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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS DIMAS MESSIAS DE CARVALHO A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA PARA RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POUSO ALEGRE MG 2013

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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

DIMAS MESSIAS DE CARVALHO

A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

NO DIREITO DE FAMÍLIA PARA

RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE

SOCIOAFETIVA

POUSO ALEGRE – MG

2013

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DIMAS MESSIAS DE CARVALHO

A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

NO DIREITO DE FAMÍLIA PARA

RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE

SOCIOAFETIVA

Dissertação de Mestrado, área de concentração

Constitucionalismo e Democracia, linha de

pesquisa Efetividade dos Direitos Fundamentais,

apresentada como exigência parcial para obtenção

de Título de Mestre em Direito, ao Programa de

Pós Graduação da Faculdade de Direito do Sul de

Minas, sob orientação do Professor Doutor Rafael

Lazzarotto Simioni.

POUSO ALEGRE – MG

2013

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FICHA CATALOGRÁFICA

G-340 C257a Carvalho, Dimas Messias de.

A Efetividade dos Princípios Fundamentais no Direito de Família para

Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva / Dimas Messias de Carvalho. Pouso

Alegre – MG: FDSM, 2013.

103 p.

Orientador: Dr. Rafael Lazzarotto Simioni.

Dissertação – Faculdade de Direito do Sul de Minas, Mestrado em Direito.

1. Filiação. 2. Direitos Fundamentais. 3. Princípios. 4. Socioafetividade. 5.

Convivência Familiar. 6. Efetividade. I. Simioni, Rafael Lazzarotto. II. Faculdade

de Direito do Sul de Minas. Mestrado em Direito. III. Título.

CDU 340

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DIMAS MESSIAS DE CARVALHO

A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA

PARA RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Data da aprovação ___/___/___

Banca Examinadora

__________________________________

Prof. Dr. Rafael Lazzarotto Simioni

Orientador

Faculdade de Direito do Sul de Minas

_________________________________

Prof. (a) Dr. (a)

Instituição

_________________________________

Prof. (a) Dr. (a)

Instituição

Pouso Alegre – MG

2013

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Dedico este trabalho à minha família, alicerce de

toda minha força e inspiração maior de

afetividade.

Ao meu primogênito Dimas Daniel, incentivador

e responsável por mais essa luta, que só tem me

proporcionado alegrias e muito orgulho por sua

retidão, caráter, profissionalismo e dedicação à

família.

Ao meu segundo filho, Guilherme Henrique, um

anjo que permeou nossas vidas com tanta alegria

e amor, deixando sua doce e perene lembrança.

Ao caçula Marcos Vinícius, filho amoroso e

dedicado, tão responsável e presente no esplendor

de sua juventude.

À minha neta Mariana, presente de Deus em

nossas vidas.

À minha mãe Dona Divina, exemplo de

superação e de luta para cuidar da família.

Ao meu pai José, na certeza que cuida de todos

nós do céu.

Por fim, a minha esposa Mara, eterna

companheira, exemplo de esposa e mãe, sempre

presente, traduzindo o mais puro significado de

afetividade e solidariedade familiar.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Rafael Lazzarotto Simioni, orientador do meu trabalho, que representa

na essência o verdadeiro mestre, culto, sábio e gentil. Um grande incentivador nas pesquisas.

Ao Professor Doutor Renato Maia, culto e profundo estudioso de

Direito de Família, pela amizade, consideração e valiosos ensinamentos.

Aos Professores Doutores Alexandre Bahia, Eduardo Figueiredo, José Luiz Quadros

Magalhães e Elias Kallás Filho pelas lições e exemplos de vida.

À Doutora Larissa Araújo Velano Dozza, Vice-Reitora da UNIFENAS e Presidenta da FETA,

pelo incentivo, amizade e apoio incondicional.

Aos juristas, Doutor Rodrigo da Cunha Pereira e Doutora Ana Carolina Brochado, fontes de

inspiração, pela amizade, incentivo e orientações.

Aos colegas de mestrado, que se tornaram grandes amigos, solidificando uma convivência

socioafetiva de muita lealdade. Conviver e aprender com vocês foi um grande privilégio.

Aos amigos Profs. Nilo e Maria Clara Biavati, pela amizade e auxílio constante nas traduções

e correções.

À Junia de Cássia Rafael, sempre presente, pela colaboração nas pesquisas e digitação.

Aos meus irmãos Maria de Lourdes, Aurélio, Adalberto, José Maria, Joana D‟arc e Dulce

Maria, presentes e em memória, cunhados (as) e sobrinhos (as), pelo eterno carinho e

fortificar o sentido de família afetiva.

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“O esteio e sustentáculo da família é o desejo,

que por sua vez se traduz, e se manifesta, muitas

vezes, através do afeto” (Rodrigo da Cunha

Pereira).

“A família não nasce pronta, constrói-se aos

poucos e é o melhor laboratório do amor” (Luiz

Fernando).

“O direito não deve ignorar a realidade. Quando

o direito ignora a realidade esta se vinga e ignora

aquele” (Georges Ripert).

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RESUMO

CARVALHO, Dimas Messias de. A Efetividade dos Princípios Fundamentais no Direito de

Família para Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva, 2013. 103 f. Dissertação

(Mestrado) Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre/MG, 2013.

Esse estudo objetiva analisar a evolução dos direitos de filiação, importando em uma

reorganização na estrutura da família e a possibilidade de reconhecimento jurídico dos filhos

afetivos. A família passou por profundas transformações e deixou de ser patriarcal,

patrimonial e exclusivamente matrimonializada, denominada legítima, rompendo séculos de

desigualdades entre homens e mulheres e os filhos. A família humanizou-se, garantindo os

direitos fundamentais de seus integrantes. Assim, a proteção da família transmudou da

instituição para a pessoa de cada um dos que a integram, conferindo-lhes dignidade e

ressaltando os laços de afeição e solidariedade entre seus membros. A invisibilidade de outros

arranjos familiares e o impedimento de reconhecimento de certas espécies de filiação cedeu

diante do conceito atual de pluralidade de modelos familiares e igualdade dos filhos, sem

importar a origem. Neste contexto, o elemento agregador da família passou a ser a afetividade

entre seus membros, possibilitando o surgimento, entre os princípios fundamentais

norteadores do direito de família, do princípio da afetividade, resultando na desbiologização

da paternidade. O reconhecimento do afeto como valor jurídico permite o acolhimento da

filiação por outra origem, deixando de fundamentar-se exclusivamente no vínculo genético

para amparar as relações afetivas entre pais e filhos, entre elas a filiação socioafetiva, que

nasce culturalmente, exteriorizada pela convivência familiar, e é fundada na posse do estado

de filho, produzindo todos os efeitos jurídicos. Para serem atingidos os objetivos, a pesquisa

utilizou o método analítico e a técnica de pesquisa bibliográfica. Concluiu-se ao final

deste estudo, que a filiação, segundo os novos valores e direitos fundamentais preconizados

pela Constituição de 1988, adquiriu novos contornos, privilegiando a afetividade construída

culturalmente pela convivência nas relações familiares e a proteção dos membros da família,

autorizando o reconhecimento do parentesco socioafetivo, voluntário ou judicialmente,

conferindo os efeitos da filiação jurídica.

Palavras-chave: Filiação. Direitos fundamentais. Princípios. Socioafetividade. Convivência

familiar. Efetividade.

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ABSTRACT

CARVALHO, Dimas Messias de. The Effectiveness of the Fundamental Principles in Family

Law for Recognition of Socioaffective Paternity, 2013. 103 f. Dissertation (MS) Faculty of

Law of South of Minas, Pouso Alegre/MG, 2013.

This study aims to analyze the evolution of the rights of affiliation, highlighting in a

reorganization in the family structure and the possibility of legal recognition of affective

sons. Family has gone through profound changes and has no longer been patriarchal and

patrimonial and exclusively matrimonial so recognized as legitimate, breaking centuries of

inequality between men and women and children. Family has become itself humanized,

ensuring the fundamental rights of its members. Thus, the protection of the family has

transmuted from the institution to the person of each one of its members, giving them dignity

and emphasizing the bonds of affection and solidarity amidst its members. The invisibility of

other family arrangements and the obstruction of recognition of certain kinds of affiliation

have collapsed in face of the current concept of plurality of the family models and equality

amidst children, regardless of the origin. In this context, the aggregator element of the family

became the affection among its members, enabling the emergence among the guiding

principles of family law, the principle of affection, resulting in the non biological paternity.

Recognition of affect as a legal value allows the acceptance of affiliation by another source,

ceasing to be based exclusively on the genetic link to support affective relations between

parents and children, including the socioaffective affiliation which is, born culturally,

externalized by family life, and is based on the condition of son so producing all legal effects.

To reach the goals, the research usedthe analytical methodand the technique

ofliteraturesearch. It was concluded at the end of this study, that affiliation, according to the

new values and fundamental rights envisaged by the 1988 Constitution, has acquired new

dimensions, favoring affectivity culturally constructed by living in family relationships and

the protection of family members, allowing recognition of socioaffective kinship , voluntary

or judicially, giving the effects of legal affiliation.

Keywords: Affiliation. Fundamental rights. Principles. Socioaffectivity. Family life.

Effectiveness.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FILIAÇÃO ....................................................................... 16

2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA ..................................................................... 32

2.1. Dos direitos fundamentais ................................................................................................. 33

2.1.1 Dos direitos fundamentais verticais ................................................................................. 35

2.1.2 Dos direitos fundamentais horizontais ............................................................................ 40

2.2 Dos princípios fundamentais norteadores do direito de família ......................................... 43

2.2.1 Princípio da dignidade humana ....................................................................................... 45

2.2.2 Princípio da igualdade e isonomia dos filhos .................................................................. 47

2.2.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ............................................. 49

2.2.4 Princípio da afetividade ................................................................................................... 53

3. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E CONVIVÊNCIA FAMILIAR ......................................... 58

3.1 Filiação socioafetiva e posse do estado de filho ................................................................. 58

3.2 Convivência familiar .......................................................................................................... 66

4. EFETIVIDADE DA AFETIVIDADE E EFEITOS NO RECONHECIMENTO DA

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA ................................................................................................. 74

4.1 Efetividade do princípio da afetividade no reconhecimento da filiação socioafetiva ........ 74

4.2 Efeitos Jurídicos no reconhecimento da filiação socioafetiva ............................................ 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 92

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 98

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INTRODUÇÃO

O presente estudo objetiva analisar a evolução dos direitos de filiação, importando

em uma reorganização na estrutura jurídica da família, e a possibilidade do reconhecimento

jurídico dos filhos afetivos, denominados “filhos de criação”, permitindo a plena igualdade na

filiação, independente da origem, como preceituam os princípios fundamentais norteadores do

direito de família. O reconhecimento jurídico dos filhos afetivos resultará na efetivação de

todos os efeitos da filiação, possibilitando inclusive uma convivência permanente e saudável

com os pais socioafetivos que não vivem mais sob o mesmo teto.

A igualdade jurídica de todos os filhos, independente da origem, é o ideal a ser

alcançado, conferindo efetividade aos direitos fundamentais tão duramente conquistados.

No direito antigo, os filhos sofriam imensas desigualdades e discriminações. No

direito grego o filho havido fora do casamento não podia ser reconhecido ou legitimado. No

direito romano não se admitia reconhecimento de paternidade ao filho natural, que não foi

procriado em justas núpcias, associada ao culto doméstico, pois não possuía o agnatio, o

vínculo de parentesco com o pai. O parentesco se limitava com a mãe e a única forma de

introduzi-lo na família paterna era mediante a adoção. O parentesco pelo sangue, denominado

cognatio, era um parentesco natural que não produzia efeitos civis com relação à família

paterna. Juridicamente os filhos não possuíam um pai, não possuíam ascendentes na linha

paterna, e pertenciam à família do avô materno. Somente após uma lenta transformação foi

reconhecido o parentesco de sangue, sob Justiniano, conferindo-se direitos de herança e

permitindo a legitimação pelo matrimônio subsequente.

No Código Civil de 1916, a semelhança do direito romano, os filhos adulterinos e

incestuosos não podiam ser reconhecidos pelos pais, permitindo o reconhecimento apenas dos

filhos naturais e a legitimação pelo matrimônio posterior dos genitores. A adoção era restrita,

revogável e conferia direitos inferiores aos filhos adotivos. O afeto não possuía valor jurídico

e os filhos socioafetivos não podiam ser reconhecidos, prevalecendo odiosa desigualdade na

filiação.

A família, entretanto, sofreu (e vem sofrendo) grandes transformações. Deixou de

ser patriarcal, patrimonial e exclusivamente matrimonializada, denominada legítima,

rompendo séculos de desigualdades entre homens, mulheres e filhos. A partir de meados do

século passado as transformações sociais foram significantes, notadamente o povoamento das

cidades, permitindo o trabalho externo da mulher e dos filhos, conferindo liberdade e

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independência financeira em face do marido/pai, então chefe da família e provedor. O

surgimento da pílula anticoncepcional também foi relevante, ao permitir à mulher o controle

da natalidade e dedicar-se ainda mais ao trabalho externo.

As profundas modificações sociais impulsionaram o Congresso Nacional e

importantes avanços legislativos foram conquistados, como o Estatuto da Mulher Casada e o

acolhimento do divórcio ao vínculo no Brasil.

Finalmente, a invisibilidade de outros arranjos familiares e o impedimento de

reconhecimento de certas espécies de filiação, cedeu diante do conceito atual de pluralidade

de modelos familiares e igualdade dos filhos, permitindo-se uma convivência afetiva no seio

familiar, sem qualquer designação discriminatória relativa à origem da filiação.

A proteção à família não é mais na preservação da instituição casamento. Aplicam-se

a cada um dos membros da entidade familiar, sem importar o modelo de formação, os direitos

fundamentais, reconhecidos e positivados no ordenamento jurídico, para resguardar os

princípios que valorizam a pessoa humana, como os da liberdade, igualdade, solidariedade e

dignidade humana. A proteção da família, base da sociedade, é, portanto, assegurada na

pessoa de cada um dos membros que a integram e não mais na instituição. No Brasil, a

dignidade humana foi elevada a fundamento da República, assentando uma especial atenção

às situações existenciais, requerendo tutelas jurídicas para proteção do “ser pessoa”. E é, na

família, que os direitos fundamentais possuem maior efetividade e aplicação, pois é onde a

pessoa recebe cuidados, proteção, afeto, solidariedade e referências que a acompanhará por

toda a vida.

O elemento agregador da família passou, assim, a ser a afetividade entre seus

membros, possibilitando o surgimento, entre os princípios fundamentais norteadores do

direito de família, do princípio da afetividade, resultando na “desbiologização da

paternidade”, permitindo o reconhecimento da filiação por outras origens.

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a par dos direitos

fundamentais gerais, conferem direitos fundamentais especiais aos filhos, reconhecendo que o

estado de filiação é direito personalíssimo e indisponível, podendo ser exercitado sem

qualquer restrição.

Como ressaltado, a família sofreu grandes modificações nas últimas décadas. No

século passado predominava a família formal, patriarcal, hierarquizada e patrimonial,

constituída sob o manto da lei apenas pelo casamento. O marido era chefe da família, detentor

do pátrio poder e provedor, exercendo a autoridade sobre a mulher e os filhos.

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Os filhos eram discriminados, pois apenas os havidos na constância do matrimônio

possuíam presunção de paternidade e plena proteção. Admitia-se a filiação não biológica

exclusivamente pela adoção, mas em situação jurídica diversa e inferiorizada. Mesmo a

filiação biológica sofria discriminação, pois era classificada como legítima, quando havida na

constância do casamento, e ilegítima, havida fora do casamento, que se subdividia em natural,

quando os pais não possuíam impedimentos para o casamento, adulterina, quando um ou

ambos os pais eram vinculados matrimonialmente com terceiros e não podiam ter a

paternidade reconhecida, e incestuosa, quando existia impedimento para o casamento em

razão do parentesco, também impedidos de serem reconhecidos. Os filhos socioafetivos (de

criação) eram ignorados.

O Código Civil de 1916 adotava um direito civil clássico, formal, reconhecendo a

filiação apenas pela consanguinidade, presumidamente ou jurídica quando havida na

constância do casamento (legítima), e a civil, mediante adoção. Muitas situações existenciais

eram ignoradas, como o concubinato, os filhos afetivos e a paternidade dos filhos ilegítimos

adulterinos e incestuosos. O afeto era (e ainda é para alguns) considerado como um

sentimento, portanto estranho e inapreensível para o Direito.

A Constituição Federal de 1988 extinguiu a odiosa discriminação, reconhecendo a

plena igualdade dos filhos havidos ou não do casamento, ou por adoção, e proibindo

quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente reproduziu o comando constitucional e

reconheceu que o estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,

podendo ser exercitado sem qualquer restrição.

O Código Civil de 2002 reconheceu que o parentesco pode ser biológico ou civil por

outra origem (não mais apenas pela adoção), presumindo como concebido na constância do

casamento os filhos havidos por reprodução medicamente assistida heteróloga.

A legislação atual, entretanto, não prevê expressamente o reconhecimento jurídico

dos chamados “filhos de criação”, situação comum em nossa sociedade, quando uma pessoa

cuida, cria e educa filho alheio como se fosse seu, e o filho considera como seu pai/mãe

aquele que o criou. Entretanto, admite, implicitamente, ao reconhecer em diversos

dispositivos legais, o valor jurídico da afetividade, possibilitando o reconhecimento da

paternidade/maternidade socioafetiva. A convivência no seio da família permite a criação dos

laços afetivos e o surgimento do vínculo paterno/filial caracterizado na posse do estado de

filho.

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A possibilidade do acolhimento jurídico da filiação socioafetiva é tema novo e

controverso na doutrina e na jurisprudência, especialmente em razão dos efeitos e as formas

do reconhecimento, devido a omissão legislativa. É necessária assim uma releitura da

paternidade/maternidade tradicional do século passado, diante da constitucionalização do

direito civil, adotando um discurso principiológico no Direito de Família para regular

situações existenciais não previstas expressamente e conferir efetivamente a proteção e

assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram. A interpretação do direito civil

de acordo com a Constituição permite a aplicação dos princípios aos casos concretos não

previstos expressamente, acolhendo os novos valores sociais que antecedem a regulamentação

pelo Direito.

A adoção de um direito civil principiológico viabiliza a aplicação do Direito aos

casos concretos, ultrapassando a concepção positivista de existência de regras preexistentes,

possibilitando o efetivo reconhecimento da pessoa humana como cerne do direito e

conferindo-lhe dignidade. A desbiologização da paternidade e a atribuição de valor jurídico ao

afeto devem, portanto, autorizar a aplicação do princípio da afetividade para reconhecer e

agasalhar juridicamente a paternidade socioafetiva.

A presente dissertação busca analisar, utilizando o pensamento de Rodrigo da Cunha

Pereira, em sua obra “Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família”, e os

direitos fundamentais expressos e implícitos na Constituição Federal, os fundamentos

jurídicos que possibilitam a declaração da paternidade dos filhos socioafetivos, reconhecendo

a igualdade na filiação, e conferindo efetividade ao princípio da afetividade.

A problemática central do trabalho é a ausência na legislação de normas expressas,

exigindo o desenvolvimento e a construção doutrinária e jurisprudencial do princípio da

afetividade como valor jurídico, distinguindo-o do afeto como estado psicológico e fator

metajurídico inapreensível pelo direito, para autorizar o reconhecimento da filiação

socioafetiva. Para tanto, vários temas serão abordados e analisados, como a evolução histórica

da filiação, direitos fundamentais e princípios constitucionais norteadores do Direito de

Família; as características da posse do estado de filho; a legitimidade e a possibilidade

jurídica do reconhecimento da filiação socioafetiva; as formas de reconhecimento da filiação

socioafetiva, voluntária ou judicial; a possibilidade de reconhecimento em vida e também post

mortem e os efeitos da filiação socioafetiva.

A dissertação será dividida em quatro capítulos.

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No capítulo 1, com o título Evolução histórica da filiação, será analisada a evolução

histórica da filiação, desde as civilizações antigas até o momento atual.

No capítulo 2, intitulado Dos direitos fundamentais e princípios constitucionais

norteadores do direito de família, serão descritos os direitos fundamentais e os princípios

constitucionais que norteiam o Direito de Família aplicáveis à filiação socioafetiva.

No capítulo 3, designado Filiação socioafetiva e convivência familiar, será

examinada a filiação socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro, configurada na posse do

estado de filho, ressaltando a importância da convivência familiar para possibilitar o

surgimento da filiação socioafetiva.

No capítulo 4, nomeado Efetividade da afetividade e efeitos no reconhecimento

da filiação socioafetiva, será analisada a possibilidade jurídica do reconhecimento da filiação

socioafetiva, jurisprudências, procedimentos e seus efeitos, conferindo efetividade ao

princípio da afetividade e igualdade na filiação.

A conclusão, sem a pretensão de esgotar o tema analisado, busca contribuir para

encaminhamento de possíveis soluções para reconhecimento da filiação socioafetiva,

superando as barreiras da ausência de legislação do princípio da afetividade, oferecendo um

instrumento eficaz para efetivação dos direitos fundamentais.

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1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FILIAÇÃO

A desigualdade entre os filhos é fato na história da humanidade.

Desde as civilizações antigas os filhos são discriminados. Mesmo na família

matrimonial e biológica dispensava-se tratamento desigual aos filhos, privilegiando-se o

homem e o primogênito. O privilégio ao homem primogênito justificava-se historicamente

para manter a família unida, forte e poderosa economicamente, com base na união do

patrimônio e esforços de todos os membros em tempos difíceis ou de guerra. As famílias

formavam-se em clãs e era necessário, notadamente em Roma, manter todo o patrimônio e a

chefia da família em uma só pessoa: o primogênito, que substituía o pater potestas. Essa é a

razão histórica para discriminação dos filhos mesmo na família matrimonial, privilegiando o

primogênito, como único herdeiro e chefe. No Egito antigo, diante da proteção natural

geográfica dos ataques, em razão das montanhas, os filhos eram iguais, incluindo as mulheres.

A discriminação, entretanto, era mais notada quanto os filhos havidos fora de uma

união dita legalizada dos pais, denominados de bastardos, e que pertenciam apenas à família

materna.

Os filhos bastardos gerados e nascidos fora do casamento eram denominados

naturais, quando os pais não possuíam impedimento para casamento, e espúrios, quando os

pais são impedidos de se casarem em razão de um deles ou ambos serem casados (adulterinos)

ou em razão de parentesco (incestuosos).

No antigo direito grego o filho natural não podia ser reconhecido e legitimado. No

direito romano não admitia a atribuição de efeitos ao reconhecimento de paternidade ao filho

natural, pois não havia o vínculo de parentesco do pai (o agnatio) com o filho de uma mulher

que não tinha sido associada ao culto doméstico pela cerimônia do casamento. Somente o

agnatio conferia direitos à herança. A única forma de introdução do filho natural na família

paterna era mediante a adoção. Somente mais tarde, ao tempo da codificação de Justiniano, os

filhos naturais passaram a ter direitos, ainda que limitados, à sucessão do pai1.

Para efeitos civis no antigo direito romano, o parentesco era vinculado ao sacramento

do casamento e ao poder do pai. Parentes eram os que estavam sob o mesmo pater potestas,

sendo estas pessoas chamadas de agnados. O parentesco resultante do casamento, associado

ao culto doméstico, era denominado agnatio. Assim o pai e seus descendentes, havidos da

1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

p. 189. v. 5.

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mulher com quem celebrou a cerimônia do casamento, eram agnados entre si. O parentesco

consanguíneo, sem o vínculo matrimonial, era considerado natural, denominado cognatio, e

não produzia efeitos civis2. Somente com Justiniano o rigor no parentesco agnatio foi

abrandado, já no direito romano moderno, reconhecendo-se valor ao parentesco

consanguíneo.

Christiano Cassetari esclarece que foi lenta a transformação no direito romano para

abrandar o rigor da exigência do parentesco agnatio e reconhecer efeitos civis ao parentesco

consanguíneo ou natural (cognatio). Devido a atuação do pretor, com influência da filosofia

grega e propagação do cristianismo, durante a República e no Império diversas medidas

surgiram para amparar o parentesco pela cognação, até ser acolhido por Justiniano, nas

Novelas 118 e 127, dos anos 543 e 547. Assim, o parentesco civil em Roma, que era o

agnatio, evoluiu-se para o cognatio durante a República e o Império.3

A família romana, ensina Ana Carolina Brochado Teixeira, se baseava em condições

econômicas, simbolizando o triunfo da propriedade privada. Por isso, eram os interesses

econômicos que determinavam as uniões matrimoniais, sendo que os valores da família

romana colocavam o patrimônio privado em escala valorativa superior à própria vida humana.

Surgiu nessa época a concepção de monogamia, para assegurar o domínio patriarcal e o

patrimônio. A família tinha como característica a autoridade do pater familias, ao qual se

subordinavam a mulher, filhos, netos, irmãos, escravos e libertos. Apenas o chefe da família

era sui iuris, ou seja, possuía direito próprio, enquanto os dependentes eram alieni iuris,

pessoas de direito alheio pertencentes ao patriarca. Os filhos eram propriedades do pai, que

deles podia dispor como julgasse melhor, e o casamento é que definia a situação dos filhos, se

legítimos ou bastardos. A bastardia era verdadeira condenação ao fruto do ventre não

legitimado pelo sacramento do casamento, implicando em incapacidade política e sucessória.

O filho “bastardo simples” era o gerado por pais não casados e o único que podia ser

legitimado após o casamento dos genitores, os “bastardos adulterinos” eram os filhos fruto de

adultério, os “bastardos incestuosos” os havidos de relações entre parentes próximos e os

“bastardos sacrílegos” os filhos de religiosos4.

A respeito do poder (potestas) do pai (pater) sobre os filhos, é relevante ressaltar que

também sofreu grandes transformações, desde o pater potestas do direito romano, que

2 MEIRA, Silvio A. B. Instituições de direito romano. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1971. p. 106.

3 CASSETARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. 2013. 245 f. Tese (Doutorado em

Direito Civil) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 4 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,

2009. p. 13-16.

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conferia somente poderes e autoridade ao pai. No Brasil, o pátrio poder, no antigo direito

civil, conferia poderes, mas também deveres ao pai, era um munus, até chegar ao poder

familiar ou poder parental atual, exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe, em

benefício da prole, observando o melhor interesse da criança e do adolescente. No direito

romano cabia ao pater decidir todos os destinos do filho, desde a profissão a ser exercida até a

escolha do cônjuge. Afirma San Tiago Dantas que:

A patria potestas romana não era um munus, um encargo, uma obrigação que pesa

sobre o titular, e que o obriga a dar cabal desempenho às suas funções do interesse

do incapaz. A patria potestas não era um munus, era uma auctoritas, um direito do

pater, direito construído do mesmo modo que o domínio, de modo que o pater

estava em face do filius como o proprietário em face da coisa: ele é que é o titular do

direito, o interesse protegido é o dele, e o filius está apenas como um paciente da

auctoritas, não tem direitos a reclamar, tem uma posição de mera submissão

jurídica5.

