A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato /...

140

Transcript of A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato /...

Page 1: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 2: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 3: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 4: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 5: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 6: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 7: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 8: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Copyright©2017JesséJoséFreiredeSouza©2017CasadaPalavra/LeYa

TodososdireitosreservadoseprotegidospelaLei9.610,de19.2.1998.Éproibidaareproduçãototalouparcialsemaexpressaanuênciadaeditora.

PreparaçãodeoriginaisMariaClaraAntonioJeronimo

RevisãoBárbaraAnaissi

CapaeprojetográficoLeandroDittz

DiagramaçãoFiligrana

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

S715e

Souza,JesséAelitedoatraso:daescravidãoàLavaJato/JesséSouza.-RiodeJaneiro:Leya,2017.

NotasdefimISBN978-85-441-0537-5

1.Ciênciassociais.2.Economia-História-Brasil.I.Título.

17-44395 CDD:320CDU:32

TodososdireitosreservadosàEDITORACASADAPALAVRAAvenidaCalógeras,6|sala70120030-070–RiodeJaneiro–RJwww.leya.com.br

Page 9: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

SUMÁRIO

PREFÁCIO

ORACISMODENOSSOSINTELECTUAIS:OBRASILEIROCOMOVIRA-LATA

AESCRAVIDÃOÉNOSSOBERÇOOmundoqueaescravidãocriouFreyrecontraelemesmoSobradosemucambosouocamponacidade

ASCLASSESSOCIAISDOBRASILMODERNOAcriaçãodaralédenovosescravoscomocontinuaçãodaescravidãonoBrasilmodernoOsconflitosdeclassedoBrasilmodernoOpactoantipopulardaelitecomaclassemédiaAclassemédiaeaesferapúblicacolonizadapelodinheiroOmoralismopatrimonialistaeacríticaaopopulismocomonúcleodopactoantipopularOpactoelitistaesuaviolênciasimbólicaAelitedodinheiroeseusmotivosAclassemédiaesuasfrações

ACORRUPÇÃOREALEACORRUPÇÃODOSTOLOSAcorrupçãorealeacorrupçãodostolos:umareflexãosobreopatrimonialismoNormalizandoaexceção:oconluioentreagrandemídiaeaLavaJato

NOTAS

Page 10: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

E

PREFÁCIO

Sedoucomidaaospobres,todosmechamamdesanto.Masquandoperguntoporquesãopobres,mechamamdecomunista.

DomHélderCâmara

ste livro foi pensado para ser uma leitura historicamente informada da conjuntura recentebrasileira.Acrisebrasileiraatualé tambémeantesde tudoumacrisede ideias.Existemideiasvelhasquenos legaramo temada corrupçãonapolítica comonosso grande problema nacional.

Issoéfalso,embora,comoemtodamentiraeemtodafraude,tenhaseupequenogrãodeverdade.Nossacorrupção real, agrande fraudeque impossibilitao resgatedoBrasil esquecido ehumilhado, está emoutrolugareéconstruídaporoutrasforças.Sãoessasforças,tornadasinvisíveisparamelhorexerceremopoderreal,queolivropretendedesvelar.Essaéanossaelitedoatraso.

Paramelhorcumprirmeuobjetivo,construíestelivrosobaformadeumarespostacríticaaoclássicoRaízesdoBrasil,deSérgioBuarquedeHolanda,publicadoem1936.Comoveremos,olivrodeSérgioBuarqueé,aindahoje,aleituradominantedoBrasil,sejanasuamodernizaçãoemseusepígonosmaisfamosos, como Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso ou Roberto DaMatta, seja na suainfluência ampla e difusa nos intelectuais de direita e de esquerda do Brasil de hoje em dia. É ainfluênciacontinuadadessaleituranacabeçadaspessoasquenosfazdetolos.

OsucessodaempreitadadeSérgioBuarquesedeveaofatodeeleterlogrado,aomododosprofetasdas grandes religiões mundiais, responder às três grandes questões que desafiam indivíduos esociedades: De onde viemos? Quem somos? Para onde (provavelmente) vamos? Articular essas trêsquestões centrais de modo convincente permitiu que sua visão se tornasse a interpretação oficial doBrasilsobresimesmo.Comoiremosver,aLavaJatoselegitimacomSérgioBuarqueeseusepígonos;aRedeGlobolegitimasuaviolênciasimbólicadomesmomodo;ministrosdoSupremoTribunalFederal(STF) se legitimam a partir de suas ideias; e intelectuais importantes da esquerda continuamreproduzindosuassupostasevidênciaseasdeseusdiscípulos.

Minha teseéque tamanho sucessoeubiquidadeé resultadodaaçãocombinadadedois fatores: oprimeiroéofatodeSérgioBuarquehaverconstruídoumanarrativatotalizadora–comoadasreligiõesquenãopodemdeixarmargemalacunasedúvidas–doBrasiledesuahistória;eosegundopontoéodetercriadoalegitimaçãoperfeitaparaumadominaçãooligárquicaeantipopularcomaaparênciadeestarfazendocríticasocial.Éissoqueofaztãoamadopeladireitaepelaesquerda.

Tamanhainfluênciaubíquaeconvergentememotivouareconstruir,nestelivro,umacontraposiçãoasuasideias,pontoaponto,nastrêsquestõesseminaisquetodoindivíduoousociedadesãodesafiadosaresponder. Como não somos formigas que repetem uma informação genética, nosso comportamento édeterminadoporumavisãodomundoedascoisasqueé “construída”.Essa construçãodo sentidodo

Page 11: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

mundoeratrabalhodereligiososnopassadoedeintelectuaisnosúltimosduzentosanosdehistória.Esse“sentidodomundo”nosparece,então,“natural”,dadoquenascemossobainfluênciadele,esãopessoasamadaseadmiradas,emcasa,naescolaounatelevisão,quenosapresentamaele.Detalmodoquenosaparececomoalgo“confiável”.Éessaconfiabilidadequetorna tãofácila reproduçãodosprivilégioslegitimadosporessesentido,sempremuitoespecífico,e,aomesmotempo,tornaasuacríticatãodifícil.

Épocasdecrisecomoabrasileiraatualsão,nessesentido,umaoportunidadeúnica.Nacrise, todalegitimaçãoperdesua“naturalidade”epodeserdesconstruída.Masénecessárioquesereconstruaumnovosentidoqueexpliqueeconvençamelhorqueoanterior.Semisso,aexplicaçãoanteriortendeaseperpetuar.Éesseesforçoquepretendofazeraqui.Aideiaécriticarainterpretaçãodominantenãoapenasnas suas falhas conceituais, como já fiz antes em diversas ocasiões,1 mas também sua interpretaçãohistóricae factualdarealidadebrasileira.Essanovareconstruçãohistórica,porsuavez,permitiráumdiagnóstico,ameuver,muitomaisacuradoeconvincentedaprópriarealidadeatual.

Assim,perseguitrêseixostemáticosbemdefinidos.Oprimeiroétomaraexperiênciadaescravidão,e não a suposta e abstrata continuidade com Portugal e seu “patrimonialismo”, onde não existia aescravidão,comoasementedetodaasociabilidadebrasileira.Muitos falaramdeescravidãocomosefosseummero“nome”,semeficáciasocialesemconsequênciasduradouras,inclusiveSérgioBuarqueeseusseguidores.Compreenderaescravidãocomoconceitoémuitodiferente.Épercebercomoelacriauma singularidade excludente e perversa. Uma sociabilidade que tendeu a se perpetuar no tempo,precisamenteporquenuncafoiefetivamentecompreendidanemcriticada.

Osegundofoipercebercomoalutadasclassesporprivilégiosedistinçõeslogrouconstruiraliançasepreconceitosqueesclarecem,melhorquequalqueroutra coisa,opadrãohistóricoque se repetenaslutaspolíticasdoBrasilmoderno.Oprincipalaquiéevitarcompreenderasclassesdemodosuperficiale economicista, comoo fazem tantoo liberalismoquantoomarxismo.Aoperceber as classes sociaiscomoconstruçãosociocultural,desdeainfluênciaemocionaleafetivadasocializaçãofamiliar,abrimosumcaminhoqueesclarecenossocomportamentorealepráticonodiaadiacomonenhumaoutravariável.Essaéumapromessaquefaçoaoleitorsemmedodefracassar:épossívelreconstruirasrazõesdenossaprópriacondutacotidiana,assimcomoacondutadosoutrosqueconoscopartilhamomundosocial,demodoprecisoeconvincenteapartirdareconstruçãodaherançadeclassedecadaum.

AtradiçãoinauguradaporSérgioBuarqueearrasadoramenteinfluenteatéhojenãopercebeaaçãodasclassessociais,daíquetenhamcriadoo“brasileirogenérico”,ohomemcordialdeSérgioBuarqueouohomemdo“jeitinhobrasileiro”paraumDaMatta.Oconflitoentreasclassestambémédistorcidoetornado irreconhecível, sendo substituído por um falso conflito entre Estado corrupto e patrimonial emercadovirtuoso.Aindaquetodoonoticiárioatualmilitecontraessapercepção,semumadesconstruçãodo sentido velho e de uma reconstrução explícita de um sentido novo, seremos feitos de tolosindefinidamente.Éporcontadessainérciaprovocadapelaforçadeconcepçõespassadasquepensamososproblemasbrasileirossobachavedopatrimonialismoedopopulismo,doisespantalhoscriadosparatornarpossívelaaliançaantipopularquecaracterizaoBrasilmodernodesde1930.

Porfim,oterceiropontoéodiagnósticoacuradodomomentoatual.Seosdoispontosanterioressãoimportantes, suaeficáciadeve ser comprovadaporumdiagnósticodomomento atualmais profundo emaisverazqueodo“racismoculturalista”,comopodemosdefiniroparadigmaqueestamoscriticando.Esseéoconvitequefaçoaoleitor.Adentraroespaçodeumaaventuradoespíritoquevisalibertá-lodasamarrasinvisíveisdasfalsasinterpretaçõescríticas.Esseé,afinal,oprimeiropassoparaque,enfim,nãomais repitamos a nossa triste história da exclusão recorrente e golpes de Estado, mas que juntospossamosconstruiralgoverdadeiramentenovo.

Page 12: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 13: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

A

ORACISMODENOSSOSINTELECTUAIS:OBRASILEIROCOMOVIRA-LATA

primeira coisa a se fazer quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como omundosocialéperceberashierarquiasdequestõesmaisimportantesaseremesclarecidas.Semisso, nosperdemosna confusão.Aquestãodopoder é a questão central de toda sociedade.A

razãoésimples.Éelaquenosirádizerquemmandaequemobedece,quemficacomosprivilégiosequemé abandonado e excluído.Odinheiro, que é umamera convenção, só pode exercer seus efeitosporqueestáancoradoemacordospolíticose jurídicosquerefletemopoderrelativodecertosestratossociais.Assim,paraseconhecerumasociedade,énecessárioreconstruirosmeandrosdoprocessoquepermiteareproduçãodopodersocialreal.

O exercício do poder social real tem de ser legitimado.Ninguém obedece sem razão.No mundomoderno,quemcriaalegitimaçãodopodersocialqueseráachavedeacessoatodososprivilégiossãoosintelectuais.PensemosnaLavaJatoeemsuaavassaladorainfluêncianavidadopaís.A“limpezadapolítica”queoprocuradorDeltanDallagnol,ointelectualdaoperação,preconizaparaopaíséumameracontinuidadedareflexãodeSérgioBuarqueeRaymundoFaoro,comoveremosemdetalhemaisadiante.Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente de suas virtudespessoais, são suas ideias de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampirizaria a nação quelegitimamtodaaaçãopredadoradodireitoedasriquezasnacionaiscomandadapelaLavaJato.

O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de umcapitalismo financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso.DestruiraPetrobras,comooconsórcioLavaJatoegrandemídia,amandodaelitedoatraso,destruiu,significaempobreceropaísinteirodeumrecursofundamental,apresentando,emtroca,nãosóresultadosde recuperação de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição dequalquerestratégiadereerguimentointernacionaldopaís.EssasideiasdoEstadoedapolíticacorruptaservemparaqueserepasseempresasestataisenossasriquezasdosubsoloabaixocustoparanacionaiseestrangeiros que se apropriamprivadamente da riqueza que deveria ser de todos.Essa é a corrupçãoreal.Umacorrupção legitimadae tornada invisívelporuma leituradistorcidae superficialdecomoasociedadeeseusmecanismosdepoderfuncionam.

AconstruçãodeumaelitetodapoderosaquehabitariaoEstadosóexiste,narealidade,paraquenãovejamosaelitereal,queestá“foradoEstado”,aindaquea“capturadoEstado”sejafundamentalparaseusfins.Éumaideiaquenosimbeciliza,jáquedeslocaedistorcetodaaorigemdopoderreal.Nesseesquema,sefizermosumaanalogiacomonarcotráfico,ospolíticossãoos“aviõezinhos”doesquemaeficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de umameia dúzia.Combateracorrupçãodeverdadeseriacombaterarapina,pelaelitedodinheiro,dariquezasocialedacapacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadoresfinanceiros.

Page 14: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

O“imbecilperfeito”écriadoquandoele,ocidadãoespoliado,passaaapoiaravendasubfaturadadesses recursos a agentes privados imaginandoque assimevita a corrupção estatal.Como se amaiorcorrupção – no sentido de enganar os outros para auferir vantagens ilícitas – não fosse precisamentepermitir que umameia dúzia de super-ricos ponha no bolso a riqueza de todos, deixando o resto namiséria.EssafoiahistóriadaVale,quepagaroyaltiesridículosparaseapropriardariquezaquedeveriaserde todos,eessaserámuitoprovavelmenteahistóriadaPetrobras.Esseéopoderreal,querapinatrilhões e ninguém percebe a tramoia, porque foi criado o espantalho perfeito com a ideia de Estadocomoúnicocorrupto.

É por conta disso que a crítica das ideias dominantes é tão importante.Combatê-las é iniciar umprocessodeaprendizadoparanoslibertarmosdasituaçãodeimbecilidadeeidiotianaqualfomos,todosnós, levados pela estratégia de legitimação do poder real no nosso país. Por conta disso, temos queexaminardequemodo“ainterpretaçãodominante”dopaísajudouepavimentouotrabalhosujodamídiadedistorçãosistemáticada realidade.Semessaajudados intelectuaismais respeitadosentrenós,queproduziramuma interpretação falsamente crítica de nossa realidade, amídia não poderia ter feito seutrabalhodemodotãofácilequepenetroutãoprofundamentenoimagináriodapopulação.

Comonãoquerorepetirargumentosjáexplicitadosemoutroslivros,muitoespecialmentenoAtolicedainteligênciabrasileira,2fareiaquialgodistinto.Comoafalsainterpretaçãodominante,vendidacomocríticasocialentrenós,sebaseianaefetivanegaçãodaescravidãocomonossasementesocietária,vouprocurarreconstruirosprincipaiselementosdagêneseescravistaeprocurarpercebersuainfluênciaatéhoje.

Opresentenãoseexplicasemopassado,eapenasaexplicaçãoquereconstróiagêneseefetivadarealidade vivida pode, de fato, ter poder de convencimento. Essa é, inclusive, a razão da força deconvencimentodoculturalismoconservadorentrenós.Elesupostamenteexplicatudosemlacunas.Mas,antes de tudo, vamos explicitar, brevemente que seja, como a semente escravista foi silenciada esubstituídaporumainterpretaçãofalsacientificamenteeconservadorapoliticamente.Foiissoqueafezservirtãobemdepressupostoimplícitoparatodooataquemidiáticodehojeemdia.

O trabalho de distorção sistemática da realidade realizado pelamídia foi extremamente facilitadopelo trabalhopréviode intelectuaisqueforjaramavisãodominante,atéhoje,dasociedadebrasileira.Comoospensadoresqueestudamasregrasdaproduçãodeconhecimentoedaciênciasabemmuitobem,todooconhecimentohumanoélimitadohistoricamente.Issosignificaque,durantedécadaseatéséculos,todooconhecimentohumanoédominadoporum“paradigma”específico.3Um“paradigma”éohorizontehistóricoquedefineospressupostosparaqualquertipodeconhecimento.Normalmente,todasaspessoassãoinfluenciadaspeloparadigmanaqualsãocriadaseninguém,emcondiçõesnormais,pensaalémdeseutempo.

Issoacontecetantonasciênciasexatasquantonasciênciashumanas.Namedicina,porexemplo,antesdo conhecimento da ação demicrorganismos na produção das doenças, imaginava-se que as doençaseram causadas por fluidos misteriosos que se apoderavam dos corpos, daí o uso das sangrias e dasventosasnotratamentodosdoentes.Oavançoefetivodoconhecimentosedá,portanto,coma“superaçãode paradigmas” envelhecidosmais do que pelamera adição de conhecimentos dentro do contexto deparadigmassuperados.

Omesmo acontece no contexto das ciências humanas ou sociais.Uma das teses fundamentais quevenhodefendendonosmeuslivrosháquasevinteanoséadequeapercepçãodasociedadebrasileiraédominadaporumainterpretaçãoquesetravestedecientíficaequeconstituium“paradigma”específico.

Page 15: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Como dentro de ummesmo paradigma convivem interpretações que parecem, inclusive, ser opostas,quando são,nomáximo, a imagem invertidanoespelhodealgomuito semelhante, aquestãoprincipalparaasuperaçãodosparadigmascientíficoséperceberseuspressupostos.Énecessárioganhardistânciaemrelaçãoàquilo,precisamente,queépercebidocomoóbvioeevidenteportodos.

Emumamedicina,porexemplo,cujopressupostosejadequeasdoençassãocausadaspor fluidosmisteriososqueseapoderamdocorpo,amerasubstituiçãoouatéainversãodepráticasconsagradasdecuraemnadamudao“paradigma”dominante.Aocontrário,acríticadentrodeummesmoparadigmasóo torna ainda mais forte como referência fundamental, seja para quem concorda ou para quem quer“inovar”.Ainovaçãopossíveldentrodeummesmoparadigmaésempresuperficialenuncasequertocaoaspectoprincipal.

Asciênciassociaistambémpossuemseusparadigmashistóricos.Apenasparacitarumamodificaçãomaisrecenteeimportanteparanossosobjetivos,éinteressantenotarapassagemdoparadigma“racista”parao“culturalista”nasciênciassociais.Atéadécadade1920,oracismofenotípico,baseadonacordapele e nos traços fisionômicos, era reconhecido como ciência tanto internacionalmente comonacionalmente.Eraelequeesclarecia,por exemplo, aquestão fundamentalde explicar adiferençadedesenvolvimentoentreosdiversospovos.Poucoapoucoessetipoderacismofoicriticadoesubstituídopeloculturalismo.Oculturalismojulgavatervencidooparadigmaracistaetê-losuperadoporalgonãosócientificamentesuperior,mastambémmoralmentemelhor.

Afinal,nãoseriamaissimplesmentehabitarumcorpocomcertascaracterísticasfenotípicasoucertacordepelequeexplicariaocomportamentodaspessoas,mas,sim,oestoqueculturalqueelaherda.Essaexplicação tornou-se tãodominanteque ela rapidamente saiudos círculos científicos e tomouo sensocomum que compõe o conjunto de crenças dominantes compartilhadas pela esmagadora maioria deindivíduosdeumasociedade.

O culturalismo tornou-se uma espécie de “senso comum internacional” para a explicação dasdiferençassociaisededesenvolvimentorelativonomundointeiro.Oinstantedeourodoculturalismofoia entronizaçãoda teoria damodernizaçãoproduzida especialmente nosEUAdo segundo pós-guerra edisseminadaapartirdaínomundointeiro.Elaexplicavaprecisamenteoporquêdealgumassociedadesserem ricas e adiantadas eoutraspobres e atrasadas.OsEUA foram assim transformados emmodeloexemplar para o mundo, e comparações empíricas4 com outros países foram realizadas em escalamassiva para demonstrar que os EUA eram o paraíso na terra e todos os outros países, realizaçõesimperfeitasdessemodelo.

Nabasedesseargumentoestavaaherançaculturaldoprotestantismoindividualistaamericanocomoparadigma insuperável para a constituição de uma sociedade rica e democrática. Talcott Parsonsmobilizouseuprestígioesuainteligênciaparaessefim,easmelhorescabeçasnosEUAenomundoseprestaramaesseserviço,quefoiregiamentefinanciadopelogovernoamericanotantonosEUA,quantonosoutrospaíses,inclusivenoBrasil.5

Aindaqueateoriadamodernização,enquantoconhecimentodevanguarda,tenhadeixadodesersexycom o tempo, sendo criticada pelos seus seguidores mais conscientes,6 ela ainda é um pressupostoimplícitodetudoquesefaznessaáreaatéhoje.EmbasaasanálisesnãosódoBancoMundialedoFMIedetodososórgãosinternacionais,comotambémdetodasas“teorias”dominantesnomundo.Mesmoospensadoresmaiscríticosetalentososnuncaacriticaramenquantoumpressupostointocáveldapercepçãodadiferençadedesenvolvimentoentreospaíses.7

Amídia nomundo todo repete, reproduz e amplia, como se isso tudo fosse conhecimento real e

Page 16: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

indisputado, esse tipo de percepção para seus ouvintes e leitores. Afinal, a mídia não produzconhecimento. Ela apenas distribui e eventualmente, como no nosso caso, em um contexto de totaldesregulaçãodotrabalhomidiático,enfatizaalgunsaspectoseencobreoutrostantosdeacordocomseusobjetivos comerciais e políticos. Mas ninguém na mídia “cria” conhecimentos. O prestígio doconhecimento percebido como autêntico é sempre produto de especialistas treinados. A mídia estácondenadaaseutilizardessematerial,daíumapercepçãoadequadaecríticadoconhecimentotidocomocientíficosertãoimportanteparaumaanálisenãosódopapelpolíticodamídia,masdascrençasqueaspessoascompartilhamnavidacotidianasemqualquerdefesacontraseusefeitos.

Minhatese,noentanto,nãoéapenasadequeasciênciassociaisnomundotodoaindaestãosobodomíniototal–naáreadaproduçãocientíficadominante–ousobdomínioparcial–naáreadaproduçãocientíficacrítica–doparadigmadateoriadamodernização.Minhasegundatese,nessecontexto,éadequeoparadigmaculturalistaé,naverdade,umafalsarupturacomoracismocientífico“racial”.Eminhaterceira teseéadequeasciências sociaisdominantesnoBrasil repetemessemesmoesquemaeessemesmofalso rompimento como “racismocientífico”da cordapele.Ou seja, caro leitor, em resumo,ainda estamos tratando as doenças nas ciências sociais brasileiras como se essas fossem produto defluidosmisteriososnocorpoenãocausadaspelaaçãodemicrorganismos.

O falso rompimento com o racismo científico é de fácil comprovação. Quando se apela para o“estoquecultural”para explicaro comportamentodiferencialde indivíduosoude sociedades inteiras,temossempreumaspectocentraldessaideiaquenuncaédiscutidooupercebido:seuracismoimplícito.Em outras palavras, o culturalismo da teoria da modernização – e de nosso culturalismo tupiniquimtambém,comoveremos–éumacontinuaçãocomoutrosmeiosdoracismocientíficodacordapeleenãoasuasuperação.Osdoisfazemparte,portanto,domesmoparadigmaeamboscontinuamaacharquesãofluidosmisteriososquecausamasdoenças.

Onde reside o racismo implícito do culturalismo?Ora, precisamente no aspecto principal de todoracismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos desegundaclasse.Iremos,nodecorrerdestelivro,usarotermo“racismo”nãoapenasnoseusentidomaisrestritodepreconceitofenotípicoouracial.Iremosutilizá-lotambémparaoutrasformasdehierarquizarindivíduos,classesepaísessemprequeomesmoprocedimentoeamesmafunçãodelegitimaçãodeumadistinçãoontológicaentresereshumanossejamaplicados.Afinal,essashierarquiasexistemparaservirde equivalente funcional do racismo fenotípico, realizando o mesmo trabalho de legitimar pré-reflexivamenteasupostasuperioridadeinatadeunseasupostainferioridadeinatadeoutros.

Quandoosteóricosdamodernizaçãodeontemedehojedizemqueoprotestantismoindividualista,tipicamenteamericano,cria seresexcepcionais,mais inteligentes,produtivosemoralmente superiores,esvai-sequalquerdiferençacomoracismocientíficoqueseparaaspessoaspelacordapele.Piorainda.Ao substituir a raça pelo estoque cultural, dá a impressão de cientificidade, reproduzindo os piorespreconceitos.Osseressuperioresseriammaisdemocráticosemaishonestosdoqueosinferiores,comoos latino-americanos, por exemplo. Tornam-se invisíveis os processos históricos de aprendizadocoletivoesecriamdistinções tãonaturalizadase imutáveisquantoacordapeleousupostosatributosraciais.

O culturalismo, falso cientificamente como ele é, cumpre assim exatamente asmesmas funções doracismocientíficodacordapele.Presta-seagarantirumasensaçãodesuperioridadeededistinçãoparaospovosepaísesqueestãoemsituaçãodedomínioe,dessemodo,legitimaretornarmerecidaaprópriadominação.Hojeemdia,naEuropaenosEUA,absolutamenteninguémdeixadeseacharsuperioraoslatino-americanoseafricanos.Entreosmelhoresamericanoseeuropeus,ou seja, aquelesquenãosão

Page 17: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

conscientementeracistas,nota-seoesforço“politicamentecorreto”desetratarumafricanoouumlatino-americanocomoseestefosseefetivamenteigual.Ora,omeroesforçojámostraaeficáciadopreconceitoquedivideomundoentrepessoasdemaioredemenorvalor.Adesigualdadeontológicaefetivamentesentida,nadimensãomaisimediatadasemoções,temquesernegadaporum“esforço”dointelectoquesepolicia.Osrituaisdopoliticamentecorretosãoexplicáveisemgrandemedidaporessefato.

