

poluindo-as. O respeito à faixa também evita perigo à vida, face à possibilidade de

alagamento da área.

Cremos que a ocupação regulamentada do local estudado é perfeitamente possível, sob

a guarda das normas ambientais existentes. O baixo impacto, aliado à autorização da

concessionária para as ocupações, permitem uma interação da sociedade com a represa. Este

bom relacionamento é crucial para que as pessoas possam entender a relevante importância da

geração de energia num país de extensas proporções como o nosso.

De outro lado, a insistência de antigos proprietários em continuar em áreas

desapropriadas sem qualquer autorização acabam por prorrogar o perigo de sua ocupações,

101

denegrindo o meio ambiente, surgindo assim o dever de interposição de medidas judiciais.

Assim, cabe às concessionárias um trabalho preventivo, de interação com a sociedade,

demonstrando a importância na preservação do espaço que será utilizado.

102

REFERÊNCIAS

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103

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, 4 v. MIRRA, Álvaro Luiz Valery in MILARÉ, Édis. Ação civil pública. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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104

ANEXO A

RESOLUÇÃO Nº 302, DE 20 DE MARÇO DE 2002

Dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de

reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno.

O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das

competências que lhe são conferidas pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981,

regulamentada pelo Decreto 99.274, de 6 de junho de 1990, e tendo em vista o disposto

nas Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e no seu

Regimento Interno, e

Considerando que a função sócio-ambiental da propriedade prevista nos arts. 5º, inciso

XXIII, 170, inciso VI, 182, § 2º, 186, inciso II e 225 da Constituição, os princípios da

prevenção, da precaução e do poluidor-pagador;

Considerando a necessidade de regulamentar o art. 2º da Lei nº 4.771, de 1965, no que

concerne às áreas de preservação permanente no entorno dos reservatórios artificiais;

Considerando as responsabilidades assumidas pelo Brasil por força da Convenção da

Biodiversidade, de 1992, da Convenção de Ramsar, de 1971 e da Convenção de

Washington, de 1940, bem como os compromissos derivados da Declaração do Rio de

Janeiro, de 1992;

Considerando que as Áreas de Preservação Permanente e outros espaços territoriais

especialmente protegidos, como instrumento de relevante interesse ambiental, integram

o desenvolvimento sustentável, objetivo das presentes e futuras gerações;

Considerando a função ambiental das Áreas de Preservação Permanente de preservar os

recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico

de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas,

resolve:

105

Art. 1º Constitui objeto da presente Resolução o estabelecimento de parâmetros,

definições e limites para as Áreas de Preservação Permanente de reservatório artificial e

a instituição da elaboração obrigatória de plano ambiental de conservação e uso do seu

entorno.

Art. 2º Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições:

I - Reservatório artificial: acumulação não natural de água destinada a quaisquer de seus

múltiplos usos;

II - Área de Preservação Permanente: a área marginal ao redor do reservatório artificial e

suas ilhas, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a

estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo

e assegurar o bem estar das populações humanas;

III - Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno de Reservatório Artificial:

conjunto de diretrizes e proposições com o objetivo de disciplinar a conservação,

recuperação, o uso e ocupação do entorno do reservatório artificial, respeitados os

parâmetros estabelecidos nesta Resolução e em outras normas aplicáveis;

IV - Nível Máximo Normal: é a cota máxima normal de operação do reservatório;

V - Área Urbana Consolidada: aquela que atende aos seguintes critérios:

a) definição legal pelo poder público;

b) existência de, no mínimo, quatro dos seguintes equipamentos de infra-estrutura

urbana:

1. malha viária com canalização de águas pluviais,

2. rede de abastecimento de água;

106

3. rede de esgoto;

4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública;

5. recolhimento de resíduos sólidos urbanos;

6. tratamento de resíduos sólidos urbanos; e

c) densidade demográfica superior a cinco mil habitantes por km2.

Art 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura mínima, em

projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artific iais, medida a partir do nível

máximo normal de:

I - trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e

cem metros para áreas rurais;

II - quinze metros, no mínimo, para os reservatórios artificiais de geração de energia

elétrica com até dez hectares, sem prejuízo da compensação ambiental.

III - quinze metros, no mínimo, para reservatórios artificiais não utilizados em

abastecimento público ou geração de energia elétrica, com até vinte hectares de

superfície e localizados em área rural.