Oportuno ressaltar que a palavra pater, contrário do conceito atual de pai, era

utilizada restritamente para designar um poder, uma autoridade. O pater representava na

família, que se compunha pelo pai, mãe, filhos, netos, escravos, serviçais, a função de

autoridade principal, de senhor absoluto eleito pela religião doméstica, devendo todos os

demais membros obediência máxima a ele. O pater assumiu os poderes de sacerdote da

sociedade organizada que era a família, de continuador dos antepassados, depositário dos ritos

misteriosos do culto, de tal forma que o poder familiar, supremo e absoluto, que teve origem

na religião, emergiu em detrimento da figura do pai. Tanto que o filho natural não se achava

sob a responsabilidade do pai por não existir comunhão religiosa entre eles, não conferindo ao

filho direito algum. Mesmo que a filiação biológica não fosse contestada, o filho nada

representava se não pertencia ao círculo sagrado da família, vinculado à religião doméstica. O

poder ilimitado do pater concedido pela religião acabou reconhecido pelas leis gregas e

romanas. O poder absoluto foi ressaltado na Lei das XII Tábuas, antiga legislação que está na

origem do direito romano, formando o cerne da constituição de Roma, ao dispor, em sua

quarta tábua, as seguintes regras:

DO PÁTRIO PODER E DO CASAMENTO

1. É permitido ao pai matar o filho que nasce disforme, mediante o julgamento de

cinco vizinhos;

2. O pai terá sobre os filhos nascidos de casamentos legítimos o direito de vida e de

morte e o poder de vendê-los;

5 DANTAS, San Tiago. Direitos de família e sucessões. Revista e atualizada por José Gomes Bezerra Câmara e

Jair Barros. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 27.

Page 19: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

19

3. Se o pai vendeu o filho 3 vezes, que esse filho não recaia mais sob o poder

paterno;

4. Se um filho póstumo nasceu no décimo mês após a dissolução do matrimônio, que

esse filho seja reputado legítimo6.

Caio Mário ressalta a importância da organização religiosa da família no antigo

direito romano e o culto doméstico aos ancestrais, os deuses particulares que pertenciam a

cada família, que não podiam ser cultuados por estranhos ao parentesco reconhecido pela

religião7. O autor cita Fustel de Coulanges, que em breves traços resume a posição inferior do

filho natural no direito romano:

Ele não podia desempenhar a função que a religião assinava ao filho, e era preciso,

ainda, o laço de culto. Ora, o filho nascido de uma mulher que não tinha sido

associada ao culto do esposo pela cerimônia do casamento não podia ter parte no

culto. Não tinha o direito de oferecer o repasto fúnebre, e a família não se

perpetuava por ele8.

Segundo Conrado Paulino da Rosa, uma das justificativas para o culto doméstico é

que não havia ainda entre os antigos a idéia da criação. Assim, o mistério da geração surgia-

lhes como ente divino, razão pela qual o adoravam nos seus antepassados, mantendo-se a

entidade familiar unida em função da religião, cujos rituais eram praticados pelos homens e

passava de pai para filho, delegando à mulher apenas o papel de mãe para conferir

legitimidade aos filhos. Destaca ainda o autor que:

Na família greco-romana, berço da civilização, havia como pilar a religião, porém

não uma religiosidade como a que, contemporaneamente, experimentamos,

principalmente em razão da grande influência do cristianismo em nossa sociedade.

Naquela, o culto era realizado não apenas a um ser em especial, mas a todos os

antepassados da família, aos quais se faziam as oferendas em cerimônias restritas a

seus membros. Tal prática era designada pelos gregos como pratiázein, e os latinos

chamavam-na de parentare9.

Mesmo entre os filhos havidos da cerimônia religiosa, ocorria discriminação entre

homem e mulher, pois a filha não se igualava ao filho. Enquanto solteira no lar paterno a filha

6 QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Belo

Horizonte: Del Rey, 2001. p. 43-45. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

p. 9-10. 8 COULANGES, Fustel de. La cité antique. 17ª ed. Paris: Hachette, 1900. p. 11.

9 ROSA, Conrado Paulino da. IFamily: um novo conceito de família?. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 20.

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20

participava dos cultos domésticos, mas ao se casar deixava de fazer parte da família para se

colocar sob o império do deus ancestral de seu marido, até então por ela desconhecido10

.

O parentesco, portanto, advinha do culto religioso. Toda casa romana possuía seu

altar doméstico, onde conservavam o fogo eterno e o culto religioso era exercido pelos

homens, pelos descendentes masculinos. O filho pertencia ao pai, o que não ocorria com os

filhos naturais, tanto que irmãos uterinos não eram agnados. Somente com o enfraquecimento

da religião doméstica e a ascensão de Justiniano ao trono, que revisou e atualizou o direito

romano através do Corpus Juris Civilis, o parentesco agnático determinado pela religião foi

enfraquecendo e surgiu o cognatio, o parentesco consanguíneo de pessoas que descendiam de

um tronco comum, passando o sangue a ter maior importância no parentesco11

.

Os modelos de filiação - agnatio e cognatio - disputaram a primazia por longos

séculos, desde a época de Cícero até Justiniano, com o reconhecimento paulatino aos

cognados na família, sendo admitido aos filhos naturais suceder ao pai pelas Constituições de

Valentiniano e Graciano, até que, finalmente, Justiniano, na Novela 89, Cap. XII, concedeu-

lhes o direito, ainda que limitado, também à sucessão ab intestato12

.

O surgimento e o fortalecimento do cristianismo, em confronto com os princípios

romanos, agravaram ainda mais a desigualdade de tratamento e a discriminação dos filhos,

punindo os bastardos pelo ato praticado pelos pais. Buscando manter indissolúvel o

casamento por ela abençoado, a Igreja pune os frutos concedidos fora do matrimônio,

imprimindo a mancha moral nos bastardos.

Com a queda do Império Romano e a invasão dos bárbaros, que possuíam leis

rigorosas para os filhos naturais e severas para a concepção do casamento, somadas a

influência da igreja, que já se tornara poderosa e prestigiava apenas o casamento cristão, as

conquistas retrocederam e os filhos ilegítimos perderam o direito sucessório. Conforme

Francis Waël, citado por Caio Mário, a igreja agiu fortemente para prestigiar o casamento

cristão e sua indissolubilidade, combatendo os frutos havidos fora do patrimônio. Diante da

“falta” praticada pelos pais os filhos bastardos não podiam atingir as ordens sacras e nem os

10

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6ª ed. Rio

de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 31. 11

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 456-457. 12

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 12.

Page 21: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

21

benefícios, tendo o Papa Leão III condenado o concubinato e restringido as prerrogativas que

Justiniano concedeu aos filhos naturais13

.

A discriminação era tamanha que no antigo direito francês adotava-se o brocardo

bâtards ne succedent, privando-os inclusive do direito sucessório14

. É imputada a Napoleão

Bonaparte a frase de que “a sociedade não tem interesse em que os bastardos sejam

reconhecidos” 15

.

O rigor dos preceitos canônicos foi, entretanto, sendo minado pelos costumes e pela

jurisprudência, especialmente nas ações de alimentos, sendo admitido por volta do século

XVII prova de paternidade para concessão de pensão alimentícia, mas sem o reconhecimento

do parentesco. Mesmo após declarar que o Estado não tinha interesse no destino dos

bastardos, proibindo a investigação de paternidade, salvo no caso de rapto, no seu código civil

Napoleão facultou ao pai reconhecer voluntariamente o filho, exceto o espúrio ou na vigência

de casamento posterior (art. 334, 335, 338 e 340 do Código Francês). Os filhos naturais

possuíam direitos sucessórios e de usar o nome paterno, mas não eram equiparados aos

legítimos16

.

No século XIX diversas legislações, como o Código Italiano de 1865, o Código

Chileno de 1865, o Código Português de 1867, o Código Uruguaio de 1868 e o Código Civil

Alemão de 1896, permitiram o reconhecimento dos filhos ilegítimos, exceto quanto aos

incestuosos e adulterinos, mas a maioria restringe os efeitos do reconhecimento, limitando aos

alimentos e alguns concedendo direitos sucessórios. No final do século XIX e início do século

XX toma vulto movimento para proteção dos filhos naturais, sendo finalmente revogado o

famoso artigo 340 do Código de Napoleão, que vedava a investigação de paternidade, pela lei

de 16 de novembro de 191217

.

No nosso direito anterior ainda havia distinção entre os filhos naturais de pai plebeu

e de pai nobre, conforme dispunha a legislação do reino, notadamente a Ordenação do Livro

IV, Título 92, que permaneceu vigente mesmo após a proclamação da Independência. Os

filhos naturais dos nobres não herdavam ab intestato, não concorriam com os descendentes

legítimos, possuindo direitos apenas aos alimentos. Falecendo o pai sem descendentes e

13

WAËL, Francis. Droits des enfants naturels reconnus dans la succession de leurs peres et mères. Paris:

Rousseau, 1901. p. 22-23. Apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos.

p. 14. 14

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 13-14. 15

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. 5ª ed. Salvador:

Juspodivm, 2013. p. 639. v. 6. 16

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 15-16. 17

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 14-18.

Page 22: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

22

ascendentes a herança era deferida aos colaterais. Existindo apenas ascendentes podiam

herdar por testamento apenas da “terça”. Somente se não existissem descendentes e

ascendentes podia o pai legar-lhes por testamento todos os bens. A proibição só atingia o pai,

não pesando sobre os filhos da mulher nobre. Já os filhos de pai plebeu concorriam com os

legítimos na herança e preferiam os ascendentes na ordem de vocação hereditária. Somente a

partir da Lei 463, de 2 de setembro de 1847, foi extinta a distinção entre filhos de plebeus e de

nobres. Os filhos adulterinos e incestuosos (de coito danado e punível) não herdavam de seus

pais (Ordenação do Livro IV, Título 93), sendo permitido serem instituídos herdeiros pelo pai

em testamento somente a partir do decreto de Regência, de 11 de agosto de 1831, desde que

não existissem outros descendentes18

.

O reconhecimento da paternidade dos filhos naturais anterior ao Código Civil de

1916, entretanto, somente era possível por vontade e iniciativa do pai, mediante testamento ou

escritura pública. O Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, que instituiu o casamento civil no

Brasil, ampliou o reconhecimento dos filhos naturais pelo pai, acrescentando a confissão

espontânea, para fins de oposição de impedimento ao casamento, e o reconhecimento feito no

ato do registro de nascimento, escritura pública ou outro documento autêntico emanado do pai

(art. 7º, §1º). A sorte do filho, entretanto, era dependente da vontade do pai em reconhecer seu

dever de não deixar ao relento os filhos extraconjugais. Desde o ano de 1896, entretanto, o

professor Clóvis Beviláqua já pregava uma solução que beneficiasse os filhos naturais,

permitindo-os pleitear a paternidade19

.

O Código Civil de 1916, finalmente autorizou o reconhecimento compulsório de

paternidade dos filhos ilegítimos naturais no seu art. 363, mediante ação investigatória de

paternidade, mas exigia para propositura da ação a presença de um dos seguintes

pressupostos: comprovação de concubinato dos pais; coincidência da concepção do filho com

o rapto da mãe pelo pai ou de relações sexuais com ela; ou escrito do pai reconhecendo a

paternidade.

A legislação civil, todavia, mantinha as desigualdades entre os filhos, ao dispor que

os filhos incestuosos e os adulterinos não podiam ser reconhecidos, gerando odiosa distinção

entre os filhos de sangue (art. 358). Ao associar ao casamento a noção de legitimidade da

prole, o Código Civil estabeleceu diferenciação na filiação, criando várias categorias de filhos

ilegítimos, não atendendo a evolução que se buscava com a eliminação das desigualdades

entre os filhos. Recebeu severas críticas em proibir o reconhecimento dos filhos espúrios e

18

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 21-22. 19

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 13, 21-24.

Page 23: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

23

abominar a família natural20

. Eduardo de Oliveira leite, ao analisar o Código Civil de 1916

quanto à filiação, concluiu que:

O Código Civil Brasileiro elaborado num período de transição, com características

acentuadamente monarquistas, escravagistas e paternalistas, nunca reproduziu as

tendências de uma comunidade em intensa evolução e que caminha decisivamente

em direção a um mundo moderno liberado das tradições legadas pelo passado. O

Código Civil reproduziu antes as intenções de uma elite, minoritária e refratária, do

que as aspirações do povo brasileiro21

.

A legislação civil classificava o parentesco em legítimo e ilegítimo, se oriundo ou

não de casamento, e em natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou adoção (art.

332).

Os filhos também eram classificados pelo Código Civil de 1916 em “legítimos”, se

oriundos do casamento dos pais (art. 337); “legitimados”, em razão do casamento posterior

dos pais e igualando aos legítimos (art. 352 e 353); “ilegítimos” (ou bastardos), que se

dividiam em “naturais”, quando não existiam impedimentos para o casamento dos pais e

podiam ter a paternidade reconhecida (art. 355), “incestuosos”, quando existiam

impedimentos para casamento dos pais em razão de parentesco, e “adulterinos”, quando um

dos pais (ou ambos) era casado com terceira pessoa; e “adotivo” ou “civil”, quando resultasse

de adoção (art. 375)22

. Caio Mário melhor esclarece esta classificação em razão das situações

jurídicas:

Titulares de situações jurídicas diferentes, classificam-se os filhos em:

Legítimos, os concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, se

putativo;

Legitimados, os que foram concebidos ou nascidos de pessoas que só posteriormente

convolaram a núpcias;

Ilegítimos, os nascidos de pessoas não casadas, ou provindos de casamento nulo não

putativo;

Adotivos, os que, por força de lei, são considerados filhos de pessoas que não são

seus progenitores; entre os adotivos, é de se distinguir a adoção simples da adoção

plena ou legitimação adotiva, pela diversidade dos respectivos efeitos.

Entre os ilegítimos, pela diversidade de tratamento que lhes dispensa o direito, ainda

se distinguem:

Ilegítimos ou naturais, pura e simplesmente, quando ao tempo de sua concepção

inexistia impedimento para que os pais se casassem: são os gerados ex soluto et

soluta;

20

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade – relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 81-82. 21

LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba: Juruá,

1991. p. 343. 22

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de família: Direito civil. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p.

290.

Page 24: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

24

Adulterinos, os nascidos de pais que na época da concepção eram impedidos de se

unirem em matrimônio, por serem ambos, ou um deles, já casados. Podem, pois, ser

bilateralmente adulterinos, ou unilateralmente apenas, e, por existir o vínculo só da

parte de pai, ou mãe, dizem-se adulterinos a patre ou a matre;

Incestuosos, aqueles cujos pais são vinculados por consanguinidade, em grau que

impeça seu casamento23

.

A adoção recebeu críticas de muitos doutrinadores no Código Civil de 1916, por

vislumbrarem a possibilidade de introduzir na família legítima filhos incestuosos e

adulterinos, impedidos de serem reconhecidos (art. 358) 24

, demonstrando a discriminação na

filiação extramatrimonial. Washington de Barros assevera que:

Trata-se de instituto olhado com reserva e prevenção, constituindo-se em objeto das

mais contraditórias apreciações.

Realmente, de um lado, ele é encarado como simples meio de transmitir nome e

patrimônio nas famílias aristocráticas. Além disso, através da adoção, podem ser

introduzidos, na comunidade familiar, filhos incestuosos e adulterinos, burlando-se a

proibição legal de seu reconhecimento e implantando-se assim situação

incompatível com a existência da família legítima. É ela ainda causa de muitas

ingratidões e arrependimentos. Por fim, remata-se, cuida-se de instituto supérfluo,

porque dele não carece o adotante, em absoluto, para acolher e amparar filhos de

outrem, ou para proteger criaturas desvalidas e abandonadas25

.

A excessiva proteção à família legítima importava em grave discriminação dos filhos

considerados espúrios, condenados à invisibilidade paterna, sem direito ao nome, alimentos e

direitos sucessórios, para garantir a paz no casamento. O filho ilegítimo era marginalizado,

beneficiando o pai adúltero que se safava dos ônus do pátrio poder, brindando quem infringiu

os ditames legais26

. Eram desonrados e punidos pela falta cometida pelos pais, conforme

salientou Clóvis Beviláqua:

A falta é cometida pelos pais, e a desonra recai sobre os filhos. A indignidade está

no fato do incesto ou do adultério, mas a lei procede como se estivesse nos frutos

infelizes dessas uniões condenadas27

.

Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald ressaltam que a paternidade biológica,

entretanto, não era essencial para configurar a prole legítima. Desde o Código de Hamurabi

23

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 1-2. 24

ZENI, Bruna Schlindwein. A evolução histórico-legal da filiação no Brasil. Disponível em

www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate. Acesso em 17.10.2013. 25

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil – direito de família. 26ª ed. São Paulo: Saraiva,

1986. p. 261-262. v. 2. 26

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 355. 27

BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1917. p. 323. v. 2.

Page 25: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

25

admite-se a presunção legal – pater is est – de que os filhos nascidos na constância do

matrimônio são do marido. Enquanto a maternidade se prova diretamente pelo parto, a

paternidade se presume juridicamente pela coabitação com a esposa. Concluem os autores,

quanto à presunção legal da paternidade, que:

É um verdadeiro exercício de lógica aplicada: considerando que as pessoas casadas

mantêm relações sexuais entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente

da fidelidade existente entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se

que o filho nascido de uma mulher casada, na constância das núpcias, por presunção,

é do seu marido.

É a máxima absorvida no Direito Romano pela expressão pater is est quaem justae

nuptiae demonstrant (o pai é aquele indicado pelas núpcias, pelo casamento). E

mais, vem esta presunção acompanhada de outra, correspondendo ao outro lado da

mesma moeda: mater semper certa est (a mãe é sempre certa) 28

.

A presunção pater is est era fundada em uma probabilidade, diverso do que ocorria

com a maternidade que se provava pelo parto, diante da impossibilidade de uma prova direta

da paternidade, já que por sua natureza era oculta e incerta, elevada pela lei em presunção

para preservar o casamento29

.

A dita presunção estabelece que o pai jurídico, necessariamente não é o biológico,

mas o marido da mãe, surgindo no Código Civil de 1916 dois pilares que sustentavam a

paternidade: o jurídico e o consanguíneo. Assim, por vezes, a realidade biológica não era

idêntica à jurídica, que não podia ser atribuída a terceiro em razão da indispensável proteção e

estabilidade do casamento30

.

João Baptista Villela ressalta que a presunção pater est tinha por objetivo preservar

a harmonia da família e assegurar a legitimidade dos filhos, sem compromisso com a verdade

biológica, concluindo que:

A regra pater est quem nuptiae demonstrant nunca esteve, no Código Civil,

primariamente comprometida com a verdade biológica. Tanto isso é verdade que os

arts. 343 e 346, em pleno vigor, não afastam a presunção de paternidade do marido,

nem mesmo diante do adultério da mulher ou da confissão materna. Trata-se de um

princípio que, quando de sua inclusão no Código, em 1916, tinha dois objetivos,

eminentemente sociais. De um lado, preservar intacta a harmonia da família, até o

limite do direito personalíssimo do marido de contestar a paternidade. De outro lado,

28

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 661. 29

GUIMARÃES, Luis Paulo Contrim. A paternidade presumida no direito brasileiro e comparado. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001. p. 63-65. 30

QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. p. 46-47.

Page 26: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

26

assegurar aos filhos o status de legitimidade matrimonial, a um tempo em que a falta

desta condição acarretava sérios prejuízos morais e materiais a quem a sofresse31

.

A verdade biológica, já no Código Civil de 1916, cedia diante do interesse social de

preservação da família e de legitimidade do filho. Mesmo sabendo quem era seu pai

biológico, o filho espúrio não podia ter estabelecida a paternidade para configurar no registro.

Por outro lado, a paternidade de terceiro não podia ser reconhecida se a mulher fosse casada,

mesmo comprovando o adultério a matre, para não macular a honra familiar. Somente o

marido detinha legitimidade e o direito personalíssimo para negar a paternidade32

.

A negatória de paternidade era rigorosa e impunha prazos exíguos para afastar a

presunção pater is est, como lembra Luiz Edson Fachin:

No Código, o estabelecimento da paternidade vinha com um conjunto de regras

claramente definido, produzido sob a sociedade e seus valores acerca da espureidade

e de relações reprovadas pela moral; de outro, a negatória da paternidade legítima é

cuidadosamente tratada para tornar difícil o afastamento da presunção pater is est.

Uma concepção arbitrária e centralizada aí de vê.

A legitimidade do filho fica ao arbítrio do marido ao lhe ser atribuído direito

privativo de contestar a paternidade. O que se gera aí, a rigor, é uma legitimidade

forçada33

.

O Código de 1916, adotando os princípios do Direito Canônico, conferia

legitimidade aos filhos vinculada ao casamento dos pais, independente do vínculo biológico,

estabelecendo direitos diversos aos filhos matrimoniais e não matrimoniais. Criou ainda

classes distintas de filhos ilegítimos por ocasião da revisão do projeto proposto por Clóvis

Beviláqua, impondo restrição ao reconhecimento voluntário ou judicial (compulsório) dos

filhos espúrios, além de conceder direitos inferiores ao filho natural, especialmente

sucessórios, em concorrência com os legítimos e legitimados.

Algumas disposições do Código de 1916, entretanto, não tiveram vida muito longa,

mas outras se mantiveram até a Constituição de 1988, mas sempre caminhando no sentido de

conferir igualdade aos filhos e reconhecer a paternidade dos ilegítimos.

A Constituição de 1934 (art. 147) isentou o reconhecimento dos filhos naturais de

quaisquer selos ou emolumentos, dispondo ainda que recairia sobre a herança que lhes cabia

impostos iguais aos cobrados dos filhos legítimos. A Constituição de 1937 (art. 126) dispôs

31

VILLELA, João Baptista. Família hoje. In: BARRETO, Vicente (Coord.). A nova família: problema e

perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 85. 32

QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. p. 46-47. 33

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade – relação biológica e afetiva. p. 87.

Page 27: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

27

que deveria ser facilitado o reconhecimento dos filhos naturais e que e que a lei assegurará

igualdade com os legítimos34

, incluindo os direitos e deveres que incumbem aos pais35

.

A Constituição de 1937 trouxe dois princípios aos filhos naturais: facilitação para o

reconhecimento e igualdade em direitos e deveres com os legítimos. Apesar da defesa de

alguns juristas na época em estender a interpretação do art. 126, não se aplicou aos filhos

adulterinos e incestuosos. A inovação constitucional de 1937, todavia, foi de extrema

importância em não recepcionar o § 1º do art. 1.605 do Código Civil de 1916, que

determinava que ao filho natural caberia na herança do pai apenas a metade do quinhão do

filho legítimo ou legitimado.

As Constituições que se seguiram, até a Constituição de 1988, não trouxeram

novidades na filiação, cabendo às leis ordinárias os avanços, com progressivo abrandamento

da proibição do Código Civil ao reconhecimento dos filhos ilegítimos. O Decreto Lei nº

3.200, de 19 de abril de 1941, que dispõe sobre a organização e proteção da família, tratou dos

filhos naturais no Cap. VII, isentando de taxas e emolumentos o reconhecimento (art. 13) e

determinando que não se mencione na certidão de registro civil que a filiação não é legítima,

salvo se em virtude de requerimento do próprio interessado ou determinação judicial (art. 14).

Os arts. 15 e 16 regulavam ainda a permanência do filho natural reconhecido com um dos

pais.

O Decreto-Lei 4.737, de 24 de setembro de 1942, trouxe grande avanço no

reconhecimento do filho adulterino. Na dicção do art. 358 e caput do art. 363, o filho

extramatrimonial havido na constância do casamento, ainda que sobreviesse desquite ou

morte de um dos cônjuges, era considerado adulterino. O referido decreto autorizou o

reconhecimento do filho havido fora do matrimônio com a dissolução da sociedade conjugal

pelo desquite, espontâneo ou compulsório36

. O reconhecimento também passou a ser admitido

pela jurisprudência nas hipóteses de dissolução do casamento por anulação ou morte de um

dos cônjuges37

.

A Lei 883, de 21 de outubro de 1949, que tratava especificamente do reconhecimento

dos filhos ilegítimos, também foi um grande avanço no reconhecimento dos filhos adulterinos

e concessão dos direitos a alimentos. O art. 1º, caput, autorizou o reconhecimento do filho

34

Art. 126 da Constituição Federal de 1937 - Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei

assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes

incumbem aos pais. 35

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade – relação biológica e afetiva. p. 82-83. 36

Art. 1º do Decreto-Lei 4.737/1942 - O filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do desquite,

ser reconhecido ou demandar que se declare sua filiação. 37

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 39-40.

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28

havido fora do casamento se dissolvida a sociedade conjugal por qualquer forma, e não mais

somente o desquite como preconizava o Decreto-Lei 4.737/1942, que foi revogado pela nova

norma, conferindo-lhe legitimação para propositura da ação. No art. 4º autorizou o filho

adulterino a pleitear alimentos em segredo de justiça, sem, contudo ser reconhecida

expressamente a paternidade.

Depois dos debates calorosos na sociedade brasileira e no Congresso Nacional,

finalmente foi acolhido o divórcio no Brasil pela EC nº 09, de 28 de junho de 1977, sendo

editada a Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, denominada “Lei do Divórcio”, para regular

a dissolução da sociedade conjugal e do casamento. Enfraquecido o casamento civil como

instituição legitimadora da filiação, a Lei 6.515/1977 acrescentou diversas disposições liberais

na Lei 883/1949 para favorecer a filiação adulterina. Permitiu o reconhecimento da

paternidade de quem obteve os alimentos sem necessidade de ação investigatória (parág.

único do art. 5º) e reafirmou a igualdade da herança, independente da origem da filiação (art.

2º). Outro avanço foi introduzir o parág. único ao art. 1º, depois transformado em § 1º pela

Lei 7.250/1984, autorizando, a qualquer dos cônjuges, na constância do casamento, a

reconhecer o filho adulterino em testamento cerrado.

A Lei do Divórcio ainda introduziu nova terminologia à filiação espúria,

denominando-a de “filhos havidos fora do casamento”, relegando uma denominação mais

benigna38

, caminhando na evolução do pensamento em não discriminar qualquer forma de

origem da filiação ou utilizar designações desqualificativas.

O filho havido fora do casamento, de cônjuge separado de fato por mais de cinco

anos, também passou a ter direito de ser reconhecido judicialmente, de acordo com o § 2º,

introduzido pela Lei 7.250/1984, ao art. 1º da Lei 883/1949. O acolhimento apenas da

separação de fato para autorizar o reconhecimento do filho espúrio, agora já denominado filho

havido fora do casamento, trouxe verdadeira inovação ao Direito de Família, apontando no

sentido de que a vedação ao reconhecimento dos filhos adulterinos e a filiação legítima

decorrer apenas do casamento estava prestes a cair39

.

A Constituição Federal de 1988, finalmente, aboliu a desigualdade entre os filhos,

garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações, sejam havidos ou não da relação do

casamento, ou por adoção, vedando qualquer forma de discriminação, excluindo todas as

38

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade – relação biológica e afetiva. p. 84. 39

GARCEZ, Sérgio Matheus. A filiação legítima como princípio constitucional e como preceito

infraconstitucional. Revista IOB de Direito de Família, Porto Alegre: v. 50, out./nov. p. 78, 2008.