Issoajudaascamadasdominantesdospaísescentraisalegitimarseuprópriosistemasocialparaseu“povo”,quenãodevereclamardoseusistemapostoqueseriasuperioraosoutros.Eajudaasmesmascamadassuperioresinternacionalmente, jáqueémaisfácilexpropriarriquezasdepovosqueseachammesmoinferioresedesonestos.Oraciocíniodotipo“entregaraPetrobrasparaosestrangeirosémelhorquedeixá-laparanossospolíticoscorruptos”setornajustificávelprecisamentenessecontexto,apesardeabsurdo.

Cria-se,comisso,umamentalidadedo“senhor”,dospaísesquemantêmumadivisãointernacionaldo trabalho que os beneficia como “merecimento”, e umamentalidade de “escravo”, daqueles povoscriadosparaaobediênciaeparaasubordinação.Essedadodasuperioridadedosoutrosépercebidoportodos como tão óbvio quanto o fato de que o Sol se põe todos os dias para nascer de novo no diaseguinte.Éumpressupostotãoóbvioparaosindivíduoscomunscomooéparaosespecialistas.

O racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento social, seja narelação entre os povos, seja na relação entre as classes de ummesmo país.Um brasileiro de classemédiaquenãosejaabertamenteracista tambémsesente,emrelaçãoàscamadaspopularesdoprópriopaís,comoumalemãoouumamericanosesenteemrelaçãoaumbrasileiro:eleseesforçaparatrataressaspessoascomosefossemgenteigualaele.Oqueanteseraciênciapassaaser,porforçadosmeiosdeaprendizado,comoescolaseuniversidades,emeiosdedivulgação,comojornais,televisãoecinema,crençacompartilhadasocialmente.Por força tantoda legitimidadeedoprestígiodaciênciaquantodopoderde repetiçãoe convencimentomidiático, aspessoaspassama pensar omundode talmodoquefavoreceareproduçãodetodososprivilégiosqueestãoganhando.

Quepressupostoéessequetodos,especialistasounão,seutilizamimplicitamentesemjamaisrefletirsobre ele? O pressuposto nunca refletido no caso é a separação da raça humana entre aqueles quepossuemespíritoeaquelesquenãoopossuem,sendo,portanto,animalizadosepercebidoscomocorpo.AdistinçãoentreespíritoecorpoétãofundamentalporqueainstituiçãomaisimportantedahistóriadoOcidente,aIgrejaCristã,escolheucomocaminhoparaobemeparaasalvaçãodocristãoanoçãodevirtudecomodefinidaporPlatão.Este,por suavez,definiaavirtudenos termosdanecessidadedeoespírito disciplinar o corpo percebido como habitado por paixões incontroláveis – o sexo e aagressividadeàfrentedetodas–quelevariamoindivíduoàescravidãododesejoeàloucura.8

Notebem,leitor,quenãofoialeituradePlatão–emumaépocaemquepouquíssimossabiamler–quefezcomqueessahierarquianospenetrassedetalmodoquehojeapercebemoscomotãoóbviaepré-reflexivaquantooatode respirar.Foio trabalhodiário, seculare silenciosodemilharesdepadresemongesquetodososdias,primeironaEuropaedepoisnasregiõesmaisremotas,incutianoscamponesesenoscitadinosessanoçãomuitoparticulardevirtudecomonecessáriaparaasalvação.Eissoemumaépocahistóricanaqualaspessoas tinhamasalvaçãonooutromundocomopontofundamentaldesuasvidas.

É assim, afinal, que as ideias dominantes passam a determinar a vida das pessoas comuns e seucomportamentocotidianosemqueelastenhamqualquerconsciênciarefletidadisso.Ela,aideia,une-seainteresses–nocasoointeressereligiosodeangariarfiéis–epassapelaaçãoinstitucionalquecriaos

Page 18: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

seusagentes,sacerdotesemonges,eumaaçãocontinuadanotempoemumadadadireçãoeumconteúdoespecífico.Éprecisamenteessaaçãocontinuadano tempo,atuandosempreemummesmosentido,quelogramudarapercepçãodavidae,portanto,emconsequência,ocomportamentopráticoeavidarealeconcretacomoumtodoparaumaenormequantidadedepessoas.

Foiporcontadessaaçãoinstitucional,primeiroreligiosa,edepois,hojeemdia,pelaaçãodamídiaeda indústriadosbensdeconsumocultural,comocinemae livrospopulares,queessahierarquiamoralqueseparaoshomenseasmulheresemseresdeprimeiraedesegundaclasseganhounossoscoraçõesenossasmentes.Elamandaemnossasaçõesenossospensamentosaindamaispelofatodenuncasequertermosjamaisrefletidoacercadesuainfluêncianonossocomportamentodiárioenanossavidacomoumtodo.Semaconsciênciacríticadaaçãodessasideiassobrenossocomportamento,somostodosvítimasindefesasdeumaconcepçãoquenosdominasemquepossamossequeresboçarreação.

Como nunca refletimos sobre essa ideia-força e suas consequências, ela se presta como nenhumaoutraasepararehierarquizaromundodemodopráticoemuitodiferentedaregrajurídicadaigualdadeformal.Elaé,inclusiveeporcontadisso,muitomaiseficazquetodososcódigosjurídicosjuntos.Nãosóaseparaçãoentrepovosepaíses,mas tambémentreasclasses sociais, entreosgêneroseentreas“raças”, é construída e passa a ter extraordinária eficácia prática precisamente por seu conteúdoaparentementeóbvioenuncarefletido.

Afinal, as classes superiores são as classes do espírito, do conhecimento valorizado, enquanto asclasses trabalhadoras são do corpo, do trabalho braçal e muscular, que as aproxima dos animais. Ohomemépercebidocomoespírito,emoposiçãoàsmulheresdefinidascomoafeto.Daíadivisãosexualdotrabalho,querelegaasmulheresaotrabalhoinvisibilizadoedesvalorizadonacasaenocuidadodosfilhos.Nósnão refletimosnuncaacercadessashierarquias, assimcomonão refletimos sobreoatoderespirar.Éistoqueasfazemtãopoderosas:elassetornamnaturalizadas.Esquecemosquetudoquefoicriadoporsereshumanostambémpodeserrefeitopornós.

Comonãopercebemosessashierarquias,elasmandamemnóstodosdemodoabsolutoesilencioso.O fato de não as percebermos facilita enormemente seu efeito perverso. No caso das mulheres, dasquinhentasmaioresempresasdomundo,492sãodirigidasporhomens.Dealgummodo,essahierarquiaperversaestánacabeçatambémdosqueescolhemosCEOdasgrandesempresas,fazendocomqueoshomenssejammaioriaesmagadora.

Seessahierarquiamoraléinvisívelparanós,seusefeitos,aocontrário,sãomuitíssimovisíveis.Omesmoesquemapossibilitaqueobrancoseoponhaaonegrocomosuperiortambémpré-reflexivamente.Mesmoassupostasvirtudesdonegrosãoambíguas,postoqueoanimalizamcomaforçafísicaeoapetitesexual.Ogrande problemadessas hierarquias que se tornam invisíveis e pré-reflexivas é sua enormeeficáciaparacolonizaramenteeocoraçãotambémdequeméinferiorizadoeoprimido.

NosEUAenaEuropa,essasideiasqueoselevamedignificamservemparaespalharumsentimentode superioridade difuso que abrange toda a sociedade. Ele serve, portanto, como legitimação internanessespaíseseéumaespéciedeequivalentefuncionaldocolonialismoanterior:serveparajustificaresacralizartodasasrelaçõesfáticasdedominaçãonaordemmundial.Oculturalismodomaisforteservetambém, muito especialmente nos EUA, a prestar o mesmo serviço que o racismo contra os negrossemprepossibilitounosEUA:dotaraclassebaixadosbrancosdoSuldopaísdeumorgulhoracialparacompensarasuapobrezamaterialrelativasecomparadaaosbrancosmaisricosdoNorte.

Avantagemcomparativadoculturalismoracistasobreoracismoclássicoéque,comonãosevinculaà cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por exemplo, aos latinos e

Page 19: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

estrangeiros.Autilidadepráticadesseracismoocultado,queéoculturalismoparaospaísesdominantese,muito especialmente, para suas classes dominantes, é muitomaior que a do racismo explícito quevigoravaantes.

Comosedeuaconstruçãodoparadigmaracista/culturalistaentrenós?Comoépossívelquealgunsdenossos indivíduos mais inteligentes tenham construído concepções de mundo que nos humilham, nosrebaixam e nos animalizam? Isso tudo pensado como se fosse destino imutável? Que americanos eeuropeussedeixemcolonizarporessetipodeconcepçãodemundoqueosdignificaélamentável,masécompreensível.Afinal,seretiramvantagensbemconcretasdessefato.Queoslatino-americanosemgeraleosbrasileirosemparticular tenhamsedeixadoeaindasedeixem,atéosdiasdehoje,colonizarporumaconcepçãoracistaearbitráriaqueosinferiorizaelhesretiraaautoconfiançaeaautoestimanãoéapenaslamentável.Éumacatástrofesocialdegrandesproporções.Comoasideiassãofundamentaisparaa ação prática, jamais seremos um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimasindefesasdessepreconceitoabsurdo.

Nãoteriaserealizadotamanhoataquemidiáticobaseadonesseracismocontrasimesmo,nanoçãodecorrupçãocomodadoculturalbrasileiro,comofundamentodetodososgolpesdeEstado,ejamaisteriase realizadoumembustedeproporçõesgigantescascomoaoperaçãoLavaJato, semessepressupostoconferido pelas ideias dominantes contra as quais não temos defesa consciente. Afinal, é precisoconvencertodoumpovoqueeleéinferiornãosóintelectualmente,mas,tãooumaisimportante,tambéminferiormoralmente.Queémelhorentregarnossasriquezasaquemsabemelhorutilizá-las,jáqueoutrossãohonestosdeberço,enquantonósseríamoscorruptosdeberço.

Alémdisso, se juntamosopreconceitodo supostopatrimonialismocongênito, comoEstado comolugardaelitecorrupta,comanoçãoantipopularepreconceituosade“populismo”, tambémprodutodeintelectuais,quedizquenossopovoédesprezívele indignodeajudae redençãocontaminando todaapolíticafeitaemseufavor,explicamosemboaparteamisériadapopulaçãobrasileira.Acolonizaçãodaelite brasileiramais mesquinha sobre toda a população só foi e é ainda possível pelo uso, contra aprópriapopulaçãoindefesa,deumracismotravestidoemculturalismoquepossibilitaalegitimaçãoparatodoataquecontraqualquergovernopopular.

Todo racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa escravizar ooprimido no seu espírito e não apenas no seu corpo. Colonizar o espírito e as ideias de alguém é oprimeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso. De nada adianta americanos e europeusproclamarem suas supostas virtudes inatas, se africanos, asiáticos e latino-americanos não seconvenceremdisso.Domesmomodo,denadaadiantanossaelitedodinheiroconstruirumaconcepçãodepaísedenaçãoparaviabilizarseusinteressesvenaisseaclassemédiaeapopulaçãocomoumtodonãoforconvencidadisso.

Éaíqueentramosintelectuaiscomseuprestígioeamídiacomseupoderdeamplificarereproduzirmensagenscomduplosentido:mensagensquefazemdecontaqueesclarecemomundocomoeleé,masque,nofundo,existempararetirardaspessoastodacompreensãoetodadefesapossível.

Ninguém na mídia cria nenhuma ideia. Falo aqui, obviamente, de ideias-força, aquele tipo depensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é restrito a intelectuais eespecialistas treinados. A mídia retira seu poder de fogo desse reservatório de ideias dominantes econsagradas.Elaélimitadanoseualcancepeloprestígioqueessasideiaseseusautores,queelaveicula,desfrutamemumasociedade.

Daíquesejafundamentalpercebercomoasideiassãocriadasequaloseupapelnaformacomoa

Page 20: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e asclassessociaisvãodefinirsuaaçãoprática,quertenhamounãoconsciênciadisso,apartirdessemesmorepositóriode ideias.Novamente,não somos formigas.Emvezdeumcódigogenéticoquedefineporantecipação o comportamento das formigas e das abelhas, nós só podemos construir e reproduzir umpadrãodecomportamentopor forçade ideiasquenosajudama interpretaromundo.Afinal, sãoessasideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses econflitos.Comonãosomosabelhasnemformigas,masumtipodeanimalqueinterpretaaprópriaação,todaanossaaçãonomundoé influenciada,quer saibamosdissoounão,por ideias.Sãoelasquenosfornecemomaterialquenospermiteinterpretarnossaprópriavidaedarsentidoaela.

Porcontadisso,quemcontrolaaproduçãodasideiasdominantescontrolaomundo.Porcontadissotambém,asideiasdominantessãosempreprodutodaselitesdominantes.Énecessário,paraquemdominaequercontinuardominando,seapropriardaproduçãodeideiasparainterpretarejustificartudooqueacontecenomundodeacordocomseusinteresses.

No mundo moderno, a dominação de fato tem quer ser legitimada cientificamente. Quem atribuiprestígiohojeemdiaaumaideiaéoprestígiocientífico,assimcomoanteseraoprestígioreligiosoousupostamentedivino.Éaciênciahoje,maisqueareligião,quemdecideoqueéverdadeirooufalsonomundo.Porcontadisso,todainformaçãomidiática,nojornalounaTV,procuraselegitimarcomalgumespecialistanamatériaqueestejasendodiscutida.Nessaestratégiadedominação,queémaissimbólicaque material, é a posse do que é tido como verdadeiro que permite também se apoderar do que épercebidocomojustoeinjusto,honestoedesonesto,corretoouincorreto,bemoumaleassimpordiante.Controla-seapartirdoprestígiocientífico,portanto,tudoqueimportananossavida.

Essaéaraiztambém,comonãopoderiadeixardeser,doculturalismoracistaquediscutimosacimaequemandananossainterpretaçãoejustificaçãodomundohojeemdia.Nãoporacaso,adominânciadoculturalismoracistaéumefeitodadominaçãoamericanaapartirdoséculoXX,muitoespecialmenteapartirdaSegundaGuerraMundial.Oracismoculturalamericanovaisubstituir–comenormesvantagens–oracismofenotípicoouracialdoracismocientíficoquevigorounafasedocolonialismoeuropeudoséculoXIXedocomeçodoséculoXX.

OnovoracismoculturalistaamericanofoiimplementadocomopolíticadeEstadoenãofoideixadoàação espontânea de ninguém.A teoria damodernização recebeu dinheiro pesado do departamento deEstadoamericano,sobocomandodeHarryTrumannopós-guerra,parasetornarparadigmauniversal.Apartirdaí,a teoriadamodernizaçãoamericanavirouumaespéciedecoqueluchemundial.Milharesdetrabalhos foramrealizadosnasduasdécadas seguintes como intuitodemostrar comoosEUAeramomodelo universal para o planeta. Todos os outros países eram uma espécie de realização incompletadessemodelo.Depois,todosospaísescolonizadosreceberamtambémdinheirodefundaçõesamericanasparaveicularemessa teoriaeseuspressupostos implicitamenteracistasnomundo inteiro, inclusivenoBrasil.

Mas noBrasil, onde a comparação com os EUA foi a obsessão de todos os intelectuais desde ocomeço do séculoXIX, a elaboração de nosso culturalismo racista invertido, contra nósmesmos, foirealizadapormãosnativaseantesmesmodacoqueluchemundialdoparadigmaculturalista racistadateoriadamodernização.Somos,porassimdizer,escravostãosubservientesqueantecipamososdesejosdo nosso senhor antes mesmo que ele o tenha expressado. Somos escravos de casa, escravos deconfiança, daqueles que se candidatam a ser um agregado da família, sonho que nossos intelectuaiscompartilhamcomnossaeliteenossaclassemédiaemrelaçãoaosEUA.Daíqueaelaboraçãodeteoriasracistasquenosrebaixamehumilhamtenhasidoparalelaerelativamenteindependentedessemovimento

Page 21: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

internacional e político mais óbvio, como estratégia americana de dominação política por meio daciêncianopós-guerra.

Assim,senadécadade1930,enquantoTalcottParsonsdavaosprimeirospassosemseuengenhosoesquema a partir do qual se tornaria a influência máxima da teoria da modernização no mundo, sedesenhavanoBrasilasuacontraparte“vira-lata”,produtomaistípicodopensamentodoescravodócil,pontoapontoaimageminvertidadaquiloqueParsonsconstruíacomoautoimagemdasuperioridadedosamericanosnomundo.9Se Parsons e seus seguidores iriam construir a imagem dos americanos comoobjetivos,pragmáticos, antitradicionais,universalistaseprodutivos,nossospensadoresmais influentesiriamconstruirobrasileirocomopré-moderno,tradicional,particularista,afetivoe,paracompletar,comumatendênciairresistívelàdesonestidade.

Ocomeçodessaaventurabrasileiranopensamento,noentanto,nãofoitãomalassim.GilbertoFreyrefoiafigurademiúrgicadesseperíodo.Intelectualambíguoecontraditório–aosmeusolhosobrasileiromaisgenialnaesferadopensamento,aindaqueconservadornapolítica–,FreyreconstruiutodooenredodoBrasilmoderno prenhe de ambiguidade e de contradições como seu criador. Como homem de seutempo, Freyre era prisioneiro do racismo científico. Tendo sido exposto, no entanto, nos anos 20 doséculopassado,aoculturalismo,àépocadevanguarda,deFranzBoas,queinfluencioudecisivamenteaantropologia e as ciências sociais americanas críticas do racismo científico,10 Freyre elaborou umainterpretaçãoculturalistaqueprocuroulevaroculturalismovira-lataaoseulimitelógico.

Como não percebia o principal, que é a assimilação de pressupostos implicitamente racistas nocoraçãodopróprioculturalismo,Freyrelutoubravamentedentrodoparadigmadoculturalismoracista,paratornaraomenosambíguaecontraditóriaacondenaçãopréviadassociedadesditasperiféricasemrelação às virtudes reservadas aos americanos e europeus. Freyre procurou e conseguiu criar umsentimento de identidade nacional brasileiro que permitisse algum “orgulho nacional” como fonte desolidariedade interna. Foi nesse contexto que nasceu a ideia de uma cultura única no mundo, luso-brasileira,percebidacomoaberturaculturalaodiferenteeencontrodecontrários.Daítambémtodasasvirtudesdominadas,postoqueassociadasaocorpoenãoaoespíritoquesingularizamobrasileiroparaelemesmo e para o estrangeiro: a sexualidade, a emotividade, o calor humano, a hospitalidade, etc.AntesdeFreyreinexistiaumaidentidadenacionalcompartilhadaportodososbrasileiros.

Freyreprocura,narealidade,utilizar-sedetodasasambiguidadesimplícitasnoparadigmaquedefineoespíritonasuavirtualidadedeinteligênciaemoralidadesuperiorcontraocorpoanimalizado.Ocorpoem Freyre é percebido como domínio das emoções reprimidas pelo espírito que não apenas pensa emoraliza,masque tambémcontrola,higienizae segrega.Asegregação racial explícitadosamericanosseriaumsímbolodaausênciadeemoçãocomodefeitoedoença.Aemoção,afinal,quepodesersádica,masquepodetambémaproximarepermitiroaprendizadodecontrários,criandocombinaçõesoriginaisqueera,nosseussonhos,oqueoBrasiljáeraeaindapoderiamelhorar.

Freyre foi o criador do paradigma culturalista brasileiro vigente até hoje dominado pelas falsasideiasdacontinuidadecomPortugaledaemotividadecomotraçosingulardessacultura.Noentanto,sualeiturasetornoudominadadentrodessemesmoparadigmaculturalistaracistadesepensaroBrasilesuasingularidade.DarcyRibeirotalvezsejaoseguidormaisinfluentedaquelacorrentequeenxergaoBrasilcomopotencialmente tendoumamensagemoriginal para omundo.Muitos são freyrianos semo saber.LembroartistascomoGlauberRochaouJorgeMautnereatéCaetanoVeloso,queimaginamperscrutaressamesmaoriginalidadepela intuiçãoartística.Sãoseguidores,comotodosnósemcerto sentido,deumaideiaquefoiFreyrequedeucorpoematerialidade.

Page 22: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Independentemente da questão se esse conjunto de atributos é verdadeiro ou falso – a identidadenacionalnãoédefinidapeloseuvalordeverdadeesimporsuaeficácianaproduçãodeumacomunidadeimaginária que se percebe como singular –, foi Freyre quem sistematizou e literalmente construiu aversãodominantedaidentidadenacionalemumpaísque,antesdele,nãotinhaconstruídonadarealmenteeficaznessesentido.

Suaversão,noentanto,foilogocriticadaporSérgioBuarquedeHolanda.BuarquevaiseaproveitardetodasasideiasfundamentaisdeFreyre–aindaquetodasascitaçõesdeledesapareçampaulatinamentenas versões subsequentes de seu clássico Raízes do Brasil –,11 mas vai utilizá-las de modo muitopessoal.TodooesforçodeFreyre emver aspectospositivosoupelomenos ambíguosnoque eleviacomo “legado brasileiro” foi invertido e transformado em unicamente negativo. Não obstante, foi omesmo homem plástico e emotivo de Freyre como representação da singularidade brasileira que setornouamatéria-primaparaaconstruçãodaideiade“homemcordial”comoexpressãomaisacabadadobrasileiroparaSérgioBuarque.

SérgioBuarqueoperaduas transformaçõesessenciaisnoparadigma inventadoporFreyreque irãopossibilitarqueoculturalismoracista,agoranaversãovira-latadeBuarque,setorneoporta-vozoficialdo liberalismo conservador brasileiro. Versão vira-lata essa, por servir precisamente de legitimaçãoperfeita para o tipo de interesse econômico e político da elite econômica quemanda nomercado, setornariaainterpretaçãodominantedasociedadebrasileiraparasimesmaatéhoje.

Aprimeiratransformaçãoéamutaçãoradicaldobrasileiropensadogenericamentesemdistinçõesdeclasseenquantopuranegatividadenanoçãodehomemcordial.Asegundaéoalongamentodanoçãodehomem cordial na noção de Estado patrimonial. As duas noções conjugadas constroem a ideia dobrasileiro como vira-lata da história, sendo a imagem invertida no espelho do protestante americanotransformadoemherói.

IremosdetalharessacríticanofimdolivroquandocomprovarmosqueéessaideiaqueestáportrásdetudoquesedizhojeemdianoBrasildadireitaàesquerda,deDeltanDallagnolaFernandoHaddad,doespectropolítico.Masalgumasideiassãoimportantesjáagoraparasaberoquecriticamosecomoessaconcepçãocriaumainterpretaçãofalsadefioapaviosobreasociedadebrasileira.

Muitos imaginaram, ingenuamente, inclusive intelectuais reconhecidos, que o simples fato de ohomemcordialserdefinidocomonegatividadeseriamarcadeumaconcepçãocríticaquesecontraporiaaoconteúdoafirmativoecelebratóriodeFreyre.Nadamais ingênuo.ArealcríticaaFreyreexigiriaacríticadospressupostosculturalistas/racistasdoparadigmaqueoinfluenciou,coisaqueSérgioBuarquejamais fez,muito antes pelo contrário.Ele, na realidade, regrediu em relação aFreyre, que havia, aomenos,procuradocriticar,aindaquedentrodoparadigmaculturalista/racista,atesedoamericanoedoeuropeucomoseresdivinamentesuperiores.SérgioBuarquenemissosequertentou.Aceitaaviralaticedobrasileiro como lixodahistóriadebomgrado edegrada edistorce apercepçãode todoumpovocomointrinsecamenteinferior.Eaindatiraondadecrítico,seguidoporcercade90%daintelectualidadenacional,portersupostamentedescobertoasrazõesdafraquezanacional.

Oembustesetornacompletoportertambéminventadooconceitoaomesmotempomaisfajutoemaisinfluentedetodoopensamentosocialbrasileiro,queéanoçãodepatrimonialismo.OpatrimonialismodefendequeoEstadonoBrasil éumalongamento institucionalizadodohomemcordial e tãovira-lataquantoele.Abrigaelitesqueroubamopovoeprivatizamobempúblico.Issoébemmenosqueumameiaverdade.Mostrarei,aofimdestelivro,emdetalhe,queessanoção,inclusive,éumcontrabandomalfeitode uma noção weberiana inutilizável no caso brasileiro. Essa noção é central para a legitimação do

Page 23: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

liberalismo conservador brasileiro e se tornou, como consequência da própria defesa dos interesseseconômicos e políticos conservadores envolvidos, na própria interpretação dominante dos brasileirossobresimesmo,sejanadireitasejanaesquerda(quesedeixacolonizarintelectualmentepeladireita)doespectropolítico.

A interpretação de Sérgio Buarque, que logra ser a cobertura perfeita para todos os interesses eprivilégiosqueestãoganhando,setornadominanteporfazê-lodandoaimpressãodecríticaradical,daísua genialidade e perpetuação no tempo. Os discípulos, que são maioria tanto na direita como naesquerda,apenas repetemoparadigma.Torna todososnossosconflitos reais invisíveisaoconstruir asingularidade brasileira a partir do homem cordial, do homem emotivo como negatividade e comopotencialmentecorrupto,jáquedividiriaomundoentreamigoseinimigosenãodemodo“impessoal”,que ele imagina, em uma idealização descabida e infantil, existir em algum lugar. O Estadopatrimonialistaseriaaprincipalherançadohomemcordialeprincipalproblemanacional.

Estácriadaaideologiadovira-latabrasileiro.Inferior,postoquepercebidocomoafetoe,portanto,como corpo, opondo-se ao espírito do americano e europeu idealizado, como se não houvessepersonalismo e relações pessoais fundando todo tipo de privilégio também nos EUA e na Europa. Aemoção nos animalizaria, enquanto o espírito tornaria divinos americanos e europeus. Como seresdivinos,osamericanosseriamseresespeciaisquepõemaimpessoalidadeacimadesuaspreferências,explicandocomissoaexcelênciadesuademocracia,assimcomosuahonestidadeeincorruptibilidade.As falcatruas globais do mercado financeiro americano, que ficaram públicas na crise de 2008,construídaspara iludireenganarosprópriosclientesedrenaroexcedentemundialemseufavor,são,certamente,invençãodealgumbrasileirocordialquepassouporláeinoculouovírusdadesonestidadenessasalmastãopuras.