§ 1º Os limites da Área de Preservação Permanente, previstos no inciso I, poderão ser

ampliados ou reduzidos, observando-se o patamar mínimo de trinta metros, conforme

estabelecido no licenciamento ambiental e no plano de recursos hídricos da bacia onde o

reservatório se insere, se houver.

§ 2º Os limites da Área de Preservação Permanente, previstos no inciso II, somente

poderão ser ampliados, conforme estabelecido no licenciamento ambiental, e, quando

houver, de acordo com o plano de recursos hídricos da bacia onde o reservatório se

insere.

107

§ 3º A redução do limite da Área de Preservação Permanente, prevista no § 1º deste

artigo não se aplica às áreas de ocorrência original da floresta ombrófila densa - porção

amazônica, inclusive os cerradões e aos reservatórios artificiais utilizados para fins de

abastecimento público.

§ 4º A ampliação ou redução do limite das Áreas de Preservação Permanente, a que se

refere o § 1º, deverá ser estabelecida considerando, no mínimo, os seguintes critérios:

I - características ambientais da bacia hidrográfica;

II - geologia, geomorfologia, hidrogeologia e fisiografia da bacia hidrográfica;

III - tipologia vegetal;

IV - representatividade ecológica da área no bioma presente dentro da bacia hidrográfica

em que está inserido, notadamente a existência de espécie ameaçada de extinção e a

importância da área como corredor de biodiversidade;

V - finalidade do uso da água;

VI - uso e ocupação do solo no entorno;

VII - o impacto ambiental causado pela implantação do reservatório e no entorno da

Área de Preservação Permanente até a faixa de cem metros.

§ 5º Na hipótese de redução, a ocupação urbana, mesmo com parcelamento do solo

através de loteamento ou subdivisão em partes ideais, dentre outros mecanismos, não

poderá exceder a dez por cento dessa área, ressalvadas as benfeitorias existentes na área

urbana consolidada, à época da solicitação da licença prévia ambiental.

§ 6º Não se aplicam as disposições deste artigo às acumulações artificiais de água,

inferiores a cinco hectares de superfície, desde que não resultantes do barramento ou

represamento de cursos d`água e não localizadas em Área de Preservação Permanente, à

108

exceção daquelas destinadas ao abastecimento público.

Art. 4º O empreendedor, no âmbito do procedimento de licenciamento ambiental, deve

elaborar o plano ambiental de conservação e uso do entorno de reservatório artificial em

conformidade com o termo de referência expedido pelo órgão ambiental competente,

para os reservatórios artificiais destinados à geração de energia e abastecimento público.

§ 1º Cabe ao órgão ambiental competente aprovar o plano ambiental de conservação e

uso do entorno dos reservatórios artificiais, considerando o plano de recursos hídricos,

quando houver, sem prejuízo do procedimento de licenciamento ambiental.

§ 2º A aprovação do plano ambiental de conservação e uso do entorno dos reservatórios

artificiais deverá ser precedida da realização de consulta pública, sob pena de nulidade

do ato administrativo, na forma da Resolução CONAMA nº 09, de 3 de dezembro de

1987, naquilo que for aplicável, informando-se ao Ministério Público com antecedência

de trinta dias da respectiva data.

§ 3º Na análise do plano ambiental de conservação e uso de que trata este artigo, será

ouvido o respectivo comitê de bacia hidrográfica, quando houver.

§ 4º O plano ambiental de conservação e uso poderá indicar áreas para implantação de

pólos turísticos e lazer no entorno do reservatório artificial, que não poderão exceder a

dez por cento da área total do seu entorno.

§ 5º As áreas previstas no parágrafo anterior somente poderão ser ocupadas respeitadas a

legislação municipal, estadual e federal, e desde que a ocupação esteja devidamente

licenciada pelo órgão ambiental competente.

Art. 5º Aos empreendimentos objeto de processo de privatização, até a data de

publicação desta Resolução, aplicam-se às exigências ambientais vigentes à época da

privatização, inclusive os cem metros mínimos de Área de Preservação Permanente.

Parágrafo único. Aos empreendimentos que dispõem de licença de operação aplicam-se

as exigências nela contidas.

109

Art. 6º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, incidindo, inclusive,

sobre os processos de licenciamento ambiental em andamento.