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29

formas de designações (art. 227, §6º). A Lei 7.841/1989 revogou o art. 358 do Código Civil,

que vedava o reconhecimento da paternidade dos filhos espúrios.

O Estatuto da Criança e do Adolescente expressamente excluiu qualquer restrição ao

reconhecimento da paternidade, que pode ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, a

qualquer tempo, tratando-se de direito personalíssimo, indisponível e imprescritível (art. 27).

Assegurou ainda o direito à convivência familiar em ambiente saudável para o pleno

desenvolvimento da criança e do adolescente (art.19).

A Lei 8.560/1992 trouxe outra inovação ao direito brasileiro, ao regular a

investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, transformando em interesse

social a atribuição da paternidade, seja o pai casado ou parente próximo, conferindo

legitimidade ao Ministério Público para propor ação investigatória.

O Código Civil de 2002 previu outras origens de filiação, além da biológica ou por

adoção, ao dispor expressamente no artigo 1.593 que o parentesco pode ser natural, quando

resultar de consanguinidade, ou civil, conforme resulte por outra origem. A filiação civil,

portanto, não se limita mais exclusivamente à adoção, como era no Código Civil de 1916,

podendo ocorrer por outras formas.

Assim, superados séculos de desigualdades e restrições ao reconhecimento da

filiação não havida na constância do casamento, a filiação civil por outra origem possibilita,

nos dias atuais, o reconhecimento de filhos havidos por adoção, reprodução assistida

heteróloga e também pela socioafetividade, fundada na posse do estado de filho, caracterizada

pela convivência, afetividade e estabilidade na relação paterno-filial. Novo modelo se

descortina, privilegiando, desta vez, o afeto como mola propulsora das relações familiares

mais humanizadas.

O Código Civil atual, todavia, mantém a presunção pater is est dos filhos havidos na

constância do casamento, sem levar em conta a verdade biológica, mesmo diante do imenso

avanço tecnológico e científico para facilmente identificar a origem genética, com o objetivo

inequívoco de preservação do casamento. Oportuna a lição de Cristiano Chaves e Nelson

Rosenvald, ao comentarem as presunções acolhidas do direito romano de que o pai é aquele

indicado pelo matrimônio e a mãe é sempre certa:

Através da conjugação destas presunções, determina-se, juridicamente, a relação

filiatória, no momento do nascimento, sem maiores indagações.

(...).

O direito brasileiro sempre prestigiou ambas as presunções, arquitetando as regras

filiatórias a partir delas. Estabeleceu-se, com isso, o primeiro critério de

Page 30: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

30

determinação filiatória: o critério legal, pelo qual a filiação decorre de uma

presunção prevista em lei. Nesse passo, o Código Civil de 2002, no seu art. 1.597,

manteve-se fiel às raízes, ignorando, nitidamente, o avanço da biotecnologia e dos

métodos científicos, praticamente repetindo a fórmula do seu antecessor40

.

Da mesma forma que o código anterior, a ação negatória de paternidade é dificultada,

cabendo exclusivamente ao marido (art. 1.601, CC), protegendo a prole e a estabilidade da

família. Acolhendo o marido o fruto da mulher, nenhum dos seus herdeiros pode excluir a

paternidade. Apesar de imprescritível a ação negatória de paternidade, a doutrina e a

jurisprudência são unânimes em lhe dar guarida se o marido acolheu o filho ciente que não era

o pai biológico, diante da disposição expressa de irrevogabilidade do reconhecimento (art.

1.609, CC).

Permanecem, assim, no sistema atual, os dois pilares que sustentaram a paternidade,

o jurídico, em razão da presunção dos filhos havidos na constância do casamento, e o

biológico, em razão da consanguinidade.

A adoção constitui mais um pilar, acrescido e consolidado, para sustentar a filiação,

em plena paridade com as duas formas anteriores de constituição do vínculo paterno-filial,

como vínculo real, efetivo, sem qualquer distinção41

.

Novo pilar se descortina, conferindo efetividade aos direitos fundamentais e aos

princípios norteadores do direito de família. Considerando que a pessoa é o cerne do direito,

figurando no centro de sua órbita diante da nova ordem do direito constitucional, como sujeito

de direitos e obrigações voltados à sua plena realização, também o Direito Civil, hoje

constitucionalizado, tem na valorização da pessoa humana e no respeito à sua dignidade seu

ofício mais importante42

. Diante das transformações da família e a valorização do “ser

pessoa”, na relação pai/filho o vínculo mais caro é a afetividade, o elemento aglutinador das

relações familiares, surgindo novo, e talvez mais valioso, pilar para sustentar a paternidade: a

socioafetividade. Nesse sentido Juliane Fernandes ressalta que:

A relação paterno-filial não se explica apenas na descendência genética, mas sim, e

preponderantemente, na relação socioafetiva, a qual supre o indivíduo em suas

necessidades elementares de alimentação, lazer, educação, sem desconsiderar o afeto

e o amor. No mundo moderno, não se pode, portanto, prescindir de um outro pilar

que sustenta a paternidade: o socioafetivo.

40

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 661-662. 41

MAIA, Renato; LIMA, Ricardo Alves de. Adoção e direitos fundamentais: a adoção como efetivação da

convivência familiar. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 268, 2011. 42

MAIA, Renato; LIMA, Ricardo Alves de. Adoção e direitos fundamentais: a adoção como efetivação da

convivência familiar. p. 268.

Page 31: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

31

(...).

Torna-se visível a valorização do elemento socioafetivo, pois a paternidade

biológica se torna insuficiente se, ao mesmo tempo, não se encontrar a paternidade

de afeto43

.

A legislação atual não prevê expressamente o reconhecimento da paternidade

socioafetiva. No Congresso Nacional foi proposto o Projeto de Lei 5.682/2013, para incluir,

ao art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o exercício do reconhecimento do estado

de filiação contra os pais “biológicos e socioafeivos”, entretanto, ainda continua em

tramitação. Assim, como os textos normativos não acompanham a realidade, especialmente

no Direito de Família, diante de sua constante evolução e mudanças, se torna necessário

buscar na força normativa dos princípios, que possuem preceitos gerais e abrangentes,

permitindo maior extensão na aplicação ao caso concreto e viabilização na aplicação do

Direito, a solução jurídica para os filhos de criação.

É o que se pretende, diante da evolução histórica da filiação, dando efetividade aos

princípios fundamentais no direito de família para reconhecimento da paternidade

socioafetiva e realmente igualar os filhos de qualquer origem, sem qualquer discriminação.

43

QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. p. 49.

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32

2. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA

A história mostra que a evolução nas relações familiares foi longa, sendo necessária

a quebra de muitos paradigmas e preconceitos para, finalmente, ser reconhecida a igualdade

entre os membros da entidade familiar e a necessidade de proteger a dignidade pessoal de

cada um dos que a integram, promovendo sua realização e expectativas.

O legado do positivismo foi um entrave, pois o Direito não conseguia prever e

regular todos os fatos existenciais, todas as experiências concretas da conduta humana,

extremamente dinâmica e com alternância nos seus valores, hábitos e costumes, notadamente

nas relações inter-familiares. Era necessário um Direito mais humanizado, que valorizasse a

pessoa humana como cerne da norma jurídica e respeitasse sua vontade, o que foi conquistado

com muitas lutas políticas e ideais de liberdade e igualdade.

O positivismo tornou-se insuficiente para acompanhar as profundas mudanças nas

famílias, sendo necessário aperfeiçoar a aplicação do Direito instalando uma discussão

principiológica, pois os princípios traçam regras e preceitos que constituem fundamentos

inseridos na estruturação dos ordenamentos jurídicos e com a constitucionalização do Direito

Civil ganharam força normativa muito maior. A aplicação dos princípios, que traduzem o

sentido de um ato de vontade e o espírito da norma, permite a proteção e preservação na

plenitude dos direitos humanos, que estão intrinsecamente ligados ao Direito de Família e à

dignidade da pessoa humana44

. Os princípios, com o pós-positivismo, deixaram de ser

utilizados como mero instrumento de complemento das normas como ocorria no positivismo,

para se tornarem forma de expressão da própria norma, conferindo harmonia e coerência ao

sistema jurídico, aferindo os conteúdos constitucionais em sua mais elevada dimensão

normativa45

.

Rafael L. Simioni, ao tratar da decisão jurídica e autonomia do Direito, ressalta que

pensar o Direito hoje não é tarefa fácil, tendo em vista os diversos discursos teóricos,

metodológicos, filosóficos e sociológicos sobre a experiência jurídica, permitindo a

concepção do Direito em diferentes perspectivas. A prática da realização do direito - decisão

jurídica – pode ocorrer em um acentuado pluralismo metodológico. Depois de discorrer sobre

44

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2ª ed. São Paulo:

Saraiva, 2012 . p. 48 e 120. 45

CARVALHO, Dimas Daniel de. Famílias simultâneas na ordem constitucional democrática. 2013. 89 p.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, 2013.

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33

a importância da autonomia do Direito e uma série de concepções pós-positivistas no mundo

prático, conclui que a decisão jurídica só vai conquistar legitimidade ou justiça se conseguir

estabelecer uma mediação, em duplo compromisso, entre a autonomia do Direito e as

exigências do mundo prático. Assinala ainda que:

Por hipótese, portanto, uma decisão jurídica adequada a todo esse complexo e frágil

desenvolvimento histórico do pensamento jurídico ocidental é aquela que decide

uma solução jurídica comprometida com a lei, com os precedentes jurisprudenciais e

doutrinários e com as razões materiais do mundo prático - princípios morais, valores

éticos, convicções religiosas, costumes comunitários importantes, etc. Em segundo

lugar entram as razões do mundo técnico - estratégias políticas, eficiência

econômica e orientação às conseqüências da decisão. A sabedoria está em entender

que esse duplo compromisso com as convenções jurídicas e com as razões do

mundo prático não é contraditório: trata-se, na realidade, de um único e mesmo

compromisso com uma atitude interpretativa do Direito adequada à problemática

jurídica e prática implicada ao caso concreto46

.

As diferentes perspectivas e os diversos discursos para compreender e aplicar o

Direito excluem na atualidade uma concepção exclusivamente positivista, diante das diversas

situações existenciais envolvendo as relações familiares, que somente podem ser agasalhadas

em um discurso principiológico que ampare a dignidade do ser humano, acolhendo na

plenitude seus direitos fundamentais. Necessário, portanto, uma breve análise dos direitos

fundamentais e dos princípios constitucionais norteadores do Direito de Família, que se

tornaram fonte principal da norma, ao estabelecer regras norteadoras e as diretrizes básicas do

sistema jurídico-familiar, impedindo interpretações dissonantes da legislação

infraconstitucional que não promova o espírito igualitário e solidário das garantias

fundamentais47

.

2.1. Dos direitos fundamentais

Apresentar uma noção sobre direitos fundamentais não é tarefa fácil, diante da

dificuldade de conceituar direitos humanos com um conteúdo abrangente, pois varia de

acordo com os autores e as concepções filosóficas e históricas em que se concretizaram.

46

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para além do

constitucionalismo e democracia. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MONACO, Gustavo Ferraz de

Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. (Coords). Constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2012. p. 140-161. 47

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 74.

Page 34: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

34

Renato Maia leciona que no Brasil um dos primeiros a examinar o tema foi Rui

Barbosa, ao distinguir, na interpretação da Constituição de 1891, as disposições declaratórias,

que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, das disposições assecuratórias, que

em defesa do direito limitam o poder do Estado. Os direitos são as vantagens previstas na

Constituição da República, enquanto as garantias constitucionais são os instrumentos pelos

quais se assegura o cumprimento e o pleno exercício ou reparação dos direitos violados48

.

O Direito de Família obteve tratamento e atenção privilegiada na Constituição

Federal de 1988, ao regular as relações humanas e pressupor a pessoa humana como valor

fundamental de todo o ordenamento, protegendo e amparando a família como base central da

sociedade. O respeito ao princípio fundamental da dignidade humana, da igualdade e da

liberdade também está expresso na forma de constituição da família, no planejamento familiar

e no respeito individual aos valores de cada um de seus membros, assegurando plena

assistência a cada um deles, individualmente, conforme disposto no artigo 226 e §§ 7º e 8º 49

.

A eficácia e aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, §1º,

CF) é de suma importância, pois garantem plena proteção e efetividade aos membros da

família atual, não dependendo de qualquer norma regulamentadora. Leciona Rolf Madaleno:

e no direito de família é de substancial importância a efetividade dos princípios que

difundem o respeito e a promoção da dignidade humana e da solidariedade,

considerando que a família contemporânea é constituída e valorizada pelo respeito à

plena liberdade e felicidade de cada um de seus componentes, não podendo ser

concebida qualquer restrição ou vacilo a este espaço constitucional da realização do

homem em sua relação sociofamiliar50

.

Maria Berenice Dias orienta que “é no direito das famílias em que mais se sente o

reflexo dos princípios eleitos pela Constituição Federal, que consagrou como fundamentais

valores sociais dominantes”. Ressalta ainda que a dignidade da pessoa humana foi elevada

como valor nuclear da ordem constitucional, sendo o mais universal de todos os princípios do

qual irradiam os demais princípios éticos, pois ocorre opção expressa pela pessoa e encontra

48

MAIA, Renato. Da horizontalização dos direitos fundamentais. Revista da Faculdade de Direito do Sul de

Minas, Pouso Alegre, ed. especial, n. 1. p. 108, 2008. 49 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento

familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o

exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos

para coibir a violência no âmbito de suas relações. 50

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. p. 19.

Page 35: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

35

na família o solo apropriado para florescer. O direito das famílias liga-se umbilicalmente aos

direitos humanos, que possuem como alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana.51

Os direitos fundamentais encontram-se enraizados na idéia de dignidade e, portanto,

voltados para a tutela do homem como fim em si mesmo, considerando a unidade da pessoa

humana e as situações existenciais objeto de proteção jurídica. A família surge inclusa nesta

sistemática, como instrumento para promoção dos direitos fundamentais e concretização da

tutela do existencialismo e da própria dignidade da pessoa humana. A proteção da família

possibilita a efetividade da preservação das situações jurídicas individuais de cada um de seus

membros. O princípio da liberdade da pessoa humana e do planejamento familiar autoriza a

pessoa a escolher entre constituir ou não uma família, a forma de sua constituição e

acolhimento dos filhos, biológicos ou por outra origem, vedando-se ao Estado qualquer

intervenção impositiva. A liberdade de constituição familiar pode, por conseguinte, ser

considerada como um verdadeiro direito fundamental, o direito de escolha de uma pessoa ter

uma família, que, por sua vez, é considerada como um dos principais abrigos a propiciar a

plena satisfação e realização dos direitos fundamentais, mostrando-se, a família, tão

fundamental quanto eles52

.

2.1.1 Dos direitos fundamentais verticais

Os direitos fundamentais verticais surgiram para proteger o homem dos abusos do

poder estatal, garantindo uma existência digna com respeito à sua condição de ser humano e

sujeito de direitos e deveres. São, assim, os direitos que protegem os homens, limitando a

atuação do Estado, garantindo e afirmando em um primeiro momento os direitos de liberdade,

em um segundo momento os direitos políticos, incluindo a participação dos membros da

sociedade no exercício do poder político, e finalmente proclamando os direitos sociais,

expressando o amadurecimento de novas exigências e de novos valores53

.

Durante a história os direitos fundamentais não foram os mesmos, surgindo novos

direitos que se juntaram aos tradicionais ou direitos antigos que foram adaptados às novas

exigências do momento. Ressalta Paulo Gustavo Gonet Branco que:

51

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 57-

60. 52

ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito civil: Famílias. Rio de

Janeiro: Lumem Juris, 2010. p. 70-71. 53

AMIN, Andréa Rodrigues. Dos direitos fundamentais. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade.

(Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 31.

Page 36: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

36

a sedimentação dos direitos fundamentais como normas obrigatórias é resultado da

maturação histórica, o que também permite compreender que os direitos

fundamentais não sejam sempre os mesmos em todas as épocas, não

correspondendo, além disso, invariavelmente, na sua formulação, a imperativos de

coerência lógica54

.

A dificuldade de conceituação de direitos fundamentais aumenta em razão das várias

expressões utilizadas para designá-lo, como “direitos humanos” ou “direitos do homem”.

Paulo Bonavides cita Konrad Hesse para orientar que os direitos fundamentais são aqueles

direitos que o direito vigente qualifica como tais, ou, em outras palavras, os direitos humanos

positivados, e que almejam criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na

liberdade e na dignidade humana. Cita ainda Carl Schmitt no sentido de que os direitos

fundamentais são os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento

constitucional, que receberam da constituição um grau mais elevado de garantia ou de

segurança, imutáveis ou de mudança dificultada55

.

Ingo Sarlet ressalta a problemática na definição terminológica e delimitação

conceitual da expressão “direitos fundamentais”, terminologia que adota, em razão da

utilização de outras expressões, como “direitos humanos”, “direitos do homem”, “direitos

subjetivos públicos”, “direitos individuais” e “direitos humanos fundamentais”, exigindo um

critério unificador. A própria constituição de 1988 utiliza vários termos ao se referir aos

direitos fundamentais, utilizando ainda o termo genérico “Direitos e Garantias Fundamentais”

(Título II) ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, a

nacionalidade, direitos políticos e o regramento dos partidos políticos. Os direitos

fundamentais, de certa forma, são sempre direitos humanos ou direitos do homem, que são

todos os direitos inerentes à pessoa humana, mas pode ser traçada uma distinção no plano da

positivação, posto que a expressão “direitos humanos” possui um conceito mais amplo e

difuso, enquanto a expressão “direitos fundamentais” possui uma noção mais precisa e

restrita, constituindo o conjunto de direitos e liberdades reconhecidos e garantidos pelo direito

positivo do Estado. O autor ainda faz uma distinção no plano da dimensão internacional e

nacional, considerando os direitos humanos os reconhecidos em tratados internacionais e os

direitos fundamentais os reconhecidos e assegurados internamente em cada Estado, relegando

à expressão “direitos do homem”, de conotação jusnaturalista, como aquela utilizada na fase

54

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso do direito constitucional. 4ª ed. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO,

Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. (Coords.). São Paulo: Saraiva, 2009. p. 265-266. 55

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 560-

561.

Page 37: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

37

que precedeu ao reconhecimento pelo direito positivo. Didaticamente, Ingo Sarlet apresenta as

seguintes distinções:

Cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre

as expressões “direitos do homem” (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não

positivados), “direitos humanos” (positivados na esfera do direito internacional) e

“direitos fundamentais” (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo

direito constitucional interno de cada Estado)56

.

José Afonso da Silva aponta como melhor expressão a ser utilizada direitos

fundamentais do homem, pois, segundo ele:

(...) é reservado para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e

instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual

de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se

trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive

e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a

todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e

materialmente efetivados57

.

J.J. Gomes Canotilho58

diz que os direitos fundamentais “são os direitos do homem,

jurídico-institucionalmente garantidos (...) os direitos objetivamente vigentes numa ordem

jurídica concreta”. São, portanto, os direitos inatos ao ser humano, previstos especialmente na

Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos aprovada na Assembléia Geral

das Nações Unidas em 1948 e presentes nos Estados Democráticos de Direito.

Rolf Madaleno, citando vários autores, leciona que os direitos fundamentais são

direitos de todo e qualquer ser humano e não apenas de determinados grupos. São direitos

humanos de todos, atuando como alicerce e valor supremo da ordem jurídica democrática, já

que “no conteúdo de fundamental está embutida a idéia de situação jurídica essencial à

realização da pessoa humana”. Fundamentais são os direitos declarados em uma comunidade

política organizada, para resguardar os princípios da liberdade, igualdade e dignidade

humana. São os direitos reconhecidos e positivados no ordenamento jurídico59

.

O leque dos direitos fundamentais vem aumentando gradativamente de acordo com

as necessidades do momento histórico, não existindo uma homogeneidade de classes, o que

56

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais

na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 27-32. 57

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p.

178. 58

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 359. 59

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 17-18.

Page 38: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

38

dificulta uma noção que alcance todos eles. Da mesma forma a positivação dos direitos

humanos não é coincidente em todos os ordenamentos jurídicos. A fundamentalidade material

dos direitos fundamentais, o ponto característico entre eles, encontra-se, entretanto, na

dignidade da pessoa humana.60

Sem dúvida em cada direito fundamental existe uma projeção

da dignidade humana, pois é por meio dela que adquirem existência e inteligência, apesar de

que nem todos os direitos fundamentais previstos em nossa legislação tenham fundamento na

dignidade humana. Os direitos fundamentais, todavia, são essenciais para dar efetividade à

dignidade do ser humano, como salienta Ingo Sarlet:

(...) os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável –

explicitações da dignidade da pessoa, por via de consequencia, e, ao menos em

principio (já que exceções são admissíveis, conforme já frisado), em cada direito

fundamental se faz presente um conteúdo, ou, pelo menos, alguma projeção da

dignidade da pessoa.

(...)

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da

pessoa humana, na condição de valor (e principio normativo) fundamental, exige e

pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as

dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), muito embora – importa repisar –

nem todos os direitos fundamentais (pelo menos não no que diz com os direitos

expressamente positivados na Constituição Federal de 1988) tenham um fundamento

direto na dignidade da pessoa humana 61

.

Os direitos fundamentais evoluíram na história e manifestaram em três gerações

sucessivas.

A “primeira geração” abrange os direitos referidos na Revolução Francesa e na

Revolução Americana, os primeiros a serem positivados, que são os direitos da liberdade

individual da pessoa (consciência, culto, inviolabilidade de domicílio, de reunião), que tem

por titular o homem individualmente e são oponíveis ao Estado.62

Os direitos fundamentais da

primeira geração não tinham preocupação com as desigualdades sociais, traduzindo-se em

postulados de abstenção do Estado para não intervir na vida pessoal de cada indivíduo.63

Os direitos fundamentais da “segunda geração” são os chamados direitos sociais, que

dominaram o século XX, ganhando realce o princípio da igualdade e incluindo as liberdades

sociais, como a sindicalização e direito de greve. Os direitos de segunda geração, diante da

industrialização, crescimento demográfico e desigualdades sociais, passaram a exigir do

60

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso do direito constitucional. p. 270. 61

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de

1988. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 101-102. 62

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 563. 63

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso do direito constitucional. p. 267.

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39

Estado uma atitude ativa na realização da justiça social e intervenção na vida econômica.

Obrigou o Estado a prestações positivas para estabelecer uma liberdade real e igual para

todos, como assistência social, saúde, educação, trabalho, entre outros direitos sociais. Apesar

da denominação, tinham, entretanto, na maior parte dos casos, indivíduos singularizados e não

a coletividade64

.

No final do século XX, com a globalização e a concepção que o homem não vive

isoladamente, surgem os direitos de “terceira geração”, que se destinam não apenas aos

interesses de um indivíduo ou de um grupo, ou mesmo de um determinado Estado, mas do

gênero humano. São os direitos dotados de universalidade e humanismo, denominados de

direitos da fraternidade, de titularidade difusa e coletiva, que se acrescentam aos direitos da

liberdade e igualdade. A doutrina identifica como direitos da terceira geração (fraternidade) o

direito ao desenvolvimento, o direito à paz, à qualidade de meio ambiente, à conservação do

patrimônio histórico e cultural da humanidade e à comunicação65

.

A doutrina, em razão da globalização política, apresenta ainda direitos fundamentais

da “quarta geração”, referentes aos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. A

globalização econômica e a globalização cultural já são realidades, buscando os direitos de

quarta geração uma democracia globalizada, tendo como valor central e convergente de todos

os sistemas o homem.

Por fim, está surgindo como direito de nova dimensão ou da “quinta geração”, o

direito à paz. Traslada-se o direito à paz da terceira para a quinta geração, ressaltando o valor

supremo da paz reconhecido em documentos históricos como a “Declaração Universal dos

Direitos do Homem”, de 10.12.1948, o “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, de

16.12.1996, e a “Declaração do Direito dos Povos à Paz”, contida na Resolução 39, da ONU,

de 12.11.1984. A Declaração da ONU “proclama solenemente que os povos do nosso planeta

têm o direito sagrado à paz”, acrescentando ainda que “proteger o direito dos povos à paz e

fomentar sua realização é obrigação fundamental de todo Estado” 66

.

Fernanda de Melo Meira, ao tratar dos direitos fundamentais na Constituição de

1988, ressalta a aplicabilidade imediata e classifica-os como de primeira, segunda e terceira

dimensão. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os que o indivíduo possui como

resistência ou oposição perante o Estado, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à

igualdade formal, bem como os direitos políticos e as garantias processuais, previstos

64

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso do direito constitucional. p. 268. 65

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 569. 66

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 571-581.

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40

especialmente no artigo 5º. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, os

direitos de participação no bem-estar social, como a assistência social, saúde, educação,

trabalho e liberdades sociais previstos no artigo 7º, como a liberdade de sindicalização, direito

de greve, direitos fundamentais dos trabalhadores, entre outros. Por fim, os direitos

fundamentais de terceira dimensão são os destinados à proteção de grupos humanos, como,

por exemplo, os direitos de solidariedade, à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente

equilibrado, à qualidade de vida, tratando-se, pois, de direitos difusos e coletivos67

.

A distinção, quanto às gerações de direitos fundamentais, é importante para situar e

compreender o momento histórico em que surgiram e foram positivados, entretanto, as

gerações não se sucedem, suplantando os direitos anteriormente previstos pelos novos que

surgiram. Os direitos anteriores se completam e adaptam aos novos direitos no momento

histórico. Os direitos de liberdade da primeira geração se mantêm nos dias atuais,

aperfeiçoados e com maior alcance, se integrando aos novos direito fundamentais.

A Constituição Federal de 1988, no Título II, integra de forma harmônica as

categorias de direitos fundamentais, desde os direitos individuais aos coletivos e sociais, sem

que um se contraponha ao outro, podendo classificá-los em direitos individuais (art. 5º);

direitos à nacionalidade (art. 12); direitos políticos (arts. 14 a 17); direitos sociais (arts. 6º e

193 e §§); direitos coletivos (art. 5º) e direitos solidários (arts. 3º e 255). No art. 5º, §1º, a

Constituição brasileira dispõe expressamente que as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais possuem aplicação imediata e, no art. 5º, §2º, que os direitos

fundamentais expressos na norma constitucional não excluem outros decorrentes dos

princípios por ela adotados ou previstos em tratados internacionais.

2.1.2 Dos direitos fundamentais horizontais

Os direitos fundamentais de eficácia vertical aplicam-se em face do Estado, como

garantias ao homem, com incidência predominante no direito público, o que não veda,

entretanto, a aplicação imediata, direta e irradiante, nas relações privadas, especialmente nas

relações de família. A aplicação nas relações de família permite a realização de cada membro

dentro do núcleo familiar68

, especialmente em face da constitucionalização do direito civil,

67

MEIRA, Fernanda de Melo. A guarda e a convivência familiar como instrumentos veiculadores de direitos

fundamentais. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. (Coords.). Manual de

direito das famílias e das sucessões. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 227-228. 68

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito de família – as famílias em perspectiva

constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 58-60.

Page 41: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

41

aproximando cada vez mais o direito público do privado, exigindo que o Estado tutele a

dignidade da pessoa humana.