Mas Sérgio Buarque também esconde a nossa hierarquia social, já que se esquece de explicar agênesedaquele tipode capital que, para ele, singularizaria oBrasil.O capital do homemcordial é ocapitalderelaçõespessoais,ouaquiloqueRobertoDaMatta,discípulodeSérgioBuarquecomoquasetodos,chamariamaistardede“jeitinhobrasileiro”,umasupremabobageminfelizmentenaturalizadapelarepetiçãoeusadacomoexplicaçãofácilemtodososbotecosdeesquinadoBrasil.

Ora,caroleitor,quemtemacessoarelaçõespessoaisimportanteséquemjátemcapitaleconômicooucapitalculturalsobalgumaformaanteriormente.Ouvocêconhecealguémquedesfrutedessetipodeprivilégiosemdinheiroouconhecimentoincorporado?Suaexplicaçãonega,portanto,aorigemdetodadesigualdadequeseparaclassescomacessoprivilegiadoaoscapitaiseconômicoeculturaldasclassesqueforamexcluídasdetodoacessoaessescapitais.Esãoprecisamenteessescarasqueescondemosmecanismossociaisresponsáveispelaexclusãodetantososquesepassamporcríticossociais.

Mas Sérgio Buarque não para aí. Sua análise é totalizante e explica tudo. Ele cria muitoespecialmentea“Geni”brasileira–parausarumtermodofilho,esteverdadeiramentegenial–queseriaoEstado sempre corrupto.Omercado é divinizado pelamera oposição com o Estado definido comocorrupto, e sua corrupção tanto “legal” (quando “compra” o Legislativo para passar leis de seusinteresses,imporjurosaltosatodaapopulaçãoeprivatizaroorçamentopúblicoeasempresasestatais)quanto ilegal (quando manda para o exterior valores de evasão fiscal que superam emmuito toda acorrupçãoestataldahistóriasomada),tornadainvisível.ÉverdadequeessacontraposiçãoexplícitanãoéobradeSérgioBuarque,esimdeoutra“vacasagrada”dopanteãodegrandesintelectuaisbrasileirosqueéRaymundoFaoro.MasSérgioBuarquejáabreapossibilidadeaodemonizaroEstadoepouparomercadodamesmademonização.

Page 24: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

SérgioBuarque, ao localizar a “elitemaldita”noEstado, torna literalmente invisível a verdadeiraelite de rapina que se encontra nomercado.Ummercado capturado por oligopólios e atravessadoresfinanceiros.Comoa elite quevampiriza a sociedade está, segundo ele, noEstado, abre-se caminho –vazioessequefoilogopreenchidoporseusdiscípulos–paraumaconcepçãodomercadoquefosseoopostodoEstadocorrupto.Comisso,nãosóopoderrealétornadoinvisível,masoEstado,tornadoosuspeitopreferido–comoosmordomosnosfilmespoliciais–detodososmalfeitos.EssaideiafavoreceosgolpesdeEstadobaseadosnacorrupçãoseletiva,motequesempreélevadoàbailaquandooEstadohospedaintegrantesnãopalatáveispelomercadoávidodecapturaroEstadoapenasparasi.

Umaideologiamelhorparaosinteressesdaeliteeconômicanãoexiste.AleituradeSérgioBuarquefoiensinadanasescolasenasuniversidadesdetodoopaís–comoaconteceatéhoje–etornoupossívelfazerdomotedacorrupçãoapenasdoEstadoonúcleodeumaconcepçãodemundoquepermiteaelitemaismesquinhafazertodoumpovodetolo.

EssaconcepçãonãoéapenasdeSérgioBuarqueneméalgodoslongínquosanos1930.ElaéBrasil2017naveia!Todosospensadoresdeprestígioaseguiramdesdeentão,comoRaymundoFaoro(queaesquerdacolonizadaintelectualmentepeladireitaadora),FernandoHenriqueCardoso,RobertoDaMattaeuma infinidadedediscípulosmenores.Quem fala sobre oBrasil na imprensa, seja de direita oudeesquerda,repeteostruísmosdessavisãoarcaicaevazia.Oculturalismoracistaeliberalconservadoréaúnica teoria explicativa abrangente e totalizadora que o Brasil possui e que, antes de meu própriotrabalhocrítico,jamaishaviasidoefetivamentecriticadanosseuspressupostosfundamentais.

Ela,noentanto,influenciaasociedadecomoumtodonaformaçãoescolardesdetenraidade.Todobrasileiro enquanto criança aprende a perceber o Brasil com os pressupostos envenenados da teoriaculturalista e sua cantilena das três raças formadoras, da continuidade com Portugal e a necessidadepseudocríticadecombateàcorrupçãosódoEstado.Nasuniversidades,emtodososcursos,sãoasvacassagradasdoculturalismoconservador,SérgioBuarqueàfrente,queensinamojovema(não)perceberea(não)compreenderosreaisproblemasbrasileiros.Depois,sãoosprofissionaisnodireito,namídia,nasempresas,na administraçãodoEstado, etc. que irão comandar suas ações sob a égidemais oumenosconscientedessasideias.Elasetornouopanodefundonãodiscutido,detãoóbvioedetãorepetidoportodos,decomoopaísépercebido.

Afinal, nós não vemos a sociedade em que vivemos com olhos imaculados como se tivéssemosnascidohoje.Nósa(não)percebemossemprepormeiodoacúmulodenoçõese ideiasquenosforamtransmitidasporpessoasdignasdenossaconfiança.Épormeiodesses“óculos”,compostosporideiasquesetornamtãoóbviasquenãomaisrefletimossobreelas,quenós(não)percebemosomundoquenosrodeia.Daíserdesumaimportânciarefletirsobreesseconjuntodeideiasfundamentaisquecomandamnossocomportamentoenossasavaliaçõesdomundo.Issoédecisivoparaqualqueraçãoconscientenomundo e para que não sejamos enganados por todos os interesses encobertos e que visam nossadesinteligência.

Foi,afinal,esseconjuntodeideiasfalsasquenosamesquinhameretiramnossaautoestimaquetornoupossível agrande farsadogolpedemaiode2016ede todososoutrosgolpes supostamente contra acorrupção. Foi e ainda é essa teoria vira-lata e falsa de fio a pavio, por último, mas não menosimportante, que forneceu à mídia todos os subsídios, que já estavam previamente na cabeça de seupúblico leitor e telespectador desde a escola primária, para sua obra de distorção sistemática darealidade.

Restou àmídia apenas o trabalho facilitado de selecionar contra quem seriamobilizado o ataque

Page 25: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

moralistaconservadorquenossosintelectuaisconstruíramcontraopovoeembenefíciodeumaínfimaelite.Semesseconsensointelectual/conservadorprévio,amídianãopoderiatersidotãoeficaznasuaobra de fraudar sistematicamente a realidade para a legitimação da trama do golpe de 2016 e parajustificaroinjustificávelassaltoaobolsocoletivo–averdadeiracorrupçãotornadainvisível–emnomedacorrupçãoseletiva,parainglêsver,sódoEstadoedesuasempresas.

QuandoempresasbrasileiraseempresáriosbrasileirosentramemcenacomonaoperaçãoLavaJato,isso só acontece pelo mais descarado viralatismo: para chantagear politicamente essas empresas emdelaçõesquecriminalizemaesquerdaoupolíticosquenãocumpramaagendacorporativadosórgãosdecontrole. Assim como para, consciente ou inconscientemente, atender a interesses geopolíticosamericanosquevisamapermanênciadoBrasilcomomeroexportadordematéria-prima.

Page 26: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

A

AESCRAVIDÃOÉNOSSOBERÇO

Omundoqueaescravidãocriou

explicaçãodominantedovira-latabrasileiro,emotivo,corruptoedacorrupçãosódoEstado–quesemprepossibilitoutodaamanipulaçãomidiáticaepolíticacontraademocraciaecontraosinteresses populares – tem sua força na história e na sociologia do vira-lata.Uma explicação,

paraserdominante,temqueesclareceratotalidadedarealidadesocial.Ouseja,elatemqueesclareceras trêsquestõesprincipais tantoparaos indivíduosquantoparaas sociedades:deondeviemos,quemsomoseparaondevamos.Ateoriaquerespondeaessastrêsquestõesdeformaconvincenteéaquelaquese candidata à interpretação dominante, definindo a forma como toda uma sociedade se vê. Não poracaso,eramtambémastrêsquestõesquetodasasreligiõesbem-sucedidasrespondiamaseusfiéis.

A única teoria brasileira que responde a essas três questões de modo convincente é a teoriaimplicitamenteracistadoculturalismoconservadorentrenós.Nãoexistenenhumaoutrateorianacionalcomessaabrangência.Aesquerda,porexemplo,jamaisdesenvolveuumaconcepçãocríticaaessateoriae,porcontadisso,semprefoicolonizadanocoraçãoenamentepeloculturalismoracistaconservadorcomefeitospráticosdevastadores,comoosrecorrentesgolpesdeEstadomostramtãobem.Comomuitagente inteligente, inclusive especialistas, não percebe a importância da noção de totalidade para aeficáciadeumaexplicação, se imaginaquequalquerexplicação sobre tópicosespecíficos – pormaisgeniaiseimportantesquesejam–constituaumateoriaabrangentequedariacontadatotalidadereferidaacima.

Assimseimagina,porexemplo,queograndeCelsoFurtadoteriacriadoumateoriaalternativaporterdesenvolvidoa teoriadas trocasdesiguaisentrepaíses industrializadose exportadoresdematéria-prima.Eleéumdospioneirosdeumaexplicaçãofundamentalemuitoimportante,maselaélocalizadaemuitolongedeconstruirosentidodetotalidadedoculturalismoracistaconservador.OmesmoacontececomgrandesfigurascomoFlorestanFernandeseoutrostantos.12Comoatotalidadenãoéexplicadaparaquesesubstituaoculturalismoconservador,éopróprioculturalismoconservadorqueentraportodososporos nos espaços vazios da explicação que se pretende alternativa. O caso de Florestan, como jámostrei em detalhe em outros livros, exemplifica bem o que acontece com todas as explicaçõesalternativasquenãoreconstroematotalidade.

Assim,paracriticaroBrasildehojeecompreenderoqueestáemjogonapolíticaenamanipulaçãodapolíticacomo formadedominaçãoeconômicae simbólica, énecessário reconstruir uma totalidadealternativaquedesconstruaoculturalismoracistaconservadorereconstruaasociedadebrasileiraemumsentidonovoecrítico.Esseéodesafioquepretendorealizarnestaprimeirapartedestelivro,aindaqueresumidamente. Será uma etapa necessária, ainda que não suficiente, para reconstruir o trabalho demanipulação simbólica em favor da elite do atraso entre nós e esclarecer por que ele foi tão bem-sucedido.Aomesmo tempo,esteesforçoparece-me tambémfundamentalparaapontaroscaminhosde

Page 27: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

umanovacríticasocialentrenósquenãosedeixecolonizarpeloculturalismoconservadoreseuracismoimplícito.

A ambição deste livro é dotar a esquerda, ou seja, a visão que expressa os interesses damaioriaesquecida,deumareflexãoquesupereameraproposiçãodeumprogramaeconômicoalternativo,quetem sido o que as esquerdas apresentam quando chegam ao poder. É necessária uma reflexãoindependente,tambémacercadoEstadoedasociedade,paraqueoculturalismoconservadordedireitanão colonize a esquerda como acontece até hoje. Todos os golpes de Estado contra a esquerda sebaseiam na dominância de uma interpretação totalizante e conservadora, que contamina e fragiliza aesquerdamortalmente.

Paraevitarqueissoaconteçanofuturo,énecessáriodesconstruiraleituraconservadoradominanteeconstruirumateoriaexplicativanovatãoabrangentequantoaversãoconservadoraoé.Daíaimportânciade as três questões essenciais a que toda religião ou ciência totalizadora respondem terem que serrespondidas agora refletindo os interesses da crítica social que a “esquerda” pretende representar.Interessesquetenhamavercomacríticadadesigualdadeedainjustiçasocialenãocomsuareprodução.

Para responder às três questões essenciais para a compreensão da singularidade de qualquersociedade – de onde viemos, quem somos e para onde vamos –, o culturalismo racista constrói umafantasiadacontinuidadeculturalcomPortugalqueéfalsadacabeçaaospés.Elasebaseiaemumateseclássicadosensocomum–queéumaespéciedesociologiaespontâneadosleigos–queimaginaqueatransmissãoculturalsedádemodoautomáticocomoocódigogenético.Nessaleituradesensocomum,imagina-se que alguém é, por exemplo, italiano apenas porque o avô era italiano. Depende. Se ascondiçõessociaisforemoutras,elenãotemnadadeitalianoanãoserocódigogenético.

Ainfluênciaculturalnãosetransmite,afinal,nasnuvensnempelosimplescontatocorporal.Ossereshumanos são construídos por influência de instituições. É fácil perceber isso com simples exemploscotidianos. Pensemos na família, na escola ou no mercado de trabalho. Disposições para ocomportamento fundamentais, como a disciplina, o autocontrole, o pensamento prospectivo, sãoensinadaspormeiodeprêmiosecastigos institucionaisnãonecessariamentefísicos,nemmuitomenosnecessariamenteconscientes.

Nafamília,desdea tenra idade,sãoosolharesdeaprovaçãoereprovaçãodospais–oudequemexerça o papel – que mostram aos filhos os comportamentos apropriados e as disposições para ocomportamentoqueelesdevemreprimiroudesenvolver.Aagressividade,porexemplo,umadisposiçãofundamentalquetodostemos,deveserreprimidaecontroladaparaqueacriançapossatersucessonasuasocialização. A disciplina, por outro lado, é incutida dos mais variados modos, como a partir daimposiçãodehoráriosparadormir,comerebrincar.

Aescolaprolongaeaprofundacomosmesmosmétodosasocializaçãofamiliar.Depois,noindivíduoadulto, seu sucesso no mercado de trabalho irá depender do mesmo mecanismo de formatação edisciplinadapersonalidadeemumsentidoaindamais aprofundado.As instituições fundamentais paraqualquerumdenósnosamoldamenosconstroememcertosentido,sejapelodirecionamentoexplícito,sejapeloincentivoparaacriaçãodedisposiçõesqueirãoconstruirocomportamentoprático.Issotudonão vem com o código genético como imagina o senso comum e nossa interpretação “científica”dominante. Se todos nascemos com uma pulsão sexual, por exemplo, será, no entanto, o conjunto deinstituições,nocaso,especialmenteainstituiçãofamiliar,queirádeterminarasingularidadeeadireçãoespecíficadesseimpulsoemcadaumdenós.Éassimquesomosconstruídos.Nãopelosangueouporherançasfantasiosasquedesconsideramtodoefeitoinstitucional.

Page 28: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

NoBrasil,desdeoanozero,a instituiçãoqueenglobavatodasasoutraseraaescravidão,quenãoexistiaemPortugal,anãoserdemodomuitotópicoepassageiro.Nossaformadefamília,deeconomia,depolíticaede justiçafoi todabaseadanaescravidão.Masnossaautointerpretaçãodominantenosvêcomocontinuidadeperfeitadeumasociedadequejamaisconheceuaescravidãoanãoserdemodomuitodatadoelocalizado.Comotamanhoefeitodeautodesconhecimentofoipossível?Nãoéqueoscriadoresediscípulosdoculturalismoracistanunca tenhamfaladodeescravidão.Aocontrário, todosfalam.Noentanto,dizeronomenãosignificacompreenderoconceito.

A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar deescravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que somoscontinuaçãodeumasociedadenãoescravista.Écomotornarsecundárioeinvisíveloqueéprincipaleconstruirumafantasiaqueservirámaravilhosamentenãoparaconheceropaíseseusconflitosreais,mas,sim, para reproduzir todo tipo de privilégio escravista ainda que sob condições modernas. E, toquesatânico,demonizaroEstadocomo repositórioda supostaherançamalditaportuguesae semprequeomesmoforocupadopelaesquerdae reverberar seletivamenteaacusaçãomoralista jápronta.Vejamosmaisdepertocomoissofoifeitoecomoestamosatéhojesobaégidedetamanhafarsa.

Utilizarei a obra do criador do culturalismo racista, Gilberto Freyre, contra ele mesmo parademonstrarcomo,apartirdesuasdescriçõeshistóricas,podemosteracessoaumainterpretaçãomuitomaisverdadeiraacercadequemsomosedeondeviemos.EmboraFreyretenhapavimentadoocaminhoparaaconstruçãodeumaidentidadeluso-brasileiracomonenhumoutro,seutalentodehistoriadoresuagenialdescriçãodoBrasilcolonialeimperialpodemnosensejarumainterpretaçãonocaminhocontráriodaquelaqueelemesmoengendrou.

Page 29: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Freyrecontraelemesmo

Quandoinicieioestudosistemáticodosgrandesintérpretesbrasileirosnadécadade1990,Freyrefoioprimeiroaoqualmedediquei.Armadodemeus15anosanterioresdeestudodevotadosaalgunsdosgrandesclássicosdasociologia,seustextosmepareceramfrágeisemseuspressupostosegeneralizaçõescheias de preconceitos pré-científicos. Como, aliás, a bem da verdade, a imensa maioria de nossosclássicos, salvo pouquíssimas exceções como Florestan Fernandes. Por outro lado, suas observaçõespontuaisquasesemprebrilhantesesuasdescriçõesereconstruçõeshistóricascheiasdetalentoeatençãoaodetalhemefascinaramemeajudaramapensarahistóriaeamodernizaçãobrasileirademodonovoemaiscrítico.

Imaginei, então, como jovempesquisador, umexperimento: e se retirarmos toda síntese teórica deFreyreetodofardoavaliativodeseustextoseprestarmosatençãotãosomenteasuaempiria,ouseja,asuasimpecáveisreconstruçõeshistóricaseobservaçõestópicasepontuais?Ese,alémdisso,usaroqueaprendi com os grandes clássicos para rearticular de modo teoricamente novo seu belo trabalhoempírico? Esse passo foi a semente, acrescida pelos trabalhos empíricos sobre as classes sociaisrealizadosnosanos2000,13quemepossibilitou,acredito,forjarumanovaformadepensaroBrasil,suahistóriaeseusconflitoscontemporâneosprincipais.

PensemosdeinícionaquelequefoitalvezolivromaisimportanteeinfluentedoBrasilnoséculoXX:Casa-grandeesenzala.14Deixaremosdeladoseuobjetivoprincipal,quefoiconstruirum“romancedaidentidadenacional”brasileira,e,dadoseu retumbantesucesso,construiraautocompreensãoquehojeem dia todo brasileiro tem de si mesmo. Aqui nos interessa a leitura reprimida de Casa-grande esenzala, que faz da escravidão sadomasoquista o ponto principal e não o congraçamento de raças eculturas,quefoiopontoqueopróprioFreyreprivilegiou.

Comoeleafirmanasprimeiraspáginasdaobra,em1532,datadaorganizaçãoeconômicaecivildoBrasil, os portugueses, que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiões tropicais,assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadora comercial e extrativa no sentido maispermanenteeestáveldaatividadeagrícola.Asbasesdessaempreitadaseriam,noaspectoeconômico,aagriculturadamonoculturabaseadanotrabalhoescravoe,noaspectosocial,afamíliapatriarcalfundadanauniãodoportuguêsedamulheríndia.

Napolíticaenacultura,essasociedadeestariafundamentadanoparticularismodafamíliapatriarcalparaGilbertoFreyre.Ochefedafamíliaesenhordeterraseescravoseraautoridadeabsolutanosseusdomínios,obrigandoaté“ElRei”acompromissos,dispondodealtardentrodecasaeexércitoparticularnos seus territórios.15 O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de apontar para aextraordináriainfluênciadafamíliacomoalfaeômegadaorganizaçãosocialdoBrasilcolonial.Dadoocarátermaisritualelitúrgicodocatolicismoportuguês,acrescidonoBrasildoelementodedependênciapolíticaeeconômicadopadreleigoemrelaçãoaosenhordeterraseescravos,opatriarcalismofamiliarpôdedesenvolver-sesemlimitesouresistênciasmateriaisousimbólicas.

A família patriarcal reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelosenhoresuafamílianuclear,mastambémoselementosintermediáriosconstituídospeloenormenúmerodebastardosedependentes,alémdabasedeescravosdomésticose,naúltimaescaladahierarquia,osescravosdalavoura.Emboratodosossistemasescravistasguardemsemelhançasentresi,Freyrepensaa

Page 30: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

escravidão brasileira como uma mistura da escravidão semi-industrial das plantations típicas docontinenteamericanocomaescravidãofamiliaresexualmouraemuçulmana.

Emboramuitosnãosaibam,aescravidãosexual,cujoepicentroeramospaísesmuçulmanosdoNortedaÁfrica,escravizou7,5milhõesdemulheresdoséculoVIIaoséculoXIX.Issosemcontarcercade1milhãodeeunucosparaguardarosharens.16Sepensarmosqueaescravidãoamericanaéestimadaem10milhõesdealmas,asgrandezassãocomparáveis.

O dado familiar e sexual é o mais interessante por engendrar uma forma de sociabilidade entredesiguais que mistura cordialidade, sedução, afeto, inveja, ódio reprimido e praticamente todas asnuancesdaemoçãohumana.EmNovomundonostrópicos,17essepontoéreferidocomtodaaclareza:

Em toda parte, fiquei impressionado pelo fato de que o parentesco sociológico entre os sistemasportuguês e maometano de escravidão parece responsável por certas características do sistemabrasileiro. Características que não são encontradas em nenhuma outra região da América ondeexistiuaescravidão[...].

Emaisadiante:

Sabemosqueosportugueses,apesardeintensamentecristãos–maisdoqueissoaté,campeõesdacausadocristianismocontraacausadoIslã– imitaramosárabes,osmouros,osmaometanosemcertas técnicas e em certos costumes, assimilando deles inúmeros valores culturais.A concepçãomaometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família, inclusive àsatividadesdomésticas,semserdecisivamentedominadaporumpropósitoeconômico-industrial,foium dos valores mouros ou maometanos que os portugueses aplicaram à colonizaçãopredominantemente,masnãoexclusivamentecristã,doBrasil.18

Sendo uma espécie de instituição total noBrasil, a forma peculiar da escravidão traria consigo asementedaformasocialquesedesenvolveriamaistarde.Qualseriaessasemente?AosereferiraumaconversasobreoassuntocomseumestreFranzBoas,Freyrenosdápistainteressanteparaaquestão:

Quando,em1938, faleiaomeuvelhoprofessordaUniversidadeColumbia,ograndeFranzBoas,sobreas ideiasque tinhaaesse respeito, elemedissequeasmesmaspoderiam servir debase ànovacompreensãoemesmo interpretaçãoda situaçãobrasileira; eque eudevia continuarminhaspesquisas relativas à conexão existente entre a cultura portuguesa e a moura – ou maometana –particularmenteentreseussistemasdeescravidão.Argumentouaindaqueosmaometanos,árabesemouros,durantemuitosséculos,haviamsidosuperioresaoseuropeusecristãosemseusmétodosdeassimilaçãodeculturasafricanasàsuacivilização.19

Essa influência cultural, não obstante, parece não ter agido sozinha. Um outro fator sociológicoestruturalteriaagidocombinadamente,qualseja:anecessidadedepovoamentodetãograndesterrasporumpaíspequenoerelativamentepoucopopuloso:

DaíaformadeescravidãoqueosportuguesesadotaramnoOrienteenoBrasiltersedesenvolvidomaisàmaneiraárabequeàmaneiraeuropeia;ehaverincluído,aseumodo,aprópriapoligamia,a

Page 31: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

fimdeaumentar-se,poressemeiomaometano,apopulação.20

OtemadafamíliaaumentadaéaquiachavedaespecificidadequeFreyrepretendeconstruir. ParaFreyre, essa instituição não estava ligada primeiramente à necessidade funcional e instrumental deaumentaronúmerodeescravos.Afamíliapolígamamaometanatinhaumacaracterísticamuitopeculiar:bastavaaofilhodaligaçãodeárabecommulherescravaadotarafé,osrituaiseoscostumesdoseupai,parasetornarigualaopai,socialmentefalando.21

Sobreaversãoportuguesadaaplicaçãodesseprincípiocultural,Freyrediscorre:

Osportugueses [...] assimque seestabeleceramnoBrasil começaramaanexarao seu sistema deorganização agrária de economia e de família uma dissimulada imitação de poligamia, permitidapela adoção legal, por pai cristão, quando este incluía, em seu testamento, os filhos naturais, ouilegítimos,resultantesdemãesíndiasetambémdeescravasnegras.Filhosque,nessestestamentos,eram socialmente iguais, ou quase iguais, aos filhos legítimos. Aliás, não raras vezes, os filhosnaturais,decor,forammesmoinstruídosnacasa-grandepelosfradesoupelosmesmoscapelãesqueeducavamaprolelegítima,explicando-seassimaascensãosocialdealgunsdessesmestiços.22

Opontoprincipalaquiéofatodequeofilhodaescravaafricanacomosenhoreuropeupoderia,ouseja,existiaapossibilidadereal,querelafosseatualizadaounão,seraceitocomoeuropeizado,nocasodeaceitaçãodafé,dosrituaisedoscostumesdopai.

Meuexperimentosociológicopartedessaideiadeumaescravidãopeculiar,aomesmotemposemi-industrial e sexual, como semente das relações de classe e de gênero no Brasil. A noção desadomasoquismoéessencialaqui.QualquerleitorcomsuficientepaciênciapoderiacontaràsdezenasasreferênciasdeFreyrearelaçõessadomasoquistas,sejaemCasa-grandeesenzala,sejaemSobradosemucambos, seja ainda em livros comoNordeste. No entanto, esse esforço pode ser também seguidosegundoumprincípioantes sistemático doque tópico, tentando-se perceber, acimade tudo, o alcanceanalíticodessanoçãoparaaempreitadainterpretativaaqueFreyresepropõe.