110

ANEXO B

RESOLUÇÃO CONAMA Nº 369, DE 28 DE MARÇO DE 2006

Dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto

ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação

PermanenteAPP.

O CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE-CONAMA, no uso das competências

que lhe são conferidas pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentada pelo

Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, e tendo em vista o disposto nas Leis nº 4.771, de 15

de setembro e 1965, nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e o seu Regimento Interno, e

Considerando, nos termos do art. 225, caput, da Constituição Federal, o dever do Poder

Público e da coletividade de proteger o meio ambiente para a presente e as futuras gerações;

Considerando as responsabilidades assumidas pelo Brasil por força da Convenção da

Biodiversidade, de 1992, da Convenção Ramsar, de 1971 e da Convenção de Washington, de

1940, bem como os compromissos derivados da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992;

Considerando que as Áreas de Preservação Permanente-APP, localizadas em cada posse ou

propriedade, são bens de interesse nacional e espaços territoriais especialmente protegidos,

cobertos ou não por vegetação, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a

paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger

o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;

Considerando a singularidade e o valor estratégico das áreas de preservação permanente que,

conforme indica sua denominação, são caracterizadas, como regra geral, pela intocabilidade e

vedação de uso econômico direto;

Considerando que as áreas de preservação permanente e outros espaços territoriais

especialmente protegidos, como instrumentos de relevante interesse ambiental, integram o

desenvolvimento sustentável, objetivo das presentes e futuras gerações;

Considerando a função sócioambiental da propriedade prevista nos arts. 5º, inciso XXIII, 170,

inciso VI, 182, § 2º, 186, inciso II e 225 da Constituição e os princípios da prevenção, da

precaução e do poluidor-pagador;

Considerando que o direito de propriedade será exercido com as limitações que a legislação

estabelece, ficando o proprietário ou posseiro obrigados a respeitarem as normas e

regulamentos administrativos;

111

Considerando o dever legal do proprietário ou do possuidor de recuperar as Áreas de

Preservação Permanente-APP's irregularmente suprimidas ou ocupadas;

Considerando que, nos termos do art. 8º, da Lei nº 6.938, de 1981, compete ao Conselho

Nacional do Meio Ambiente-CONAMA estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao

controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos

recursos ambientais, principalmente os hídricos; e Considerando que, nos termos do art. 1º §

2º, incisos IV, alínea “c”, e V, alínea “c”, da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, alterada

pela MP nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, compete ao CONAMA prever, em resolução,

demais obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública e interesse social; resolve:

Seção I

Das Disposições Gerais

Art. 1º Esta Resolução define os casos excepcionais em que o órgão ambiental competente

pode autorizar a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação

PermanenteAPP para a implantação de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade

pública ou interesse social, ou para a realização de ações consideradas eventuais e de baixo

impacto ambiental.§ 1º É vedada a intervenção ou supressão de vegetação em APP de

nascentes, veredas, manguezais e dunas originalmente providas de vegetação, previstas nos

incisos II, IV, X e XI do art. 3º da Resolução CONAMA nº 303, de 20 de março de 2002,

salvo nos casos de utilidade pública dispostos no inciso I do art. 2º desta Resolução, e para

acesso de pessoas e animais para obtenção de água, nos termos do § 7º, do art. 4º, da Lei nº

4.771, de 15 de setembro de 1965.

§ 2º O disposto na alínea “c” do inciso I, do art. 2º desta Resolução não se aplica para a

intervenção ou supressão de vegetação nas APP's de veredas, restingas, manguezais e dunas

previstas nos incisos IV, X e XI do art. 3º da Resolução CONAMA nº 303, de 20 de março de

2002.

§ 3º A autorização para intervenção ou supressão de vegetação em APP de nascente, definida

no inciso II do art. 3º da Resolução CONAMA nº 303, de 2002, fica condicionada à outorga

do direito de uso de recurso hídrico, conforme o disposto no art. 12 da Lei nº 9.433, de 8 de

janeiro de 1997.

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§ 4º A autorização de intervenção ou supressão de vegetação em APP depende da

comprovação pelo empreendedor do cumprimento integral das obrigações vencidas nestas

áreas.