Renato Maia diz que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também

denominada de eficácia privada ou externa, surge em oposição à eficácia vertical, autorizando

sua aplicação nas relações entre particulares, direta e imediatamente, sem necessidade de

previsão legislativa. Historicamente sabe-se que os direitos inseridos na Constituição alemã

foram excluídos pelo regime nazista, mas tal fato propiciou a inserção na Lei Fundamental de

Bonn, em 1949, de uma nova sistemática de direitos fundamentais, vinculando a legislação

ordinária. A sistemática espalhou-se pelas constituições de vários países, especialmente os

que sofreram períodos de exceção, passando a aplicação dos direitos fundamentais a se

orientar como fundamento e finalidade do Estado. O princípio da dignidade humana começou

a exigir uma reconstrução do ordenamento jurídico e a conciliação entre o direito público e

privado, abandonando a noção de oposição entre eles, restando indiscutível a existência de

normas de direitos fundamentais que incidem diretamente nas relações privadas.69

Jane Reis Gonçalves Pereira reafirma a aplicação dos direitos fundamentais nas

relações privadas para tutelar a dignidade humana, discorrendo que:

Tendo os direitos fundamentais sido concebidos e afirmados para tutelar a dignidade

e autonomia humana em suas diversas dimensões, não há como defender, do ponto

de vista lógico, que estes são aplicáveis apenas em relação às violações operadas

pelo poder público.70

A doutrina distingue assim os direitos fundamentais de eficácia vertical dos direitos

fundamentais de eficácia horizontal. No Estado liberal os direitos fundamentais verticais

surgiram na legislação ordinária como meio de defesa do indivíduo contra a imposição ou

intromissão do Estado71

, ou seja, protegia as relações entre o particular e o poder público,

limitando o poder do Estado. Os direitos fundamentais de eficácia horizontal incidem nas

relações privadas, protegendo e regulando os direitos invioláveis entre os particulares.

A partir especialmente do Caso Lüth, ao ser reconhecida a liberdade de expressão do

boicote antinazista pelo Tribunal Constitucional Alemão, admitiu-se que os direitos

fundamentais integravam a ordem normativa centrada na pessoa humana e consequentemente

69

MAIA, Renato. Da horizontalização dos direitos fundamentais. p. 109-111. 70

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas

relações jurídicas entre particulares. In: BARROSO: Luis Roberto. (Org.). A nova interpretação constitucional:

ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 149. 71

ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 150.

Page 42: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

42

incidiam em todos os ramos do Direito, inclusive o direito civil. O reconhecimento da eficácia

irradiante dos direitos fundamentais, disseminando por todo o ordenamento, possibilitou um

“novo começo” ao orientar que o Código Civil deveria ser lido à luz dos valores estabelecidos

pela Constituição, prevalecendo a aplicação dos direitos fundamentais mesmo numa relação

entre particulares. Entre os particulares, todavia, a incidência dos direitos fundamentais é

diferente da aplicação em face do Estado, pois os particulares são, ao mesmo tempo,

destinatários da aplicação e titulares de outros direitos fundamentais .72

Caio Mário já vislumbrava que o reconhecimento compulsório da filiação importa

em conflito de interesses, que denominou de “duas idéias-forças”, ao ressaltar que:

Não podemos, contudo, furtar-nos de salientar que o reconhecimento de filiação,

precipuamente o compulsório, é a resultante de duas idéias-forças, que às vezes se

emparelham, mas não raro se antagonizam, de tal sorte que, obedecendo o direito ao

sentido social, e acompanhando a idéia preponderante, ora o facilita ora o dificulta,

hoje restringe, para amanhã estender os seus efeitos. As idéias-forças que atuam

orientando o legislador são a proteção devida à família legítima e legalmente

constituída, de um lado; e a que tem de ser oferecida aos filhos naturais, de outro

lado, esta última em crescimento constante73

.

Modernamente Pietro Perlingiere também aborda o possível conflito entre os direitos

fundamentais das pessoas que compõem o núcleo familiar e os direitos originários e

invioláveis da família, quando se apresentam de forma separada. Conclui que:

Desse modo, atribui-se valor primário e prevalente ora aos direitos da família ora

àqueles dos seus componentes, fazendo, respectivamente, prevalecer razões de

seriedade, de solidariedade ou de liberdade. O problema, a bem ver, não está na

determinação dos fatores de conformação deste ou daquele direito fundamental,

mas, antes, em tornar conciliáveis e compatíveis, na mesma formação social,

exigências idênticas e/ou diversas, principalmente quando deve ser extraída sempre

da mesma tábua de valores constitucionalmente relevantes74

.

A aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, lembra Renato Maia,

certamente vai gerar colisão de interesses, exigindo a ponderação de interesses à luz da

razoabilidade e da harmonização,75

como, por exemplo, a autonomia da vontade do pai de

criação em não desejar reconhecer a paternidade do filho e o direito deste à isonomia na

filiação, com o consequente reconhecimento jurídico. Ricardo Lucas Calderón ressalta que os

conflitos entre dois direitos fundamentais deverão ter a solução examinada no caso concreto,

72

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro, Renovar: 2013. p.

127-128. 73

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 2-3. 74

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria

Cristina de Cicco. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 246-247. 75

MAIA, Renato. Da horizontalização dos direitos fundamentais. p. 109.

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43

procurando concretizar o direito fundamental prevalente com o menor sacrifício possível ao

outro direito fundamental, usando critérios de adequação, proporcionalidade e razoabilidade76

.

Ocorrendo aparente antagonismo de interesses entre o núcleo familiar e os interesses

pessoais de seus membros, ou aparentemente entre dois direitos fundamentais, tornando-se

inconciliáveis e incompatíveis, devem prevalecer os interesses da personalidade, em face do

princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção da família na pessoa de cada um de

seus membros (art. 226, §8º, CF). Não existe, portanto, p. ex., conflito de direitos

fundamentais entre o interesse personalíssimo do filho em buscar sua paternidade jurídica,

biológica ou socioafetiva, com todos os efeitos resultantes, como nome, alimentos e

sucessórios, e a proteção à entidade familiar ou a liberdade do pai em não querer reconhecer o

vínculo. O direito ao reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo, indisponível e

imprescritível, podendo ser exercido livremente contra os pais ou seus herdeiros, aplicando-

se, de forma direta e imediata, os direitos fundamentais de eficácia horizontal na tutela dos

direitos personalíssimos.

2.2 Dos princípios fundamentais norteadores do direito de família

As concepções positivistas no sentido que a lei seria capaz de prever todas as

situações, não produz resultados em face da complexidade das sociedades contemporâneas e o

amplo acesso à justiça para garantia dos direitos fundamentais. O direito positivo, por si só,

não basta para solucionar as demandas. Os elementos do sistema não são mais apenas a letra

da lei, mas lei interpretada à luz de princípios jurídicos, a jurisprudência e a doutrina. Assim,

o princípio da legalidade que antes significava o apego à letra da lei, hoje significa que o juiz

decida de acordo com o sistema jurídico orientado por princípios gerais, com um conjunto

harmônico de regras, que pode até fazer com que a norma a ser seguida se afaste da

literalidade do dispositivo legal77

.

Kildare Gonçalves Carvalho ressalta que a Constituição Federal de 1988 foi

concebida como um sistema aberto de regras e princípios, assim nosso sistema jurídico não

pode ser estruturado exclusivamente no direito positivo (regras) ou somente em princípios.

Um sistema constituído exclusivamente por regras, embora proporcionasse maior segurança

jurídica, não proporcionaria liberdade para sua complementação e desenvolvimento. Por outro

76

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. p. 135-137. 77

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito jurisprudencial. Teresa Arruda

Alvim Wambier. (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 24-26.

Page 44: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

44

lado, se baseado exclusivamente em princípios, a coexistência de princípios conflitantes

conduziria a um modelo falho de segurança. E incapaz de reduzir a complexidade do próprio

sistema78

.

A palavra “princípio”, novamente leciona Kildare Gonçalves Carvalho, tem origem

no latim principium, que possui o significado de começo, ponto de partida, início.

Filosoficamente tem o sentido de causa, fundamento, a razão de ser da coisa. Logo, não

significa a coisa, mas a sua razão de ser. É o fundamento, a razão que justifica por que as

coisas são da forma que são79

.

De Plácido e Silva, apresenta o seguinte significado dos princípios:

No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares

ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa.

E, assim, princípios relevam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para

servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida

em qualquer operação jurídica.

(...)

Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto

de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito.

(...)

Assim, nem sempre os princípios de inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base

ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e

proteção aos direitos80

.

O direito atualmente gira em torno da pessoa real e das situações jurídicas,

principalmente em razão cada vez mais da constitucionalização do Direito Civil, reafirmando

a importância dos princípios. Os princípios significam o alicerce, os pontos básicos e vitais

para a sustentação, traçando regras ou preceitos para toda a espécie de operação jurídica,

razão pela qual o ordenamento jurídico tem buscado o seu ideal de justiça em uma base

principiológica81

.

Os princípios, lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, conferem

coerência e unidade ao sistema jurídico, presidindo a ordem jurídica em toda sua extensão e

substancialidade, possuindo induvidosa força normativa aberta e permitindo sua aplicação no

caso concreto. Dizem ainda os referidos autores que:

78

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 19ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 573. 79

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. p. 570. 80

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 447. v. III e IV. 81

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 37/45.

Page 45: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

45

Registre-se, inclusive, que o reconhecimento dessa força normativa dos princípios

decorre, em larga escala, da contribuição emanada dos escritos de RONALD

DWORKIN e ROBERT ALEXI, em sede alienígena, bem assim como das lições de

LUIS ROBERTO BARROSO, entre nós. Propugnam esses autores - e uma série de

outros juristas de relevo – o abandono da histórica compreensão positivista,

reconhecendo o caráter normativo dos princípios, como regras jurídicas abertas82

.

Com o Direito de Família, com maior razão, não é diferente. Rodrigo da Cunha

Pereira ressalta a importância dos princípios que levem em consideração a dignidade da

pessoa humana na organização jurídica da família contemporânea. Considerando que o ser

humano é o cerne e o sujeito do direito, um sujeito desejante, e que a dignidade humana é um

macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores, elencou dez

princípios fundamentais que considera essenciais para o direito de família, sem os quais as

decisões e concepções doutrinárias se distanciariam do ideal de justiça. Aponta como

princípios fundamentais norteadores do Direito de Família os princípios da dignidade

humana, da monogamia, do melhor interesse da criança e do adolescente, da igualdade e o

respeito às diferenças, da autonomia e da menor intervenção estatal, da pluralidade de formas

da família, da afetividade, da solidariedade, da responsabilidade e da paternidade

responsável83

.

No reconhecimento da filiação socioafetiva aplicam-se, diretamente, os princípios da

dignidade humana, da igualdade e isonomia dos filhos, do melhor interesse da criança e do

adolescente e, principalmente, da afetividade.

2.2.1 Princípio da dignidade humana

O princípio da dignidade da pessoa humana mudou os parâmetros hermenêuticos que

norteavam o intérprete, pois a nova ordem constitucional veio assentar atenção especial às

situações existenciais, requerendo tutelas jurídicas para proteção do homem, prezando-o pelo

“ser pessoa”. Ao conferir valor maior à proteção da pessoa humana, a Constitucional Federal

elegeu valores sociais dominantes como fundamentais, exigindo a aplicação dos princípios

aos casos concretos para viabilizar o alcance da dignidade humana nas relações jurídicas,

ultrapassando as concepções estritamente positivistas. Não é possível mais aplicar um sistema

82

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 78-79. 83

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 113-114.

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46

de regras neutro, adstrito a concepções meramente formais. É necessário construir, mediante

um direito principiológico, um direito vivo em consonância com a realidade que vivemos84

.

No Brasil a dignidade humana foi elevada a fundamento da República, com expressa

previsão no artigo 1º, III, da Constituição Federal. Renata Barbosa de Almeida e Walsir

Edson Rodrigues Júnior ressaltam que a alteração do ordenamento jurídico, instaurada pelo

atual texto constitucional, veio assentar uma especial atenção às situações existenciais,

requerendo tutelas jurídicas do homem voltadas à sua qualidade humana, prezando-se pelo

“ser pessoa”. Não se admite, assim, qualquer situação que “coisifique” o ser humano.

Concluem que:

Alicerce da ordem jurídica democrática, pode-se dizer que a dignidade vem a

retratar o conteúdo do imperativo Kantiano, segundo o qual o homem há que ser

considerado como um fim em si mesmo, jamais como meio para obtenção de

qualquer outra finalidade85

.

Inequívoco que a pessoa humana é o cerne do direito, orientando todos os institutos

jurídicos para promover o pleno desenvolvimento e a integral proteção do ser humano.

Com efeito, ao colocar a dignidade humana como um dos fundamentos da República,

a Constituição brasileira conferiu valor maior à proteção da pessoa humana, vedando qualquer

forma de discriminação e garantindo ao homem o exercício e o reconhecimento de sua

condição de titular de direitos fundamentais na sociedade em que vive. Como bem ressalta

Ingo Sarlet, ao expressar a noção de pessoa como sujeita de direito e obrigações:

Com fundamento na própria dignidade da pessoa humana, poder-se-á falar também

em um direito fundamental de toda pessoa humana a ser titular de direitos

fundamentais que reconheçam, assegurem e promovam justamente a sua condição

de pessoa (com dignidade) no âmbito de uma comunidade. Aproxima-se desta noção

- embora com ela evidentemente não se confunda – o assim denominado princípio

da universalidade dos direitos fundamentais. 86

Rodrigo da Cunha Pereira ressalta que a dignidade é um macroprincípio sob o qual

estão contidos e irradiam outros princípios essenciais, entre eles a igualdade e alteridade.

Apesar da noção de dignidade estar vinculada à evolução do direito privado, também se

tornou um dos pilares do direito público. É fundamento primeiro da ordem constitucional e

84

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 33-39. 85

ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito civil: famílias. p. 69. 86

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de

1988. p. 116-117.

Page 47: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

47

consequentemente vértice do Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal, no

artigo 1º, III, não define dignidade da pessoa humana, mas traz a indicação de que deve ser

buscada ou preservada pelo Estado Brasileiro. A dignidade humana teve origem em Immanuel

Kant, ao argumentar, em sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785)87

, que o

homem não deve jamais ser transformando num instrumento para a ação de outrem. Dotado

de consciência moral, o homem tem um valor que o torna sem preço e o coloca acima de

qualquer especulação material, acima das coisas. O valor intrínseco que faz do homem

superior às coisas é a dignidade, por isso o homem é considerado pessoa e não coisa. As

coisas têm preço, as pessoas têm dignidade88

.

No mundo jurídico a expressão dignidade da pessoa humana é recente. Apesar de já

utilizada na Constituição Italiana em 1947 (art. 3º), o seu marco inaugural está na Declaração

Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Em 1949 a Constituição da Alemanha, em seu art.

1.1, proclamou que: “A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é

obrigação de todo poder público”. A partir daí todas as constituições democráticas passaram a

utilizar a expressão e colocar o homem como fim e não meio de todas as coisas. A dignidade

do homem tornou-se assim indissociável das constituições democráticas, que por sua vez são

indissociáveis dos preceitos basilares dos direitos humanos. Os homens são livres e iguais em

dignidade e direitos. Demonstra-se, dessa forma, que o direito de família está intrinsecamente

ligado aos direitos humanos e à dignidade, o que tem resultado no reconhecimento jurídico da

igualdade do homem e da mulher, de outros modelos de constituição de família, e na

igualdade dos filhos, independente da origem89

, o que inclui a filiação socioafetiva.

2.2.2 Princípio da igualdade e isonomia dos filhos

No Direito de Família contemporâneo se percebe o fenômeno da personalização, ao

proteger a entidade familiar na pessoa de cada um dos que a integra. A família vive sob o

desígnio da liberdade e da igualdade, que visam à tutela irrestrita da dignidade de seus

membros. Não é mais a instituição da família e especialmente o casamento que é tutelado,

mas as pessoas, oferecendo-lhes condições para que possam realizar-se íntima e afetivamente

na família90

.

87

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 139-140.

v. 1 (Coleção Os Pensadores). 88

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 114-117. 89

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 119-120. 90

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. p. 74-75.

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48

Rodrigo da Cunha Pereira ressalta que a igualdade e o respeito às diferenças são

fundamentais para resguardar o respeito à dignidade da pessoa humana e inclusão no meio

social, afirmando que:

A igualdade e o respeito às diferenças constituem um dos princípios-chave para as

organizações jurídicas e especialmente para o Direito de Família, sem os quais não

há dignidade do sujeito de direito. Consequentemente não há justiça.

O discurso da igualdade está intrinsecamente vinculado à cidadania, uma outra

categoria da contemporaneidade, que pressupõe também o respeito às diferenças. Se

todos são iguais perante a lei, todos devem estar incluídos no laço social91

.

Um dos princípios constitucionais no Direito de Família, após séculos e séculos de

desigualdades e discriminações, é o da igualdade ou isonomia dos filhos, expressando uma

das diversas demonstrações da personalização na família, previsto expressamente no artigo

227, §6º, da Constituição Federal. Regulamenta especificamente na filiação a isonomia

constitucional ou igualdade em sentido amplo, prevista no artigo 1.596 do Código Civil, ao

também dispor que os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, havidos ou não do

casamento, restando proibidas quaisquer formas de designações discriminatórias. Assim,

juridicamente todos os filhos são iguais, consanguíneos ou não, havidos do casamento ou não,

não podendo ser utilizada mais as expressões de “filho bastardo”, “adulterino”, “espúrio” ou

“incestuoso”, por não ser admitida qualquer forma de distinção jurídica92

.

O princípio da igualdade, além da absoluta igualdade entre homem e mulher, importa

no mesmo tratamento e isonomia dos filhos, respeitando as diferenças, pouco importando a

origem, sepultando definitivamente a velha concepção de ilegitimidade da prole. O princípio

da afetividade, decorrente dos princípios adotados na Constituição, rompeu a formalidade

para constituição do vínculo familiar, tornando-se o afeto o elemento formador da família e

desbiologizando a paternidade93

.

Uma das maiores inovações no Direito de Família na Constituição de 1988, o

princípio da igualdade jurídica de todos os filhos reconheceu expressamente a paternidade

socioafetiva fora dos casos de adoção, incluindo a havida por reprodução medicamente

assistida heteróloga e a chamada adoção à brasileira, todos previstos no parentesco por outra

origem. A filiação, portanto, atualmente é jurídica e não mais em razão do casamento dos pais

91

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 163. 92

TARTUCE, Flavio. Novos princípios do direito de família brasileiro. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado;

RIBEIRO, Gustavo Pereira. (Coords.). Manual de direito das famílias e sucessões. 2ª ed. Belo Horizonte: Del

Rey, 2010. p. 9. 93

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 27-31-163-

210.

Page 49: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

49

ou por laços de sangue, podendo se dividir em biológica ou por outra origem, que inclui a

adoção, a havida mediante reprodução assistida heteróloga, a socioafetiva mediante a

comprovação da posse de estado de filho e a adoção à brasileira94

.

A Constituição Federal de 1988 extinguiu as odiosas diferenças entre os filhos e

vedou qualquer forma de discriminação quanto a filiação biológica ou afetiva. A doutrina da

proteção integral da criança e do adolescente coloca o filho como alvo da tutela da pessoa

humana para salvaguardar seus direitos fundamentais, priorizando a convivência familiar,

biológica ou afetiva, demonstrando a importância da afetividade na família, ressaltando que o

filho não é mais assujeitado, mas sujeito nas relações familiares95

.

Paulo Lôbo leciona que a igualdade de direitos dos filhos, de origem biológica ou

não, é, juntamente com a igualdade de direitos e obrigações entre os cônjuges e a liberdade de

constituição da entidade familiar, uma das mais radicais e importantes modificações havidas

no direito brasileiro pela Constituição Federal de 1988. Resultou no fim do apartheid legal

imposto aos filhos, nas odiosas desigualdades e discriminações. Atualmente não se permite

qualquer resíduo de desigualdade de tratamento aos filhos, independente de sua origem. O

princípio da igualdade dos filhos retrata a mudança de paradigmas na concepção da família,

rompendo o modelo de estruturação da família apenas no casamento, que ocasionava a

repulsa aos filhos ilegítimos e a condição inferiorizada dos filhos adotivos96

.

O princípio da igualdade entre os filhos opera, segundo Ana Carolina Brochado

Teixeira e Renata de Lima Rodrigues, em dois planos distintos. Em um plano perante o

legislador, vedando a criação de normas jurídicas que atribua tratamento distinto aos filhos ou

que tenha conteúdo que revele discriminação. No outro plano, a igualdade jurídica da filiação

obriga que a lei seja aplicada igualmente a todos aqueles que se encontrem na mesma

situação, vedando ao aplicador estabelecer diferenças em razão das origens dos filhos ou

circunstâncias que não estejam contempladas na norma, como ocorre no parentesco

socioafetivo, que produz todos e os mesmos efeitos do parentesco biológico97

.

2.2.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

94

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de família: direito civil. p. 12. 95

CARVALHO. Dimas Messias de. Adoção, guarda e convivência familiar. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey,

2013. p. 3-5. 96

LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 47-48. 97

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das famílias entre a norma e

a realidade. São Paulo: Atlas, 2010. p. 193-194.

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50

Dentre os princípios que norteiam o direito de família, Rodrigo da Cunha Pereira

inclui o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. É também denominado na

doutrina de princípio da plena proteção das crianças e adolescentes, possuindo suas raízes nas

mudanças ocorridas na estrutura da família nos últimos anos, que passou a valer somente

enquanto fosse veiculadora da valorização do sujeito e a dignidade de todos os seus membros.

Por isso, deve preservar e proteger integralmente as pessoas que se encontram em situação de

fragilidade e em processo de amadurecimento e formação da personalidade, possuindo este

princípio estreita relação com os direitos e garantias fundamentais da criança e do

adolescente, que são de prioridade absoluta 98

.

Considerando-se a proteção dos direitos fundamentais na unidade de cada membro

da família, merece atenção e prioridade as pessoas em formação, que necessitam de cuidados

especiais para sua criação, orientação, educação e plena assistência familiar e comunitária, ou

seja, possuem direito ao dever de cuidado.

Na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral

das Nações Unidas no dia 20 de novembro de 1989 e ratificada no Brasil em 1990, consagrou

no art. 3º, I, que:

Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou

privadas de bem-estar social, autoridades administrativas ou órgãos legislativos,

devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.

O princípio do melhor interesse é de difícil determinação, não possuindo uma

definição rígida, devendo ser observado o caso concreto, mas é o corolário da doutrina da

proteção integral, considerando, sobretudo, as necessidades do infante em detrimento dos

interesses dos pais. Atrela-se à estabilidade de condições de vida do menor, de seu ambiente

físico e social e das suas relações afetivas, norteando os responsáveis por sua educação e

orientação. Tratando-se de pessoas em desenvolvimento, possuem condição prioritária e

proteção não apenas da família, mas do Estado e da sociedade99

.

O dever de cuidado dispensado à criança e ao adolescente pela família, sociedade e

Estado, assegura com absoluta prioridade a efetivação de seus direitos fundamentais, entre

98

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 148-149. 99

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. p. 75.

Page 51: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

51

eles os direitos à dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar, conforme positivado

no artigo 227, caput, da Constituição Federal100

.

Assim, os infantes, na condição de sujeitos de direitos e não assujeitados pelos

responsáveis (art. 100, parag. único, da Lei 8.069/1990), a par dos direitos fundamentais

gerais, possuem direitos fundamentais especiais em razão da condição de pessoa em

desenvolvimento, que carece de maior proteção101

, conforme expresso no artigo 3º da Lei

8.069/1990102

.

A relação paterno/filial, assentada na doutrina da proteção integral e no princípio da

paternidade responsável, determina e orienta para o bem do menor, assegurando todos os

cuidados necessários para desenvolver suas potencialidades, para que consiga se estruturar

enquanto pessoa humana, e chegar à condição adulta sob as melhores condições psíquicas,

morais, profissionais e materiais. Os interesses dos maiores estão em segundo plano quando

conflitantes com os interesses dos infantes. Zelar pelos interesses da criança e do adolescente

é garantir o direito de ter uma família, cuidar de sua boa formação, proporcionar uma boa

convivência familiar em ambiente afetivo, enfim, prestar os cuidados necessários para seu

pleno desenvolvimento103

.

O melhor interesse dos filhos nem sempre é o interesse dos pais, especialmente nos

processos de divórcio. A criança não foi casada com o pai ou a com a mãe, portanto não

existe divórcio ou disputas entre eles. Não podem ser utilizados nas disputas como armas,

espiões ou mensageiros, como comumente acontece, mas serem preservados dos rancores e

dos sentimentos de ruptura e abandono, sendo incentivados a conviver com ambos os pais,

biológicos ou socioafetivos, sentindo-se amados e protegidos, mesmo diante do desenlace

conjugal dos genitores104

.

A proteção plena dos menores integrantes do núcleo afirmar, incluindo filhos, netos,

sobrinhos, traduz um intransponível fundamento do atual Direito de Família, a fim de

100

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,

à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 101

VILAS BÔAS, Renata Malta. Direito das Famílias: A figura da madrasta e sua importância para a criança ou

adolescente. Revista Síntese Direito de Família. São Paulo: v. 14, n. 71, abr/maio. p. 125, 2012. 102

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem

prejuízo da proteção integral de que trata a esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as

oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,

em condições de liberdade e de dignidade. 103

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 151-162. 104

ROSA, Conrado Paulino da. Desatando nós e criando laços: os novos desafios da mediação familiar. Belo

Horizonte: Del Rey, 2012. p. 115-116.

Page 52: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

52

facultar-lhes o pleno desenvolvimento psíquico, físico, moral, espiritual e social,

proporcionando-lhes educação, saúde, alimentação, lazer, vestuário, com prioridade absoluta,

em condições de dignidade e liberdade, conforme ressaltam Rodolfo Pamplona Filho e Pablo

Stolze Gagliano.

Isso significa que, em respeito à própria função social desempenhada pela família,

todos os integrantes do núcleo familiar, especialmente os pais e mães, devem

propiciar o acesso aos adequados meios de promoção moral, material e espiritual das

crianças e dos adolescentes viventes em seu meio.105

A expressão “em condições de dignidade e liberdade”, prevista no art. 3º, do Estatuto

da Criança e do Adolescente, e o dever de assegurar-lhes o direito à dignidade e à liberdade,

conferem respeito às suas vontades e autodeterminação. Dignidade humana e autonomia

privada estão intrinsecamente relacionadas, devendo ser permitido aos infantes, que tiverem

capacidade de formular juízos de valor, expressaram suas opiniões e vontades, respeitando

sua autodeterminação. Existindo discernimento os menores possuem autonomia para

formarem suas próprias convicções de maneira responsável, assimilando referencias e

comportamentos nas relações de diálogos, em um processo dinâmico e interativo.