O fimdo primeiro capítulo deCasa-grande e senzala fornece uma interessante chave explicativasocial-psicológicadopatriarcalismo.Essecapítuloéumesforçodesíntese,queabrangeoperíododeformação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro, que constitui o período históricoanalisadono livro.De certa forma,Freyre retira todas as consequências do fato de que a família é aunidadebásica, dada a distância doEstado português e de suas instituições, da formação brasileira einterpretaodramasocialdaépocasobaégidedeumconceitopsicoanalítico:odesadomasoquismo.23

Na construção desse conceito, Freyre se concentra em condicionamentos estritamentemacrossociológicos, semelhantes àqueles que guiariam a reflexão deNorbert Elias (apenas seis anosmais tarde) acerca do processo civilizatório europeu na passagem da baixa à alta IdadeMédia. Nocontextoda teoria sociológicadesenvolvidaporNorbertEliasapartirdo seuestudoclássico sobreoprocessocivilizadordoOcidente,24interessaaesseautordemonstrara interdependênciaentrea formapeculiar de organização social e a forma correspondente de uma específica economia emocional doindivíduo,assimcomodasrelaçõesintersubjetivasqueseestabelecemnasociedade.

O que Elias quer compreender, antes de tudo, é como surgiu historicamente o elemento maisimportanteediferenciadordoindivíduomodernocomopercebidoporSigmundFreud:o indivíduoqueinternalizaa instânciadaculpamoral–osuperego–dentrodesimesmo, tornandoociosa,namaioria

Page 32: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

doscasos,a repressãoviolentaeexternadaspulsões internas.Esseaprendizadoexigeaconsideraçãodasinstituiçõesexternas–que levamaodesenvolvimentodoEstadomoderno–que,decertamaneira,logramserepresentardentrodopróprioindivíduo.

Elias,nãoporacaso,partedatesedequeaespecificidadedodesenvolvimentoeuropeueocidentalinfluenciadopelaEuropaéprecisamentea rupturacomoescravismodomundoantigo.Oargumentoéqueaescravidãoesuanecessidadedeviolênciaexplícitaepermanenteinibiriamcomodesnecessáriooprocesso interdependentedeuma regulaçãoexternada conduta, levandoà inibição internadepulsões.Assim,paraElias, anoçãode cidadania comoconhecemoshojenasceporum ladoda internalização,dentrodecadaindivíduo,deumainstânciadisciplinarizadoraquetornadispensável,emgrandemedida,arepressãoexternaepolicial.Poroutrolado,oreversodamoedadessainstânciadedisciplina,quesetornareflexoautomáticoemtodosnós,éoaumentodasensibilidadeemrelaçãoàdoreaosofrimento,tantoopróprioquantooalheio.

Como, nesse caso, inexiste o corte ontológico típico do escravismo entre “gente e não gente” ou“humano e sub-humano”, passa a operar um mecanismo que permite generalizar esse novo tipo desensibilidadeemocionalemrelaçãoaosofrimento,querelesejadoresofrimentoalheiooupróprio.Asgarantiasuniversaisqueanoçãodecidadaniairáprotegersobaformadedireitosindividuaisgenéricoseintercambiáveispressupõemesseprocessodeaprendizadosocialdeumanovasensibilidadequepassa,de modo crescente, a reagir com repulsa a qualquer forma de violência e humilhação excessiva ougratuita.Oqueaconteceaooutropoderiaacontecercomigo,levandoàpossibilidadedesereviver,comopróprio, o sofrimento alheio. Desenvolve-se como um tipo de sensibilidade antes inexistentehistoricamente. A empatia com a alteridade possibilita solidariedade e compaixão, e sentimentos eemoçõescomoremorso,vergonhaeculpapassamafazerpartedeumaeconomiaemocionaldenovotipo.

Nosso desenvolvimento histórico foi diferente do europeu, portanto, não pela ação de “estoquesculturais imutáveis”, ou por supostas “heranças malditas”, mas porque nossa sociedade foi forjadasegundorelaçõessociaisdeoutrotipo.Vejaoleitorquenãoestamoslidandocom“estoquesculturais”misteriosos, que se transmitem pelo ar como a gripe e que nunca mudam, como é o caso do nossoculturalismo racistadeorigempretensamente ibérica e lusitana.Ao contrário, lidamos comdinâmicassociaisqueconstroempadrõesdecomportamentoconcretopassíveisdemudançaedeaprendizado.Oaprendizadoaquiéaconsideraçãopaulatinadaexistênciadenecessidadesdooutro,aindaqueestesejahierarquicamente um “inferior social”. O indivíduo europeizado e democrático moderno que hojeconhecemos é fruto desse aprendizado de levar em consideração e perceber em alguma medida aalteridade.

ParaElias,apenasnapassagemdabaixaàaltaIdadeMédia,oumelhor,napassagemdasociedadedecavaleirosguerreirosparaasociedadeincipientementecortesã,temosumaprimeiraformaderegulaçãoexternasignificativa25daconduta,aindaqueestejamosmuitolongedotipoderegulaçãointernaexigidapor uma sociedade industrial democrática moderna. A forma social anterior, no entanto, a sociedadeguerreiramedieval,comodescritaporElias,éemmuitosaspectossemelhanteàbrasileiracolonialcomovistaporGilbertoFreyre.Antesdetudo,pelocaráterautárquicododomíniosenhorialcondicionadopelaausênciadeinstituiçõesacimadosenhorterritorialimediato.

Umatalorganizaçãosocietária,especialmentequandoodomíniodaclassedominanteéexercidopelavia direta da violência armada (como era o caso nos dois tipos de sociedade), não propicia aconstituição de freios sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade,concupiscênciaouavidez.Asemoçõessãovividasemsuasreaçõesextremas,sãoexpressasdiretamente,e a convivência de emoções contrárias em curto intervalo de tempo – comoo assassinato seguido de

Page 33: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

culpaintensa–éumfatonatural.Nadimensãosocial,asrivalidadesentrevizinhostomamporcompletotambémtodososseresquese

identificamemlinhaverticalcomosrespectivossenhores.Eliasrelata,nessesentido,aespessarededeintrigas, invejas, ódios e afetos contraditórios que é congênita a esse tipo de organização social.26 O“excesso” de que nos falam muitos comentadores de Freyre é um atributo desse tipo de sociedade,portanto,enãosódabrasileiracolonial.

No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social era ainda maior pela ausência derelações de vassalagem, as quais, ao menos em tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e,portanto,amanutençãodeummínimodedisciplinanecessáriaà empresamilitar.Estamos lidando,nocasodo escravismobrasileiro, naverdade, comumconceito limite de sociedade, onde a ausência deinstituiçõesintermediáriasfazcomqueoelementofamilísticosejaseucomponenteprincipal.Daíqueodramaespecíficodessaformasocietáriapossaserdescritoapartirdecategoriassociopsicológicascujagêneseapontaparaasrelaçõessociaisditasprimárias.

Éprecisamentecomoumasociedadeconstitutivaeestruturalmentesadomasoquista–no sentidodeumapatologiasocialespecífica,ondeadoralheia,onãoreconhecimentodaalteridadeeaperversãodoprazertransformam-seemobjetivomáximodasrelaçõesinterpessoais–queGilbertoFreyreinterpretaasemente essencial da formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a direção dos impulsosagressivos e sexuais primários depende “em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, deinfluênciasexternassociais.Maisdoquepredisposiçãooudeperversãoinata”.27

Averdade, porém, é quenós é que fomosos sadistas; o elemento ativona corrupçãodavidadefamília;emolequesemulatas,oelementopassivo.Narealidade,nemobranconemonegroagiramporsi,muitomenoscomoraça,ousobaaçãopreponderantedoclima,nas relaçõesdesexoedeclasseque se desenvolveramentre senhores e escravos noBrasil. Exprimiu-se nessas relações oespírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo-poderoso, em senhores eescravos.Delesederivaaexageradatendênciaparaosadismocaracterísticadobrasileiro,nascidoe criado em casa-grande principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido nesteensaio.Imagine-seumpaíscomosmeninosarmadosdefacadeponta!PoisfoiassimoBrasildotempodaescravidão.28

Ouainda,aodiscorrersobreapermanênciadessasementedesociabilidadenacional,mesmodepoisdeabolidaaescravatura:

Nãohábrasileirodeclassemaiselevada,mesmodepoisdenascidoecriado,depoisdeoficialmenteabolidaaescravidão,quenãosesintaaparentadodomeninoBrásCubasnamalvadezenogostodejudiarcomnegros.Aquelemórbidodeleiteemsermaucomosinferioresecomosanimaisébemnosso:édetodoomeninobrasileiroatingidopelainfluênciadosistemaescravocrata.29

Eaindaumaúltimacitação,paranãoabusardapaciênciadoleitor,estadeMachadodeAssis,usadaaquiporFreyreparaesclarecerdequemaneiraosvaloresdosadomasoquismosocial se transmitiam (e setransmitematéhoje)depaiparafilhopelosmecanismossutisda“educação”:

[...]umdiaquebreiacabeçadeumaescrava,porquemenegaraumacolherdedocede cocoque

Page 34: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, nãosatisfeitodatravessura,fuidizeraminhamãequeaescravaéqueestragaraodoce“porpirraça”;eeutinhaapenasseisanos.Prudêncio,ummolequedecasa,erameucavalodetodososdias;punhaasmãosnochão,recebiaumcordelnosqueixos,àguisadefreio,eu trepava-lheaodorso,comumavarinhanamão,fustigava-o,dava-lhemilvoltasaumeoutrolado,eeleobedecia,–algumasvezesgemendo, –mas obedecia sem dizer palavra, ou, quandomuito, um – “ai, nhonhô!” – ao que euretorquia: – “Cala a boca, besta!” – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel apessoasgraves,puxarpelorabichodascabeleiras,darbeliscãonosbraçosdasmatronas,eoutrasmuitas façanhas deste jaez, erammostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram tambémexpressõesdeumespíritorobusto,porquemeupaitinha-meemgrandeadmiração;eseàsvezesmerepreendia,àvistadegente,fazia-oporsimplesformalidade:emparticulardava-mebeijos.30

Aexplicaçãosociológicaparaaorigemdesse“pecadooriginal”daformaçãosocialbrasileira,paraGilberto Freyre, exige a consideração da necessidade objetiva de um pequeno país como Portugalsolucionar o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares,antesestimulandodoquecoibindooprivatismo,omandonismoe a ânsiadeposse.ParaFreyre, édefundamentalimportânciaparaacompreensãodasingularidadeculturalbrasileiraainfluênciacontinuadaemarcantedessasementeoriginal.

Os teóricos da primeira fase da Escola de Frankfurt,31 também na mesma década de 1930,procuravam, coma ajudadomesmoconceito, explicar a ascensãodonazismopartindode um quadrocategorialquepressupunhaumarígidaestruturahierárquicapreexistente,ondeaobediênciaacríticaemrelaçãoaosestratossuperiorespossuíaumaconexãoestruturalcomodespotismoemrelaçãoaosgruposmaispassíveisdeestigmatização.GilbertoFreyre,aocontrário,enfatizaoelementopersonalista.

Patriarcalismo,paraele, temavercomo fatodequenãoexistem limitesàautoridadepessoal dosenhordeterraseescravos.Nãoexistejustiçasuperioraele,comoemPortugaleraocasodajustiçadaIgreja, que decidia em última instância querelas seculares. Não existia também poder policialindependentequelhepudesseexigircumprimentosdecontrato,comonocasodasdívidasimpagáveisdeque fala Freyre.Não existia ainda, por últimomas nãomenos importante, podermoral independente,postoqueacapelaeraumameraextensãodacasa-grande.

Semdúvida,asociedadeculturaleracialmentehíbridadequenosfalaFreyrenãosignifica,demodoalgum,igualdadeentreasculturase“raças”.Houvedomínioesubordinaçãosistemática,melhor,oupiornocaso,houveperversãododomínionoconceito limitedosadismo.Nadamais longedeumconceitoidílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias enegras.Erasádicaarelaçãodosenhorcomsuasprópriasmulheresbrancas,asbonecasparareproduçãoesexounilateraldequenosfalaFreyre.32Erasádica,finalmente,arelaçãodosenhorcomosprópriosfilhos,osseresquemaissofriameapanhavamdepoisdosescravos.

Osenhordeterraseescravoseraumhiperindivíduo,nãoosuper-homemfuturistanietzschianoqueobedeceaosprópriosvaloresquecria,masosuper-homemdopassado,obárbarosemqualquernoçãointernalizada de limites em relação a seus impulsos primários. As condições socioeconômicasespecíficas ajudam a compreender o caráter despótico e segregador do patriarcalismo comoumbilicalmente ligado à proximidade e à intimidade, especialmente de caráter sexual e familiar. Opróprioconceitodesadomasoquismoimplicaproximidadeealgumaformadeintimidade.Intimidadedocorpoedistânciadoespírito,semdúvida,masdequalquermodoproximidade.E,efetivamente,grande

Page 35: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

partedarelaçãoentresenhoresbrancoseescravosnegrosserealizavasobessaformadecontatoíntimo.Comoaparticipaçãonomantoprotetorpaternodependedadiscriçãoearbítriodesteúltimo,todasas

modalidades de protetorado pessoal são possíveis. O leque de possibilidades vai desde oreconhecimentoprivilegiadodefilhosilegítimosounaturaisemdesfavordosfilhoslegítimos,comonosexemplificaFreyreemnumerososcasosdedivisãodeherança,atéatotalnegaçãodaresponsabilidadepaterna nos casos dos pais que vendiam os filhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto,pessoalíssima,sendoumaextensãodavontadeedasinclinaçõesemocionaisdopatriarca.

Interessanteéopassoimediatamenteposterior,ouseja,atransformaçãodadependênciapessoalemrelação ao patriarca em familismo. Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma debilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seusdependentes, mas também entre famílias diferentes, criando um sistema complexo de alianças erivalidades.

NotipodesociedadeanalisadoemCasa-grandeesenzala,opatriarcalismofamilialseapresentaemforma praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pela figura do patriarca. Aespecificidadedocasobrasileiroérepresentadapelapossibilidade(influênciamaometanaparaFreyre)sempre incerta, mas real, de identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos ou naturais comescravosounativos.Aênfasenorte-americananapurezadaorigem,porexemplo,retiravadeinícioessapossibilidade.

Opesodoelemento tradicional–ouseja,oconjuntoderegrasecostumesquecomodecorrer dotempo vão se consolidando em uma espécie de direito consuetudinário, regulando as relações dedependência, como nos lembraMaxWeber em seu estudo acerca do patriarcalismo, e que serve delimitaçãoaoarbítriodopatriarca–parece,noentanto,tersido,nocasobrasileiro,reduzidoaomínimo.DaíaênfasenoelementosadomasoquistaemGilbertoFreyre.Omaiorisolamentoeconsequenteaumentodocomponenteautárquicodecadasistemacasa-grandeesenzalapodeaquitersidooelementoprincipal.A ausência de limitações externas de qualquer tipo engendra relações sociais onde as inclinaçõesemotivasdapessoadopatriarcajogamopapelprincipal.

Essepontonãomepareceumaspectoisoladooupitorescodareflexãogilbertiana.Aocontrário,eledá conta da singularidade de nossa formação social e cultural sem que os temas dominantes doculturalismoracista–comocontinuidadecomPortugal,corrupçãocomodoença cultural sem remédio,etc.–sejamsequermencionados.

São relações sociais e instituições concretas que produzem a semente social do Brasil queherdaremossobformamodificadaatéhoje.Éosadismotransformadoemmandonismo,comoFreyreiráanalisaremSobradosemucambos,33 que saidaesferaprivadae invadea esferapública inaugurandouma dialética profundamente brasileira de privatização do público pelos poderosos, que é o exatocontráriodabaleladacantilenadopatrimonialismo.Afinal,nopatrimonialismodeRaymundoFaoroedeSérgioBuarque,aelitevampirescaemáestá“noEstado”,tornandoliteralmenteinvisívelomandonismoreal,primeirodosproprietáriosruraisedepoisdosurbanos.

As consequências política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera dafamíliaedaatividadesexualparaaesferapúblicadasrelaçõespolíticasesociais,tornam-seevidentesna dialética de mandonismo e autoritarismo de um lado, mais precisamente no lado das elites, e noabandono e no desprezo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, assumir formasmúltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e classes maiseuropeizadaseasmassasameríndiaeafricana,eassimpordiante.

Page 36: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série demotivos racionais para aumentar, namaiormedidapossível,seuraiodeinfluênciapormeiodafamíliapoligâmica.Existetodaumagamadefunçõesdeconfiança,nocontroledotrabalhoecaçadeescravosfugidos,alémdeserviçosmilitaresembrigas por limites de terra, etc. que seriam melhor exercidas por membros da família ampliada dopatriarca. E aqui já temos uma primeira versão da ambígua confraternização entre raças e culturasdistintas,queafamíliaampliadapatriarcalensejava.EnquantoessetipodeserviçodecontroleeguardaeraexercidonosEUAexclusivamenteporbrancos,noBrasilhaviapredomíniodemestiços.34Nota-se,desdeaí,aambiguidadeentrepossibilidadedeascensãosocialparaosmestiçosnofamilismopatriarcalemtrocadeidentificaçãocomosvaloreseinteressesdoopressor.

É certamente possível escrever toda uma sociologia do agregado no Brasil, um tema fundamentalinclusive da literatura machadiana. Se pensarmos na passagem das formas pessoais, que o agregadoassumedesdeocontextoda famíliaampliadadopatriarca,às formas impessoais,quesedesenvolvemhistoricamente,podemoslograrreconstruiragenealogiadasclassesmédiasentrenós.Jánocontextodaincipiente urbanização emodernização do séculoXIX, em algumas grandes cidades, temos um passoimportantenesseprocessoqueseconsolidacomaformaçãodeumaclassemédiamodernaediferenciadano século XX. Sua função de capataz da elite, no entanto, é preservada em algumas frações emodernizada.Asfraçõesmaisconservadorasassumirão,comofunçãosua,porexemplo,amanutençãodadistânciasocialemrelaçãoaossetorespopulares.

Além dosmotivos econômicos e políticos que favoreciam o familismo patriarcal rural brasileiro,tínhamosaindaumainteressanteformareligiosatambémfamilial.Ocomponentemágico,daproximidadeentreosagradoeoprofano,constitutivodetodaespéciedecatolicismo,foilevadoaquiaseuextremo.Haviaimpressionantefamiliaridadeentreossantoseoshomens,cumprindoaqueles,inclusive,funçõespráticasdentrodaordemdomésticaefamiliar.Nessecontexto,maisimportanteaindaéqueocultoaossantosseconfundia tambémcomocultoaosantepassados,conferindoaofamilismocomosistemaumabasesimbólicaereligiosaprópria.

Afamíliaeraomundoeaté,emgrandemedida,oalém-mundo.Alémdabaseeconômicaepolíticamaterial,ocatolicismofamilial35lançavaosfundamentosdeumabaseimaterialesimbólicareferidaàssuasprópriasnecessidadesdeinterpretaromundoapartirdeseupontodevistatópicoelocal.Acreditoqueopatriarcalismofamilial rural e escravocrataparaFreyreenvolviaadefiniçãodeuma instituiçãototal,nosentidodeumconjuntoarticuladoondeasdiversasnecessidadesoudimensõesdavidasocialencontravamumareferênciacomplementareinterdependente.

Ocomponentesadomasoquistaeraconstitutivonamedidaemqueinclinaçõespessoaisdopatriarca(oudeseusrepresentantes),comummínimodelimitaçõesexternasmateriaisousimbólicas,decidiamemúltima instância sobre a amplitude do núcleo familiar e como, a quem e em que proporção seriadistribuído seu favor e proteção. A construção de um elemento que se oponha ao privatismo e aomandonismosadistanãoécontempladaemCasa-grandeesenzalaeexigeaconsideraçãodeoutraobrafundamentaldeGilbertoFreyrequeéSobradosemucambos.

OpróprioFreyrenãointerpretaSobradosemucambosdemododistintodeCasa-grandeesenzala.Paraele,existeumalinhadecontinuidadenaherançalusitanaquesetransformaemluso-brasileira.MasnãoapenasFreyrenãopercebeanovidadequeelepróprioproduz.Sobrados emucambos é utilizadopeloantropólogoconservadorRobertoDaMattaparacriarsuasoposiçõesfictíciasentrecasaerua,porexemplo, emodernizar o culturalismo racista para os dias de hoje.36 Isso acontecemuito embora sualeitura, a partir de olhos sociologicamente treinados, preste-se para fundamentar precisamente a tese

Page 37: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

contrária.

Page 38: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Sobradosemucambosouocamponacidade

OqueGilbertoFreyrereconstróiemSobradosemucamboséoiníciodoBrasilmoderno,ouseja,oBrasilapartirde1808,quepassaaserocentrodoimpérioportuguêsequeseabrecomercialmenteàEuropa. Sobrados e mucambos reflete o embate entre a lógica sadomasoquista do mandonismoescravocratacomaentrada,aindaqueincipiente,dasduasinstituiçõesmaisimportantesdassociedadesmodernas:omercadocapitalistacompetitivoeoEstadoburocráticocentralizado.

Oculturalismoracistanuncapercebeuoucompreendeuessefatofundamental.Paratodososclássicosdessa falsa teoria, até hoje dominante entre nós, essamodernização de “fora para dentro” foi semprecosméticaesuperficial,comoSérgioBuarquesemprerepetiu.ParaRaymundoFaoro,domesmomodo,ela foi, como sempre, “vinho novo em odres velhos”, já que apenas a continuidade de um supostopatrimonialismo atávico era a força efetiva e atuante. Já para o próprio Freyre, essa mudança era,tambémcomosempre,aexpressãocontinuadadaculturaluso-brasileiraqueeleachava,aocontráriodeSérgioBuarqueeRaymundoFaoro,dignadedefesa.

Pormais incipiente que tenha sido a influência de instituições como o capitalismo comercial e oEstado centralizado, ainda assim, eles criam uma lógica social nova, que temmuito a ver com a quevivemos ainda hoje. Toda a questão do familismo se complexifica enormemente em Sobrados emucambos, ou seja, na passagemdopatriarcalismo rural para o urbano.Adecadência do patriarcadoruralbrasileiroestáligadadiretamenteàascendênciadaculturacitadinanoBrasil.

Esse processo, que a vinda da família real portuguesa ao Brasil veio consolidar, já estavaprenunciado na descoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais de expressão, nanecessidadedemaiorvigilânciasobreariquezarecém-descobertaenomaiorcontrole,apartirdeentão,sobreofamilismoemandonismoprivado.Exemplotípicoesintomáticodamudançadopoderdocampoparaascidadeséocasodasdívidasdospatriarcasrurais,antesincobráveis,eapartirdeentãosendopagas sob força policial. Tão importante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico doNordeste para o Sudeste foi a transformação social de largas proporções implicando novos hábitos,novospapéissociais,novasprofissões,e,aofimeaocabo,aconstruçãodeumanovahierarquiasocial.

Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças políticas,consubstanciadasnanovaformadoEstado,easmudançaseconômicas,materializadasnaintroduçãodamáquinaenaconstituiçãodeumincipientemercadocapitalista-comercial,foramacompanhadastambémdemudançasideológicasemoraisimportantes.Comamaiorurbanização,ahierarquiasocialpassaasermarcada pela oposição entre os valores europeus burgueses e os valores antieuropeus do interior,ressaltando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje. Essesvaloreseuropeus,comooindividualismo,aproteçãolegaldosindivíduos,umincipientereconhecimentodosdireitosdasmulheres edos filhos, foramadquirindoconcretude coma constituiçãodeumEstadoincipiente a partir da vinda da família real.Milhares de burocratas e servidores do rei, um terço doerário português, máquinas de impressão e novas práticas de controle estatal acompanham esseverdadeiroEstadotransplantado.

O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela primeira vez, com valores universalizantes.EssesvaloresuniversaiseessasideiasburguesasentramnoBrasildoséculoXIXdomesmomodocomosehaviamsepropagadonaEuropadoséculoanterior:naesteiradatrocademercadorias.37Essepontoé

Page 39: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

absolutamentefundamentalparaumaadequadacompreensãodetodasasconsequênciasdoargumentodeGilberto Freyre nesse livro original e importante. A crítica geralmente releva o aspecto da mudançacomportamentaldainfluênciaeuropeizante(nãoibéricaeatéanti-ibérica)nosentidodeapontarparaasnovas modas de vestir, de falar, de comportamento público, etc. É como se os brasileiros tivessempassadoaconsumirpãoecervejacomoosingleses,consumiraaltacosturadeParise“civilizar-se”emtermosdemaneirasecomportamentoobservável.

Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como possuindo alguma dose de afetação esuperficialidade, conferindo substância para a expressão, ainda hoje muito corrente no Brasil paradesignarcomportamentosexteriores,superficiais,para“causar impressão”,queéoditopopular“parainglêsver”.Essa leituradoprocessodemodernizaçãobrasileirocomoumprocesso inautêntico, tendoalgodeepidérmicoepoucoprofundo,écertamenteumadasbasesdonossoculturalismoracista.Essaleituradefendequenossamodernizaçãonuncafoiparavaler,quesemprefoitudo“vinhonovoemodresvelhos”,comodiriaRaymundoFaoro.

EmSobradosemucambos,GilbertoFreyrepercebeareeuropeizaçãodoBrasildoséculoXIXcomoumprocessoquetinhacertamenteelementosmeramenteimitativosdotipopara“inglêsver”,elementosesses aliás típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fundamental, no entanto, é queexistiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado cultural. Mais importanteaindaéaconstrução,nesseperíodo,deinstituiçõesfundamentais,comoumEstadoemercadoincipientes,base sobre a qual se poderiam desenvolver, com autonomia, os novos valores universalistas eindividualistas.Aindaqueessesnovospadrõesdecomportamentoevaloresnãotenhamsegeneralizadopara a base da sociedade, o que iria formar o verdadeiroapartheid doBrasilmoderno, sua entrada,mesmoqueseletivaesegmentadanopaís,temquesercompreendidaemtodasuadimensão.