Art. 2º O órgão ambiental competente somente poderá autorizar a intervenção ou supressão de

vegetação em APP, devidamente caracterizada e motivada mediante procedimento

administrativo autônomo e prévio, e atendidos os requisitos previstos nesta resolução e

noutras normas federais, estaduais e municipais aplicáveis, bem como no Plano Diretor,

Zoneamento Ecológico-Econômico e Plano de Manejo das Unidades de Conservação, se

existentes, nos seguintes casos:

I - utilidade pública:

a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária;

b) as obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte,

saneamento e energia;

c) as atividades de pesquisa e extração de substâncias minerais, outorgadas pela autoridade

competente, exceto areia, argila, saibro e cascalho;

d) a implantação de área verde pública em área urbana;

e) pesquisa arqueológica;

f) obras públicas para implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e

de efluentes tratados; e

g) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes

tratados para projetos privados de aqüicultura, obedecidos os critérios e requisitos previstos

nos §§ 1º e 2º do art. 11, desta Resolução.

II - interesse social:

a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais como

prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e

proteção de plantios com espécies nativas, de acordo com o estabelecido pelo órgão ambiental

competente;

b) o manejo agroflorestal, ambientalmente sustentável, praticado na pequena propriedade ou

posse rural familiar, que não descaracterize a cobertura vegetal nativa, ou impeça sua

recuperação, e não prejudique a função ecológica da área;

c) a regularização fundiária sustentável de área urbana; d) as atividades de pesquisa e extração

de areia, argila, saibro e cascalho, outorgadas pela autoridade competente;

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III - intervenção ou supressão de vegetação eventual e de baixo impacto ambiental,

observados os parâmetros desta Resolução.

Art. 3º A intervenção ou supressão de vegetação em APP somente poderá ser autorizada

quando o requerente, entre outras exigências, comprovar:

I - a inexistência de alternativa técnica e locacional às obras, planos, atividades ou projetos

propostos;II - atendimento às condições e padrões aplicáveis aos corpos de água;

III - averbação da Área de Reserva Legal; e

IV - a inexistência de risco de agravamento de processos como enchentes, erosão ou

movimentos acidentais de massa rochosa.

Art. 4º Toda obra, plano, atividade ou projeto de utilidade pública, interesse social ou de

baixo impacto ambiental, deverá obter do órgão ambiental competente a autorização para

intervenção ou supressão de vegetação em APP, em processo administrativo próprio, nos

termos previstos nesta resolução, no âmbito do processo de licenciamento ou autorização,

motivado tecnicamente, observadas as normas ambientais aplicáveis.

§ 1º A intervenção ou supressão de vegetação em APP de que trata o caput deste artigo

dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia,

quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no §

2º deste artigo.

§ 2º A intervenção ou supressão de vegetação em APP situada em área urbana dependerá de

autorização do órgão ambiental municipal, desde que o município possua Conselho de Meio

Ambiente, com caráter deliberativo, e Plano Diretor ou Lei de Diretrizes Urbanas, no caso de

municípios com menos de vinte mil habitantes, mediante anuência prévia do órgão ambiental

estadual competente, fundamentada em parecer técnico.

§ 3º Independem de prévia autorização do órgão ambiental competente:

I - as atividades de segurança pública e defesa civil, de caráter emergencial; e

II - as atividades previstas na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, de preparo

emprego das Forças Armadas para o cumprimento de sua missão constitucional,

desenvolvidas em área militar.

Art. 5º O órgão ambiental competente estabelecerá, previamente à emissão da autorização

para a intervenção ou supressão de vegetação em APP, as medidas ecológicas, de caráter

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mitigador e compensatório, previstas no § 4º, do art. 4º, da Lei nº 4.771, de 1965, que deverão

ser adotadas pelo requerente.

§ 1º Para os empreendimentos e atividades sujeitos ao licenciamento ambiental, as medidas

ecológicas, de caráter mitigador e compensatório, previstas neste artigo, serão definidas no

âmbito do referido processo de licenciamento, sem prejuízo, quando for o caso, do

cumprimento das disposições do art. 36, da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000.

§ 2º As medidas de caráter compensatório de que trata este artigo consistem na efetiva

recuperação ou recomposição de APP e deverão ocorrer na mesma sub-bacia hidrográfica, e

prioritariamente:

I - na área de influência do empreendimento, ou

II - nas cabeceiras dos rios.