Considerando que na relação dialógica o menor vai assimilar referencias e formar suas

próprias convicções, não pode sofrer nenhuma opressão na sua liberdade de expressão, pois é

na interação que a pessoa constrói de maneira individual sua noção de dignidade106

. Nesse

sentido a lição de Ana Carolina Brochado Teixeira:

Parte-se da premissa de que ninguém nasce “pronto”. A pessoa constrói, no decorrer

da vida, a sua identidade e personalidade. Enfim, ela vai edificando em um processo

de autoconhecimento e da interação social. É a partir do relacionamento com o outro

que ela se molda e, verdadeiramente, constitui-se em todas as suas dimensões. E, por

conseguinte, edifica, também, a sua dignidade de forma genuína, pois, embora,

esteja concebida de forma singular, visto que compõe a humanidade de cada ser, ela

só se forma plenamente através do olhar do outro.107

A proteção à dignidade da criança e do adolescente e a liberdade de expressar sua

vontade, permite a construção pela convivência de relação afetiva com aqueles que considera

como pais, mesmo não existindo consangüinidade, autorizando o reconhecimento jurídico da

paternidade socioafetiva.

105

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Direito de família –

as famílias em perspectiva constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 100-102. v. 6. 106

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das famílias entre a norma e

a realidade. p. 52-53. 107

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. p. 71.

Page 53: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

53

2.2.4 Princípio da afetividade

O princípio da afetividade não se encontra expresso, mas está implícito no texto

constitucional como elemento agregador e inspirador da família, conferindo comunhão de

vidas e estabilidade nas relações afetivas.

A família ao longo da história sempre exerceu funções de instituição econômica,

religiosa, política e de procriação. Os casamentos eram selados com objetivos econômicos e

políticos, desconsiderando o afeto. Os noivos muita das vezes eram escolhidos pelos pais para

selarem interesses econômicos ou políticos.

No Brasil, mesmo em passado recente (século XIX e meados do século XX), a

família era patriarcal, numerosa, econômica e constituía-se formalmente pelo casamento. O

homem era o chefe, o pater famílias que acumulava os poderes, enquanto a mulher cuidava

dos afazeres domésticos e criação dos filhos, dependendo economicamente do marido.

A partir de meados do século XX a família começou a sofrer profundas modificações

com o povoamento das cidades, inserção da mulher do mercado de trabalho, controle da

natalidade, direitos conferidos pelo Estatuto da Mulher Casada, acolhimento do divórcio na

legislação brasileira e modificação do regime legal de bens. O regime de bens legal deixou de

ser da comunhão universal, que importava unicidade do patrimônio do casal, demonstrando o

objetivo econômico do matrimônio, passando a ser o de comunhão parcial, que exige esforço

comum, ainda que presumido, para comunicabilidade dos bens.

A legislação expressa, entretanto, não tratava de muitas situações existenciais

afetivas, surgindo uma necessidade crescente para reconhecimento das ligações afetivas na

família, já que os elos matrimoniais, biológicos e registrais não atendiam as situações de fato

que surgiam. Os juristas passaram então a debater sobre a necessidade, de algum modo, de

valorar a afetividade.108

A Constituição Federal de 1988 finalmente acolheu as transformações

sociais e extinguiu a família patriarcal, conferindo direitos e deveres iguais ao homem e à

mulher, igualou os filhos e reconheceu outras formas de família.

Diante desta nova estrutura familiar os casais deixaram de ficar presos ao casamento

indissolúvel, a mulher não possui mais dependência econômica do marido e os filhos podem

ser havidos por outra origem além da biológica ou casamento. As antigas funções da família

desapareceram ou passaram a desempenhar um papel secundário. Assim, a família atual

deixou de ser sustentada em razões econômicas, de sobrevivência da mulher ou legitimidade

108

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. p. 2-3.

Page 54: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

54

dos filhos, passando o vínculo a ser preponderantemente por motivações afetivas e

solidariedade mútua. A própria Constituição Federal desinstitucionalizou a família ao

priorizar a realização da personalidade na assistência a cada um de seus membros e não na

entidade familiar. Assim, a família só faz sentido se é um veículo que promove a dignidade de

seus membros, numa estrutura vinculada e mantida majoritariamente por elos afetivos.

Conclui-se, portanto, que o afeto familiar, estável e ostensivo, é o elemento essencial de todo

e qualquer núcleo familiar, conjugal ou parental, a ser valorado pelo direito quando tratar-se

de uma família de fato.109

Para Rolf Madaleno, o afeto é a mola propulsora dos laços familiares para dar

sentido e dignidade à existência humana. Nos vínculos de filiação e parentesco a afetividade

deve estar sempre presente, pois os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames

afetivos, ao contrário, a afetividade pode sobrepor-se aos laços consanguíneos.110

Daniella Velloso Pereira e Maria Flávia Cardoso Máximo ressaltam que já não se

admite o Direito de Família sem o afeto. Se antes o vínculo biológico possuía maior valor,

atualmente o afeto permeou as divisas do direito e rompeu antigos paradigmas, alicerçando o

conceito de família.111

A Constituição Federal elenca imenso rol de direitos individuais e sociais, que o

estado deve cumprir, para assegurar a dignidade de todos. Mesmo a Constituição não

adotando a palavra afeto no seu texto, acolheu o princípio da afetividade no âmbito de sua

proteção à família eudemonista e igualitária em diversos dispositivos no texto, conforme

lembra Maria Berenice Dias. Ressalta-se, ainda, que o afeto não é fruto do sangue, pois os

laços afetivos e de solidariedade derivam da convivência familiar.112

O primeiro jurista a vislumbrar no Brasil a importância da afetividade, como valor

jurídico na família, foi o professor João Baptista Villela, ainda na década de 70, quando

publicou o artigo “a desbiologização da paternidade”113

e que se tornou referência aos

estudiosos do Direito de Família.

Rodrigo da Cunha Pereira ressalta que em outros trabalhos João Baptista Villela

consolidou as noções de afetividade, incluindo a frase de que “o amor está para o Direito de

109

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 210-214. 110

MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4ª ed. p. 95. 111

PEREIRA, Daniella Velloso; MÁXIMO, Maria Flávia Cardoso. Maternidade e paternidade socioafetivas. In:

NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. (Coord.). Paternidade e alimentos. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p.

121-122. 112

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8ª ed. p. 70-71. 113

VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UFMG.

Belo Horizonte, nº 21, 1979.

Page 55: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

55

Família assim como a vontade está para o Direito das Obrigações”. Após a Constituição

Federal de 1988 vários autores desenvolveram a teoria do professor mineiro, mas foi Paulo

Lôbo quem, em 1999, deu ao afeto o status de princípio jurídico pela primeira vez. O

princípio da afetividade é resultante das mudanças pragmáticas no ordenamento jurídico da

família, revalorizando e redimensionando os princípios como uma fonte do direito realmente

eficaz e de aplicação prática114

.

Luiz Edson Fachin, todavia, ao escrever sobre a relação biológica e afetiva em 1996,

já ressaltava a possibilidade de reconhecer a paternidade na visibilidade das relações

paterno/filial, construindo o liame na convivência e afetividade, sem que o pai tenha

contribuído na geração genética da pessoa. A paternidade se faz. A família deixa de ser um

grupo de pessoas ligadas pelo vínculo de sangue, como afirmava Clóvis Beviláqua diante dos

valores do século XIX, para se tornar um “grupo de companheirismo e lugar de afetividade”,

como ressaltava João Baptista Villela115

.

Paulo Lôbo conceitua o princípio da afetividade como aquele que fundamenta o

Direito de Família na estabilidade das relações afetivas e na comunhão de vida, podendo

prevalecer sobre as questões de caráter patrimonial ou de caráter biológico. Ressalta que o

princípio é um salto à frente da pessoa humana nas relações familiares, fazendo despontar a

igualdade entre irmãos, pois a verdade biológica nem sempre é a adequada para fundamentar

a filiação, bem como o respeito aos direitos fundamentais. O princípio da afetividade está

implícito na Constituição na igualdade de todos os filhos independente da origem (art. 227, §

6º); na adoção como escolha afetiva e alçada integralmente ao plano de igualdade de direitos

(art. 227, §§ 5º e 6º); na comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes como

família constitucionalmente protegida, incluindo os adotivos; e no direito à convivência

familiar ( mesmo sem origem biológica) assegurado com prioridade absoluta à criança e ao

adolescente116

.

O Código Civil de 2002 também faz diversas referências distinguindo paternidade e

genética, privilegiando a filiação socioafetiva. O art. 1.593 reconhece o parentesco resultante

de consanguinidade ou outra origem; o art. 1.596 iguala, adotando o princípio constitucional,

os filhos havidos por consanguinidade ou por adoção; o art. 1.597, V, presume concebidos na

constância do casamento os filhos havidos por reprodução assistida heteróloga; o art. 1.605,

II, acolhe a posse do estado de filiação como presunção para provar a filiação; o art. 1.614

114

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 21-32. 115

FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. p. 21-23. 116

LÔBO, Paulo. Famílias. p. 47-48.

Page 56: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

56

admite ao filho biológico maior rejeitar o reconhecimento e, ao menor, impugnar ao atingir a

maioridade117

.

A afetividade como vínculo agregador da família se faz presente ainda no atual

Código Civil ao dispor, no artigo 1.511, que o casamento exige plena comunhão de vida,

tanto que cessada a convivência, mesmo que mediante apenas separação de fato, termina o

regime de bens (art. 1.683). A afetividade prevalece ainda sobre o vínculo formal do

casamento ao ser reconhecida a união estável de pessoas casadas separadas de fato (art. 1.723,

§ 3º).

A Lei Maria da Penha também acolhe o princípio da afetividade ao compreender, no

âmbito da família, a comunidade que se forma por pessoas que são ou se consideram

aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (art. 5º, II).

O Estatuto da Criança e do Adolescente também acolheu expressamente o valor

jurídico da afetividade na recente Lei 12.010/2009, ao acrescer o parágrafo único ao artigo 25

e dispor que compreende-se por família extensa os parentes com os quais a criança ou

adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

O princípio da afetividade, portanto, apesar de não expresso, também se encontra

implícito na legislação infraconstitucional, como norma generalíssima a orientar o Direito de

Família.

Necessário esclarecer, em razão dos equívocos que vem sendo cometidos, a distinção

da afetividade, como valor jurídico, do afeto, como estado psicológico, como sentimento. Da

mesma forma que no Direito das Obrigações a vontade como valor jurídico é a

conscientemente externada, objetiva, no Direito de Família também não se confundem o

afeto, como sentimento, com a afetividade externada por comportamentos, por condutas

objetivas.

A afeição, o amor, os sentimentos como estado psíquico são inapreensíveis pelo

direito. O afeto é conduta de foro íntimo, consiste em um elemento anímico ou psicológico, é

um fator metajurídico que não pode ser regulado pelo direito, apenas pelas normas morais. O

afeto, como a vontade, só se torna juridicamente relevante quando externado por condutas

objetivas, por comportamentos dos membros de uma entidade familiar demonstradas pela

convivência, demonstrando a afetividade. O princípio da afetividade funciona assim como um

117

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade no direito de família: a persistente trajetória de um conceito

fundamental. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister. Belo Horizonte:

IBDFAM, n. 05, ago/set. p. 7-14-15, 2008.

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57

vetor que reestrutura a tutela jurídica das famílias, ocupando mais dos laços afetivos

exteriorizados para formação do núcleo familiar do que com os laços de sangue ou o

formalismo na sua constituição. A teoria do afeto como valor jurídico é externalizada pelas

condutas objetivas de cuidados, solidariedade, exercício dos deveres de criar, educar e assistir,

demonstradas na convivência familiar118

.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues demonstram o afeto

como valor jurídico nas manifestações exteriores, diferenciando-o do amor como elemento

anímico ou psicológico, que não pode ser alcançado pelas normas das ciências jurídicas:

Não é de (des)amor que se trata o afeto como fato jurídico, mas sim aquele que,

quando exteriorizado na forma de comportamentos típicos de uma legítima

convivência familiar, é capaz de gerar eficácia jurídica. Exemplo disso, a posse de

estado de filho, geradora do parentesco socioafetivo entre pais e filhos.

Sendo assim, a nosso sentir, o Direito não é capaz de “enxergar” a ausência de afeto,

mas é possível que, quando presente a afetividade entre certos indivíduos,

condicionante de seu comportamento, caracterizando-o como tipicamente familiar,

aí, sim, o Direito reconheça um fato concreto, um acontecimento ao qual ele pode

outorgar qualificação e disciplina jurídica: “um ponto de confluência entre a norma

e a transformação da realidade: o modo pelo qual o ordenamento se concretiza”.

Por isso, não podemos falar em direito ou dever de afeto. Mas devemos valorizar as

manifestações exteriores – condutas e comportamentos – que traduzam a existência

do afeto em determinadas relações119

.

O princípio da afetividade, portanto, resulta da convivência familiar, de atos

exteriorizados, de condutas objetivas demonstrando o afeto familiar de seus membros na

constituição e manutenção das famílias, capaz de gerar vínculos jurídicos como a paternidade

socioafetiva.

A discussão sobre a possibilidade do acolhimento jurídico do princípio da

afetividade, inclusive diferenciando as expressões afeto, afetividade e sociafetividade, se fará

com maior profundidade no subtítulo 4.2, ao tratar dos efeitos jurídicos no reconhecimento da

filiação socioafetiva. Nos efeitos jurídicos da paternidade socioafetiva serão demonstrados os

pressupostos que autorizam o reconhecimento da afetividade jurídica ou objetiva como valor

jurídico, bem como sua dupla face, a que importa em dever jurídico por já reconhecida e a que

gera vínculo familiar, dependendo de reconhecimento jurídico da situação existencial.

118

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das famílias entre a norma e

a realidade. p. 194-195. 119

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma

e a Realidade. p. 196.

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58

3. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Os vínculos afetivos e de solidariedade entre companheiros na união estável, na

união homoafetiva e entre pais e filhos socioafetivos resultam da convivência familiar. É na

convivência familiar que os laços vão se fortificando, criando uma relação de solidariedade,

de proteção, de cuidados mútuos, de confiança, enfim, de afetividade. A convivência, o afeto

demonstrado nos cuidados e proteção, ostensivamente demonstrados, faz surgir a posse do

estado de filho em face daquele que cuida de outra pessoa como se filho seu fosse. A filiação

socioafetiva está, portanto, umbilicalmente ligada à convivência familiar daquele que age

como pai e daquele que age como filho, possibilitando o reconhecimento jurídico do elo

construído.

3.1 Filiação socioafetiva e posse do estado de filho

A família deixou de ser núcleo patrimonial, político e religioso para transformar-se

em locus de realização do ser humano, protegendo a pessoa, que passou a ser o centro do

discurso jurídico em detrimento da instituição casamento ou do patrimônio familiar. E a mola

propulsora do bem-querer nas relações familiares é o afeto, convertendo-se a afetividade em

um axioma a permear as relações entre os parentes, em um fio condutor do respeito, cuidado,

proteção e solidariedade para promover a realização pessoal de cada um de seus membros.

Atualmente não é possível pensar na família sem a presença do afeto, que impulsiona as

relações familiares desenvolvidas nos cuidados, carinho, proteção e respeito, permitindo o ser

humano tornar-se uma pessoa mais solidária e melhor contribuir para uma sociedade mais

justa e humana. A família verdadeira é uma comunhão de afetos120

.

O Superior Tribunal de Justiça, em voto do Min. Luis Felipe Salomão, já reconheceu

que o afeto é que fundamenta o Direito de Família, constando no voto que:

O que deve o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que

“fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na

comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou

biológico” 121

.

120

ROSA, Conrado Paulino da. I Famíly : um novo conceito de família? São Paulo: Saraiva, 2013. p. 102-107. 121

STJ. REsp. n. 945. 283/RN. Rel. Min. Luiz Felipe Salomão. J. 15.09.2009.

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59

Sergio Resende de Barros lembra, na história do constitucionalismo, o surgimento de

uma terceira geração de direitos humanos, os “direitos de solidariedade”, idéia lançada em

1979 por Konel Vasak, então diretor da UNESCO, durante uma aula em Estrasburgo, na

França, que se juntara aos “direitos individuais” de primeira geração e os “direitos sociais” de

segunda geração. Para conferir efetividade aos direitos humanos, as gerações, apesar de

discernidas, não se manifestam em sucessão, mas simultaneamente, interagindo entre si,

conforme exige a necessidade histórica. As gerações se tornaram dimensões coordenadas

umas com as outras, sendo a primeira, “dimensão singular”, direito individual de cada um; a

segunda, “dimensão social categorial”, o direito de certas categorias ou partes da sociedade; e

a terceira, “dimensão social difusa”, o direito genérico de todos. Em função da articulação

dessas três dimensões é que a Constituição Federal tutela o afeto e os seus efeitos no Direito

de Família, conforme ressalta o autor:

No âmbito da primeira dimensão, o afeto gera direitos individuais. Nessa dimensão,

o primeiro direito individual relativo ao afeto tem por objeto o próprio afeto. É o

direito ao afeto. O afeto é primariamente uma relação entre indivíduos que se

afeiçoam. Logo, a Constituição o protege como direito individual: direito humano de

qualquer indivíduo. Nessa dimensão individual, o direito ao afeto é a liberdade de

afeiçoar-se um a outro. É uma liberdade constitucional. Tal como a liberdade de

contrato, a liberdade de afeto é um direito individual implícito na Constituição, cujo

§ 2º do art. 5º admite direitos que, mesmo não declarados, decorram do regime e

princípios por ela adotados. No entanto, exatamente por ser uma relação entre os

indivíduos, o afeto se desenvolve e evolui como relação social. Progride

socialmente. Obriga crescentemente. Vincula. Gera responsabilidade entre os

sujeitos. Daí, por que o direito o protege não apenas como fato individual, mas,

também como fato social. O afeto é fator de outros fatos que o direito protege. A

afeição é um fato social jurígeno, que gera direitos e obrigações acerca de vários

bens e valores, como alimentos, moradia, saúde, educação, etc122

.

A pessoa possui plena liberdade individual de afeiçoar-se a outro ou não, mas

afeiçoando e exteriorizando o afeto, criando relações familiares, gera responsabilidade, como

ocorre na união estável, com expressa previsão legal, e obriga em razão do princípio da

solidariedade, do compromisso com a dignidade da pessoa humana. Não há como dissociar a

liberdade individual em desenvolver uma relação afetiva, que se constrói culturalmente na

convivência familiar, com a responsabilidade de seus efeitos.

Inequívoco que o afeto em uma relação paterno/filial não biológica, criando uma

filiação/paternidade socioafetiva, gera responsabilidades, direitos e obrigações. Obriga e

122

BARROS, Sérgio Resende de. A tutela constitucional do afeto. In: Família e dignidade humana. Anais do V

Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006. p. 881/885.

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60

vincula os indivíduos na relação. Também se desenvolve e evolui socialmente, tornando-se

um fato social jurídico configurado na posse do estado de filho.

Não pode ser ignorado que parte da doutrina desconsidera o afeto como princípio

jurídico, mesmo reconhecendo sua importância para a compreensão da pessoa humana e

situação relevante para o Direito de Família. Como será mais aprofundado no subtítulo 4.2,

fundamenta-se que afeto é sentimento e a afetividade tem características de espontaneidade,

portanto é desprovida de exigibilidade jurídica por tratar-se de relações que se apresentam

voluntariamente. Entre os doutrinadores que não reconhecem a força normativa no afeto, por

não considerá-lo princípio jurídico, destacam-se Cristiano Chaves de Faria e Nelson

Rosenvald. Afirmam que “a afetividade permeia as relações familiares, permite decisões e

providências neles baseadas”, entretanto, “não se pode, na esfera técnica do Direito, impor a

uma pessoa dedicar afeto (amor, em última análise) a outra”. Concluem os autores que:

Trazendo a lição dos constitucionalistas para o campo das famílias, infere-se que o

afeto não é princípio jurídico por não ter obrigatoriedade, vinculatividade. Ninguém

é obrigado a gostar, a nutrir afeto por outra pessoa, mesmo que seja de sua própria

família. Daí a fácil e serena conclusão de que o afeto não tem força vinculante,

normativa. O afeto é relevante para as relações de família, mas não é vinculante e

obrigatório. Cuida-se, portanto, de um postulado - e não de um principio

fundamental (o que lhe daria força normativa) 123

.

Evidentemente que ninguém é obrigado a afeiçoar, a ter amor por outra pessoa,

tratando-se de questão inapreensível pelo direito, por sua subjetividade, e liberdade

individual, consistindo em elemento psíquico, em fator metajurídico. Entretanto, afeiçoando e

fazendo surgir uma relação afetiva, externada por elementos objetivos apreensíveis pelo

direito, por comportamentos envolvendo relações familiares comprovadas pela convivência e

formando um núcleo familiar, a afetividade assume valor jurídico regulada pelo Direito. A

espontaneidade, apresentada voluntariamente, ao evoluir em uma relação entre as pessoas,

assume caráter de responsabilidade, surgindo o vínculo socioafetivo, obrigando e vinculando.

O afeto, diante de uma legitima convivência familiar, demonstrada objetivamente,

gera eficácia jurídica e produz efeitos para reconhecimento de entidades familiares e relação

paterno/filial, obrigando em razão do princípio da afetividade, da solidariedade e do

compromisso com o respeito e preservação da dignidade da pessoa humana.

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a diferenciação do amor, por

sua subjetividade e impossibilidade de materialização, do dever de cuidado, surgido em razão

123

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 74.

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61

de uma relação jurídica de paternidade em face de consanguinidade ou outra origem. Não se

discute a obrigação de amar, mas o dever de cuidar. Reconheceu-se, no julgamento do

Recurso Especial nº 1.159.242-SP, o cuidado como valor jurídico, distinguindo o amor, do

dever de cuidado. Enquanto amar é faculdade, cuidar é dever dos pais, que exercendo o dever

de liberdade optaram ou assumiram os riscos de terem filhos, biológicos ou por outra origem.

Parte do voto da Relatora, Ministra Nancy Andrighi, merece transcrição pela excelência:

Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo,

a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente

percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente;

ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do

intangível – amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou

parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.

Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana

constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do

dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência

(...)”.

Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande

empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade

de se obrigar a amar.

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar,

que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem

filhos.

O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se,

pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo

meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.

O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do

amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que

exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não

presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento

dado aos demais filhos – quando existirem -; entre outras fórmulas possíveis que

serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.

Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.

A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica, por certo, a

ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o non facere

que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação,

educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal124

.

O Superior Tribunal de Justiça manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São

Paulo, que reconheceu o abandono afetivo por parte do pai, apesar de efetuar os pagamentos

de pensão alimentícia à filha, e condenou o genitor a indenizar por dano moral. O Tribunal

Superior deu provimento parcial ao Recurso Especial apenas para reduzir o valor da

indenização. Reconheceu a responsabilidade dos genitores biológicos ou socioafetivos, a

partir da escolha ou de assumirem o risco de serem pais, a cuidarem da prole. O cuidado

124

STJ. REsp n. 1.159.242 – SP. Terceira Turma. Relª. Min. Nancy Andrighi. J. 24.04.2012.

Page 62: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

62

inclui o dever de convivência, possibilitando uma adequada formação psicológica dos filhos,

sem sentimentos de rejeição, abandono e descaso, que podem comprometer o

desenvolvimento emocional, tornando-os pessoas vulneráveis, traumatizadas ou de difícil

relacionamento.

O precedente judicial difere e afasta de vez o entendimento, especialmente de alguns

constitucionalistas, de que a afetividade não é princípio jurídico por não ter obrigatoriedade.

Confunde-se afetividade, como valor jurídico, exteriorizada por condutas objetivas de criar e

cuidar de filho biologicamente alheio como seu, com amor, inapreensível pelo Direito. A

convivência afetiva gera a posse do estado de filho e vincula juridicamente, concedendo ao

filho o direito subjetivo ao estado de filiação socioafetiva, com os mesmos direitos e deveres

da filiação biológica, sem qualquer discriminação.

A filiação é o “conjunto de relações, determinadas pela paternidade e maternidade,

vinculando os pais e os filhos”,125

logo, a relação filiação/paternidade/maternidade é

multifacetária, podendo ser vista sob três óticas ou perspectivas. A filiação propriamente dita

é a vista sob a perspectiva do filho, a paternidade é a relação vista sob a ótica do pai e a

maternidade é dada sob a perspectiva da mãe.126

Assim, nas relações socioafetivas utiliza-se

as expressões filiação socioafetiva sob a perspectiva do filho, paternidade socioafetiva sob a

perspectiva do pai e maternidade socioafetiva sob a visão da mãe.

A legislação não reconhece expressamente a filiação socioafetiva fundada na “posse

de estado de filho”, ou seja, quando existe tratamento recíproco como pai e filho entre os

envolvidos, o filho afetivo utiliza o nome do pai e é reconhecido nesta situação na sociedade.

Entretanto, é a que deve prevalecer diante da evolução e nova concepção do Direito de

Família, que dá maior valor aos laços afetivos, especialmente para a solução dos conflitos de

paternidade.127

Mesmo não admitindo o afeto como princípio jurídico, Cristiano Chaves de Faria e

Nelson Rosenvald o reconhece como “base fundante” e a sua característica “como o grande

contingente que recebe todos os mananciais do Direito das Famílias”, devendo, portanto, ser o

fundamento jurídico de soluções para as situações existenciais concretas para os vários

conflitos familiares. Apresentam dois exemplos na legislação, mesmo não tratando

diretamente de filiação, que demonstram a importância do afeto nas relações familiares, ao

125

ZANNONI, Eduardo A. Derecho civil: derecho de familia. 4ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2002. p. 313. 126

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p. 637. 127

BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade, posse de estado de filho, paternidade

socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 54.

Page 63: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

63

permitir o enteado adotar o nome do padrasto/madrasta e o direito de visitas aos avós.

Discorrem os autores:

Exemplificando, são oportunas duas lembranças. Primeiramente, a Lei nº 11.924/09,

apelidada de Lei Clodovil, em homenagem ao falecido Deputado que a idealizou,

permite „o acréscimo, por decisão judicial, do sobrenome do padrasto ou da

madrasta pelo enteado ou enteada‟, exatamente com base na existência de um laço

afetivo, estabelecido entre eles ao longo do tempo de convivência. Outrossim, a Lei

nº 12.398/11, reconhecendo o vínculo afetivo que se forma entre avós e netos,

acrescenta um parágrafo único ao art. 1.589 do Código de 2002 e reconhece o

„direito de visitas dos avós‟, paternos e maternos, respeitado o melhor interesse da

criança e do adolescente128

.

Os laços de afetividade devem, portanto, ser a “base fundante” para solucionar as

questões existenciais envolvendo as relações entre as pessoas sem vínculo consanguíneo que

convivem, consideram e comportam como pais e filhos.

A filiação biológica ou natural é aquela em que se fundem o sangue do pai e o da

mãe, estabelecendo-se a filiação pela consanguinidade. Assim, pai é o que, através da cópula

ou fornecimento de sêmen na reprodução medicamente assistida homóloga, fertiliza a mãe; e

mãe é aquela mulher que carrega o filho no ventre, gerado que foi de um óvulo seu, e o coloca

no mundo129

, ou, ainda, que planejou a filiação e forneceu o óvulo para ser gerado em uma

barriga substituta.

A filiação não biológica, denominada de civil, é a que não se estabelece pelos laços

de sangue, admitindo-se o parentesco por “outra origem”, conforme expressão utilizada no

artigo 1.593 do Código Civil de 2002, ou socioafetiva em sentido amplo. Trata-se de norma

aberta, sem especificar em que consistem as filiações por “outra origem”.