O embate valorativo entre os dois sistemas é amarca doBrasilmoderno, cuja genealogia FreyretraçaemSobradosemucambos comumamaestria exemplar.Nessenovocontextourbano, o patriarcadeixa de ser referência absoluta. Ele próprio tem que se curvar a um sistema de valores com regrasprópriaseaplicávelatodos,inclusiveàantigaelitesocial.Osistemasocialpassaaserregidoporumcódigovalorativocrescentementeimpessoaleabstrato.Aopressãotendeaserexercidaagoracadavezmenosporsenhorescontraescravos,ecadavezmaisporportadoresdevaloreseuropeus,sejamelesdequalquer cor – efetivamente assimilados ou simplesmente imitados –, contra os pobres, africanos eíndios.

Aépocadetransiçãodopoderpolítico,econômicoeculturaldocampoparaacidadefoitambém,emvários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foramtranspostostalqualeramexercidosnocampoparaacidade.AmetáforadacasaedaruaemFreyreassimoatesta.Osobrado,acasadosenhorruralnacidade,éumaespéciedeprolongamentomaterialdasuapersonalidade. Sua relação com a rua, essa espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é dedesprezo.Aruaéolixodacasa,representaoperigo,oescuro,ésimplesmenteanãocasa,umaausência.Osadomasoquismosocialmudade“habitação”.Seuconteúdo,noentanto,aquiloqueodeterminacomoconceitoparaGilbertoFreyre,ouseja,oseuvisceralnãoreconhecimentodaalteridade,permanece.

Apassagemdosistemacasa-grandeesenzalaparaosistemasobradoemocambofragmenta,estilhaçaemmil pedaços umaunidade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Freyre. Essesfragmentosespalham-seagoraportodaaparte,completando-semaleacentuandoconflitoseoposições.Dacasa-grandeesenzala,depoissobradosemocambos,e,hojeemdia,bairrosecondomíniosburguesese favelas, as acomodações e complementaridades ficam cada vezmais raras.De início, a cidade nãorepresentoumaisdoqueoprolongamentodadesbragada incúriados interessespúblicosemfavordos

Page 40: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

particulares poderosos. O abastecimento de víveres, por exemplo, foi um problema especialmentedelicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e osviveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos.38Nadamuitodiferentedoqueacontecehojeemdia, emboranadadisso sejavistocomocorrupçãodospoderososquecontrolamomercado.

Dessemodo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e demuitosmestiçospobresdascidades.Oníveldevidabaixou,acomidaficoupioreacasatambém.Seuabandono os fez, então, perigosos, criminosos, maconheiros, capoeiras, etc. Os sobrados senhoris,tambémnenhumaobra-primaemtermosdecondiçõesdemoradia,porseremescuroseanti-higiênicos,tornaram-secomo tempoprisõesdefensivasdoperigoda rua,dosmoleques,doscapoeiras, etc.Umalógica de convivência naturalizada com a desigualdade social que também veio para ficar, comosabemos,hojeemdia,nasociedadedoscondomíniosfechados.

A urbanização, no entanto, também representou uma mudança lenta mas fundamental na forma doexercíciodopoderpatriarcal:eledeixadeserfamiliareabstrai-sedafiguradopatriarca,passandoaassumirformasimpessoais.Umadessasformasimpessoaiséaestatal,quepassa,pormeiodafiguradoimperador,arepresentarumaespéciedepaidetodos,especialmentedosmaisricosedosenriquecidosnacidade,comooscomerciantese financistas.Oestado,aomesmotempo,minaopoderpessoalpeloalto,penetrandonaprópriacasadosenhorelheroubandoosfilhosetransformando-osemseusrivais.Éque as novas necessidades estatais por mão de obra especializada, como burocratas, juízes, fiscais,juristas, etc., todas indispensáveispara asnovas funçõesdo estado, podemsermelhor exercidaspeloconhecimento que os jovens adquirem na escola, especialmente se essa fosse europeia, o que lhesconferiaaindamaisprestígio.

Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais velhas, foirapidamentedesvalorizado,numprocessoque,por seuexagero, é típicodeépocasde transição comoaquela.D.PedroIIéumafiguraemblemáticanesseprocesso.Sendoelepróprioumimperador jovem,cercou-sedeseusiguais,ajudandoacriaroqueJoaquimNabucochamariade“neocracia“.39

Tambémarelaçãoentreossexosmudou.Aurbanizaçãomitigaoexcessodearbítriodopatriarcaaoretirarasprecondiçõessobainfluênciadasquaiseleexerciaseupoderilimitado.Omédicodefamília,porexemplo,inserenolardomésticoumainfluênciaincontrolávelpelopatriarca.Éelequeirásubstituiro confessor. O teatro, o baile demáscaras, as novasmodas de vestir e os romances se tornammaisimportantesquea Igreja.Umnovomundo se abre para asmulheres, apesar do sexismo ter sido, paraFreyre,onossopreconceitomaispersistente.

De qualquer modo, essas mudanças representam transformações importantes, porém limitadas, daautoridadepatriarcal.Eleéobrigadoa limitar-senasuaprópriacasa,masarealmudançaestruturaledemocrática ainda estava por vir. Em Sobrados e mucambos, essa mudança recebe o nome dereeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente “oriental” da sociedade colonial brasileira, deeuropeizaçãodoBrasil.

Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos simultâneo domercadoedaconstituiçãodeumaparelhoestatalautônomo,comtodasassuasconsequênciassociaiseculturais.A reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de elementosocidentais e individualistas em nossa cultura, por meio da influência de uma Europa, agora jáfrancamenteburguesa, nos exemplosdaFrança,Alemanha, Itália e, especialmente, da grande potênciaimperialeindustrialdaépocaeterranataldoindividualismoprotestante,aInglaterra.

Page 41: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima para baixo, envolvendo todos osestratos sociais,mudando a posição e o prestígio relativo de cada umdesses grupos e acrescentandonovoselementosdediferenciação.Sãoessesnovosvaloresburgueseseindividualistasqueirãosetornaronúcleodaideiademodernidadeedeeuropeidadeenquantoprincípioideologicamentehegemônicodasociedade brasileira a partir de então.No estilo de vida, e aíGilberto Freyre chama atenção para ainfluênciadecisivadosinteressescomerciaiseindustriaisdoimperialismoinglês,mudaram-sehábitos,aarquiteturadascasas,ojeitodevestir,ascoresdamoda,algumasvezescomoexagerodousodetecidosgrossoseimprópriosaoclimatropical.Bebia-seagoracervejaecomia-sepãocomouminglês,etudoqueeraportuguêsouoriental transformou-seemsinaldemaugosto.40Ocaráterabsolutodessasnovasdistinções tornou o brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa no relato deFreyre,devendergatoporlebre.

Paraalémdasmudançaseconômicas,houveasculturaisepolíticas,comoadventodasnovasideiasliberais e individualistas, que logo conquistaram setores da imprensa e as tribunas parlamentares.Noentanto, nenhuma dessas mudanças importantes teve o impacto da entrada em cena no nosso país doelementoburguêsdemocratizante por excelência: o conhecimento e, com ele, a valorização do talentoindividual, que tanto o novo mercado por artífices especializados quanto as novas funções estataisexigiam.

No âmbito domercado, fundamental foi a introdução damáquina, que, como de resto sabia KarlMarx,nãoémaisdoqueconhecimentomaterializado.Freyre estáperfeitamente consciente da enormerepercussãosocialdessa inovação técnica.41Amáquinaveiodesvalorizarabasemesmadasociedadepatriarcal, desvalorizando o trabalho muscular e desqualificado do escravo, diminuindo tanto aimportância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal elemento dissolvente dasociedadeeculturapatriarcal.

Aodesvalorizarasduasposiçõessociaispolaresquemarcamasociedadeescravocrata,ela vinhavalorizar,porcontadisso,precisamenteàqueleelementomédio,quesemprehaviacompostoumaespéciedeestratointermediárionaantigasociedade,que,nãosendonemsenhornemexatamenteumescravo,eraum“deslocado”,umsem-lugarportanto.

Agênesesocialdesseelementoremontaàquelaintimidadesexualeculturalentreasdiversasraçaseculturas, especialmente a portuguesa e a africana que predominava no sistema casa-grande e senzala.Aquiencontramosumaprimeiraformadelugarsocialparaaqueleelementogestadonafamíliapatriarcalampliadaepoligâmica.Será,precisamente,apartirdessasmodificaçõessociaisestruturaisqueteremosa construçãoda categoria social domulato, ou da “válvula de escape domulato”, como prefereCarlDegler.42

O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores e padres, indivíduos de statusintermediários, quase sempre assumindo as funções de agregado da família, de qualquer modo quasesempremais oumenos deslocados nomundo de posições polares como são as de senhor e escravo,encontra,agora,umapossibilidadenovadeascensãoemobilidadesocial.Amudançasocialimplicadapelamudançadocampoparaacidadeabre,portanto,oportunidadesantesimprevistasparaesseestrato.

Na nova sociedade nascente são as antigas posições polares que perdem peso relativo, e essesindivíduos,quasesempremestiços,semoutrafontederiquezaquenãosuahabilidadeedisposiçãodeaprender os novos ofícios mecânicos, quase sempre com aprendizes de mestres e artesãos europeus,passaram a formar o elementomais tipicamente burguês daquela sociedade emmudança: o elementomédio, sob a forma de uma meia-raça. Alguns desses mestiços, como o próprio Machado de Assis,

Page 42: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

passamaseaventurarnocapitalculturalmaisvalorizadoainda,nãosóoconhecimentodotrabalhadormaisqualificadodefunçõesmecânicasrepetitivas,masdoaltocapitalliterário,aprópriaincorporaçãodo“espírito“enquantotal.

Em vez apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da complexa ritualística que, comoconsequênciadamaiorproximidadesocialentreosdiversosestratossociaisqueaurbanizaçãoenseja,instaura-senopaísnessaépoca,comoaformadavestimenta,acomida,omododetransporte,ojeitodeandar,otipodesapato,etc.,temos,apartirdeentão,umelementodiferenciadornovo.Esseelementoérevolucionárionomelhor sentido burguês do termo, posto que interno e não externo, sendo antes umasubstânciaeumconteúdodoqueumaaparência,maisligado,portanto,aqualidadesetalentospessoaisqueaprivilégiosherdados.

Oconhecimento,aperícia,passaaseronovoelementoacontardeformacrescentenadefiniçãodanovahierarquiasocial.Nessesentido,servindodebaseparaaintroduçãodeumelementoefetivamentedemocratizante, pondo de ponta-cabeça e redefinindo revolucionariamente a questão do status inicialparaasoportunidadesdemobilidadesocialnanovasociedade.Uma“democratização”quetinhacomosuporte,ainda,omulatohabilidoso.Umpoucomaistarde,principalmenteemSãoPauloenoSuldopaís,esse elemento seria representado com ainda mais sucesso pelo imigrante europeu, antes de tudo oitaliano.

Doladodomercado,essastransformaçõesseoperamsegundoumalógicade“baixoparacima”,ouseja, pela ascensão social de elementos novos em funçõesmanuais, as quais, sendo o interdito socialabsolutoemtodasassociedadesescravocratas,nãoerampercebidaspelosbrancoscomodignificantes.Com o enriquecimento paulatino, no entanto, demulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessaépoca especialmente portugueses, como caixeiros e comerciantes, as rivalidades e os preconceitostenderamaaumentarproporcionalmente.

Ooutrocaminhodeascensãosocialdomulato,domulatobacharelparaFreyre,deculturasuperiore,portanto,maisaristocráticodoqueomulatoartesão,éosímbolodeumamodernizaçãoqueseoperounão apenas de fora para dentro e de baixo para cima, mas também de cima para baixo. O mestiçobacharelconstituiumanobrezaassociadaàsfunçõesdoEstadoedeumtipodeculturamaisretóricaehumanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão. O Estado, portanto, e nãoapenas omercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi também um lócus importantedessanovamodernidadehíbrida,jáburguesa,masaindapatriarcal.Sebemquedeumpatriarcalismojásublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador pai de todos, e já mais afastado, noentanto,dopatriarcalismofamilísticotododominantenacolônia.

PodemosperceberaquiasementedaformaçãodeumaclassedecisivaparaaconstruçãodoBrasilmoderno: a classe média, cujo privilégio irá se concentrar na reprodução social do capital culturalvalorizado.AformaçãoincipientedessaclassenoséculoXIXjáapontaparaummecanismodedistinçãosocialquesó iriase tornarmais importantecomo tempo:adistinçãoemrelaçãoaosdebaixo.Dessemodo, o processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo deproletarizaçãoedemonizaçãodonegro.Tantooescravoquantoopáriadosmocambosnascidadeseraoelementoemrelaçãoaoqualtodosqueriamsedistinguir.

Noteoleitorqueaquijátemostambémapré-históriadaquelaclassequechamoprovocativamentede“ralé brasileira”, para denunciar seu abandono. A única diferença hoje em dia é que essa classe écomposta por negros e mestiços de todas as cores, mostrando que a antiga “raça condenada” setransformaem“classe condenada”.43Mas a sua função social continua amesma.Ela serve às classes

Page 43: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

incluídas como mecanismo de distinção em duas frentes: uma simbólica, para provocar o prazer da“superioridade”edomando;eoutramaterialepragmática,nosentidodecriarumaclassesemfuturoquepode,portanto,serexploradaapreçovil.

Aenormeimportânciadavestimentanessaépocaserviaagoraparafinsdediferenciaçãosocial,queantessequernecessitavadeexternalização.Oelementocapazdeascensão,portanto,eraomulatoouomestiçoemgeral,osemi-integrado,oagregadoetodasasfigurasintermediáriasdasociedade.Aprópriaênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas contra osmestiços que usavamcasacaouluvajádemonstram,comoumaconsequênciamesmadoacirramentodascontradiçõesapartirdacompetiçãocomindivíduosbrancosantessegurosdesuaposição,44apossibilidaderealdeascensãoe a contradição entre elementos constitutivos do sistema: um segregador, que exclui classes sociaisinteiras,eoutroinclusivo,quefuncionaindividualmente.

Nadamuitodiferentedenossosdiasnesseparticular.Oódioaopobrehojeemdiaéacontinuaçãodoódiodevotadoaoescravodeantes.Quandoasclassesmédiasindignadassaíramàsruasapartirdejunhode 2013, não foi, certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando acorrupçãodosoutrospartidosveioàtona.PorqueacorrupçãodoPTprovocoutantoódioeacorrupçãode outros partidos é encarada com tanta naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódiodevotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno. Acorrupçãofoimeropretexto.45Nãohouve,portanto,nosúltimos150anos,umefetivoaprendizadosocialemoralemdireçãoaumasociedadeinclusivaentrenós.

MasvoltemosaonossoberçodoBrasilquehojeconhecemosqueéoséculoXIX.Fundamentalparaa compreensãodo argumentodeFreyre, vale a pena repetir, é queo componente externo, burguês, darevalorização do trabalhomanual e da habilidade pessoal, produto do processo de reeuropeização, éapenaspartedoprocessodeconstituiçãodeumasociedadequesemodernizaesegrega.Aschancesdeascensão social domestiço já estavam assim prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entrefilhos ilegítimos, ou seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve ter atingido proporçõesrazoáveisparaestimularescritosereclamaçõescontráriasàpráticaporsersupostamentefragmentadoradariquezaacumulada,comonoscontaFreyreemCasa-grandeesenzala.Tambémpelaproximidadeeintimidadeafetivaentreosenhoresuasconcubinas,assimcomopelossentimentosfiliaisentrefilhosdesenhores e amas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linha vertical de vínculosafetivos e privilégios familiares e de classe a agregados, no sentido amplo do termo, da famíliapatriarcal.

Freyre percebia que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram funcionais e nãoessencialistas.Issopermitiaqueafiguramasculinadopatriarcapudesseserexercidaporumamulher,aqual obviamente continua biologicamente mulher, mas era sociologicamente ou funcionalmentehomem/patriarca.Assim, domesmomodo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhosilegítimos de senhores de terra e padres, que poderiam tornar-se sociologicamente filhos, herdando ariqueza paterna, ou mesmo o substituindo na atividade produtiva. O mesmo traço sistêmico fazia obiologicamentemulatotransformar-seemsociologicamentebranco,ouseja,ocuparposiçõessociaisque,numsistemaescravocrata,sãoprivilégiodebrancos.46Forma-se,narealidade,umaversãobrasileirado“dividir para dominar”. Separar os mulatos dos negros e torná-los servis aos brancos possibilita aestigmatização e superexploração do negro de todas as formas imagináveis. A construção do pactoantipopularquehojevivenciamosentreaeliteeaclassemédiajáestavaprefiguradanessearranjo.

QuandoamodernidadeeuropeiachegaaoBrasildenavio,naesteiradatrocademercadorias,seus

Page 44: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

valores não são umameramercadoria de consumo.Afinal, seriam esses valores que iriam presidir ainstitucionalizaçãoincipientedeformasextremamenteeficazesdeconduçãodavidacotidiana:oEstadoeomercadocapitalistas.47Estadoemercadopressupõemumarevoluçãosocial,econômica,valorativaemoraldegrandesproporções.Ospapéissociaissemodificamradicalmente.Oqueanteseraaceitocomodefinindo os papéis sociais de mulher, homem, filho e pai se transformam, como Freyre mostra commaestria. A noção de tempo, a condução da vida cotidiana, a economia afetiva necessária para oaprendizadodosnovosofícioseprofissõesécompletamentediferentedaqueimperavaanteriormente.Oqueétidocomobonito,comobom,comolegítimodeserperseguidonavida,anoçãodesucessoede“boavida”mudaradicalmente.Muda,enfim,aconfiguraçãovalorativadasociedadecomoumtodo.

É esse contexto revolucionário, no sentidomais profundo do termo por se referir a mudanças decoraçõesementesdaspessoas,queFreyrenosexpõecomtalentosingularemSobrados emucambos.Mudanças essas amparadas por transformações institucionais que garantiam, por meio do mecanismopeculiar de prêmios e punições típicos da eficácia institucional, a reprodução e permanência dessesmesmosvaloresnovos.

Eétambémessenovocontextovalorativoquepodenosexplicaranovaposiçãodomestiçonele.Foinasnecessidadesabertasporummercadoincipiente,emfunçõesmanuaisemecânicas rejeitadaspelosbrancos, assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento, que mestiçospuderamafirmarseulugarsocial.Nesseúltimocaso,porsetratardecolocaçõesdealtacompetitividade,disputandoposiçõescomosbrancos,équeFreyrefalada“cordialidade”edosorrisofácil, típico domulatoemascensão,comoacompensarodadonegativodacor.Essacompensação,aomesmotempoquereafirma o racismo, mostra que o empecilho não era absoluto e sim relativo, superável pelo talentoindividual, ou seja, mostra que havia espaço para formas de reconhecimento social baseadas nodesempenhodiferencialenãoapenasemcategoriasadscritivasdecor.

Afinal,faziapartemesmodaflexibilidadedosistemaoabandonodecaracterísticassegregadorasapartirdadimensãobiológica, tãodeterminanteemoutrossistemascomcaracterísticassemelhantes,emfavor de uma sobredeterminação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era construtivo efuncional para a reprodução do sistema como um todo, governado já agora pela palavra mágica damodernização, era passível de valorização. Assim, a realização diferencial de certos fins e valoresconsideradosdeutilidadesocialinquestionáveleramaisimportante,porexemplo,doqueacordapeledoindivíduoemquestão.

NoBrasildocomeçoaofimdoséculoXIX,aproporçãodemulatoscresceude10%para41%dapopulaçãototal.Issoimplicarápidamiscigenaçãoecasamentosinter-raciaiseindicaqueamobilidadesocialdesseestratoeramaisdoquemerafantasia.ApartirdasegundametadedoséculoXIX,aascensãosocial demestiços noBrasil fez, efetivamente, com que tivéssemosmulatos como figuras de proa naliteratura, na política, no Exército, e atuantes como ministros, embaixadores, e até presidentes daRepública.Essepadrãodeascensão social seletivadomestiço só seriamudadodecisivamente com achegadadosmilhõesdeeuropeusapartirdofimdoséculoXIX.48

É a partir daqui que podemos entender a relação entre classe social e raça no nosso país. Serconsideradobranco era ser consideradoútil ao esforçodemodernizaçãodo país, daí a possibilidademesma de se embranquecer, fechada em outros sistemas com outras características. Branco era (econtinuasendo)antesumindicadordaexistênciadeumasériedeatributosmoraiseculturaisdoqueacordeumapele.Embranquecersignifica,numasociedadequeseeuropeizava,compartilharosvaloresdominantesdessacultura,serumsuportedela.Preconceito,nessesentido,éapresunçãodequealguém

Page 45: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

deorigemafricanaé“primitivo”,“incivilizado”,incapazdeexercerasatividadesqueseesperavadeummembrodeumasociedadequese“civilizava”segundoopadrãoeuropeueocidental.

Antonio Sérgio Guimarães percebe bem a relevância desse aspecto para a questão racial quandoafirma:

NoBrasil,o“branco”nãoseformoupelaexclusivamisturaétnicadepovoseuropeus,comoocorreunos Estados Unidos com o “caldeirão étnico”; ao contrário, como “branco” contamos aquelesmestiços e mulatos claros que podem exibir os símbolos dominantes da europeidade: formaçãocristãedomíniodasletras.49

NoBrasilemviasdesetornareuropeizadodoséculoXIX,aposserealoufictíciadessesnovosvaloresquetomamanaçãodeassaltovaiserofundamentodaidentidadedegruposeclassessociaiseabasedoprocessodeseparaçãoeestigmatizaçãodosgrupospercebidoscomonãoparticipantesdessaherança.Aânsiademodernização,derestoestampadanabandeiradanaçãonaspalavrasde“ordemeprogresso”,passa,apartirdessaépoca,adominarasociedadebrasileiracomooprincípiounificadordasdiferençassociais,oprincípioemrelaçãoaoqualtodasasoutrasdivisõesdevemsersecundarizadas.

Éemnomedelatambémquepassaaoperarumnovocódigosocialnascente,umanova“hierarquiasocial”quevaiestipularoscritériosquepermitemelegitimamquealgunssejamvistoscomosuperioresedignosdeprivilégios,eoutrossejamvistoscomoinferioresemerecedoresdesuaposiçãomarginalehumilhante.Adistinçãoentreosestratoseuropeizadosemrelaçãoaosestratosde influênciaafricanaeameríndia, com toda a sua lista de distinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens de boasmaneiras/joões-ninguém, competentes/incompetentes etc., vai ser a base dessa nova hierarquia dascidadesquesecriamesedesenvolvem.

Aposse,realousuposta,devaloreseuropeusindividualistasvai,dessaforma,legitimaradominaçãosocialdeumestratosobreooutro,justificarosprivilégiosdeumsobreooutro,calaraconsciênciadainjustiçaaoracionalizá-laepermitirapré-históriadanaturalizaçãodadesigualdadecomoapercebemosevivenciamoshoje.Obviamente,essaordemnãoseimpõedanoiteparaodia.EmtodooséculoXIX,essas transformaçõessãocapilares e cotidianas,mudandoaordemanterior apenas aospoucos.Maséimportantenotaradireçãoparaqueonovovetordedesenvolvimentoapontaeperceberqueelecomeçaem1808,comaaberturadosportoseachegadadafamíliareal.Umsegundoaprofundamentoemdireçãoàordemburguesaecapitalistaocidentalsedácomalibertaçãodosescravosem1888.

Page 46: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

A

ASCLASSESSOCIAISDOBRASILMODERNO

AcriaçãodaralédenovosescravoscomocontinuaçãodaescravidãonoBrasilmoderno

situação descrita porGilberto Freyre, em sua recriação do séculoXIX brasileiro, tinha comoreferênciaempíricaasmaiorescidadesbrasileirasdaépoca:Recife,Salvadore,acimadetudo,Rio de Janeiro.A partir do fim do séculoXIX, no entanto, oBrasil passa por transformações

fundamentais.Aprimeiradelaseamaisimportanteéaaboliçãoformaldaescravidão.Elainstauraummercado formal competitivodo trabalho combase no contrato que significa uma importantemudança,aindaquecomcontinuidadesfundamentaissoboutrasroupagens,emrelaçãoaoperíodoanterior.

A base dessa mudança abrange também um deslocamento espacial do eixo de desenvolvimentoeconômiconacional.OSuleoSudestedoBrasil,muitoespecialmenteacidadeeoestadodeSãoPaulo,passam a substituir o Nordeste brasileiro e sua monocultura decadente do açúcar como polo dedesenvolvimento.AcidadedeSãoPaulo,comseucrescimentovertiginoso,passatambémasubstituir,demodocrescente,acidadedoRiodeJaneirocomocentrodoBrasiltradicional.Asbasesdessenovoeixodedesenvolvimentosãootrabalholivre,comobasedaculturacafeeirapaulista,ouseja,nãoescravo,eamassivaimigraçãodecontingentesestrangeirosquepassamaviraopaís–especialmenteparaoestadodeSãoPauloeoSuldopaís–apartirde1880aosmilhões.

Amelhor descrição da importância e dos efeitos desse processo demudança foi feita, aos meusolhos, por Florestan Fernandes no seu clássico A integração do negro na sociedade de classes.50Florestanseconcentranoperíodoquenosinteressaaquimaisdeperto,quevaide1880a1930.Apesardetodoseutalento,Florestannãoconseguereconstruirdemodoclaroetotalizadora“hierarquiamoral”entreasclasses,quesóerapercebidapelaorigemepelacordapele.51Elepróprioacabaconfundindoclasse e raça demodo fatal para sua análise.Ainda assim, seu extraordinário talento de síntese e dereconstruçãoempíricadesseperíodonosvaisermuitoútil.