Art. 6º Independe de autorização do poder público o plantio de espécies nativas com a

finalidade de recuperação de APP, respeitadas as obrigações anteriormente acordadas, se

existentes, e as normas e requisitos técnicos aplicáveis.

Seção II

Das Atividades de Pesquisa e Extração de Substâncias Minerais

Art. 7º A intervenção ou supressão de vegetação em APP para a extração de substâncias

minerais, observado o disposto na Seção I desta Resolução, fica sujeita à apresentação de

Estudo Prévio de Impacto Ambiental-EIA e respectivo Relatório de Impacto sobre o Meio

Ambiente-RIMA no processo de licenciamento ambiental, bem como a outras exigências,

entre as quais:

I - demonstração da titularidade de direito mineral outorgado pelo órgão competente do

Ministério de Minas e Energia, por qualquer dos títulos previstos na legislação vigente;

II - justificação da necessidade da extração de substâncias minerais em APP e a inexistência

de alternativas técnicas e locacionais da exploração da jazida;III - avaliação do impacto

ambiental agregado da exploração mineral e os efeitos cumulativos

nas APP's, da sub-bacia do conjunto de atividades de lavra mineral atuais e previsíveis, que

estejam disponíveis nos órgãos competentes;

IV - execução por profissionais legalmente habilitados para a extração mineral e controle de

impactos sobre meio físico e biótico, mediante apresentação de Anotação de

Responsabilidade Técnica-ART, de execução ou Anotação de Função Técnica-AFT, a qual

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deverá permanecer ativa até o encerramento da atividade minerária e da respectiva

recuperação ambiental;

V - compatibilidade com as diretrizes do plano de recursos hídricos, quando houver;

VI - não localização em remanescente florestal de mata atlântica primária.

§ 1º No caso de intervenção ou supressão de vegetação em APP para a atividade de extração

de substâncias minerais que não seja potencialmente causadora de significativo impacto

ambiental, o órgão ambiental competente poderá, mediante decisão motivada, substituir a

exigência de apresentação de EIA/RIMA pela apresentação de outros estudos ambientais

previstos em legislação.

§ 2º A intervenção ou supressão de vegetação em APP para as atividades de pesquisa mineral,

observado o disposto na Seção I desta Resolução, ficam sujeitos a EIA/RIMA no processo de

licenciamento ambiental, caso sejam potencialmente causadoras de significativo impacto

ambiental, bem como a outras exigências, entre as quais:

I - demonstração da titularidade de direito mineral outorgado pelo órgão competente do

Ministério de Minas e Energia, por qualquer dos títulos previstos na legislação vigente;

II - execução por profissionais legalmente habilitados para a pesquisa mineral e controle de

impactos sobre meio físico e biótico, mediante apresentação de ART, de execução ou AFT, a

qual deverá permanecer ativa até o encerramento da pesquisa mineral e da respectiva

recuperação ambiental.

§ 3º Os estudos previstos neste artigo serão demandados no início do processo de

licenciamento ambiental, independentemente de outros estudos técnicos exigíveis pelo órgão

ambiental.

§ 4º A extração de rochas para uso direto na construção civil ficará condicionada ao disposto

nos instrumentos de ordenamento territorial em escala definida pelo órgão ambiental

competente.

§ 5º Caso inexistam os instrumentos previstos no § 4º, ou se naqueles existentes não constar a

extração de rochas para o uso direto para a construção civil, a autorização para intervenção ou

supressão de vegetação em APP de nascente, para esta atividade estará vedada a partir de 36

meses da publicação desta Resolução.

§ 6º Os depósitos de estéril e rejeitos, os sistemas de tratamento de efluentes, de

beneficiamento e de infra-estrutura das atividades minerárias, somente poderão intervir em

APP em casos excepcionais, reconhecidos em processo de licenciamento pelo órgão

ambiental competente, atendido o disposto no inciso I do art. 3º desta resolução.

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§ 7º No caso de atividades de pesquisa e extração de substâncias minerais, a comprovação da

averbação da reserva legal, de que trata o art. 3º, somente será exigida nos casos em que:

I - o empreendedor seja o proprietário ou possuidor da área;

II - haja relação jurídica contratual onerosa entre o empreendedor e o proprietário ou

possuidor, em decorrência do empreendimento minerário. [...]