A filiação socioafetiva em sentido amplo, agasalhada pela expressão outra origem, é,

portanto, a filiação não biológica, a filiação acolhida na afetividade, os “filhos do coração”,

que pode ocorrer mediante adoção, por reprodução medicamente assistida heteróloga, na

chamada “adoção à brasileira” e pela socioafetiva em sentido estrito, surgida em razão da

convivência familiar e cuidados paternos.

A adoção é regulada expressamente pela legislação no Estatuto da Criança e do

Adolescente, que também se aplica no que couber aos maiores dezoito anos (art. 1.619, CC).

A reprodução medicamente assistida heteróloga também é regulada na legislação, ao

ser presumido como filhos, havidos na constância do casamento, os havidos mediante

128

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Famílias. p.72-73. 129

QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicos de inseminação artificial. p. 15.

Page 64: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

64

inseminação utilizando material genético de terceiros, desde que consentida pelo parceiro (art.

1.597, V, CC).

Diversas disposições legais reconhecem, portanto, a importância da afetividade e da

convivência nas relações de família, notadamente na relação entre pais e filhos.

A “adoção a brasileira” não possui previsão legal, pois é uma burla ao procedimento

regular de adoção. Ocorre quando uma pessoa ou um casal registra ou reconhece filho alheio

como próprio. Apesar de previsto na lei penal como crime dar parto alheio como próprio ou

registrar como seu filho de outrem (art. 242, CP), no Direito de Família a doutrina e a

jurisprudência vem considerando válido o reconhecimento de filho não biológico nesta forma

irregular. Assim, veda-se ao pai ou a mãe que praticou o reconhecimento, consciente da

falsidade, posteriormente retificar a filiação, prevalecendo o melhor interesse da criança e do

adolescente e privilegiando a convivência familiar e o afeto.

A filiação socioafetiva em sentido estrito distingue-se da adoção e da “adoção à

brasileira”, podendo ser considerada como uma “adoção de fato”. Na adoção o vínculo afetivo

constitui-se mediante uma sentença, depois de atendidos os requisitos legais em procedimento

judicial. Na “adoção à brasileira” o vínculo constitui-se com o registro irregular, que

convalesce em razão do melhor interesse do menor. Na filiação socioafetiva o vínculo se

constitui pela convivência familiar, pelos cuidados paternos e maternos, solidificando os laços

afetivos e fazendo surgir uma relação pai/filho construída culturalmente.

A filiação socioafetiva, consistente na posse de estado de filho, também não possui

previsão expressa, mas tem fundamento na nova estrutura da família brasileira, que considera

como elemento agregador a afetividade. A verdade não é mais considerada apenas com

fundamento nos laços de sangue, sendo fundamental a integração entre pais e filhos pelo

sentimento de afeto130

. A filiação real, ou verdadeira, deixa de ser biológica e passa a ser

cultural, revelando-se numa verdade afetiva construída numa relação paterno/filial

consolidada nos laços de afeto, que muitas das vezes não existe na filiação biológica.

Sustenta-se no desejo de ser pai ou de ser mãe, de conceber um filho no coração, fruto dos

sentimentos cultivados durante a convivência e estabelecendo espontaneamente os vínculos

paterno-filial131

.

O avanço da medicina genética e o domínio do exame consistente na leitura das

impressões digitais do DNA, ao contrário de solucionar as investigações de paternidade como

130

DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito de filiação. São Paulo: Dialética, 1997. p. 19. 131

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4ª ed. p. 471.

Page 65: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

65

a princípio se imaginava, fez surgir questionamentos sobre o valor do vínculo biológico para

configurar a verdadeira relação paterno-filial. O melhor interesse do filho e a necessidade de

existência de afeto e cuidados nas relações familiares demonstraram que a paternidade

biológica não é essencial, sendo valorizada cada vez mais a relação socioafetiva, importando

na “desbiologização da paternidade”132

.

A filiação socioafetiva ocorre, como ressaltado, quando se demonstra a posse do

estado de filho, ou seja, quando a aparência faz com que todos acreditem existir uma situação

que juridicamente não é verdadeira. Na posse de estado de filho e posse de estado de pai

existe uma aparência paterno/filial, uma reciprocidade afetiva entre pai e filho, que

juridicamente não são parentes. O direito, entretanto, não pode desprezar este fato, esta

paternidade que se constrói na convivência e nos vínculos afetivos recíprocos, que se

estabelece no ato de vontade e sedimenta-se no terreno da afetividade. A filiação socioafetiva

assenta-se no reconhecimento da posse do estado de filho, apresentando a doutrina três

aspectos para sua configuração: a) tratactus, quando existe tratamento recíproco entre pai e

filho e entre os parentes, sendo criado e educado como filho; b) nominatio, quando utiliza o

nome dos pais e se apresenta como filho; e c) reputatio, quando é conhecido pela opinião

pública, no meio onde vive, como filho de seus pais afetivos133

.

A posse do estado de filiação abriga os chamados “filhos de criação”, quando o

genitor, apesar da ausência de vínculo biológico e registro, propaga e comporta-se como pai,

enquanto o filho também se comporta como descendente, restando presente o vínculo da

afetividade, acolhendo o ditado popular de que “pai é quem cria”.

Paulo Lôbo ressalta que para se projetar no direito, especialmente quanto à filiação, a

socioafetividade exige a presença dos seguintes elementos: a) pessoas que se comportam

como pai e mãe e outra pessoa que se comporta como filho; b) convivência familiar; c)

estabilidade do relacionamento; d) afetividade134

.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues constatam que hoje

existe uma dictomia entre a filiação biológica e a socioafetividade, um novo valor jurídico

advindo da posse do estado de filho. Existe um conflito entre a verdade genética e a

convivência que criou laços de afetividade e deixou marcas na construção da personalidade do

filho. Ressaltam que o que garante a estruturação de alguém como sujeito, para que se possa

132

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de família: Direito civil. p. 292. 133

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 8ª ed. p. 371. 134

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade no direito de família: a persistente trajetória de um conceito

fundamental. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. p. 6.

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66

firmar como pessoa, é o exercício das funções maternas e paternas em sua vida,

independentemente de laços consanguíneos. Acrescentam quanto à essência da

socioafetividade que:

O que constitui a essência da socioafetividade é o exercício fático da autoridade

parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é genitor biológico, desincumbir-se de

praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores, com o escopo de

edificar sua personalidade independentemente de vínculos consanguíneos que geram

tal obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade

ou maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de

exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental,

externado sob a roupagem de condutas objetivas como criar, educar e assistir a

prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da parentalidade135

.

O vínculo na filiação socioafetiva surge, portanto, na convivência familiar, na

afeição demonstrada, nos cuidados paterno/filial, no comportamento nas relações familiares

estáveis, condutas que se exteriorizam no exercício do poder parental de uma pessoa para com

a outra que não é seu filho biológico. Permite-se assim o acolhimento jurídico dessa relação e

o direito subjetivo do filho afetivo ao reconhecimento do estado de filiação. Não se pode

mais, por vedação constitucional, reconhecer a filiação exclusivamente pela origem biológica

ou oriunda apenas do casamento dos pais, o que importaria em flagrante discriminação. A

filiação socioafetiva é construída culturalmente na convivência familiar, direito fundamental

da criança, do adolescente e do jovem adulto, para depois ser reconhecida juridicamente

produzindo todos os efeitos jurídicos.

3.2 Convivência familiar

A socioafetividade somente se configura na convivência familiar, construindo-se

culturalmente. È na relação diária, no convívio permanente e estável que a afetividade nasce,

frutifica e solidifica. A convivência familiar é um dos direitos fundamentais do ser humano,

reconhecido expressamente na Constituição de 1988, especialmente na filiação/paternidade

socioafetiva em que os laços já estão firmados.

Geraldo Claret de Arantes ressalta que entre os direitos mais importantes

recepcionados pela Constituição do Brasil, artigo 227, inclui “o direito da convivência

familiar, originário da doutrina da proteção integral construída sob a égide da organização das

135

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias entre a Norma

e a Realidade. P. 173 e 194.

Page 67: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

67

Nações Unidas”. A doutrina da proteção integral impõe aos Estados-Partes o dever de zelar

para que as crianças não sejam separadas dos pais contra a vontade dos mesmos. Na prática,

todavia, em especial nas separações judiciais, o genitor que não possui a guarda via de regra

acaba tolhido do direito à convivência familiar, como se, por analogia, tivesse ocorrido a

perda ou a suspensão do poder familiar, sem que o ascendente tivesse praticado qualquer ato

em relação ao filho que autorizasse medida tão grave e violenta136

.

O genitor que não possui a guarda detém o poder familiar em conjunto com o

guardião, mantendo seus direitos e deveres paternos, em especial o de conviver com o filho,

conferindo-se a este o direito fundamental de convivência familiar. O Estatuto da Criança e do

Adolescente, ao dispor sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, assegura com

absoluta prioridade a efetivação dos seus direitos fundamentais, entre eles o direito à

convivência familiar e comunitária, conforme previsto nas Disposições Preliminares, no

artigo 4º, caput, parte final.

Ao tratar no Título II, Dos Direitos Fundamentais, a Lei 8.069/1990 ressalta no

artigo 16, V, como um dos aspectos do direito à liberdade “participar da vida familiar e

comunitária, sem discriminação”. Ainda no Título II, O Estatuto da Criança e do Adolescente

trata no Capítulo III, especificamente Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária,

dispondo no artigo 19, caput 137

, sobre o direito do menor à convivência familiar e ser criado

na família natural ou substituta.

É na convivência com a família natural, extensa ou socioafetiva que o menor

receberá os cuidados necessários para sua sobrevivência, orientação e proteção,

proporcionando referencial, equilíbrio e segurança para seu desenvolvimento físico, psíquico,

social e moral, tratando-se de um direito fundamental à sobrevivência digna. É na família que

o infante recebe afeto, carinho, se sente protegido, amparado, desenvolvendo-se como cidadão

responsável.

Não há como, portanto, desconhecer a importância da convivência familiar nas

relações paterno/filiais e a necessidade de sua proteção para reconhecer juridicamente as

relações afetivas nela consolidadas.

Oportuno abrir um parêntesis para destacar em qualquer forma de filiação, biológica,

adotiva ou socioafetiva, a importância de ser mantido o direito de convivência dos filhos com

136

ARANTES, Geraldo Claret de. A criança e o direito à convivência familiar. Revista Síntese Direito de

Família. São Paulo, v. 12, n. 63, dez/jan. p. 65, 2011. 137 Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,

excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da

presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Page 68: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

68

os genitores que não mais vivem sob o mesmo teto, ou nunca viveram, pois é essencial para a

boa formação dos filhos.

Uma das questões que demanda aprofundada análise é sobre o direito à convivência

familiar e a injustificável confusão que se faz com o direito de visitas. A legislação brasileira

é econômica ao tratar da convivência entre os pais (e demais familiares) que não possuem a

guarda dos filhos, preferindo usar a expressão visitas. Deisemara Turatti Longoski lembra que

o Código Civil de 1916 não se referia ao direito de visitas, somente assegurado pelo Decreto-

Lei n. 9.701, de 03 de setembro de 1946, que, ao cuidar da guarda dos filhos no desquite

litigioso, assegurou ao não guardião o direito de visita138

. Posteriormente a Lei 6.515, de 26

de dezembro de 1977 (Lei do Divórcio), no artigo 15, assegurou aos pais que não possuem a

guarda dos filhos que “poderão visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo fixar o juiz,

bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.

O Código Civil de 2002, ao tratar da proteção dos filhos na dissolução da sociedade e

do vínculo conjugal, garante ao genitor que não possui a guarda, o direito de visitas e

fiscalização na criação da prole. Dispõe o artigo 1.589, caput, que o pai ou a mãe “poderá

visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge ou for

fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.

Finalmente a Lei 11.112, de 13 de maio de 2005, acrescentou o § 2º ao artigo 1.121

do Código de Processo Civil139

, no capítulo que trata da separação consensual, esclarecendo

que o direito de visitas consiste em encontros periódicos e repartição de férias e dias festivos.

A interpretação isolada dos artigos referidos conduz a uma conclusão equivocada de

que o direito de visitas é uma prerrogativa do genitor que não possui a guarda do filho, que

“poderá” visitá-lo, prevalecendo o interesse do ascendente, considerado um direito e não uma

obrigação. Somente com a Lei 11.698, de 13 de junho de 2008, que introduziu no

ordenamento jurídico a guarda compartilhada, foi imposto ao genitor que não possui a guarda

unilateral o dever de supervisionar os interesses e a criação do filho pelo guardião,

acrescentando o §3º ao artigo 1.583 do Código Civil. Apesar de ainda tímido, o Código Civil

deu o primeiro passo para acolher os direitos fundamentais dos filhos menores previstos na

Constituição Federal e na Lei 8.069/1990, obrigando também ao genitor não guardião o dever

de cuidado.

138

LANGOSKI, Deisemara Turotti. Direito de visitas x Direito de convivência. Revista Síntese Direito de

Família. São Paulo, v. 13, n. 70, fev/mar. p. 107, 2012. 139 § 2º. Entende-se por regime de visitas a forma pela qual os cônjuges ajustarão a permanência dos filhos em

companhia daquele que não ficar com a sua guarda, compreendendo encontros periódicos regularmente

estabelecidos, repartição das férias escolares e dias festivos.

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69

A equivocada interpretação de que o direito de visitas é uma prerrogativa dos pais e

não dos filhos é veementemente rebatida por Rolf Madaleno, que considera o entendimento

um ledo equívoco, já superado no direito de família. O ascendente não guardião tem o dever

de fiscalizar os cuidados e educação dos filhos, enquanto as visitas têm a finalidade concreta

de favorecer as relações humanas e de estimular os vínculos afetivos entre pais e filhos,

sempre no melhor interesse da criança. O dever de fiscalização trata-se “de um direito dos

filhos manterem rotineira comunicação com ambos os pais, atribuindo a atual redação legal o

dever do ascendente que não está com a guarda de supervisionar os interesses da prole” 140

.

Diante do direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar, o

direito de visitas é do filho, para manter contato e vínculos afetivos com o genitor, possuindo

os pais o direito e dever de visitas, cuidados e acompanhamento do desenvolvimento do filho.

No mesmo sentido Maria Berenice Dias leciona que “a visitação não é somente um

direito assegurado ao pai ou a mãe - é um direto do próprio filho de com eles conviver, o que

reforça os vínculos paterno e materno-filial”. Ressalta o direito do filho, biológico ou

socioafetivo, como direito da personalidade, de manter contato com o genitor que não possui

a guarda e com o qual não convive cotidianamente, objetivando atenuar a perda da

convivência diuturna na relação parental, o que inclui não apenas os genitores, mas também

os demais parentes como os avós, irmãos, tios e primos. É criticável a visitação em datas

predeterminadas, impondo períodos de afastamento, pois ocasiona estremecimento dos laços

afetivos pela ausência do genitor no cotidiano do filho, propiciando distanciamento lento e

gradual entre eles, até ocorrer completa exclusão. A necessidade de cultivar o afeto, firmando-

se os vínculos familiares de forma efetiva e eficaz, deve substituir o direito de visitas pelo

direito de convivência do filho com o pai que não reside sob o mesmo teto, atendendo as

necessidades psíquicas dos filhos de pais separados141

.

O direito de convivência familiar não deve se restringir apenas aos pais, estendendo-

se aos familiares com os quais o menor possui vínculos de afinidade e afetividade, ou seja,

deve ser preservada a convivência também com os parentes próximos com os quais a criança

ou adolescente possui vínculos afetivos, com a família extensa (art. 25, parag. único, ECA),

especialmente com os avós. A Lei 12.398, de 28 de março de 2011, reconhecendo os

interesses dos menores na convivência familiar e a importância dos avós na formação das

pessoas em desenvolvimento, acrescentou o parágrafo único ao artigo 1.589 do Código Civil

estendendo o direito de visitas (leia-se direito à convivência familiar) a qualquer dos avós.

140

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. p. 354-355. 141

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8ª ed. p. 57-60.

Page 70: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

70

Como já ressaltado, não se confunde direito de visitas com convivência familiar.

Visitar é ver alguém periodicamente, ir até a casa ou outro local por dever, cortesia ou

solidariedade. Conviver é tratar diariamente, coexistir, criar, cultivar e manter vínculos

afetivos, essenciais para o desenvolvimento sadio das pessoas em família. Segundo Katia

Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel pode-se conceituar a convivência familiar como “o

direito fundamental de toda pessoa humana de viver junto à família de origem, em ambiente

de afeto e de cuidado mútuos, configurando-se como um direito vital quando se tratar de

pessoa em formação” 142

. O direito não pode e não deve se limitar apenas à família de origem,

mas, e principalmente, à família socioafetiva.

Helena de Azevedo Orselli bem diferencia direito de visita e direito à convivência

familiar, lecionando que:

O direito do filho de manter contato com o genitor com o qual não reside é

indevidamente chamado de direito de visita, porém não se trata de visita. Nem o

filho „visitará‟ o pai, nem o esse „visitará‟ aquele. (...) O encontro entre pai não

guardião e filho não de dá nem por cortesia, nem por dever, mas para manterem

contato frequente, para estreitarem os laços de carinho e afeto, e para que o genitor

contribua, a sua maneira, para a educação e a formação do filho. O direito, portanto,

é verdadeiramente o direito à convivência familiar143

.

O direito à convivência familiar constitui, portanto, um direito fundamental da

criança e do adolescente, sujeitos de direitos, de conviver em família. A convivência solidifica

os laços afetivos do filho biológico ou socioafetivo, reforçando os vínculos com a família

materna e paterna, e recebendo todos os cuidados necessários à pessoa em desenvolvimento,

valorizando e assegurando sua dignidade, o que não é possível obter com mera visitação.

Prevalece, assim, o melhor interesse e proteção integral dos filhos, sendo um dever jurídico do

genitor guardião propiciar a convivência familiar com o outro.

Não raras vezes verifica-se que o genitor que possui a guarda unilateral do filho, por

egoísmo ou sentimento de vingança, dificulta sobremaneira a convivência familiar da criança

ou do adolescente com o outro genitor e sua família, trazendo graves frustrações e sofrimentos

às partes envolvidas. Muitas das vezes as frustrações e a angústia pelo reiterado insucesso na

visitação e convivência acabam provocando o distanciamento entre pais e filhos, causando

142

MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente. 4ª ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 75. 143

ORSELLI, Helena de Azevedo. Reflexões acerca do direito fundamental do filho à convivência com o genitor

que não detém sua guarda. Revista Síntese Direito de Família. São Paulo, v. 12, n. 63, dez/jan. p.13, 2011.

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71

abandono e traumas irremediáveis na delicada natureza dos relacionamentos familiares, que

persistirão pelo resto da vida.

Proporcionar a convivência familiar do filho com o outro genitor e seus familiares, é

dever do guardião que possui a guarda unilateral, nos termos do artigo 227 da Constituição

Federal e artigo 4º da Lei 8.069/1990. A omissão importa em forma de negligência, violando

os direitos fundamentais e o melhor interesse da criança e do adolescente. Helena Azevedo

Orselli ressalta que os tribunais têm reconhecido inclusive a possibilidade de aplicação de

multa ao guardião que dificulta ou impede o exercício do direito de visitas, a requerimento

das partes ou de ofício pelo juiz144

.

Fato corriqueiro nas relações de família, como lembra Rolf Madaleno, é o

condicionamento pelo guardião contínuo, do exercício do direito de visitas ao pagamento de

pensões alimentícias pelo não guardião. Não se confunde a cobrança executiva dos alimentos,

inclusive mediante execução indireta que autoriza a prisão civil do devedor, com convivência

familiar, não podendo condicionar as visitas ao pagamento da pensão alimentícia, como se

fossem moedas de negociação. O condicionamento de pagamento de pensão para permitir a

visitação distorce todo o sistema de interação entre pais e filhos e o respeito aos melhores

interesses do menor, “cuja função fundamental é a preservação psicológica e emocional da

prole, valores supremos, vinculados à hígida formação mental do filho” 145

.

Por outro lado, também o genitor não guardião tem o dever de conviver com o filho,

sob pena de violação dos direitos fundamentais e configurar descumprimento dos deveres

paternos. A Constituição de 1988, além do princípio da igualdade dos filhos, dispõe no artigo

227, entre outros deveres da família, da sociedade e do Estado, assegurar com absoluta

prioridade o direito à convivência familiar à criança, ao adolescente e ao jovem, colocando-os

a salvo de toda forma de negligência e discriminação. O artigo 229 determina que os pais têm

o dever de assistir, criar e educar os filhos. Assistir, criar e educar possui o significado de

cuidar dos filhos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também impõe o dever de cuidado, ao dispor

que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos e que o poder familiar

será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe (art. 21 e 22).

144

ORSELLI, Helena de Azevedo. Reflexões acerca do direito fundamental do filho à convivência com o genitor

que não detém sua guarda. Revista Síntese Direito de Família. p. 17-18. 145

MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4ª ed. p. 356-357.

Page 72: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

72

O artigo 1.632 do Código Civil de 2002 dispõe que a dissolução do casamento ou da

união estável não altera as relações entre pais e filhos, enquanto o §3º do artigo 1.583 obriga

ao genitor não guardião a supervisionar os interesses do filho.

A guarda unilateral não suspende o poder familiar do pai não guardião e não afasta

seu dever de cuidado e convivência. Da mesma forma a suspensão ou perda do poder familiar

não afasta os deveres da paternidade, apenas retirando dos pais o direito de administrar a

pessoa e os bens dos filhos. Suspende-se ou perde-se o poder familiar no melhor interesse e

proteção dos filhos e não dos pais. Entendimento em contrário levaria ao absurdo dos pais

descuidados e irresponsáveis abandonarem os filhos para se verem livres dos deveres da

paternidade.

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente erigiram a

paternidade responsável como princípio e o dever de cuidado como direito fundamental dos

filhos menores. O vínculo paterno/filial não é apenas afetivo, mas jurídico, conferindo à prole

o direito à convivência com os pais e aos pais o dever de conviver com os filhos. O divórcio

entre os pais não pode ser estendido aos filhos, como bem leciona Conrado Paulino da Rosa:

Independentemente da convivência ou relacionamento dos pais, a eles cabe a

responsabilidade pela criação e educação dos filhos, pois é inconcebível a idéia de

que o divórcio ou o término da relação dos genitores acarrete o fim da convivência

entre os filhos e seus pais. E quando nos referimos à paternidade e maternidade não

estamos nos referindo apenas à biológica, mas também à socioafetiva146

.

Assim entre os deveres paternos inclui o dever de cuidado, incorporado em nosso

ordenamento jurídico. O dever dos pais de criar, educar e conviver com os filhos,

reconhecendo-se que a pessoa em formação, além das necessidades vitais de sobrevivência,

como alimento, moradia, saúde e vestuário, necessita de outros elementos, normalmente

imateriais, como educação, regras de conduta, orientação, apoio, referência familiar. Os

cuidados são essenciais para a formação de um adulto, para que possua integridade física e

psicológica capaz de conviver em sociedade, exercendo na plenitude sua cidadania e

respeitando seus limites147

.

Os cuidados aos filhos somente podem ser plenamente atendidos e observados com a

convivência familiar. Também o genitor não guardião possui o dever jurídico de conviver e

cuidar do filho, que muitas vezes não precisa ser sempre física, em razão da distância ou

impossibilidade de horários, mas pode ser constante por meios virtuais, evitando que o

146

ROSA, Conrado Paulino da. IFamily: um novo conceito de família?. p. 246. 147

STJ. REsp. n. 1.159.242-SP, Terceira Turma. Relª Min. Nancy Andrighi. J. 24.04.2012.

Page 73: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

73

sentimento de abandono ou rejeição cause ao filho danos psíquicos. É na convivência

familiar, como já dito, que se mantém e fortalece a afetividade entre pais e filhos.

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74

4. EFETIVIDADE DA AFETIVIDADE E EFEITOS NO

RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

O reconhecimento da paternidade socioafetiva, fundamentada na posse do estado de

filho, aos poucos vem sendo reconhecida pelo judiciário, produzindo os mesmos efeitos da

paternidade biológica, em ações declaratórias de paternidade, afastando o argumento

desprovido de fundamentação de impossibilidade jurídica. O reconhecimento da filiação

socioafetiva confere efetividade aos direitos fundamentais do ser humano, promovendo a

igualdade dos filhos qualquer que seja a origem da filiação, conferindo-lhes dignidade.

Reconhecida a paternidade por origem afetiva, produz todos os efeitos da filiação jurídica.

4.1 Efetividade do princípio da afetividade no reconhecimento da filiação socioafetiva

O Código Civil de 2002 reconhece no artigo 1.593 o parentesco natural, resultante da

consanguinidade, ou civil, quando resulta de outra origem, tratando-se de norma aberta, pois

não aponta as formas de constituição do parentesco por outra origem. O Tribunal de Justiça de

Minas Gerais já se manifestou sobre a possibilidade jurídica da ação declaratória de

paternidade socioafetiva:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA PÓSTUMA (...). Não

há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido de reconhecimento de filiação

socioafetiva, posto que esta pretensão encontra respaldo no art. 1.593 do CC/02 que

prevê que o parentesco não se funda apenas no critério da consanguinidade, mas

também no de outra origem, dentre os quais, conforme entendimento jurisprudencial

e doutrinário, se inclui a paternidade socioafetiva 148

.

No mesmo sentido também decidiu o Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo o

direito subjetivo de pleitear o reconhecimento da filiação socioafetiva:

Não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se

encontre caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o

direito subjetivo de pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo149

.

E mais, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul priorizou a paternidade

socioafetiva sobre a biológica, reconhecendo a importância da afetividade nas relações de

148

TJMG. 3ª CC. AC n. 1.0701.09.260881-2/001. Rel. Des. Elias Camilo. J. 03.12.2009. 149

STJ. REsp. n. 1.189.663- RS. Relª Min. Nancy Andrighi. J. 06.09.2011.

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75

família, ao decidir que “configuradas a filiação e paternidade socioafetiva, deve ser

desconsiderada a verdade biológica” 150

. É necessário, entretanto, para ingressar no mundo

jurídico, a existência de uma realidade social consolidada, uma verdade social, para revelar a

paternidade socioafetiva, como já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

FILHO DE CRIAÇÃO - ADOÇÃO – SOCIOAFETIVIDADE. No que tange à

filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social

(socioafetividade), é necessário que esteja definitivamente consolidada. A posse do

estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade

social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não

da posse do estado, revelando quem efetivamente são os pais151

.

Demonstrada a verdade social na posse do estado de filho, o Superior Tribunal de

Justiça, em voto da Ministra Nancy Andrigh, além do direito subjetivo de pleitear o estado de

filiação, considerou o direito ao reconhecimento da filiação socioafetiva como elemento

fundamental da personalidade humana. Consta no voto que:

A filiação socioafetiva encontra amparo geral de tutela da personalidade humana,

que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e

definição da personalidade (Ministra Nancy Andrighi – STJ).152

O Superior Tribunal de Justiça tem decidido pelo acolhimento da filiação

socioafetiva, admitindo a possibilidade de ser buscado o reconhecimento em ação de

investigação de paternidade ou maternidade. O artigo 27 do Estatuto da Criança e do

Adolescente153

afasta as restrições na busca da filiação e assegura ao interessado no

reconhecimento de vínculo socioafetivo trânsito livre da pretensão, podendo ser exercitado

livremente em face dos pais socioafetivos ou seus herdeiros, se já falecidos os genitores.