Florestan é o primeiro a investigar seriamente o tema da constituição do que chamei,provocativamente, para denunciar seu abandono, em trabalho empírico posterior ao dele, de “ralébrasileira”.52Fruto,antesdetudo,aindaquenãounicamente,doabandonodosex-escravos,aexistênciadessaclassesingularizaeexplicaasituaçãosocial,políticaeeconômicadoBrasilcomonenhumaoutraquestão. Tudo aquilo que o culturalismo racista busca esclarecer como decorrência de uma herançamaldita luso-brasileira para a corrupção, decorre, na verdade, do abandono dessa classe. Como atornamosinvisível,otrabalhodosintelectuaisconservadoresficafacilitado.

Florestan estuda essa classe invisibilizada de abandonados no localmais competitivo e onde elateve, inicialmente pelo menos, menores chances: a São Paulo dos imigrantes e do crescimentovertiginoso.Odadoessencialdetodoesseprocessofoioabandonodo libertoasuaprópriasorte (ou

Page 47: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

melhor,aopróprioazar).Comotodoprocessodeescravidãopressupõeaanimalizaçãoehumilhaçãodoescravoeadestruiçãoprogressivadesuahumanidade,comoodireitoaoreconhecimentoeàautoestima,a possibilidade de ter família, interesses próprios e planejar a própria vida, libertá-lo sem ajudaequivaleaumacondenaçãoeterna.Efoiexatamenteissoqueaconteceuentrenós.Comonossaprópriapesquisaempíricade2009comprova,asituaçãoda“ralédenovosescravos”poucomudoudesdeentão.

O ex-escravo é jogado dentro de uma ordem social competitiva, como diz Florestan, que ele nãoconheciaeparaqualelenãohaviasidopreparado.Paraosgrandessenhoresde terra,a libertaçãofoiuma dádiva: não apenas se viram livres de qualquer obrigação com os ex-escravos que antesexploravam,maspuderam“escolher”entreaabsorçãodosex-escravos,ousodamãodeobraestrangeiraquechegavademodoabundanteaopaís–cujaimportaçãoossenhoreshaviamconseguidotransformarem“políticadeEstado”–e autilizaçãodosnacionaisnãoescravos.Estesúltimoshaviamevitadoostrabalhosmanuaiscomosímbolodedegradaçãoquandomonopolizadospelosescravos.

Se,comovimosemFreyre,emcidadescomoSalvador,RecifeeRiodeJaneiroalgunsnegros,masespecialmenteosmulatos, tinhamacessoafunçõesdoartesanatourbano,deatividadesmecânicasedopequeno comércio urbano, em São Paulo a situação era muito diferente. Lá, a concorrência dosimigrantes, especialmente dos italianos, que não temiam a degradação moral do trabalho produtivomanualtípicodetodoregimeescravista,foidevastadoraparaoslibertos.

OquadrogeraldasociedadedeclassesquesecriadepoisdaescravidãoapresentavaparaFlorestanoseguinteformato:notopodahierarquiasocial,apreservaçãoereproduçãodopoderestavanasmãosdas antigas famílias proprietárias rurais de cafeicultores com pouco espaço de competição. Em umcontexto, mesmo depois da superação da ordem escravocrata, onde considerações de statuspredominavam sobre as considerações de cálculo econômico, as condições sociais nãomilitavam nosentidodetransformaroantigoproprietárioruralemempresário.

Foi apenas com o crescente entrelaçamento e aprofundamento das relações do fazendeiro com asredes de comercialização e financiamento nacionais e internacionais, aceleradas pela introdução dotrabalho livre, que o proprietário rural se tornou mais consciente da remuneração dos fatores deproduçãoedaprodutividadedotrabalho.Serãoosmaisempreendedoresentreessesnovoscapitalistasrurais que serão as figuras de proa da dinamização da vida econômica em todos os níveis. Umaorientação especificamente “burguesa” e capitalista teria que esperar os quase cinquenta anos queseparamaAboliçãoeoadventodoEstadoNovonadécadade1930.

Abaixodaaristocracia ruralque semoderniza,noentanto,naesferaabertapela livre empresa emexpansão,prevaleciaaideialiberaldohomemcertoparaolugarcerto.53O“estrangeiro”apareciaaqui,inclusive,comoagrandeesperançanacionaldeprogressorápido.Nessequadro,arealidadeeafantasiado preconceito se encontram e o imigrante eliminava a concorrência do negro onde quer que ela seimpusesse. Mais acostumados às demandas do trabalho em condições capitalistas, os imigrantes dotrabalho livre tinham na lavoura produtividade 1/3 maior que a do antigo escravo com custosorganizacionaismuitomenores.

Sejanocamposejanacidade,asnovaschancesdaordemcompetitivaseabremparaossegmentosmais capazes de arregimentar maior qualificação comparativa do trabalho, poupança e mobilidadeespacialeocupacional.Osimigranteseossegmentosmaiscultosousemi-instruídosdeorigemnacionalsãooscandidatosnaturaisaocuparemosnovosespaços.

Abaixo do segmento dos novos incluídos no mercado competitivo existiria uma plebe nacionalcompostaporbrancosquevinhamdocampoparaascidadeseparaquemosinterstíciosdanovaordem

Page 48: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

eramdequalquermodoumganhoemrelaçãoàmisériamaterialemoraldadependênciapessoal.Maisabaixoainda,dá-seaconstituiçãohistóricadaquiloquechamode“ralébrasileira”:composta

pelos negros recém-libertos e pormulatos emestiços de toda ordem para quem a nova condição eraapenas uma nova forma de degradação. A submersão na lavoura de subsistência ou a formação dasfavelas nas grandes cidades passam a ser o destino reservado pelo seu abandono. Temos aqui aconstituiçãodeumaconfiguraçãodeclassesquemarcariaamodernizaçãoseletivaedesigualbrasileiraapartirdeentão.

Para o negro, sem a oportunidade de competir com chances reais na nova ordem, restavam osinterstícios do sistema social: a escória proletária, o ócio dissimulado ou a criminalidade fortuita oupermanentecomoformadepreservaradignidadede“homemlivre”.Aoperderemaposiçãodeprincipalagentedotrabalho,osnegrosperderamtambémqualquerpossibilidadedeclassificaçãosocial.Aaçãoconcomitantedaextinçãodasestratégiasdeacomodaçãodopassado,quepropiciaramanegrosemulatosocupações compensadoras e até nobilitantes, mostra o grau dramático para esse setor da novaconfiguraçãodevidaeconômica.

Onegrotorna-sevítimadaviolênciamaiscovarde.Tendosidoanimalizadocomo“traçãomuscular”emserviçospesadoseestigmatizadocomotrabalhadormanualdesqualificado–quemesmoosbrancospobresevitavam–,éexigidodeleagoraquese torne trabalhadororgulhosodeseu trabalho.Omesmotrabalho que pouco antes era o símbolo de sua desumanidade e condição inferior. Ele foi jogado emcompetiçãoferozcomoitaliano,paraquemotrabalhosemprehaviasidomotivoprincipaldeorgulhoedeautoestima.Beloiníciodasociedade“competitiva”entrenós.

Apenasamulhernegra,devidoàespecializaçãoemserviçosdomésticos,encontrouumasituaçãoumpoucomenosdesfavorávelnesseperíododetransição.Apopulaçãoestrangeiranãovisavaessetipodeserviço,pelomenosemigualmonta.Emgrandemedida,essacircunstânciaexplicaa“matrifocalidade”das famílias negras e pobres de qualquer cor,54 onde apenas a mulher representa uma referênciaeconômicaesocialdeestabilidade.Tambémnesseaspectoopaíspoucomudoudesdeentão.

Comoaspectoadicionalquecontribuiparaodesajustamentosocialqueseconsolidaapartirdesseperíodo,comefeitosatéhoje,háqueselembrardocerceamentodasexpressõesculturaisdonegro.Elaspassam a ser percebidas como expressão do tosco e do primitivo que a nova autoimagem citadinaeuropeizante procurava expurgar. A ansiedade pelo progresso, percebido como imitação servil dosmodos e das expressões culturais europeias, criava um ambiente de intolerância a qualquer forma decomportamentoquepudessesercompreendidacomoatrasadaeprovinciana.

Outro fator que perdura até nossos dias é que o medo dos escravistas da “rebelião negra” setransformaeésubstituídopeladefiniçãodonegrocomo“inimigodaordem”.Sendoa“ordem”percebidajánoseusentidomodernodesignificardecoro,respeitoàpropriedadeesegurança.Vemdaí,portanto,ousosistemáticodapolíciacomoformadeintimidação,repressãoehumilhaçãodossetoresmaispobresda população. Matar preto e pobre não é crime já desde essa época. As atuais políticas públicasinformaisdematarpobresepretos indiscriminadamenteefetuadaspor todasaspolíciasdoBrasil,porconta do aval implícito ou explícito das classes médias e altas, têm aqui seu começo. As chacinascomemoradasporamplossetoressociaisdemodoexplícito,empresídiosdepretosebrancospobresesemchancedesedefender,comprovamacontinuidadedessetipodepreconceitocovarde.

Comoresultadodoprocessoqueotornavaumdesajustadoestruturalnasnovascondiçõessociais,onegrodesenvolveu,reativamente,umarespostaqueradicalizavaaanomiaeonãopertencimentosocial:onão pertencimento à família, à comunidade e ao trabalho. Cria-se uma oposição entre os negros que

Page 49: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

desejavamse“europeizar”eosnegrosanômicose “largados”que saíramdaescravidão físicapara aescravidãomoral. Amesma oposição interna entre os irmãos dessa classe excluída foi verificada nanossapesquisaempíricacomessaclasseumséculodepois.

Aoposiçãoentreo“pobrehonesto”eo“pobredelinquente”rasgapraticamentetodasas famíliasetornamuitodifícilaexistênciadeformasdesolidariedadedeclassena“ralé”,asquaissãopossíveis,por exemplo, na classe trabalhadora.Mais uma vez, vemos aqui continuidades importantes. Não porcontadeestoquesculturaismisteriosos,masporpráticasdeabandonoedeódiodeclassequelograramsereproduzirnotempoequejamaisforamcriticadasentrenós.Essapassouaser,portanto,umaherançaquesepassadegeraçãoageração:aperpetuaçãodaescravidão“dentrodoshomens”,55gerandoa“ralédenovosescravos”dehojeemdia,aindaque,formalmente,nãoexistamaisaescravidão.

Esse temada“escravidãodentrodoshomens” repetidoàexaustãono livrodeFlorestanmostra asambiguidadeseoslimitesdasuaanálisederestotãocerteiraecortante.Écertoqueaescravidãoestá“dentro dos homens”, mas não como ele imagina, sendo a marginalização do negro uma meraconsequência da permanência de “resíduos” – nunca devidamente explicitados – da ordem anterior.Florestanimagina,inclusive,queseoprocessodemodernizaçãobrasileirotivessesidomaisvigoroso,os“mecanismosespontâneos(sic)dereaçãosocietária”seriamsuficientesparaajustaronegroàsnovascondições.56

Florestanmostraaquiumacrençaliberalquaseingênuadequeomercadocompetitivopoderosoporsisópossaserinclusivoeemancipador.Elechegaadizer,inclusive,queessesmecanismosdeexclusãotendem a desaparecer com o avanço da “ordem competitiva” entre nós. A comparação com o casoamericano–paíscomaltonúmerodeexcluídos,ondeoprocessodemodernizaçãofoimaisvigorosoqueem qualquer outro lugar – mostra exatamente o contrário. A inclusão social de setores antesestigmatizados e marginalizados é sempre um “aprendizado político” coletivo e jamais decorrêncianatural do dinamismo econômico domercado.Ao contrário, omercado, deixado a simesmo, tende aadaptaramarginalizaçãodealgunsetorná-laprodutivaefuncionalparaosestratossuperiores.

O caso atual da exploração da ralé brasileira pela classe média para poupar tempo de tarefasdomésticas, sujas e pesadas, o que permite utilizar o tempo “roubado” a preço vil dessa classe ematividadesmaisprodutivasemaisbemremuneradas,mostraumafuncionalidadedamisériaclaracomoaluzdoSol.Essalutadeclassessilenciosaeximetodaumaclassedoscuidadoscomosfilhosedavidadoméstica,transformandootempopoupadoemdinheiroeaprendizadoqualificador.Aclasseroubada,nocaso,écondenadaeternamenteadesempenharosmesmospapéissecularmenteservis.

O raciocínio de Florestan aqui é tributário da teoria da modernização. De acordo com ospressupostosdessateoria,aexclusãosocialeocomportamentodisruptivosãosemprepercebidoscomopassageiros e não um traço permanente que, dependendo do nívelmoral e político de uma sociedadeconcreta,podeserreproduzidoadinfinitum.Esseéexatamenteocasobrasileiroaosmeusolhos.

A teoria da modernização sofisticou a moda de eufemizar a realidade para negar formas dedominaçãoquetendemaseeternizar.Assim,apobrezaeainadaptaçãosãopassageiras,quasesempredecorrentesdesituaçõestransitórias,comoapassagemdocampoparaacidade.Ospaísescondenadosaseremexportadoresdematérias-primastodootemponãosãomaischamadosdesubdesenvolvidos,massimde“emdesenvolvimento”paraassinalarumatransiçãoque,naverdade,comotambémsecomprovanocasobrasileiro,nuncatermina.

Naverdade,agrandelimitaçãodoraciocíniodeFlorestan–aindaqueeletenhaido,ameuver,maislongequequalqueroutropensadorbrasileiro–énãoperceberqueocapitalismoouoqueelechamade

Page 50: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

“ordem competitiva” possui uma “ordemmoral”muito singular.Ao contrário da ordem escravocrata,onde os lugares são visíveis e decididos pelo fenótipo e pelo status de origem domodomais claropossível, a produção da desigualdade na nova ordem é opaca e não transparente aos indivíduos queatuam nela. Se os especialistas, ainda que talentosos como Florestan, não a percebem, o que dirá osleigos,presasfáceisdetodotipodemanipulaçãomidiática,precisamenteporcontadisso.

Éodesconhecimentodahierarquiamoral,especificamentecapitalistaenãomaisescravocrata,queproduzdemodonovotantoadistinçãoquelegitimaasnovasformasdeprivilégioquantoopreconceitoquemarginaliza eoprimeemviolência abertaoumuda.Épordesconhecer isso queFlorestan fala de“mundobranco”e“mundonegro”57comosefossemrealidadesdistintase todosnãoestivessem,aindaquecomconsequênciasmuitodiferentes,emumúnicomundo,comumaúnicahierarquiaqueseimpõe.Aprópria formação daquilo queFlorestan chama de “gentinha nacional”, ou seja, os negros,mestiços ebrancos“atrasados”queseamontoamnoscortiçosefavelas,58mostraaentradadeumahierarquiapelomenos“relativamenteindependente”dacornoprocessodeclassificaçãoedesclassificaçãosocial.

O próprio Florestan descreve brilhantemente a força e a eficácia dos novos princípios declassificação/desclassificação.Aimportânciadasocializaçãofamiliardistintanosnegrosenositalianos,com a reprodução de papéis de filho, irmão, pai e mãe trazendo a segurança existencial de quem é“gente”, no caso dos italianos, e a socialização familiar precária dos negros, levando à crônicareproduçãodamisérianãosómaterial,mas,também,moralesimbólica.MasFlorestannãotinhaachaveteórica que permite perceber a socialização familiar diferencial como o ponto central de uma novapercepção acerca das classes sociais e da luta de classes.59 Por conta disso seu texto confunde osaspectosdecorrentesdospreconceitosdecoredeclassecomprometendosuaricaanáliseempírica.

Ainda assim, Florestan parece ter ido o mais longe possível, dado o estoque de conhecimentodisponível em seu tempo.Senãopôde irmais longe, foi porque aspectos fundamentais da dominaçãosocialmuitomais sutil eopaca, sobcondiçõescapitalistas, aindanãohaviamsidodesvendadospelospensadoresmaiscríticosemaistalentososdocapitalismo.

TambéménecessáriodizerqueoimbróglionoqualFlorestanseviumetidonãoédefácilresolução.Eupróprio,emmeustextosepesquisassobreasclassespopulares,tendiacometeroenganocontrárioaoenfatizar a socialização familiar diferencial como o fator central da construção tornada invisível dasclassessociaisnomundomoderno.Postoqueessemecanismogerepreconceitos“independentesdacor”,tendiaencararoracismodecorcomoumaferidaeumataque“adicional”àsclassespopulares.60

Emboraaindadefendaanecessidadedesecompreenderadequadamenteaproduçãodadesigualdadedeclassedesdeoberço,comooelementomais importanteparaperceberomundosocialem todasassuasmanifestações,mudeiminhaopiniãoemumaspecto importante.Empaíses comoonosso, nãohácomoseparar–anãoseranaliticamenteparasepararojoiodotrigoeevitarasarmadilhasdaspolíticasidentitárias falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro –61 o preconceito declassedopreconceitoderaça.Équeasclassesexcluídasempaísesdepassadoescravocratatãopresentecomoonosso,mesmoqueexistamminoriasdetodasascoresentreelas,sãoumaformadecontinuaraescravidão e seus padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas esuperexploradas.

Oexcluído,majoritariamentenegroemestiço,éestigmatizadocomoperigosoeinferioreperseguidonãomaispelocapitãodomato,mas,sim,pelasviaturasdepolíciacomlicençaparamatarpobreepreto.Obviamente,nãoéapolíciaafontedaviolência,masasclassesmédiaealtaqueapoiamessetipodepolítica pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que

Page 51: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

construiu comas própriasmãos. E essa continuação da escravidão comoutrosmeios se utilizou e seutilizadamesmaperseguiçãoedamesmaopressãocotidianaeselvagemparaquebrararesistênciaeadignidadedosexcluídos.

Maisainda.Comoaproduçãodadesigualdadedeclassedesdeoberçoéreprimidatantoconscientequantoinconscientemente,éoestereótipodonegro,facilmentereconhecível,queidentificademodofácilo inimigo a ser abatido e explorado.O “perigonegro”usado como senha paramassacrar indefesos equilombolasduranteséculosécontinuadocomoutrosmeiosnomassacreaberto,ehojeaplaudidosempejo,depobresenegrosemfavelasepresídios.Aindamaisumponto.Comohouvecontinuidadesemquebra temporal entre a escravidão, que destrói a alma por dentro e humilha e rebaixa o sujeito,tornando-ocúmplicedaprópriadominação,eaproduçãodeumaralédeinadaptadosaomundomoderno,nossosexcluídosherdaram,semsoluçãodecontinuidade,todooódioeodesprezocovardepelosmaisfrágeisecommenoscapacidadedesedefender.

O resumo dessa passagemdramática entre duas formas de escravidão pode ser visto destemodo:comoaescravidãoexigeatorturafísicaepsíquicacotidianacomoúnicomeiodedobrararesistênciadoescravo a abdicar da própria vontade, as elites que comandaram esse processo foram asmesmas queabandonaramossereshumilhadosesemautoestimaeautoconfiançaeosdeixaramàprópriasorte.

Depois,comosenãotivessemnadaavercomessegenocídiodeclasse,buscaramimigrantescomumpassadoeumpontodepartidamuitodiferenteparacontraporemoméritodeumedeoutro,aprofundandoaindamaisahumilhaçãoeainjustiça.Esseesquemafuncionaatéosdiasdehojesemqualquerdiferença.Esseabandonoeessainjustiçaflagranteéorealcâncerbrasileiroeacausadetodososreaisproblemasnacionais.

Page 52: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

OsconflitosdeclassedoBrasilmoderno

ComaajudapreciosadeGilbertoFreyreeFlorestanFernandes,aindaqueparcialmentecriticadosereconstruídos,temosaembocadurageraltantodeumanovapercepçãodoBrasilmodernoquantodesuasraízes.AescravidãoeseusefeitospassamaseropontocentralenãomaisapretensacontinuidadecomPortugal.Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamenteherdada de Portugal para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas eperseguidas. As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações dedominação entre classes sociais, desde que não utilizemos do mote da corrupção para esconder averdadenemreduzamosasclassesàmeradimensãoeconômica.

Paraquepercebamos,no entanto, os conflitos sociais e adominação social oculta, é necessário oacesso a uma perspectiva que se abra a ideia de classe social. Em um contexto em que a direitademonizou o marxismo e a noção de luta de classes, e que a esquerda, por outro lado, banalizou esimplificouoquejáerasimplistaemMarx,atarefanãoéfácil.

Masatesequepretendodefenderéqueadinâmicadasclasses,ouseja,seusinteressesesuaslutas,éachaveparaacompreensãodetudoqueérealmenteimportantenasociedade.Issoseaplicasemprequenão percebamos as classes como meras relações econômicas, como o fazem tanto o liberalismodominante quanto o marxismo. Pretendo comprovar essa tese ao mostrar que a percepção maisconvincente da sociedadebrasileira contemporânea só é possível pela reconstruçãodas lutas entre asclassessociaisemdisputa.Paraisso,noentanto,énecessárioqueoleitorsedespeçaesuspendatudoqueeleouviuouleusobreoquesãoasclassessociais.Afinal,comoaclassesocialsóépercebidacomofatoeconômico,minhateseéqueissoequivalesimplesmenteanãocompreendercoisanenhumasobreasclasses.

Aideiadeclassesocialémalconhecidaporboasrazões.Primeiroporqueela,acimadequalqueroutraideia,nosdáachaveparacompreendertudoaquiloqueécuidadosamentepostoembaixodotapetepelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura epredetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classeespecíficavãoternasuavidaemtodasasdimensões,negaraclasseequivaletambémanegartudodeimportantenas formasmodernasdeproduzir injustiça edesigualdade.Afinal, semque se reconstrua apré-história de classe de cada um de nós, temos apenas indivíduos competindo em condições deigualdadepelosbenserecursosescassosemdisputanasociedade.Tudomuitomerecidoejusto.Semaideia de classe e o desvelamento das injustiças que ela produz desde o berço, temos a legitimaçãoperfeitaparaoengododameritocraciaindividualdoindivíduocompetitivo.

Aformamaiseficazemaiscomumdesenegaraimportânciadopertencimentodeclassesocialparaavidadetodosnósé(não)percebê-laapenascomorealidadeeconômica.Essaéafraudeprincipalquepermiteque aspessoas (não)percebama classe social e sua importância.Peguemos comoexemplo adivisãodasociedadeentre“faixasderenda”A,B,C,DeE.Éassimque(não)sedebatenaimprensadetodos os dias o tema da classe. A ideia “brilhante” por trás dessa forma, na realidade arbitrária eridícula,desesegmentarapopulaçãoéadequeocomportamentodiferencial–afinaléissoquesequerdescobrir–entreosindivíduosdeveserexplicadopelotamanhodeseubolso.

Assim, todas as escolhas individuais obedeceriam a uma espécie de cálculo de chances e

Page 53: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

oportunidadesuniversalmentecompartilhado.Todasaspessoassãopercebidascomoproduto em sérierigorosamenteigual,diferenciando-seunicamentepeloquepossuinobolso.Ninguémseescandalizacomtamanha pobreza analítica porque um leitor de classemédia percebe apenas a homogeneidade de suaprópria classe. Melhor, de sua própria fração de classe. Como esse tipo de sujeito e de padrão deconsumo é típico das classesmédias – a classe também da esmagadoramaioria dos pesquisadores eintelectuais–,oquetemosaquiéauniversalizaçãodopadrãodecomportamentodaclassemédiaparatodasasoutrasclasses.Oqueficanassombrasnessetipofajutodeanálisesocialéomaisimportante:porqueexistemalgumaspessoascomR$500,00nobolsonofimdomêseoutrascomR$500milouatéR$500milhões?Comoéproduzida tamanhadiferença?Afinal, ninguémescolheganharR$500,00 sepodeaspiraraR$500mil.Comosempre,éaproduçãoda“gênesedainjustiça”queétornadainvisível.

Como se não bastasse, isso acontece mesmo com pessoas que ganham salário semelhante.Imaginemos um trabalhador da indústria automobilística e um professor universitário em início decarreiracomseuseventuaisR$8mildesaláriomensal.Porcontadaincorporaçãodiferencialdecapitalculturaldecaráter“técnico”deumtrabalhadorqualificadoedecapitalculturalmais“literário”deumprofessordeciênciashumanas,porexemplo, todasasescolhas individuaisemcadacaso tendemaserdistintas.Desdeopadrãodeconsumo,dofilmeaqueseassiste,aotipodelazer,àformadesevestir,deescolheramizadeseparceiroseróticos,todoum“estilodevida”,enfim,tendeaser,eédefato,muitodiferente.

Comoumaleituratãoarbitráriaetãotoscadarealidadeétãodifundidaetransformadaem“crençasocial”compartilhada?Ora,90%doquesepassaporciênciaequevaiserasubstânciado(falso)debatemidiáticosão,naverdade,justificaçãosocialepolítica,sobousolegitimadordo“prestígiocientífico”,derelaçõesfáticasdedominação,paraquenãosecompreendacomoomundosocialfunciona,dandoaimpressão de que sabemos tudo e que somos adequadamente informados. Infelizmente, a leitura deesquerda, influenciada pelomarxismo, não é muitomelhor que a leitura liberal da renda como fatordeterminante.

A leitura inspirada pelo marxismo é um pouco melhor que a leitura liberal dominante, que seconcentranameradiferençaderenda,postoquefocanolugarocupadonaprodução.Enquantoaleituraliberal, como sempre, só leva em consideração a distribuição e o consumo, a leitura inspirada pelomarxismo e dominante na esquerda entre nós concentra-se na produção e na ocupação. A ênfase naprodução e na ocupação funcional permite ver aspectos completamente fora de visão quando se tomaapenasadistribuiçãoeoconsumo.Aprincipalvantageméqueofoconaproduçãoenaocupaçãopermiteperceber a distribuição e o consumo como variáveis dependentes da instância de produção. Ou seja,dependendo de seu lugar na produção demercadorias, tem-se acesso diferenciado a dada renda, porexemplo. O foco na produção, de fato, aprofunda o vínculo genético que esclarece a razão da rendadiferencial,queéoqueimportasaberedescobrirparaqueseentendamaslutasentreasclasses.

Aomesmotempo,asversõesmarxistaeliberalcompartilhamdomesmopontodepartida.Ambassãoeconomicistas, ou seja, estão firmemente convencidas de que a única motivação do comportamentohumanoé,emúltimainstância,econômica,oqueéumagrandebobagem.Aversãomarxistadeperceberasclasses,apesardeumpoucomelhorqueaversãoliberal,nãoconsegueexplicaroprincipal:porquealgumaspessoasescolhemcertotipodeocupaçãooudelugarnaprodução?Ovínculogenéticoparanaocupação. Parte dela como dado absoluto e não explica o principal: por que alguns indivíduos quepertencemaalgumasclassesdesempenhamsecularmentecertotipodefunçãonasrelaçõesprodutivas?

Éprecisopartir,portanto, literalmentedo“berço”,ouseja,dasocializaçãofamiliarprimária,paraquesecompreendaasclassesesuaformaçãoecomoelasirãodefinirtodasaschancesrelativasdecada

Page 54: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

umdenósnalutasocialporrecursosescassos.Asclassessãoreproduzidasnotempopelafamíliaepelatransmissão afetiva de uma dada “economia emocional” pelos pais aos filhos. O sucesso escolardependerá,porexemplo,sedisciplina,pensamentoprospectivo–ouseja,acapacidadederenúncianopresente emnomedo futuro – e capacidadede concentração são efetivamente transmitidos aos filhos.Semisso,osfilhossetornamnomáximoanalfabetosfuncionais.Éesse“patrimôniodedisposições”paraocomportamentoprático,queéumprivilégiodeclasseentrenós,quevaiesclarecer tantoaocupaçãoquanto a renda diferencialmais tarde. Como cada classe social tem um tipo de socialização familiarespecífica,énelaqueasdiferençasentreasclassestêmqueserencontradaserefletidas.

Asclassessociaissópodemseradequadamentepercebidas,portanto,comoumfenômeno,antesdetudo, sociocultural e não apenas econômico. Sociocultural posto que o pertencimento de classe é umaprendizadoquepossibilita,emumcaso,osucesso,e,emoutros,ofracassosocial.Sãoosestímulosqueacriançadeclassemédiarecebeemcasaparaohábitodeleitura,paraaimaginação,oreforçoconstantedesuacapacidadeeautoestima,quefazemcomqueosfilhosdessaclassesejamdestinadosaosucessoescolaredepoisaosucessoprofissionalnomercadodetrabalho.Osfilhosdostrabalhadoresprecários,semosmesmosestímulosaoespíritoequebrincamcomocarrinhodemãodopaiserventedepedreiro,aprendem a ser afetivamente, pela identificação com quem se ama, trabalhadores manuaisdesqualificados.Adificuldadenaescolaémuitomaiorpelafaltadeexemplosemcasa,condenandoessaclasseaofracassoescolaremaistardeaofracassoprofissionalnomercadodetrabalhocompetitivo.

Como somos formados, como seres humanos, pela imitação e incorporação pré-reflexiva einconsciente daqueles que amamos e que cuidam de nós, ou seja, os nossos pais ou quem exerça asmesmas funções, a classe e seus privilégios ou carências são reproduzidos a cada geração. Comoninguémescolheoberçoondenasce,éasociedadequedeveseresponsabilizarpelasclassesqueforamesquecidas e abandonadas. Foi isso que fizeram, sem exceção, todas as sociedades que lograramdesenvolver sociedades minimamente igualitárias. No nosso caso, as classes populares não foramabandonadas simplesmente. Elas foram humilhadas, enganadas, tiveram sua formação familiarconscientementeprejudicadaeforamvítimasdetodotipodepreconceito,sejanaescravidão,sejahojeemdia.EssaénossadiferençarealemrelaçãoàEuropaqueadmiramos.AnossasingularidadenãoéacorrupçãoqueexistenaEuropa,aindaquedemaneiradiferentedaqueexisteemumpaísempobrecidocomo o nosso.Mas a principal diferença é que a Europa tornou as precondições sociais de todas asclassesmuitomaishomogêneas.Aindaqueexistadesigualdadesocial,elanãoéabissalcomoaqui.

Nãosetrataapenasdeacessoàboaescolaoquenuncaexistiuparaasclassespopulares.Trata-sedese criticar a nossa herança escravocrata, que agora é usada para oprimir todas as classes popularesindependentementedacordapele,aindaqueacordapelenegraimpliqueumamaldadeadicional.Comoessemecanismosocioculturaldeformaçãodasclasses sociaisé tornado invisível, entãoo racismodacordapelepassaaseroúnicofatorsimbólicopercebidonadesigualdadedodiaadia.Éimportante,noentanto,quesepercebamtambémascarênciasquereproduzemasmisériasquesãodepertencimentoàclasse,jáqueelas,aocontráriodacordapeledoindivíduo,podemsermodificadas.

Asclassessociais,pelaforçadatransmissãofamiliar,vãoreproduzir,porsuavez,capitaisqueserãodecisivosnalutadetodoscontratodospelosrecursosescassos.Quemlutasãoosindivíduos,masquempredecide as lutas individuais são os pertencimentos diferenciais às classes sociais e seu acesso ouobstáculo típico aos capitais que facilitam a vida. O privilégio de uns e a carência de outros sãodecididosdesdeoberço.Quaissãoessescapitaisqueirãofacilitaravidadeunseatrapalharavidadeoutros?Porquenãopercebemosaaçãodessescapitaiseprendemosnossaatençãoaosmeros“efeitos”delescomoarenda?

Page 55: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Omundomoderno ou capitalista cria uma nova hierarquia social que é impessoal e opaca e nãopessoal e facilmente visível, como nos tipos de sociedade anteriores a ele. Isso quer dizer que, aocontráriodospoderososdopassado,porexemplo,comoosnossos senhoresde terraegenteque tudopodiafazeredesfazer,atéoshomensmaisricosepoderososdehojetêmqueobedeceraregrasqueelesprópriosnãopodemmudar.

Nabasedanovahierarquiasocialmodernaestáalutaentreindivíduoseclassessociaispeloacessoa capitais, ou seja, tudo aquilo que funcione como facilitador na competição social de indivíduos eclassesportodososrecursosescassos.Como,naverdade,todososrecursossãoescassosenãoapenasos recursos materiais como carros, roupas e casas, mas também os imateriais como prestígio,reconhecimento, respeito, charme ou beleza, toda a nossa vida é predecidida pela posse ou ausênciadessescapitais.

Exemplo desses capitais que predecidem a sorte que iremos ter na vida é o próprio capitaleconômico,queéocapitalmaisvisíveleefetivamenteomais importante,dadoqueaeliteeconômicapodecomprarasoutraselitesnãoeconômicas.Masissonão implicaperceberaeconomiacomoúnicainstância importantenasociedade.Aocontrário.Sema justificaçãodadominaçãoeconômicaprestadapor outras elites, como as elites intelectual e jurídica, por exemplo, não existe dominação econômicapossível.Daíqueexistamoutroscapitaisquedesempenhamfunçõessemelhantesaocapitaleconômico.

O capital cultural,62 por exemplo, que significa basicamente incorporação pelo indivíduo deconhecimentoútiloudeprestígio,éooutrocapitalfundamentalparaaschancesdesucessodequalquerum no mundo moderno. Isso porque o capital cultural é tão indispensável para a reprodução docapitalismoquantoocapitaleconômico.Nãoapenasajustificaçãodocapitalismoéfeitaporelitesquemonopolizamcertostiposdecapitalcultural,mastambémnãoexistenenhumafunçãodemercadoounoEstadoquenãoexijacapitalculturaldealgumtipoemalgumaproporção.Éaposseconjugadadessescapitais,portanto,quepredecidememgrandemedidaoacessoa todososbense recursosescassosdomundo.

Tudoquechamamosdesucessooufracassonavidadependedoacessoprivilegiadoounãoaessescapitais. Daí que todos os indivíduos e classes sociais lutem com tudo que têm para não apenas teracessoaessescapitais,mas,principalmente,paramonopolizá-los.Éomonopóliodoscapitaisque iráfazer com que uma classe social possa reproduzir seus privilégios de modo permanente. O grau dedesenvolvimentopolíticoemoraldeumasociedadedeveseravaliado,inclusive,nãopeloPIBgeralqueescondetodasasdesigualdades,mas,sim,pelomodocomoimpedeamonopolizaçãodessescapitaisemantémumacessocomparativamentemaisdemocráticoaeles.

Oterceirocapitalmaisimportanteédependentedaexistênciaanteriordessesdoisqueacabamosdefalar:ocapitalsocialderelaçõespessoais.Essecapitalserefereàsrelaçõespessoaisquesecriamnomeiocaminhoentreinteresseeafetividade–comoderestoacontececomtodasasrelaçõeshumanasseformossinceros–equerepresentamalgumavantagemnacompetiçãopelosrecursosescassosparaquemaspossui.

Nãopodemos falar desse capital específico sem falar da leitura fajuta, superficial e conservadoraque esse capital possui em terras tupiniquins. O culturalismo vira-lata racista entre nós, de SérgioBuarqueaRobertoDaMatta,vêocapital socialde relaçõespessoais, apelidadoporelesde“jeitinhobrasileiro”, comose fosseuma jabuticabaque só existe noBrasil. Seria, inclusive, amarcadenossoatraso pré-moderno, marca principal da continuidade com Portugal, típico de um povo desonesto ecorruptoquesóquerlevarvantagememtudo.

Page 56: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Essaleituraabsurdaeridícula,alémdecolonizadaeservil,típicadosintelectuaisdoviralatismoquenosdominaatéhoje,nãoobstantesetornouumaespéciedesegundapeleparaosbrasileiros.Amaioriadaspessoasemtodasasclassessociaisfaladopaíscomoseessafossesuasingularidademaior.Umafarsa como a operação Lava Jato jamais teria tido prestígio sem essa ajuda dos intelectuais doviralatismo.Maisumaprovadaimportânciadesedesvendarocaminhopercorridopelasideiasquesetornamvidapráticaepressupostoinquestionávelenãomaisrefletidoparaamaioria.

Tudo funciona como se nos EUA e na Europa as pessoas não visassem vantagens pessoais, nemfossem, emmedida variável, instrumentais nas suas relações comoqualquer ser humano, em qualquerlugareemqualquerépoca.Écomosetodososprivilégiosnessespaísesnãoimplicassem,também,emalgumamedida,aentradaderelaçõespessoaisdecisivasparatodosucessoindividual.ComoseofilhodeumpoderosonosEUAenaEuropajánãotivesseumanetworkderelaçõesherdadasqueiráfacilitarasuavidademododecisivo.

Masesseenganodoviralatismoatéhojefrancamentedominanteentrenós,entreintelectuaiseleigos,nãoparaporaí.O“jeitinho”épensadocomoalgogeneralizávelpara todososbrasileirosde todasasclasses.Supremamaldade!Oobjetivoaquiétornarinvisívelquesótemrelaçõesvantajosassocialmentequem já tem capital econômico e/ou capital cultural. Ou o leitor conhece alguém que tenha acesso apessoasimportantessemcapitaleconômicoe/ouculturalanterior?Testeempíricofácileinfalívelparadescobrirumaverdadesimplesescondidadenósporquemtinhaaobrigaçãodeesclarecer,enãoocultaromundosocial.

Oconceitofajutode“jeitinho”escondeotrabalhodadominaçãodealgunssobreoutrosaopressuporquetodosousam,criandoasgeneralizaçõesabsurdasdoviralatismo,eescondeaindadelambujatodaaraiz de todas as desigualdades advindas, na verdade, do acesso desigual aos capitais econômico ecultural que se tornam um pressuposto invisível nessa teoria. Como esses capitais não são sequerpercebidos,todaahierarquiasocialnoBrasilparecedependentederelaçõespessoais,do“jeitinho”do“quemindica”,do“QI”,etc.Desserviçomaiordeuma(pseudo)inteligêncianacionaleudesconheço.

Esses três capitaismais importantesna lutapor recursos escassosandam,portanto, sempre juntos.Todas as classes dominantes devem possuir os três capitais em algumamedida para reproduzir seusprivilégiosno tempo.A lutapeloacessoaessescapitaisconstrangeosmuitoricoscomoconstrangeatodos.Daíelesserem–oscapitaiseconômicoecultural– impessoais.Mesmoossereshumanosmaispoderososericostêmqueobedecer,agora,aregrasqueelesnãocriaramequemandamnelesenasuaconduçãodevidaprática.

Os muito ricos, por exemplo, são obrigados a conduzir a vida de modo a parecer que tudo quepossuemrepresentaumadistinçãoinataenãocompradacomdinheiro.Elesprecisamdissotantoparasuaprópria autoestimaquantopara seu reconhecimento social e prestígio.OvinhodeR$500mil em suaadega deve exalar uma “personalidade sensível” e de “bom gosto” e o fato de possuir dinheiro paracomprá-loummeroacasofeliz.

Porcontadisso,atéomuitoricoepoderosotemquepossuirumtipodecapitalculturalquasesempreligado ao gosto estético para que possa ter acesso a relações importantes com seus pares – em umaespéciedesolidariedadedoprivilégio–quesãofundamentaisparaobomandamentodosnegócios.Ogostoestéticoéapraiadetodoprivilégioquesepretendavendercomoinatomaisquequalqueroutro.Afinal,elepareceexalardaprópriapersonalidade.ComonoOcidenteanoçãodeinterioridadesemprefoivistacomoportadeentradaparaosagradoeoespírito,edepois,comasecularização,paratudoqueésuperiorenobre,oqueévirtudeprecisaterrelaçãocomalgopercebidocomointernoacadaumde

Page 57: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

nós.Comoodinheiro,assimcomoabeleza,épercebidocomoalgoexternoaosujeito,faz-senecessário

desenvolverestratégiasquetransformemodinheiroemexpressãodealgoinatoeinternoaosujeito.Aocontráriododinheiro,obomgostoestético,comoainteligência,épercebidocomoalgoinatoesepresta,porcontadisso,àlegitimaçãododinheirocomoseessefosseexpressãodealgoindependentedomerovalormonetário.Umricoquesótemdinheiro,comooricobronco,émalvistopelospareseestásujeitoaamizadesecasamentos–principal formadeconsolidareaumentarfortunasemvezdefragmentá-las–menosvantajosos.

Seoricoeopoderosoestãosubmetidosaumaordemimpessoalqueosconstrangeparaquepossamteracessoeficazàautolegitimaçãodaprópriavidaea relaçõesvantajosascomseuspares,ouseja,ocapital socialde relaçõespessoais, imagine-seasclassescommenosprivilégiosepoder relativo.Naverdade,ocapitaleconômicoemaisimportanteestáconcentradodemodocrescente–nascondiçõesdaatualdominânciadocapitalfinanceiro–nasmãosdemuitopoucos.

Embora todasasclasses tenhamsuaposição relativadepodereprestígiodeterminada,em grandemedida,pelaconjunçãopeculiardessestrêscapitaisfundamentais,abaixodaeliteeconômicaagrandelutaé,naverdade,poracessoaocapitalcultural.Sepensarmosbem,veremosqueocapitalcultural,ouseja,apossedeconhecimentoútilereconhecidoemsuasmaisvariadasformas,foi, inclusive,oúnicocapitalqueocapitalismologrouemgraumuitovariável–entrenós,noentanto,muitocircunscritoapenasàclassemédia–efetivamentedemocratizar.

Afinal,ocapital econômico se tornacadadiamaisconcentradoeé transmitido“pelo sangue”– amarca mais perfeita do privilégio injusto –, como ele o foi desde tempos imemoriais. Como oconhecimento, daí seu caráter de capital impessoal, é tão indispensável à reprodução do capitalismocomoopróprio capital econômico,63 o capital impessoal e fundamental que sobra para a disputa dasoutras classes entre si é o capital cultural. Se entendermos isso, entenderemos também a situação daclassemédiabrasileiracomotropadechoquedospoderososdeplantão.Aclassemédiavaitender–domesmomodocomoosricos fazemcomodinheiro–aperceberoconhecimentovalorizadocomoalgoquedeveserexclusivoàsuaclassesocial.Suaparticipaçãonosgolpescontraasclassespopularestemmuito a ver, portanto, com estratégias de reprodução de privilégios emuito pouco commoralidade ecombateàcorrupção.

Esseautoenganotendeaser,inclusive,maiornaclassemédiaquenaeliteeconômica.Équeocapitalcultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo, exige sempre esforço para sua assimilação. Porisso,aincorporaçãodeconhecimentoarduamenteobtidopeloesforçodisciplinadoapareceaoindivíduocomointernaeinata,comofazendopartedasuapersonalidademesmae,portanto,indissociáveldesi,aocontráriododinheiropercebidocomoalgoexternoàpersonalidade.Porcontadisso,aclassemédiaéaclasseporexcelênciadafaláciadameritocracia.

Issocomprovatambémqueasrelaçõesdeclasse,ouseja,alutadeclassesnosentidodaobtençãodeuma melhor posição na competição de todos contra todos pelos recursos escassos, exigem tambémjustificativaparaosprivilégios.Nãoexistemapenascapitaisemdisputa,mastambémumadisputapelasinterpretações, legitimações e justificativas das posições alcançadas. O estudo da reprodução dosprivilégiosdaclassemédianosdátalvezomelhorpontodepartidaparaentenderalutadeclasseseseuocultamentosistemático.

NaspesquisasempíricasqueconduzisobreasclassessociaisnoBrasil,oaspectoquemaischamouatençãofoiadiferençadepontodepartidadecadaumadelas.Équeocapitalcultural,comosímbolode

Page 58: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

conhecimento útil e incorporado pelos sujeitos, possui uma série de pressupostos. Alguns dessespressupostossãovisíveis,masamaioriaédesenvolvidademodoinvisívelepré-refletidodesde tenrainfância. É um privilégio muito visível que a classe média possui capital econômico suficiente paracomprarotempolivredeseusfilhossóparaoestudo.Osfilhosdasclassespopularesprecisamconciliarestudoetrabalhodesdeaprimeiraadolescência,geralmenteapartirde11ou12anos.

Esse dado empírico já bastaria paramostrar a insensatez de se imaginar alguém da classemédiacomo possuidor de ummérito individual que, na realidade, é socialmente construído sob a forma deprivilégioherdado.Masadesigualdadedepontodepartidanãoficaaí.Existemoutrosaspectosquesãotornadosaindamais invisíveis.Adesigualdadetípicadaapropriaçãodiferencialdocapitalculturaldetodasasclassesabaixodaelitefinanceiradecorredasocializaçãofamiliar.

Issonãosignifica,obviamente,queaculpaédafamília.Primeironãoexisteafamília,massemprefamílias,noplural,asquais,deacordocomseupertencimentodeclasseespecífico,irãoreproduziremalgunscasosoprivilégiorecebidodemãobeijada–demodonofundosemelhanteàherançaeconômica–ereproduzirnotempoomonopóliodocapitalcultural.Ou,comonocasoda“ralédenovosescravos”,irãoreproduzirtãosomentesuaprópriainadaptaçãosocial.Vamoscompararasocializaçãofamiliarnaclassemédiaenosexcluídosevercomofuncionaaproduçãotornadainvisíveldadesigualdade.

Omaterial de entrevistas sobre a classemédia nosmostra que seus filhos são estimulados para aescoladesdemuitonovos.Ohábitodeleituradospais,oestímuloàfantasiapormeiodelivros,jogosehistórias contadas pelos pais, a familiaridade com línguas estrangeiras despertada desde cedo, tudomilitaafavordaincorporaçãopré-reflexivadeumaatitudequevalorizapressupostosdocapitalcultural.Essesestímulossãopré-escolares,mascomonostornamoshumanosimitandoaquemamamos–ospaisouquemosrepresente–sãoelesqueirãoforjarosucessoescolardaclassemédia,assimcomo,maistarde,osucessoprofissionalnomercadodetrabalho.Depois,comoosucessoescolarfoi,quasesempre,decisivo para o sucesso dos pais, todo o estímulo da contrapartida amorosa exigida dos filhos édirecionadoaosucessoescolareaoaprendizadodelínguasestrangeiraseleitura.

Acriançadeclassemédia,afinal,cheganaescolaconseguindoseconcentrarnosestudos,porquejáhaviarecebidoestímulosparadirecionarsuaatençãoaoestudoeàleitura,antes,porestímulofamiliar.Comoafamíliatambémcompraseutempolivreparaquepossasededicarintegralmenteàescola,apré-históriadovencedorpredestinadoaosucessosecompleta.Todasasvantagensculturaiseeconômicassejuntam,maistarde,paraaprodução,desdeoberço,deumcampeãonacompetiçãosocial.

Nafamíliadosexcluídos,tudomilitaemsentidocontrário.Mesmoquandoafamíliaéconstruídacomopaieamãejuntos,oqueéminorianasfamíliaspobres,eospaisinsistemnaviaescolarcomosaídadapobreza,esseestímuloéambíguo.Acriançapercebequeaescolapouco fezparamudarodestinodeseuspais,porqueelairiaajudaramudaroseu?Afinal,oexemplo,enãoapalavraditadabocaparafora,éodecisivonoaprendizado infantil.Abrincadeiradeumfilhodeserventedepedreiroé comocarrinhodemãodopai.Oaprendizadoafetivoaquiapontaparaaformaçãodeumtrabalhadormanualedesqualificadomaistarde.

Comoosestímulosàleituraeàimaginaçãosãomenores,ospobrespossuemquasesempreenormesdificuldadesdeseconcentrarnaescola.Muitosrelatamementrevistasquefitavamoquadro-negroporhorassemconseguiraprenderoconteúdo.Acapacidadedeconcentraçãonãoé,portanto,umdadonaturalcomoterdoisouvidoseumabocae,sim,umahabilidadeedisposiçãoparaocomportamentoaprendidaapenas quando adequadamente estimulada. Quem a recebe de berço passa a contar com preciosoprivilégionalutasocialmaistarde.Éassimqueseformamosprivilégiostipicamentedeclassemédia

Page 59: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

paraqueseumonopóliosobreoconhecimentovalorizadosejamantidoatravésdegerações.Paraofilhojáadulto,comempregobempagoecomprestígiosocial,tudoépercebidocomosefosseomilagredoméritoindividual.

Outrahabilidadeoudisposiçãoparaocomportamentofundamentaléopensamentoprospectivo,ouseja,apercepçãodofuturocomomaisimportantequeopresente.Écombasenessapredisposição, tãopouconaturalquantoacapacidadedeseconcentrar,queaceitamosrenunciaraoprazerpresenteemnomedeumprêmiofuturo.Porcontadisso,associadasaopensamentoprospectivoestãosempreasdisposiçõesà disciplina e ao autocontrole. Ambas são requeridas para que exista pensamento prospectivo. Sempensamentoprospectivonãoseplanejaavida.Eseumavidacuidadosamenteplanejadaeantecipadajáédifícil, imagine-se uma vida sem qualquer planejamento consciente. Juntas, portanto, essaspredisposições–todasfrutodeaprendizadosilenciosoeinvisívelnafamília–formamoquepoderíamoschamar de condução racional da vida, dado que ensejam a incorporação de uma instância de cálculopragmáticoparaaconstruçãodofuturomaisbem-sucedidopossível.

Na classemédia, esse aprendizado tambémé exemplar e nãodabocapara fora.Desdeoberço éestimulado o aprendizado de um cálculo prático da vida que sopesa tudo de acordo com o melhorresultadofuturopossível.Comotempo,essa instânciase torna independentedosconselhosdospaisepassa aoperar comoalgonatural e automáticopara os indivíduosde classemédia.Comooprocessofamiliarqueformaaspessoaséesquecidonavidaadulta,tambémaproduçãodessestiposdeprivilégioparecealgonaturaleinatoaessesindivíduosqueseimaginamtendonascidocomeles.Senaelitedosendinheirados o capital econômico tem que parecer inato e, portanto, merecido, na classe média, aaquisiçãodeconhecimentovalorizadoedaspredisposiçõesquepermitemsuaincorporaçãopelosujeitotemqueparecertambéminata,sendo,portanto,porcontadissotambémpercebidamerecidaejusta.

Nasnossasclassesabandonadas,aproduçãodesdeoberço,aocontráriodasclassesdoprivilégio,édo inadaptadoàcompetiçãosocialemtodososníveis.Primeiro,aherançavemde longe.Essaclassedescendedosescravos“libertos”semqualquerajuda,quesejuntaaumaminoriademestiçosepobresbrancostambémcomhistóricodeabandono.Emboraadominaçãoagorasejadeclasseenãoderaça,araçaeoodiosoecovardepreconceitoracialcontinuamcontandodeummodomuitoimportante.Anossa“ralé” atual de todas as cores de pele é o inadaptado à competição social que herdou todo o ódio edesprezoquesedevotavaaonegroantes.

Aescravidão,comovimos,dificultavaaformaçãodefamíliasnegrasecombatiaqualquerformadeindependênciaeautonomiadoescravo.Nãoéporacaso,portanto,quenossospobres tenham famíliasmonoparentaisetenhamdificuldadesdedesenvolverumpadrãoquereproduzaacontentoospapéisdefilho,paieirmãodetodafamíliadaclassemédia.Aenormeestigmatizaçãodopreconceitoescravocrata,quenonossocasofoiamploecontavacomoapoiodetodasasclassesacimadosabandonados,tendease introjetar na própria vítima. Aos escravos e seus descendentes foi deixado o achaque, o debochecotidiano,apiadasuja,aprovocaçãotoleradaeincentivadaportodos,asagressõeseatéosassassinatosimpunes.