O reconhecimento da filiação teve assim um grande avanço na legislação brasileira,

afastando todas as restrições para possibilitar a efetividade aos direitos fundamentais,

notadamente a plena igualdade também entre os filhos, conferindo plenitude na formação da

identidade e dignidade ao ser humano. O Código Civil de 1916 impunha limites no art. 363154

150

TJRS. 8ª CC. AC n. 70040477960. Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos. J. 01.12.2011. 151

TJRS. 3ª CC. AC n. 70007016710. Rel. Des. Rui Portanova. J. 13.11.2003. 152

STJ. REsp. n. 450.566 – RS. Relª Min. Nancy Andrighi. J. 03.05.2011. 153 Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,

podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça. 154

Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, I a VI, têm ação contra os pais, ou seus

herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação:

I - se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai;

Page 76: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

76

ao direito subjetivo do filho de demandar o reconhecimento compulsório da filiação havida

fora do casamento. Exigiam-se como pressupostos que, ao tempo da concepção, a mãe

estivesse convivendo em união estável com o pretendido pai, coincidência com o rapto da

genitora pelo suposto pai ou suas relações sexuais com ela, ou, ainda, que existisse escrito do

possível pai reconhecendo a paternidade. Os casos que autorizavam o ajuizamento da ação

investigatória eram taxativos, não cabendo ampliação, como lecionava Caio Mário:

Vamos, pois, passar em exame esses fatos, levando em consideração que se deve

entender o permissivo da investigação de paternidade como enumeração taxativa

(numerus clausus) e não como exemplificativa. Vale dizer: a ação somente tem

cabimento naqueles casos expressamente admitidos em lei; insuscetíveis de

ampliação analógica ou interpretação extensiva: concubinato, relações sexuais,

rapto, escrito emanado do pai, segundo o disposto no art. 363 do Código Civil155

.

Mesmo já na vigência da Constituição de 1988, reconhecendo a igualdade jurídica de

todos os filhos, a doutrina ainda considerava, sob a égide do Código Civil de 1916, que

vigoravam os pressupostos necessários para o ajuizamento da investigatória de paternidade,

em numerus clausus, o que afastava a possibilidade jurídica do reconhecimento da filiação

socioafetiva. É como entendia Marco Aurélio Viana:

Casos de investigação de paternidade – Entendemos que o art. 363 do Código Civil

continua a vigorar, afastada a referência a “filhos ilegítimos”, que é substituída pela

expressão “filhos havidos fora do casamento.” Cai, também, a restrição decorrente

do art. 183, I a VI, pois a norma constitucional não distingue. Prevalece o princípio

de “enunciação taxativa”, ou seja, a lei determina os casos em que se permite litigar

em juízo. São as seguintes hipóteses contempladas pelo diploma civil, no citado art.

363: a) concubinato; b) rapto; c) relações sexuais no período da concepção; d)

escrito do suposto pai, reconhecendo-o156

.

Os filhos havidos fora do casamento podiam demandar o reconhecimento da

perfilhação compulsória comprovando a coincidência das relações sexuais da mãe com o pai

investigado, presumidas no concubinato e no rapto. Fora do casamento admitia-se, portanto, o

reconhecimento da filiação apenas consanguínea, tanto que era necessário evidenciar que a

mulher não manteve relações sexuais com outro indivíduo, pois a defesa comumente

empregada pelo investigado era a negação ou a exceção da plurium concumbentium, que, uma

II - se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais

com ela;

III - se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente. 155

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. p. 99-110. 156

VIANA, Marco Aurélio S. Curso de direito civil: direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p.171.

Page 77: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

77

vez evidenciada, aniquilava a ação investigatória157

. Apenas na constância do casamento se

admitia a paternidade não biológica, mas não em razão da afetividade, mas sim para

manutenção da paz no lar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente excluiu as restrições na ação investigatória,

entretanto a doutrina tradicional ainda mantinha os pressupostos do Código Civil em vigor,

até finalmente ser revogado, não sendo reproduzido o art. 363 no Código de 2002, que

avançou significativamente ao reconhecer, no seu art. 1.593158

, outras formas de parentesco,

além da adoção, por origem não biológica, desbiologizando a paternidade. Foi um grande

avanço no reconhecimento da afetividade como valor jurídico a ensejar o estabelecimento de

vínculos de filiação, quebrando paradigmas do Código Civil de 1916, que dispunha, no seu

art. 332, até ser revogado pela Lei 8.560/1992, que “o parentesco é legítimo, ou ilegítimo,

segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de

consanguinidade, ou adoção”.

Constata-se, portanto, que foram excluídas todas as condições ou pressupostos que

limitavam as ações investigatórias de paternidade e ampliadas as hipóteses de filiação civil

para além da adoção, como ocorria no Código anterior, permitindo agasalhar a filiação

socioafetiva.

A legislação não consegue prever todas as situações existenciais, mas tenta

acompanhar a evolução da sociedade, tanto que já tramita no Congresso Nacional o Projeto de

Lei nº 5.682/2013, para acrescentar os pais socioafetivos na redação do art. 27 da Lei

8.069/1990. A justificativa do projeto ressalta que os conceitos de família e relação de

parentesco conferem cada vez mais ênfase nos laços de afeição e solidariedade, em

detrimento das relações puramente biológicas. Ser pai, atualmente, não é apenas possuir o

vínculo genético com o filho, mas, sobretudo, “estar presente no cotidiano, instruindo,

amparando, dando carinho, protegendo, educando e preservando os interesses da criança” 159

.

Consta no art. 2º do projeto que:

Art. 2º o artigo 27 da Lei n° 8.069, de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente,

passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo,

indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais, biológicos ou

socioafetivos, ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de

Justiça.

157

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. 32ª ed. São Paulo: Saraiva,

1995. p. 266-267. 158

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. 159

PL n. 5682/2013. Justificativa. Autor Dep. Newton Cardoso. Apresentação: 03/06/2013.

Page 78: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

78

Parágrafo único. O reconhecimento do estado de filiação socioafetiva não decorre de

mero auxílio econômico ou psicológico.

O princípio constitucional do pluralismo familiar, independente da aprovação do

referido Projeto n° 5.682/2013, reconhece outras formas de família além do casamento e

elegeu o afeto como núcleo principal de constituição familiar, preponderando sobre o

parentesco de sangue. Da mesma forma a Constituição Federal igualizou os filhos, qualquer

que seja a origem da filiação, afastando a odiosa discriminação que se fazia aos filhos

ilegítimos e os filhos sem origem consanguínea. O Direito de Família evoluiu

significativamente nas últimas décadas e humanizou-se. O que importa na caracterização de

uma entidade familiar passou a ser o afeto, o cuidado, a realização e a felicidade de seus

membros.

O Des. Elias Camilo, na Apelação n° 1.0701.09.260881-2/001, cita em seu voto Milton

Paulo de Carvalho Filho e Luiz Edson Fachin para fundamentar que:

A parentalidade socioafetiva, por sua vez, não decorre de uma declaração, nem

tampouco, de um fato biológico. Ela surge em razão da existência de estreitos laços

afetivos e sociais que unem determinadas pessoas que se relacionam como entidade

familiar, independentemente da correspondência com a verdade biológica ou aquela

constante do assento de nascimento. A posse do estado de filho, como também é

denominado o relacionamento socioafetivo, é reconhecida pela própria sociedade

que identifica o vínculo parental pela observância daquele núcleo familiar que

possui uma relação verdadeira entre pais e filhos ligados pelo amor, carinho,

consideração, respeito e cumplicidade (páginas 1.678 e 1.682).

A esse respeito, também cumpre transcrever a lição de LUIZ EDSON FACHIN:

O contido no art. 1593 permite, sem dúvida, a construção da paternidade

socioafetiva ao referir-se a diversas origens de parentesco. Dele se infere que o

parentesco pode derivar do laço de sangue, do vínculo adotivo ou de outra origem,

como prevê expressamente. Não sendo a paternidade fundada na consanguinidade

ou no parentesco civil, o legislador se referiu, por certo, à relação socioafetiva. É

possível, então, agora, à luz dessa hermenêutica construtiva do Código Civil,

sustentar que há, também, um nascimento socioafetivo, suscetível de fundar um

assento e respectiva certidão de nascimento. Mesmo no reducionismo desatualizado

do novo Código é possível garimpar tal horizonte, que pode frutificar por meio de

uma hermenêutica construtiva, sistemática e principiológica. (Boletim do Instituto

Brasileiro de Direito de Família, nº 19, mar/abr, 2003, p. 3)” 160

.

Também o Ministro João Otávio de Noronha, no REsp. 709.608-MS, já

fundamentou que a relação socioafetiva não pode ser desconhecida pelo Direito, devendo ser

mantido o registro de nascimento se ao declarar a paternidade o pretenso pai sabia que não era

o genitor biológico, reconhecendo-se a filiação socioafetiva na adoção à brasileira. Consta no

voto que:

160

TJMG, 3ª CC. AC n° 1.0701.09.260881-2/001. Rel. Des. Elias Camilo. J. 03.12.2009.

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79

Não anula-se registro de nascimento quando o pretenso pai sabia que o menor não

era seu filho (a chamada adoção à brasileira), pois materializa-se sua vontade, em

condições normais de discernimento, movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento

de nobreza. (...) A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é,

desconhecido pelo direito 161

.

No mesmo sentido, reconhecendo a prevalência da maternidade socioafetiva sobre a

biológica, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em voto da Ministra Nancy

Andrighi, decidiu, conforme consta da ementa, que:

A filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, 6° da CF/88, envolve não

apenas a adoção, como também „parentescos de outra origem‟, conforme

introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade

oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como

elemento de ordem cultural.

Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui

uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. (...)

Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema

jurídico vigente, exige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que

salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser

humano162

.

Apesar da raridade das ações declaratórias de paternidade socioafetiva, já existem

precedentes na Justiça Mineira. Em sentença proferida em 02.03.2010, o juiz Amauri Pinto

Ferreira, titular da 5ª Vara de Família de Belo Horizonte, fundamentou e concluiu que:

A filiação afetiva também ocorre em situação bastante comum nesse Estado, onde

proliferam os chamados „filhos de criação‟, em que, mesmo não havendo qualquer

vínculo biológico ou jurídico, os pais criam uma criança ou adolescente por mera

opção, velando-lhe todo o cuidado, amor, ternura, enfim, uma família cuja mola

mestra é o amor entre seus integrantes e o vínculo é o afeto.

(...)

Ampliou-se o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco

psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal (...). A

desbiologização da paternidade – expressão cunhada por João Baptista Villela –

identifica pais e filhos não biológicos, não consanguíneos, mas que construíram uma

filiação psicológica.

(...)

Portanto, ante a presença dos requisitos doutrinários necessários à caracterização do

estado de filho afetivo do autor, incluindo a paternidade do „de cujus‟, entendo que,

conquanto não exista previsão legal expressa para acolhimento e declaração da

filiação socioafetiva, não é o caso de utilizar da analogia para declarar a adoção

póstuma, mas, sim, de aplicação dos princípios gerais do direito, notadamente o

princípio maior da dignidade da pessoa humana (LICC, art. 4º) para declarar a

filiação socioafetiva.

161

STJ. 4ª Turma. REsp. 709.608-MS. Rel. Min. João Otávio Noronha. J. 05.11.2009. 162

STJ. 3ª Turma. REsp. 1000356-SP. Relª. Min. Nancy Andrighi. J. 25.05.2010.

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80

(...)

Destarte, pelo exposto e por tudo mais que dos autos consta, JULGO

PROCEDENTE o pedido contido na inicial para reconhecer e DECLARAR O.A.S.P

filho de O.A.P e T.S.P, determinando seu registro como tal, fazendo ainda constar

em sua certidão de nascimento os ascendentes paternos e maternos.163

A decisão distinguiu a filiação socioafetiva da adoção póstuma, outro modelo de

filiação por outra origem, e aplicou os princípios constitucionais norteadores do Direito de

Família, especialmente o princípio maior da dignidade da pessoa humana, para reconhecer o

direito subjetivo ao estado de filiação dos “filhos de criação”. A ausência de previsão expressa

para declarar a paternidade socioafetiva não é impedimento para conferir efetividade aos

direitos fundamentais. Implicitamente a legislação permite o reconhecimento da paternidade

socioafetiva. O artigo 1.593 do Código Civil de 2002 reconhece o parentesco por outra

origem, além da biológica e da adoção, enquanto o artigo 27 da Lei 8.069/1990 autoriza o

exercício do reconhecimento do estado de filiação, em sentido amplo, contra os pais ou seus

herdeiros, sem qualquer restrição, conforme já abordado.

O juiz Célio Marcelino da Silva, respondendo pela vara única da Comarca de

Itumirim, também reconheceu a paternidade socioafetiva, conferindo todos os efeitos da

filiação, ao decidir que:

A parentalidade socioafetiva é largamente defendida pelos doutrinadores do direito

de família contemporâneo. O enunciado nº 103 do CJF, fruto da I Jornada de Direito

Civil, dispõe que “o Código Civil reconhece, no artigo 1.593, outras espécies de

parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de

que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de

reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu

com seu material fecudante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do

estado de filho”. Já o enunciado nº 108, da mesma Jornada, enuncia que “no fato

jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto

no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva”. E por fim, com o

mesmo espírito, o enunciado nº 256, construído na III Jornada: “A posse do estado

de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

Conforme se pode perceber, na formação da parentalidade socioafetiva, que decorre

de um fato cultural, o conceito de “posse do estado de filho” assume importância

central. E acerca dele cabe revisitar as lições sempre oportunas do ilustre

doutrinador Paulo Luiz Neto Lôbo, um dos principais autores de direito de família

contemporâneo, encontradas no artigo “Direito ao Estado de Filiação e Direito à

Origem Genética: Uma Distinção Necessária – Leituras Complementares de

Processo Civil”, organizador Fredie Didier, 8ª ed. 2010, editora Jus Podivm, pg.

431-448 – fruto de conferência proferida pelo autor no IV Congresso Brasileiro de

Direito de Família, em Belo Horizonte, no dia 25/09/2003:

“A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho

em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de

pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização

163

FERREIRA, Juiz Amauri Pinto. 5ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte/MG. Autos n.

0024.08.066633-1. J. 02.03.2010.

Page 81: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

81

da convivência familiar e da afetividade, segundo as características adiante expostas,

devendo ser contínua”.

(...)

A parentalidade socioafetiva também já é reconhecida pela jurisprudência, inclusive

dos Tribunais Superiores. Cita-se, para ilustrar, julgado relativamente recente do

colendo Superior Tribunal de Justiça, que ainda destacou a aplicabilidade, nas

relações familiares, do venire contra factum proprium, que ainda será explorado

nesta decisão:

“PROCESUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL.

ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA.

PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÃNCIA.

1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a

filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para

definir questões relativas à filiação.

2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos

imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse

da condição de pai ou mãe.

3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética,

constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente.

Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada

em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família.

4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto

sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra

factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência

comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de

conflitos no âmbito do Direito de Família.

(...)

7. Recurso especial provido”. (REsp. 1087163/RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, DJe

31/08/2011).

Já se pode concluir, portanto, que a origem biológica não é absoluta na formação do

vínculo de filiação.164

Na sentença foi reconhecida a paternidade socioafetiva dos autores e determinada a

inscrição no registro de nascimento dos pais e avós afetivos, excluindo o nome dos

biológicos, produzindo todos os efeitos da filiação.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais também acolheu a filiação socioafetiva. Ao

julgar a Apelação nº 1.0343.10.000135-7/001, da decisão proferida na Comarca de

Itumirim/MG, manteve a sentença reconhecendo o vínculo socioafetivo. Fundamentou o

Relator, Des. Kildare Carvalho, no seu voto que:

Para o direito, a paternidade biológica transformou-se em verdade real, ou seja,

entende-se ser ela incontestável. Porém, tendo a doutrina e a jurisprudência adotado

um novo conceito no que se refere à paternidade (socioafetiva), o conceito biológico

tem perdido espaço na vida prática, eis que o conceito moderno sobre a paternidade

tem se baseado no afeto da relação existente entre pai e filho, onde imperam os laços

afetivos e amorosos, ficando para trás o critério sanguíneo, por ora, irrelevante,

ressalvado, entretanto, o direito de todos de saber qual a sua origem genética, sendo

164

SILVA, Juiz Célio Marcelino da. Vara Única da Comarca de Itumirim/MG. Autos n. 0001357-70. 2010. J.

11.07.2012.

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esta, no meu entender, a importância do conceito de paternidade biológica.

A paternidade socioafetiva é fenômeno observado pela doutrina moderna que,

baseada na novidade trazida pela Carta de 1988 de se extinguir qualquer distinção

relativa à filiação, firmando-se, exclusivamente, no princípio da dignidade da pessoa

humana, começa a conquistar importância social e adquirir valorização jurídica,

sendo vista também por sua concepção cultural, sustentando-se na afeição e não

apenas na verdade biológica.

(...)

Diante disso, entendo que prescinde de reparos a r. sentença, onde foi reconhecida a

paternidade socioafetiva dos autores e determinada a inscrição no registro de

nascimento dos pais e avós afetivos, excluindo o nome dos pais biológicos,

produzindo todos os efeitos da filiação e conferindo efetividade ao

reconhecimento.165

A Revisora, Desª. Albergaria Costa, ao acompanhar o Relator, ressaltou as mudanças

no Direito de Família em razão dos princípios constitucionais e a pretensão em ver

reconhecida juridicamente a filiação com base na afetividade. Fundamentou ainda que:

Sobre o assunto, a Constituição Federal de 1988 configurou grande marco de

mudanças ao estabelecer novos princípios e abrir a possibilidade do reconhecimento

judicial de relações familiares com base na afetividade.

É que com o advento da Constituição, que prima pela dignidade da pessoa humana

como um dos fundamentos do Estado de Direito, tornaram-se equivalentes os laços

de afeto e de sangue, diante da previsão no § 6º do art. 227 de que “os filhos,

havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e

qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Nesse contexto, doutrina e jurisprudência passaram a reconhecer a paternidade

socioafetiva, na qual o principal elemento é o afeto, independente da existência de

vínculo biológico, sanguíneo, passando a interpretar as normas em vigor de acordo

com os novos fundamentos e princípios instituídos.

Para o reconhecimento da condição de "filho afetivo" não existem regras precisas

inseridas no texto legal, cabendo, todavia, ao Juiz decidir com base no caso concreto

e nas provas apresentadas. Para facilitar essa tarefa alguns doutrinadores se referem

a três requisitos essenciais: nome, trato e fama; sendo os dois últimos os de maior

relevância.

Na hipótese vertente, o acervo probatório dos autos revela de forma incontestável

que os apelados desde tenra idade foram colocados sob os cuidados de A. B. de S. e

M. V. T., sendo tratados por eles como se filhos fossem, havendo uma relação de

afeto e carinho, pública e notória, que permite afirmar com segurança a constituição

do estado de filiação decorrente de laços de afetividade.166

A decisão do Tribunal Mineiro, por unanimidade, conferiu efetividade ao princípio

da afetividade para o reconhecimento da filiação socioafetiva, que no caso concreto

preponderou sobre a biológica, excluindo do registro de nascimento os nomes dos pais e avós

biológicos para incluir os socioafetivos. Assim, atribuiu valor jurídico ao afeto e concedeu

165

TJMG. AC n. 1.0343.10.000135-7/001- Comarca de Itumirim/MG. Rel. Des. Kildare Carvalho. J.

08.08.2013. P. 21.08.2013. 166

COSTA, Desª Albergaria. TJMG. AC n. 1.0343.10.000135-7/001- Comarca de Itumirim/MG. Rel. Des.

Kildare Carvalho. J. 08.08.2013. P. 21.08.2013.

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83

efetividade aos novos princípios fundamentais norteadores do direito “para abrir a

possibilidade do reconhecimento judicial de relações familiares com base na afetividade”. A

jurisprudência, mais uma vez, reconhece que os laços de afetividade são apreensíveis pelo

Direito quando demonstrada a posse do estado de filho, consistente no nome, trato e fama, ou

seja, quando pessoas são tratadas por outras como se fossem filhos e estes reconhecem

aqueles como pais, existindo uma relação de afeto e carinho, pública e notória. As

manifestações exteriorizadas de afeto, apreensíveis por condutas objetivas de pais e filhos não

biológicos, de comportamentos jurídicos típicos de uma convivência familiar, autorizam o

reconhecimento da filiação e são capazes de gerar efeitos jurídicos, conferindo efetividade ao

princípio da afetividade.

4.2 Efeitos Jurídicos no reconhecimento da filiação socioafetiva

A socioafetividade produz todos os efeitos jurídicos do reconhecimento da filiação

inerentes ao parentesco, notadamente o estado de filho, o nome da família, as relações de

parentesco, poder parental, convivência familiar, alimentos e sucessórios.

O principal efeito da socioafetividade, do qual irradiam os demais, é possibilitar o

reconhecimento jurídico da filiação por outra origem, o “parentesco social”. A filiação

socioafetiva, possui fundamento na posse do estado de filho, na filiação criada culturalmente

na convivência familiar estável e externada no mundo dos fatos, envolvendo pessoas que

agem como pais e outras que agem como filhos (tratactus), independentes de laços

sanguíneos, e demonstrados publicamente (reputatio ou fama), usando ou não o filho o nome

dos pais afetivos (nomen).

No reconhecimento jurídico da socioafetividade, diante da omissão expressa

legislativa, necessário aplicar diretamente os princípios constitucionais norteadores do Direito

de Família ao caso concreto, ultrapassando a concepção estritamente positivista adstrita a

percepções meramente formais. É necessário ultrapassar a barreira das regras neutras, tendo

em vista principalmente a constitucionalização do Direito de Família, que elegeu valores

fundamentais e gira em torno da dignidade da pessoa humana, e construir um Direito vivo,

adotando uma discussão principiológica167

.

O princípio da dignidade da pessoa humana veda que o filho não biológico fique à

margem da proteção jurídica, como se fosse indigno, excluindo-o como pessoa do exercício

167

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. p. 37-39.

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do estado de filho e de membro jurídico efetivamente integrante de uma família. O princípio

da igualdade e isonomia estabelece tratamento igualitário a todos os filhos, vedando qualquer

forma de discriminação em razão da origem da filiação. O princípio da melhor interesse da

criança e do adolescente orienta que deve ser conferida plena proteção às pessoas em

formação, considerando primordialmente seu maior interesse, colocando em segundo plano os

interesses dos pais. Por fim, o princípio da afetividade admite o afeto como valor jurídico e

autoriza o reconhecimento jurídico dos filhos socioafetivos, incluídos no termo genérico de

filiação por outra origem.

Não pode, todavia, ser ignorada a resistência de corrente doutrinária que não

classifica a afetividade como princípio jurídico e que se divide em duas subcorrentes.

Uma subcorrente reconhece a afetividade como um valor relevante a ser observado

nas relações jurídicas, mas não a classifica no rol dos princípios do Direito de Família.

A outra subcorrente critica o que se denomina de “teoria do afeto”, fundamentando

sobre a ausência de considerações sobre o conceito de afeto, em razão da ambivalência do

termo. Na linguagem comum é sinônimo de carinho, amizade, ternura, amor. No sentido

filosófico científico possui significado de sentimento168

, inapreensível pelo direito, até mesmo

pela existência de famílias sem afeto, onde impera a inimizade. Assim, para esta subcorrente o

afeto não possui valor para solução de conflitos jurídicos, pois “não são propriamente critérios

jurídicos a serem utilizados para a fundamentação de solução jurídica dada a um problema

familiar” 169

.

Ricardo Lucas Calderón ressalta que as críticas lançadas à perspectiva

principiológica não inviabilizam a valoração do afeto pelo Direito. Exige-se um maior

aprofundamento do que se entende por afetividade jurídica, construída com amplo respaldo na

doutrina e na jurisprudência, para a superação dos obstáculos, como ocorre, exemplificando,

com a boa-fé (pode-se incluir também o valor jurídico da vontade nos contratos, e da

solidariedade nas relações do Direito de Família). O autor apresenta as seguintes

considerações a respeito dos argumentos em contrário à utilização pelo Direito da afetividade:

Os argumentos contrários à consideração da afetividade como princípio citam o fato

de o afeto ser um sentimento (o que impediria sua apreensão pelo Direito), a

constatação de que é constante nas relações familiares justamente a falta de afeto (o

que inviabilizaria conferir à afetividade qualquer papel central), a ausência de

168

ROCHA, Marco Túlio Carvalho. O conceito de família e suas implicações jurídicas: teoria sociojurídica do

Direito de Família. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 61. 169

LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. 6ª ed. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 46. v. 5.

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85

objetividade do tema que permita seu tratamento nos litígios jurídicos (eis que até

mesmo possui outro sentido em outras ciências) e, ainda, a ausência de um conceito

jurídico de afeto. Em que pese a profundidade e relevância dos questionamentos,

não parecem, de per si, inviabilizar por completo a construção de uma categoria

principiológica da afetividade.

(...)

A afetividade jurídica que ora se sustenta não resta apegada às questões de

sentimento ou meramente subjetivas, mas sim se refere a fatos que externem

determinadas relações intersubjetivas, nas quais, em vista disso, seria presumida a

manifestação afetiva subjetiva. A constante falta de afeto também não se mostraria

como óbice a sua utilização pelo Direito, pois é usual que muitos dos institutos

jurídicos sejam inobservados na realidade fática (sem que isso afete seu uso pelo

Direito). O que importa, nestes casos, é prever claramente quais as consequências

dessas condutas (que podem ser distintas, conforme a situação em pauta).

Finalmente, a alegação de falta de objetividade do conceito também não é

exclusividade da afetividade (eis que diversos outros assuntos tratados pelo Direito

são também profundamente subjetivos) e pode ser minimizada com os contributos

da doutrina e da jurisprudência.

(...)

A expressiva manifestação da afetividade nos relacionamentos familiares do meio

social, seu gradativo tratamento legislativo e o seu paulatino reconhecimento

doutrinário e jurisprudencial permitem aderir à corrente que entende a afetividade

como princípio jurídico do direito de família brasileiro contemporâneo. A partir da

sua força representativa no “mundo dos fatos”, passando pela sua presença cada vez

mais marcante no “mundo do direito”, é possível vislumbrar densidade jurídica que

confira ares principiológicos à afetividade no nosso sistema.

(...)

O que se pretende sustentar é que não há impedimento na utilização pelo Direito de

um tema apenas pelo fato de ele ser utilizado por outras áreas ou possuir uma noção

enraizada na sociedade que possa não ser unívoca. Por outro lado, também não há

impossibilidade de captação de um sentido que possa possuir uma subjetividade

inicial, pois o Direito pode lhe conferir uma definição jurídica que lhe conceda a

objetividade que entenda necessária. 170

Os argumentos contrários ao acolhimento jurídico do princípio da afetividade, para

autorizar o reconhecimento da filiação socioafetiva, demandam uma maior definição do

sentido do termo “afetividade”.

Como visto, o termo afeto é ambíguo, possuindo mais de um sentido. É necessário

diferenciá-lo do sentimento subjetivo de amor, inapreensível pelo direito, para aferir o termo

afetividade no sentido de princípio jurídico, afastando os entendimentos equivocados de um

excesso de princípios no Direito de Família, em panprincipialismo ou panprincipiologismo,

como pregam alguns, apesar do nosso ordenamento jurídico, a partir da constituição de 1988,

ter adotado uma interpretação principiológica da codificação.

Não se trata o princípio da afetividade, obviamente, de um “princípio do amor”, mas

de um conjunto de relações pessoais e sociais na família, externados por condutas de seus

integrantes, que demonstram a existência de vínculos afetivos geradores de relações jurídicas

170

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Principio da afetividade no Direito de Família. p. 298-300 e 305.

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86

de filiação, independente da definição do termo por outras ciências, como ocorre na filosofia

ou na psicologia.

Ricardo Lucas Calderón busca dar contornos ao princípio jurídico da afetividade,

diferenciando, apesar da mesma origem, os termos “afeto”, “afetividade” e

“socioafetividade”. O afeto não possui uma conceituação estritamente jurídica, pois trata dos

sentimentos humanos, das relações pessoais, como o amor, amizade, carinho, paixão. A

afetividade, por outro lado, é a manifestação do afeto, as expressões exteriorizadas que

indicam a existência do afeto, seu reflexo no mundo dos fatos. A afetividade demonstra a

mudança, a passagem da fase de sentimento interno e inapreensível do direito para o mundo

externo dos fatos, conferindo dinâmica ao mundo interno do afeto, possibilitando a apreensão

jurídica das relações afetivas. A afetividade, portanto, expressa as manifestações que indicam

a existência do afeto intersubjetivo, é o reflexo do afeto no meio social, o refletor da

manifestação social da afetividade. Assim, “sempre que externados publicamente fatos

identificadores da afetividade, resta caracterizada a socioafetividade” 171

. Paulo Lôbo, citado

por Ricardo Calderón, acrescenta quanto à socioafetividade que:

O termo “socioafetividade” conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente

porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado

há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a

incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As

relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social

(sócio) e a incidência do princípio normativo (afetividade) 172

.

A socioafetividade importa, pois, no reconhecimento da afetividade no mundo dos

fatos, a realidade fático-jurídico concreta, resultante da convivência familiar, dos cuidados, do

tratamento recíproco entre pais e filhos, reconhecidos como tais. Assim, é a realidade fática

que indicará, nas condutas exteriorizadas de afeto (afetividade), se existe ou não o vínculo

socioafetivo. Novamente a lição de Ana Carolina Brochado e Renata de Lima Rodrigues:

Para tentar responder a tais questões, importa, agora, analisar os pressupostos da

posse de estado de filho, pois é exatamente nas condutas exteriorizadas pelas partes

que é possível se verificar a existência da socioafetividade. Sem dúvida, é o

requisito do trato, ou tratamento; o que se procura evidenciar é se pai/mãe e filho de

criação se tratam como tal, ocupando tais funções um na vida do outro. Para tanto, o

que é preciso investigar é se os pais socioafetivos se identificam como detentores

fáticos da autoridade parental, incumbindo-se de criar, educar e assistir, provendo

171

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Principio da afetividade no Direito de Família. p. 301 e 321-322. 172

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade em família e a orientação do Superior Tribunal de Justiça. In.

FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo (Coords). O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito

Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 646-647.

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87

todas as necessidades biopsíquicas do filho menor e propiciando-lhe pleno acesso a

seus direitos fundamentais pois este é o objetivo do poder familiar. Ou em relação

aos filhos maiores, se exercem funções paternas e maternas na vida dos filhos, ou

mesmo se estes se comportam como filhos em relação a esses pais socioafetivos,

conduta esta que possibilita o nascimento e o crescimento do afeto 173

.

A doutrina ainda faz uma distinção na dimensão da afetividade entre “afetividade

subjetiva” e “afetividade objetiva” ou “afetividade jurídica objetiva”. A afetividade subjetiva

diz respeito ao psíquico de cada pessoa, aos sentimentos, ao afeto em si, que não interessa ao

direito, mas que restaria implícita quando estivesse presente a dimensão objetiva. A

afetividade jurídica objetiva é a que envolve a exteriorização dos atos de afeto a interesses

comuns, que sai da órbita do psíquico e envolve fatos da realidade, assumindo relevância

jurídica e permitindo sua constatação.174

No que se refere às consequências ou efeitos da afetividade, reflete-se ainda a

existência da “dupla face do princípio da afetividade”: “a face do dever jurídico” e a “face

geradora do vínculo familiar”. A face do dever jurídico do princípio da afetividade, que se

aplica para as pessoas que já possuem o reconhecimento do vínculo familiar (parentesco,

casamento, uniões livres já reconhecidas), importa no cumprimento dos deveres jurídicos

oriundos da relação afetiva. A face geradora do vinculo familiar do princípio da afetividade se

aplica às pessoas que possuem uma relação de afetividade objetiva exteriorizada, como a

posse do estado de filho ou estado de união, mas não tem ainda o reconhecimento jurídico. É

necessário, portanto, verificar nas relações fáticas se são suficientes para caracterizar o

vínculo jurídico (filiação ou união estável). Caracterizada a relação jurídica passa a incidir

para as pessoas envolvidas, a partir de então, a outra face do princípio, ou seja, os deveres

jurídicos da afetividade que produzirão os efeitos jurídicos. Ricardo Lucas Calderón conclui

que:

Como visto, as duas faces do princípio não se confundem e não são excludentes.

Muitas das análises acabam por realizar certa confusão entre as duas faces do

princípio, que não contribui para sua perfeita compreensão. Com o intuito de

esclarecer a abrangência e a incidência do princípio da afetividade, parece oportuno

ressaltar estas duas faces: a primeira, de dever jurídico, que prevalece para as

pessoas que já possuem algum vínculo familiar configurado; e a segunda, como

geradora de vínculo familiar, para as pessoas que não possuem ainda um vínculo

familiar reconhecido pelo direito. A partir desta distinção, resta possível detalhar os

aspectos de cada uma delas, sem cair em algumas contradições terminológicas175

.

173

RODRIGUES, Renata de Lima; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Multiparentalidade como fenômeno

jurídico contemporâneo. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister; Belo

Horizonte, IBDFAM, v.14, fev/mar. p. 98, 2010. 174

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Principio da afetividade no direito de família. p. 321-322 175

CALDERÓN, Ricardo Lucas. Principio da afetividade no Direito de Família. p. 311.

Page 88: a efetividade dos princípios fundamentais no direito de família para ...

88

A identificação da face do dever jurídico do princípio da afetividade, para produzir

efeitos na filiação socioafetiva, necessita do reconhecimento jurídico da filiação, voluntário

ou judicial.

O reconhecimento voluntário de filiação socioafetiva, diferindo da “adoção à

brasileira”, pelo ineditismo no sistema jurídico brasileiro certamente ainda vai demandar

amadurecimento, mas não existe nenhuma vedação legal que o impede. O amadurecimento da

filiação socioafetiva no sistema jurídico brasileiro, com acolhimento nos tribunais superiores,

certamente vai possibilitar orientações aos cartórios de Registro Civil (e de notas para lavrar

as escrituras) para admitir o reconhecimento espontâneo. Foi o que ocorreu, a título de

exemplo, com várias Corregedorias de Justiça estaduais e finalmente pelo CNJ - Conselho

Nacional de Justiça, nas conversões das uniões e casamento civil entre pessoas do mesmo

sexo (Resolução nº 175 de 15.05.2013).

O novo sempre encontra resistência, mas como já ressaltado, o art. 1.593 do Código

Civil de 2002 reconhece o parentesco civil por outra origem, além da adoção, e a Constituição

de 1988 veda qualquer discriminação quanto à origem da filiação. Evidentemente que o

reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva exige a existência dos laços afetivos

consolidados, o consentimento do filho maior e possibilita ao menor impugnar o

reconhecimento ao emancipar ou atingir a maioridade (art. 1.614, CC).

O reconhecimento voluntário pode ser efetuado por escritura pública ou escrito

particular, por testamento ou perante o juiz (art. 1.609, CC), incabível, todavia, no registro do

nascimento, em face de ausência de convivência familiar a demonstrar a afetividade, salvo se

efetuado fora do prazo com os filhos já crescidos e caracterizada a posse de estado de filho.

Também é incabível o reconhecimento voluntário se o filho afetivo já possuir pai/mãe

registral, necessitando o ajuizamento de ação declaratória de filiação socioafetiva cumulada

com retificação do registro civil.

A posse do estado confere ao filho, como já demonstrado, o direito subjetivo de

pleitear em juízo, mediante ação declaratória, o reconhecimento da filiação socioafetiva,

tratando-se de direito personalíssimo e imprescritível, somente passando a seus herdeiros se

iniciou em vida ou se faleceu incapaz. Os legitimados passivos são os pais ou seus herdeiros,

admitindo-se, portanto, a ação declaratória post mortem.

No reconhecimento judicial é cabível a ação declaratória de filiação socioafetiva

mesmo se filho já possuir a paternidade/maternidade registral, devendo, neste caso, cumular

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com retificação do registro civil e incluir no polo passivo como litisconsorte necessário os

pais registrais, consanguíneos ou não. Não é necessária a prévia retificação do registro civil

para a exclusão da ascendência registral, pois reconhecida a filiação socioafetiva o consectário

lógico é a retificação do registro civil, excluindo os pais e avós biológicos e incluindo os

ascendentes socioafetivos, prevalecendo a filiação cultural construída no afeto.

O reconhecimento da filiação socioafetiva é irrevogável, como ocorre na filiação

biológica e na adoção, admitindo-se, todavia, a retificação do reconhecimento voluntário, em

ação anulatória do registro de nascimento, se for efetuado por erro ou falsidade (art. 1.604,

CC).

Reconhecido o vínculo socioafetivo, voluntario ou judicial (coercitivo), a filiação

produz todos os efeitos jurídicos.

O primeiro efeito, e talvez o mais importante e irradiante, é o “estado de filiação”,

transcrito no registro civil, e não mais apenas a posse do estado de filho, que se estende a

todos os demais parentes, fazendo surgir o status familiae, o estado de família, que consiste

no estabelecimento das relações de parentesco. A parentalidade que se forma “irá alterar a

árvore genealógica e dar aos filhos novos ascendentes e colaterais. Se o filho socioafetivo já

se tornou um pai, o seu rebento irá, também, ganhar novos ascendentes e colaterais” 176

. Cria-

se também o vínculo de afinidade da esposa/companheira do filho com os parentes

socioafetivos. O estado de filho importa, portanto, no estabelecimento do parentesco entre o

filho, seus descendentes, os pais e os parentes destes, com todas as consequências legais em

direitos e deveres.

O reconhecimento do status familiae confere ao filho o direito ao nome da família,

um dos elementos integrantes e constitutivos da personalidade, que individualiza a pessoa e

verifica sua filiação pela procedência familiar177

. Reconhecida a parentalidade socioafetiva o

filho poderá acrescentar o patronímico dos pais ao seu nome, inclusive excluindo o nome da

família biológica. No registro civil também serão excluídos os nomes dos pais e avós

biológicos e incluído os nomes dos pais e avós socioafetivos. Na hipótese da filiação

socioafetiva ocorrer com apenas um genitor, que pode, por exemplo, ser cônjuge ou

companheiro do pai/mãe biológico, mantém-se os vínculos com o pai/mãe biológico, como

ocorre na adoção unilateral do enteado, incluindo apenas o genitor socioafetivo e seus pais

como avós.

176

CASSETTARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. p.131. 177

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento da paternidade e seus efeitos. p. 185.

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90

Outro efeito no reconhecimento é o direito recíproco a alimentos. Os alimentos não

são devidos apenas entre os pais e filhos, mas também se estende aos ascendentes,

descendentes e irmãos. Assim o filho socioafetivo reconhecido passa a ser credor e devedor

de alimentos em relação aos parentes socioafetivos, observando os pressupostos do trinômio

necessidade, possibilidade e proporcionalidade.

Mais um efeito do reconhecimento da filiação socioafetiva é conferir aos pais o

poder familiar ou autoridade parental em face do filho socioafetivo menor, incluindo todos os

deveres quanto à pessoa e quanto aos seus bens. No exercício do poder familiar quanto à

pessoa do filho inclui os deveres de cuidados, criação, assistência, educação, guarda,

representação e os poderes de conceder ou negar autorização para o casamento, nomear tutor,

reclamá-los de que os detenha ilegalmente e exigir obediência e respeito. No exercício da

autoridade parental quanto aos bens dos filhos, compete aos pais o dever de administração e o

direito ao usufruto. Ocorrendo separação entre os pais, é assegurado ao filho o direito

fundamental à convivência familiar com o genitor que não reside sob o mesmo teto, se a

guarda não for compartilhada.

Outro importante efeito é conferir direitos sucessórios recíprocos entre o filho

reconhecido e todos os parentes socioafetivos na linha reta e na colateral até o quarto grau,

obedecendo à ordem de vocação hereditária. A obediência à ordem de vocação hereditária

resguarda todos os seus direitos sucessórios na qualidade de filho, como o direito à petição de

herança, colação dos bens doados pelos pais aos outros filhos, nulidade da partilha, exclusão

dos herdeiros ascendentes e colaterais na sucessão legítima, vedação aos ascendentes,

mediante testamento, de impor, sem causas justificadas, clausulas restritivas na legítima. Da

mesma forma, sujeita o filho socioafetivo, também, nas hipóteses de exclusão da herança por

deserdação e indignidade.

Diversos outros efeitos jurídicos surgem no reconhecimento da filiação socioafetiva,

em tudo equiparada às outras origens de filiação, sem qualquer discriminação. Christiano

Cassetari ressalta os efeitos quanto aos direitos previdenciários; inelegibilidade eleitoral;

possibilidade de ação negatória de paternidade em razão de reconhecimento do filho por vício

de consentimento, desde que inexistente o vínculo afetivo; impossibilidade da desconstituição

do vínculo se não ocorreu vício de consentimento e pressente o vinculo afetivo; abrandamento

da presunção pater is est, entre outros178

.

178

CASSETARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. p. 162-174.

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91

A filiação socioafetiva confere, portanto, o status familiae ao filho reconhecido,

integrando-o totalmente na família dos pais afetivos, estendendo as relações jurídicas com

todos os parentes dos genitores, como em qualquer relação paterno/filial, com os mesmos

direitos, deveres e qualificações, vedando-se quaisquer designações discriminatórias.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo de família sofreu grandes modificações nas últimas décadas. A família,

então matrimonial e patriarcal, único modelo familiar tradicional reconhecido juridicamente,

assumiu novas feições e o vínculo agregador formal do matrimônio deslocou-se para a

afetividade, unindo as pessoas para que convivam em harmonia em busca da realização

pessoal, em diversos arranjos familiares.

A Constituição Federal de 1988 elegeu como um dos fundamentos de nossa nação

democrática de direito a dignidade da pessoa humana. Assim a pessoa passou a ser o cerne do

direito e respeitada em todos os aspectos no que diz respeito à sua qualidade humana. A

família deixou de ser patrimonializada e patriarcal, passando a ser um instrumento de

emancipação dos seus membros e de realização pessoal, tanto que o art. 226, §8º determina a

assistência à família na pessoa de cada um dos membros que a integra.

Os modelos de família passaram a ser de livre escolha das partes envolvidas,

vedando-se qualquer forma de intervenção pública ou privada (vide art. 1.513, CC). Cabe ao

casal planejar sua forma de constituição, como, aliás, determina a primeira parte do art. 226,

§7º, da Constituição Federal, ao dispor que “fundado nos princípios da dignidade da pessoa

humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal”.

Os avanços nas relações familiares refletiram sobremaneira nos filhos. Acabou a

odiosa discriminação entre filhos legítimos, de criação, bastardos e civis (art. 227, §6º, CF). A

filiação biológica teve sua importância enfraquecida diante da valorização do afeto no seio da

família.

O Código Civil de 1916 admitia o parentesco consanguíneo e o civil apenas mediante

a adoção (art. 332). O Código Civil de 2002 ampliou a possibilidade de filiação civil para

além da adoção, permitindo-se que resulte de outra origem (art. 1.593), o que obviamente

inclui a paternidade socioafetiva (os filhos do coração), possibilitando o reconhecimento dos

chamados “filhos de criação”, antes invisíveis perante o ordenamento jurídico.

Os direitos humanos foram reconhecidos e positivados na Constituição Federal,

garantindo-se os direitos fundamentais, dentre eles, como já ressaltado, o respeito à dignidade

e à liberdade de constituição de família sem necessidade de vínculos de consanguinidade.

A afetividade transformou-se no elemento essencial e aglutinador para configuração

da família.

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A assistência do Estado deslocou-se da família como instituição para a pessoa de

cada um dos membros, protegendo-se a dignidade da pessoa humana. Não mais se admite a

utilização do ser humano para atingir determinado fim, como ocorria na antiga família

brasileira, que sacrificava a realização pessoal de seus membros para manter um núcleo

patrimonial, político e religioso. Surgiu a família denominada pela doutrina de eudemonista,

que se identifica pelo seu envolvimento afetivo, buscando a felicidade e vivenciando um

processo de emancipação de seus membros.

As pessoas mais vulneráveis, nas relações familiares, como a mulher em face da

violência doméstica, os idosos, a criança e o adolescente receberam tratamento especial

protetivo na legislação. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente conferiu-

lhes tratamento prioritário.

A norma jurídica, entretanto, não consegue acompanhar a evolução e as

transformações da família moderna, regulando todas as relações sociais e afetivas. É

necessário cada vez mais adotar uma discussão principiológica no Direito de Família para

adaptar essas novas relações em uma realidade jurídica, buscando, como orienta Rodrigo da

Cunha Pereira, os princípios fundamentais norteadores do direito de família.

Dentre essas novas relações surgidas nos diversos arranjos familiares se apresentam

os filhos sem laços de sangue ou vínculo da adoção.

As famílias recompostas hoje é uma realidade na sociedade brasileira, resultante da

união de casais com filhos de relações anteriores e que passam a vivenciar uma nova família.

Surgem fortes laços afetivos e recíprocos de filiação/paternidade com o novo parceiro do

genitor, vínculo que muitas vezes se mantém mesmo após a separação do casal. Da mesma

forma crianças e adolescentes são acolhidos em famílias e criados como filhos sem regularizar

a situação jurídica, chamados popularmente de “filhos de criação”, tão comuns na sociedade

brasileira.

Necessário, diante desse pluralismo familiar e ausência de legislação específica para

regularizar a situação jurídica dos filhos de criação, buscar nos princípios norteadores das

relações familiares um norte para o Direito de Família. Necessário, assim, aplicar o princípio

fundamental da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade jurídica dos filhos

independente da origem, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e,

principalmente, o princípio da afetividade, como elemento formador e de manutenção da

família, para proteger e regularizar juridicamente a filiação afetiva.

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A afetividade surge assim como valor e princípio a autorizar o reconhecimento

jurídico da parentalidade socioafetiva, diante da posse do estado de filho, que se caracteriza

pela relação afetiva paterno/filial, ostensiva, duradoura. O Direito de Família evoluiu

significativamente nas últimas décadas e humanizou-se. O que importa na caracterização de

uma entidade familiar é o afeto, o amor, o cuidado e a felicidade de seus membros.

A socioafetividade como espécie da filiação, é caracterizada pela convivência,

afetividade e pela estabilidade nas relações familiares, formando-se cada vez mais marcante

na evolução do Direito da Família. Considera a doutrina que a verdade real é o fato de o filho

gozar da posse do estado de filho, que prova o vínculo parental civil de outra origem,

atribuindo um papel secundário à verdade biológica.

A moderna doutrina acolheu o ditado popular de que “pai é quem cria”, assumindo

juridicamente os filhos do coração nascidos culturalmente. Assim quando alguém assume o

papel de pai/mãe e outro assume o papel de filho surge a posse do estado de filiação, por força

da convivência familiar afetiva, e em consequência a relação paterno/filial de origem não

biológica, cabendo ao judiciário declará-la para produção de efeitos jurídicos e efetividade.

A afetividade, portanto, resulta da convivência familiar. É no trato frequente que se

cria, cultiva e solidifica os vínculos afetivos, essenciais para a boa formação das pessoas em

desenvolvimento. É fundamental o reconhecimento do direito de convivência familiar entre

pais e filhos que não residem sob o mesmo teto, socioafetivos ou biológicos, e não apenas

direitos de visitação, propiciando a manutenção da afetividade e dos cuidados mútuos,

firmando-se os vínculos familiares de forma afetiva e eficaz.

É na convivência com a família natural e extensa que o filho receberá os cuidados

necessários para sua sobrevivência, orientação e proteção, proporcionando referencial,

equilíbrio e segurança para seu desenvolvimento físico, psíquico, social e moral, tratando-se

de um direito fundamental à sobrevivência digna. É na família que o infante recebe afeto,

carinho, se sente protegido, amparado, criando os laços afetivos e desenvolvendo-se como

cidadão responsável.

Conviver é tratar diariamente, coexistir, criar, cultivar e manter vínculos afetivos,

essenciais para o desenvolvimento sadio dos filhos, por isso é criticável como ocorre na

prática a visitação em datas predeterminadas, impondo períodos de afastamento, pois ocasiona

estremecimento dos laços afetivos pela ausência do genitor no cotidiano do filho. O direito à

convivência familiar constitui, portanto, um direito fundamental da criança e do adolescente,

sujeitos de direitos, de conviver em família. A convivência solidifica os laços afetivos da

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criança, firmando-se os vínculos familiares de forma efetiva e eficaz, reforçando os vínculos

com a família materna e paterna, devendo substituir o direito de visitas aplicado pelos

tribunais, com dias e horários determinados, que acabam por ocasionar distanciamento entre

pais e filhos.

A convivência familiar, o tratamento recíproco entre pessoas que se comportam

como pais e filhos, ostensivo e duradouro, demonstrado por atos exteriorizados de afetividade,

configuram a posse do estado de filho, apreensível pelo Direito, permitindo o reconhecimento

da filiação socioafetiva.

O Enunciado 103 do Conselho da Justiça Federal dispõe que o art. 1.593 do Código

Civil de 2002 reconhece outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da

adoção, acolhendo o resultante da reprodução medicamente assistida heteróloga quanto ao

genitor que não contribuiu com o material genético e a paternidade socioafetiva fundada na

posse do estado de filho. No Enunciado 256 reitera que a posse do estado de filho constitui

modalidade de parentesco civil.

A filiação socioafetiva consiste, portanto, na posse do estado de filho, quando

pessoas se comportam como pai e mãe e outra se comporta como filho, em uma convivência

familiar estável e afetiva, revelando-se uma relação paterno-filial verdadeira, construída

culturalmente e consolidada nos laços de afeto. O elemento agregador da filiação deixa de ser

apenas o biológico, fundado nos laços de sangue, desbiologizando a paternidade, para

agasalhar a filiação cultural, consolidada nos laços de afeto, que muitas das vezes não existe

na filiação biológica, sustentada pelo desejo de ser pai ou de ser mãe, concebendo o filho no

coração, e o desejo deste de ser filho, de ser acolhido.

Apesar de não existir previsão legal expressa, os princípios constitucionais

norteadores do Direito de Família ultrapassam as concepções estritamente positivistas para

agasalhar a filiação socioafetiva em face dos novos conceitos de família, que elegeram os

valores fundamentais, fundados na dignidade da pessoa humana, para proteger cada um de

seus membros.

O princípio da dignidade da pessoa humana veda que o filho não biológico fique à

margem da proteção jurídica, como se fosse indigno, excluindo-o como pessoa do exercício

do estado de filho e de membro jurídico efetivamente integrante de uma família. O princípio

da igualdade e isonomia estabelece tratamento igualitário a todos os filhos, vedando qualquer

forma de discriminação em razão da origem da filiação. O princípio da melhor interesse da

criança e do adolescente orienta que deve ser conferida plena proteção às pessoas em

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formação, considerando primordialmente seu maior interesse, colocando em segundo plano os

interesses dos pais. Por fim, o princípio da afetividade admite o afeto como valor jurídico e

autoriza o reconhecimento jurídico dos filhos socioafetivos, incluídos no termo genérico da

filiação por outra origem.

A afetividade jurídica é demonstrada pelos atos exteriorizados de afeto, de condutas

objetivas paterno-filial de cuidados que se refletem no meio social, configurando a

socioafetividade. Não se trata, pois, de questões subjetivas de sentimentos, inapreensíveis pelo

Direito, criando-se um “princípio do amor” ou uma “teoria do afeto” subjetiva. A afetividade

jurídica se refere a fatos que externem a existência do afeto, o seu reflexo no mundo dos fatos,

no meio social. É nas condutas exteriorizadas de afeto pelas partes envolvidas que será

possível verificar a existência da afetividade e a configuração de uma relação paterno-filial

socioafetiva.

A paternidade socioafetiva vem sendo paulatinamente reconhecida na jurisprudência,

conferindo efetividade ao princípio da afetividade para acolher a filiação socioafetiva. A

paternidade socioafetiva já foi declarada em diversas decisões de primeiro grau e mantida

pelos Tribunais Estaduais, que concluíram que a paternidade socioafetiva é fenômeno

observado pela doutrina moderna e acolhido nos novos princípios estabelecidos pela

Constituição de 1988, que prima pela dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos

do Estado de Direito, extinguindo qualquer distinção relativa à filiação. O conceito biológico

tem perdido espaço na vida prática, pois o conceito moderno sobre a paternidade tem se

baseado no afeto da relação entre pai e filho, onde imperam os laços afetivos, devendo as

normas em vigor ser interpretadas com os novos fundamentos e princípios instituídos. Cabe

ao Juiz, no caso concreto, diante da inexistência de regras precisas inseridas no texto legal,

decidir de acordo com os princípios constitucionais e abrir a possibilidade do reconhecimento

judicial de relações familiares com base na afetividade.

O Superior Tribunal de Justiça também já reconheceu que a relação socioafetiva é

fato que não pode ser desconhecido pelo Direito e encontra alicerce no art. 227, § 6º da

Constituição Federal de 1988 e no art. 1.593 do Código Civil de 2002. Mesmo despida de

ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser

reconhecida juridicamente, amparada na cláusula geral de tutela da personalidade humana.

Os princípios fundamentais norteadores do Direito de Família, portanto, conferem

efetividade à afetividade para acolher a paternidade socioafetiva, permitindo seu

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reconhecimento voluntário ou judicialmente, mediante ação declaratória de paternidade

socioafetiva.

Reconhecida a paternidade socioafetiva, produz todos os efeitos jurídicos da filiação,

entre eles o estado de filiação, transcrito no registro civil e conferindo ao filho o direito ao

nome e estabelecimento das relações de parentesco com a família socioafetiva; o direito

recíproco a alimentos; o estabelecimento do poder familiar aos pais socioafetivos se o filho

for menor e direitos sucessórios recíprocos e extensivos a todos os parentes.

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