Emumcontextosocialdetamanhaviolência,queseguesemqualquermudançaexpressivaatéhoje,não é possível, salvo raras exceções, a construção de seres humanos com autoestima e comautoconfiança.Semautoestima e autoconfiança, não sepodepassar para os filhosos incentivosque aclassemédiapossuiereproduzdesdeoberço.Ocicloaquinãoévirtuoso,éviciosoesatânico.Quemévistocomolixoesórecebeódioedesprezotendeareproduzirnopróprioambientefamiliaromesmocontexto, atingindo os mais frágeis na família. Daí a naturalização do abuso sexual e do abusoinstrumentaldosmaisfrágeispelosmaisfortesnessasfamílias.FlorestanFernandesjáohaviadetectado

Page 60: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

emsuapesquisapioneiraenóscomprovamososmesmosefeitosdessacondenaçãoperpétuaemnossapesquisaempíricarealizadasessentaanosdepois.64

Àpobrezaeconômicafoiacrescentadaapobrezaemtodasasoutrasdimensõesdavida.Seapobrezaeconômica, por exemplo, implica foco no aqui e no agora por conta das urgências da sobrevivênciaimediata, todaaatenção seconcentranecessariamentenopresente enuncano futuro, postoque este éincerto.Poroutrolado,avisadaparaofuturoéoqueconstróioindivíduoracionalmodernoquesopesasuaschancesecalculaconstantementeondedeveinvestirseutempoesuashabilidades.Aprisãonoaquienoagoratendeareproduzirnotempo,portanto,acarênciadohoje,enãoasaídaparaumfuturomelhor.

Produz-se,nessecontexto, sereshumanoscomcarênciascognitivas,afetivasemorais,advindo daísua inaptidão para a competição social. O berço dessas classes não é o apoio incondicional de paisamorosos, comoéa regranaclassemédia.Foieéo tipodeódiomaiscovardequeahumanidade jáproduziu.Aquele ódio e desprezoque se devota ao sub-humano em relação ao qual todas as classes,mesmoaclassedostrabalhadoressemiqualificadoseprecarizados,vãoquerersedistinguiresesentirsuperiores.Eessasuperioridadetemqueserproclamadaerepetidatodososdiassobasmaisvariadasformas.Apróprialeiformalnãovaleparaelas.Sabemosquematarumpobrenuncafoicrimeentrenós.Ao contrário, como os recentes massacres de inocentes nas prisões revelam, os aplausos e ascelebraçõesparachacinasinomináveissãocontadosemproporçõesassustadoras.

Domesmomodoqueaviolênciaemrelaçãoaosescravoserailimitada–emumcontexto,comonoBrasil das minas, quando até os escravos que conseguiam comprar sua alforria, confiando na lei dobranco,eramdepoispresosevendidoscomoescravosemoutrasprovíncias–,hojeamatançadospobresqueherdaramamaldiçãodoódiodevotadoaosescravoscomovepoucosdentreosprivilegiados.

Éesseoberçodessaclasseabandonadaeodiada.Umaclassesótoleradaparaexercerosserviçosmais penosos, sujos e perigosos, a baixo preço, para o conforto e para o uso do tempo poupado ematividades produtivas pela classe média e alta. Mas não apenas isso. Como essa tragédia diária éliteralmenteinvisívelenaturalizadacomoacoisamaisnormaldomundo,oprópriopobreacreditanasuamaldiçãoeterna.Opobreeexcluído,aoconcluiraescolacomoanalfabetofuncional,comotantosentrenós, se sente culpado pelo próprio fracasso e tão burro e preguiçoso como os privilegiados, quereceberamtudo“demãobeijada”desdeoberço,costumampercebê-lo.Ocírculodadominaçãosefechaquandoaprópriavítimadopreconceitoedoabandonosocialseculpaporseudestino,quefoipreparadosecularmenteporseusalgozes.65

Senoslibertarmosdosconceitosdeclassesocialbaseadanarenda,construídosparaquefalemosdeclasseenuncacompreendamosoqueissodefatosignifica,podemosreconstruirahistóriadoBrasildeoutramaneira.Podemospercebercomotradiçõeseherançasdeclasseinvisíveispredeterminamavidadosindivíduoscomoumdestino.Éclaroqueexistemexceções,masaregracontinuaamesma.Oódiotambémcontinuaomesmo.ComomostramosnoAradiografiadogolpe,66 foioódioencobertoaessaclassededesprezadossemculpa–quefoio focodaspolíticascompensatóriasdoPTnopoder–quepossibilitouousocomomeropretextodacorrupção seletivacomandadapela farsadaLava Jatoparaderrubarumgovernolegítimo.

Éhoje inegávelparaqualquerpessoaque tenha idoàavenidaPaulista,ouaqualquerdas grandesavenidasdasgrandescidadesbrasileiras,protestarsócontraLulaeoPTqueacorrupçãoera fachadaparaoverdadeiroobjetivodasclassesmédias,queerainterromperoprojetodeascensãosocialdessasclassesparaquecontinuemsendo–exatamentecomoosescravosdopassado–odiadas,superexploradasedesprezadas.

Page 61: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Assim,entreasclassessociaisqueformaramoBrasilmoderno,foia“ralédenovosescravos”,quesomaaindahojeemdiamaisdeumterçodapopulação,67agoradetodasascoresdepele,mas,herdandoo desprezo social de todos que era devotado ao escravo negro, o elemento mais importante parasingularizaroBrasil.Essaclassevaiconstruirumacordodeclassesnuncaexplicitadoentrenós.Nabasedesse acordo está a existência dos “sub-humanos” em relação aos quais todas as classes podem sediferenciarpositivamente.OBrasil passoudeummercadode trabalho escravocrata para formalmentelivre,masmantevetodasasvirtualidadesdoescravismonanovasituação.

Osex-escravosda“ralédenovosescravos”continuamsendoexploradosnasua“traçãomuscular”,comocavalosaosquaisosescravosdeontemedehojeaindaseassemelham.Oscarregadoresdelixodasgrandescidadessãochamados, literalmente,decavalos.O recursoqueasempregadasdomésticasusamé,antesdetudo,ocorpo,trabalhandohorasdepéemfunçõesrepetitivas,comabarriganofogãoquente,domesmomodoquefaxineiras,motoboys,cortadoresdecana,serventesdepedreiros,etc.Comoocaminhodoaprendizadoescolar é fechadodesdecedopara a imensamaioriadessa classe,não é oconhecimento incorporadono trabalhador que é amercadoria vendida nomercadode trabalho,mas acapacidademuscular,comumatodososanimais.Umaclassereduzidaaocorpo,querepresentaoquehádemaisbaixonaescalavalorativadoOcidente.Porcontadisso,essaclasse,domesmomodoqueosescravos, é desumanizada e animalizada. Passa a não valer como ser humano que vimos exigir, emalgumamedida,adimensãodoespírito,ouseja,nonossocaso,doconhecimentoútilincorporado.

A ralédenovosescravos seránão sóaclasseque todasasoutrasvãoprocurar sedistinguir e seafastar,mas, também,vãoprocurarexplorarotrabalhofartoebarato.Maisumavez,nadadenovoemrelação ao passado escravista. Isso vale para as classes do privilégio, a elite econômica e a classemédia,quemonopolizamocapitaleconômicoeocapitalculturalmaisvalorizadoeseutilizamdaralécomoseutilizavamdosescravosdomésticos,paraserviçosnafamília,postoserempessoasque,porsuaprópria fragilidade social, são ansiosas por se identificarem com os desejos e objetivos dos patrões.Essa identificação como opressor ao ponto de tornar os objetivos do patrão seus próprios objetivostambéméumacontinuidadesemcortescomoescravodomésticodoescravismo.Amelhorsituaçãodoescravodomésticoemrelaçãoaoescravodalavouraerapagacomservidãoespiritual,naqualoescravoabdicade ter interessesprópriosparamelhor satisfazerosdesejoseasnecessidadesdos senhores.Ocasomuitocomumdebabáseempregadasquecriamosfilhosdopatrão“comosefossemseus”refleteessecontexto.

Mastambémaprópriaclassetrabalhadoraeosbatalhadoresdocapitalismofinanceiro,quelograramincorporarconhecimentoútilemalgumamedidasignificativae,portanto,podemparticipardomercadode trabalho competitivo, também procuram se distanciar da ralé. A título de ilustração, uma históriaverídica que nos foi contada por um informante que desenvolve trabalho político na periferia de SãoPaulo.Umcasaldebatalhadores–omarido,trabalhadorespecializadoemassentarpisodemármoreemconstruções,eamulher,faxineiraembairrosricosdacapital,ganhandoR$3milcadaum–devotavaomesmopreconceitoaospobresqueaclassemédia.Poucoadiantedoprópriobarraco,omaridoapontapara umbarraco caindo aos pedaços, onde umamulher abandonada pelomarido emãe de seis filhospequenossobrevivecomoBolsaFamília,ediz:“Olhalá,sónãopodeéajudarquemnãotrabalha.EssefoiomaiorerrodoPT!”

Otrabalhomidiáticodecriminalizaçãodaesquerdaedaprópriaideiadeigualdadefoiaquiopontoprincipalporessaarregimentaçãodesetoresexpressivosdasprópriasclassespopularesenãoapenasdoseupúblicocativodaclassemédia.Areconquistadessaclassevaiseroprincipaldesafiodequalquerdiscursoquecontempleaigualdadesocialnanovaquadrahistórica.Partedelatendeasercooptadapelo

Page 62: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

discursode estigmatização dos pobres, amais longeva das tradições brasileiras. Certamente, existemtambémnichosimportantes,tantonaclassetrabalhadoraquantonaprópriaclassemédia,quenãorefletemesseódiodeclasseaosmaisfrágeis.

Aralédenovosescravoscumpreentrenós,assim,umafunçãosemelhanteàquelaqueascastasmaisinferioresdohinduísmocumpriam.MaxWeber,emsuaanálisedareligiãohindu,percebiacomoumadasrazõesmais importantes para a longevidademilenar do sistema de castas precisamente o fato de quetodasascastaspodiamseconsiderarsuperioresemrelaçãoàqueestavanoúltimodegraudahierarquiasocial. O sistema era aberto, ou seja, sempre admitia a entrada de castas estrangeiras desde queaceitassem começar por baixo de todos. Dessemodo, tinha sempre alguém abaixo precisamente parapermitir que, inclusive, outras castas inferiores pudessem se sentir superiores a essa condenada aosserviçosmaisdesprezíveis.68

Comanossaralédenovosescravosacontecerigorosamenteamesmacoisa.Elapermitequetodasasclassesacimasesintamsuperioresaelaepossamexplorá-lasepossívelsemlimites legais.Areaçãoviolenta da classe média à lei das empregadas domésticas, que procura limitar e garantir direitosmínimos,comprovasobejamenteoqueestamosdizendo.

Na realidade, e venho dizendo isso hámais de vinte anos, a grande questão social, econômica epolíticadoBrasiléaexistênciacontinuadadessaralédenovosescravos.NenhumaoutraquestãoémaisimportanteenadasingularizamaisoBrasildoqueela.Comoelaéestigmatizadaeninguémquersequerchegar perto dela – exatamente como nas castas inferiores do hinduísmo –, a escola e a saúde, porexemplo, que se destinam a ela são aviltadas. A insegurança pública crônica, já que a ausência deoportunidadesreaismandaumapartedessaclasseparaocrime–nohomemafiguratípicaéobandido,enquanto para a mulher é a prostituta –, decorre desse abandono. Afinal, existem aqueles entre osexcluídosquenãoqueremseidentificarcomo“pobreotário”quetrabalhapormigalhasparaser“tapetedebacana”.Tudo, enfim,que identificamoscomoosgrandesproblemasbrasileiros – como, alémdoselencadosacima,a“baixaprodutividade”do trabalhadorbrasileiro– tem relaçãocomesse abandonosecular.

Masessaquestãojamaischegouaserconsideradaamaisimportanteentrenós.UmesforçocomoofeitopelaFrançadaterceirarepública–aFrançaquesaíadespedaçadapelaComunadeParisde1870epelo sangue de lutas fratricidas decide transformar sua “ralé”, no caso especialmente os camponesesembrutecidosdointerior,emcidadãospelaação,antesdetudo,daescolarepublicanaigualparatodos–69 jamais aconteceu entre nós. Iniciativas semelhantes, como a escola de tempo integral de Brizola,foramdestruídasnonascedourocomapoiodamídiaelitista,comosempre,comaRedeGloboàfrente.Atentativalightpetistademelhorarminimamenteascondiçõesdessaclasselevouaogolpede2016comamploapoiomidiático,daclassemédiaeatédesetorespopulares.

Oquepermanecedoescravismoéasub-humanidadecevadaereproduzida,acrençadequeexistegente criada para servir outra gente, e se um governo existir para redimi-los deve ser derrubado sobqualquer pretexto de ocasião. É necessário reproduzir uma classe de carentes pela ausência depressupostosparaosucessoescolarcomoumaformadecontinuaraescravidãocomoutrosmeios.Umaraça/classecondenadaaserviçosbrutosemanuaisdesvalorizados.Éissoqueexplicaogolperecentenoseuconteúdomaisimportanteemaisassustador.Amanipulaçãomidiáticamaisgrotescasópôdeexistirporcontadisso.

Ograndepensadordoprocessocivilizatório,NorbertElias,analisouoprocessoeuropeudestacando,comopontoprincipal,nãoporacaso,ocortecomaescravidãodomundoantigo.Nacabeçadogrande

Page 63: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

sociólogo estava a crença de que o processo civilizador baseia-se na percepção e consideração daalteridade,deum“outro”que temque ser respeitado.Elias interpreta a culpa freudianamente comooestopimdamoralidade, como a base de umprocesso que leva aoEstadomoderno e à democracia.Equandonãosetemculpanoexercíciodaviolênciamaterialesimbólicacontraosmaisfrágeis,porqueseconsideraquesejamsub-humanos,escravoseindignosdeseremtratadosereconhecidoscomohumanos?EssaéaprincipalherançadaescravidãoparaoBrasilmoderno.Umaherançaquefoitornadainvisívele,portanto,nuncaconscientizada.

Como tamanha naturalização de um ódio tão mesquinho foi possível entre nós? Essa é a grandequestão brasileira domomento. Nenhuma outra se compara a ela emmagnitude e urgência. Como seconstruiu esse câncer do Brasil moderno? Como foi e é possível tamanho ódio em circunstânciasmodernas, circunstâncias essas que o nobre Florestan Fernandes imaginava que poderia, por si só,redimiraclassedosabandonados?Comofoitramadaeprojetadaacontinuidadedeumasociedadesemaprendizadomoralesemculpa?

Page 64: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Opactoantipopulardaelitecomaclassemédia

Nocontextodasquatrograndesclasses sociais,divididas internamenteentrediversas frações, quemarcamasociedadebrasileiracontemporânea,asaber:aelitedosproprietários,aclassemédiaesuasfrações, a classe trabalhadora semiqualificada e a ralé de novos escravos, a classe social maisestratégicaparaopadrãodedominaçãosocialquefoiinstauradonoBrasiléaclassemédia.Aindaqueaclasse trabalhadora tenha, em diversas fases históricas, forçado os limites estreitos previstos naestratégia excludente que marcou a história política brasileira, para a compreensão do pacto dedominação reacionário que prevaleceu no Brasil de ontem e de hoje é necessário, antes de tudo,compreenderocomportamentodaclassemédia.

Aelitedosproprietáriosmantémseupadrãopredatóriodesempre.Agrilagemde terra,covardeeassassinacomosempre,foieaindaéumaespéciedeacumulaçãoprimitivadecapitaleternanoBrasil.Osgrandeslatifundiáriosaumentavamsuaterraeriquezapelaameaçaepeloassassinatodeposseirosevizinhos,como,aliás,aconteceaindahoje.70NadamudasignificativamentecomaelitedodinheirodehojequecompraoParlamento,sentençasdejuízes,aimprensaeoquemaisfornecessário–comoomalexplicado“acidente”comoaviãodoministrodoSupremoTribunalFederal,TeoriZavascki,comprova–para manter seu bolso cheio. O que importa é garantir o saque ao orçamento, a rapina das riquezasnacionais como sócio menor do capital estrangeiro e a quebra do ânimo e da solidariedade dostrabalhadoresparaamaiorexploraçãopossíveldotrabalho.Algumamudança?

Coma ralédosnovos escravos amesmacoisa.Omesmoódio covardedevotadoaoescravo,nãoapenas pela exploração do trabalho a preço vil, mas a humilhação diária, o desejo e a alegria comassassinatosemassacres, a recusade tolerarqualquermelhoranas suas condições.Algumamudança?Com os trabalhadores, especialmente a partir dos anos 1980, com a fundação do PT, a situação decompletasubjugaçãoaosinteresseselitistaspôdesermitigadaecontrabalançadaemalgumamedida.Ostrabalhadoreseosmovimentos sociaisdas classespopulares tiveramummínimodepoderde fala, sebem que sempre vigiados de perto e expostos ao poder de difamação e distorção sistemática dainformaçãopelagrandeimprensa.

Hojeemdia,ocapitalismofinanceirocomeçaacriarsuaprópriaclassetrabalhadoracrescentementeprecarizadaeameaçadapelodesempregoecortededireitos.Piorainda.Partedelaseidentificacomosopressores e se imagina “empresáriode simesmo”.Acompetição tende a superar a solidariedadedeclassecomoefeitodeváriosfatores.Aconquistadessanovaclassetrabalhadoraprecarizada–queummarketingmíopeepouco inteligentedopróprioPTchamoude“novaclassemédia”–seráoprincipaldesafioparaqualquerperspectivacríticanoespectropolíticodofuturo.

Masachaveparaacompreensãodainiquidadeevilezasingularesdasociedadebrasileiraéaclassemédia.Éelaqueformaumpactoantipopularcomandadopelaelitedosproprietários,ondesemisturamaspectos racionais, como preservação de privilégios, e aspectos irracionais, como necessidades dedistinçãoeódioeressentimentodeclasse.Éessemecanismoessencial,construídodemodoconscienteeplanejadopelaselitesapartirdadécadade1930,queexplicaarecorrentevitóriadopactodeclassesantipopulardoúltimoséculo.

OBrasil adentra o séculoXX em francamudança econômica e social emmeio à continuação depadrões valorativos e políticos herdados sob máscaras modernas do escravismo. Já a política de

Page 65: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

substituiçãodeimportaçõescausadapeloimpactodaPrimeiraGuerraMundialnocomérciomundialcriaascondiçõesdeumaindustrializaçãoincipienteespecialmentenacidadedeSãoPaulo.Asduasclassespolares da sociedade brasileira que descendem diretamente da escravidão, que são a ralé de novosescravoseaelitedarapina,sãoadaptadasaonovocontextocompetitivo,masreproduzempadrõesque,substancialmente,sãocontinuaçãodopassado.

SãoPauloe,commenosprofundidade,oRiodeJaneirovãoserascidadesqueirãoservirdeberçoparaasnovasclassessociaisquesecriamjáapartirdaindustrializaçãoincipientedoiníciodoséculoXX: uma classe trabalhadora precária e uma classe média moderna. A classe trabalhadora urbana eindustrialeaclassemédiawhitecollar,dos serviçosadministrativosdomercado,docomércioedasfinanças,acrescidadaclassemédiadosserviçosestataisquetambémseavolumanesseperíodo,sãoanovidadesocial,econômicaepolíticadoBrasilquesemoderniza,seurbanizaeseindustrializa.

UmprimeiromomentodeorganizaçãodasclassestrabalhadorasjásedáemSãoPaulonoiníciodoséculoXX.Comuma industrializaçãoaceleradacausadapelasubstituiçãode importaçõesnaPrimeiraGuerra Mundial, o movimento anarquista, infiltrado na classe trabalhadora paulista transplantada daEuropa,lograproduziraprimeiragrevegeralbem-sucedidadahistóriadopaísjáem1917.Centenasdetrabalhadorese familiares indefesosforammortospelapolíciae ferozperseguiçãoaosseus líderesseseguiu à greve.71 A greve de 1917 foi um equivalente brasileiro da Comuna de Paris de 1871. Umaefetivaintervençãodaclassetrabalhadoranapolíticateriaqueesperarmaisdecinquentaanos.

Éclaroque, inicialmente,acriaçãodasnovasclassessociaisaindaélocalizadae incipiente.Seráapenas a partir doEstadoNovo deVargas que a criação de uma sociedade de outro tipo,moderna eindustrial, será perseguidapela primeira vez sob a formade umprojeto nacional de desenvolvimentoarticulado e refletido.Esseperíodo inaugurao começoda sociedadebrasileira atual e consolidaumaconfiguraçãodeclassesespecífica,comasquatroclassesdefinidasanteriormente,ecomumpadrãodedominaçãosocialepolíticaquecontinuaaténossosdias.

DepoisdolentoprocessodemodernizaçãodeforaparadentroqueoBrasilsofreapartirde1808–seguidodalibertaçãoformaldosescravosedaentradademilhõesdeimigrantesnoiníciodoséculoXX,formandoumaclasse trabalhadoraruraleurbanade tiponovo–,os fatosmais importantesparanossanarrativaacontecemnosanos1930.OgrandedivisordeáguaséaentradadoEstadocomovariávelnovadodesenvolvimentobrasileiro.ÉóbvioqueoEstadoexistiaantes.MasnuncahavíamostidoumEstadointerventorereformador.ÉissoqueoEstadoNovoeafiguradeGetúlioVargassignificam.

GetúlioVargaséalçadoaopoderporumacoalizãodeelitesregionaissubordinadasqueserebelaramcontraSãoPaulo,oEstadojámaisricodafederaçãoequequeriatambémmonopolizaropoderpolíticoemsuasmãos.GetúlioVargas implementaumapolítica industrializante emumpaísquehavia sidoatéentãoeminentementeagrário.Nesseâmbito,elesesingularizaporterconseguidodarosprimeirospassosnadireçãodaconstruçãoentrenósdoqueMarxchama,emOCapital,desetorIdaeconomia:aquelequeserefereàsindústriasdebensdeproduçãoquevãopoder,depois,permitiraconstruçãodasindústriasdebensde consumopropriamente.Oaproveitamentode ferro, aço, cimento epetróleo,possibilitandosiderurgias,estradasefornecimentodeenergia,éumpressupostoparaasindústriasdebensdeconsumoque seriam construídas a partir da década de 1950,muito especialmente sob o governo de JuscelinoKubitschek.

Paralelamente,VargasconstróiinstituiçõesestataisdepesquisaeplanejamentoparaequiparoEstadodeefetivacapacidadedeintervenção.LevaacabotambémaConsolidaçãodasLeisdoTrabalho,hojesob cerrado ataque dos golpistas, reunindo e sistematizando o conjunto de leis isoladas que existiam

Page 66: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

acerca do tema. Vargas constrói o fundamento de uma ordem capitalista industrial tanto na economiaquantonapolítica.Apartirdesseesforço,temosummercadoeumEstadomaisvigorososnoBrasil.Nãoseria exagero dizer que, a partir de Vargas, o “Brasil moderno” tem uma estrutura de classes e derelaçõesdepoderque,malgradomodificaçõesevariaçõeshistóricassupervenientes,noscaracterizaatéhoje.

MasVargasnãotocanaquestãodecisivadaralédenovosescravosnemnocamponemnacidade.Seunorteéaconstruçãodeumaordemcapitalistacompetitivaeseupúblicocativo–emais tardesuabase eleitoral – vai ser formado pelos trabalhadores urbanos qualificados e semiqualificados, que setornamosegmentomaisimportante,aindaquenãoomaisnumeroso,dasclassespopularesascendentes.Suaoutrabasedeapoio,aindaqueambíguaeinconfiável,éumaburguesiaindustrialnascente.Apesardegovernaremnomedaburguesiaindustrialqueseconstituíarapidamentecomoafraçãomais importantedaclassedosproprietários,Vargasnãotinhaseuapoioincondicional.Aocontrário,eravistoporpartesubstancialdaelitedosproprietárioscomdesconfiança,domesmomodoqueLulaeoPTmaistarde.

A elite que “nunca o engoliu” foi precisamente a elite mais forte em todos os sentidos, a elitepaulistana,derrotadamilitarmentenaRevoluçãode30,comandadaporVargas.Umaelitedeinícioaindafirmemente ancorada na lavoura e nos seus alongamentos financeiros e comerciais urbanos, mas quedesenvolve um projeto refletido e consciente de criar um bastião ao mesmo tempo “antigetulista eantiestatal”.O liberalismoentrenósnão surge comodemandade setores burgueses ciososdegarantirespaços de autonomia e ação contra uma ordem estamental e elitista. Dá-se aqui precisamente ocontrário.Oliberalismopassaaseroideáriodo“mandonismoprivado”.

JánoséculoXIX,oliberalismotemessesentidoderecobrircompalavrasbonitas,como“liberdade”e“autonomia”,oqueerasimplesmenteumareaçãoaoEstadonascenteeasuanecessidadedeimporaleieprotegerosmaisfrágeisdosimplesabusodopodersobaformadaforçaoudodinheiro.OinterregnoliberaldedominaçãopolíticadosliberaisnoséculoXIXteveessesentidonãodeliberaropoderlocaldas amarras do incipiente Estado, mas, sim, de usar a máquina do Estado para o mandonismo eprivatismosempeiaselimitesdosjápoderosos.Aliberdadequenossoliberalismosempredefendeufoialiberdadedesaquearasociedade,tantootrabalhocoletivoquantoasriquezasnacionais,paraobolsodaelitedarapinaquesemprenoscaracterizou.

Osnovos temposeonovoséculopedem,noentanto,um liberalismo repaginadoehabilitadoparaconvencerenãoapenasoprimir.Omoralismodanascenteclassemédiaurbanaseriaamelhormaneiradeadaptaromandonismoprivadoaosnovostempos.Pintando-ocomascoresdaliberdadeedadecência.Oqueestavaemjogoaquieraacapturadaclassemédialetradapelaelitedodinheiro,formandoaaliançadeclassedominantequemarcariaoBrasildaíemdiante.

Osinaldosnovostemposjáhaviasidodadopelotenentismo,movimentodeoficiaisdebaixapatentequeansiavampelarenovaçãomoraldoBrasilapartirdecima,peloEstadoreformador.Otenentismojáexpressava anova autoconfiançadeumaclassemédia urbana ainda incipiente,mas que queria se verrepresentada em um esquema político completamente dominado pela ínfima elite dos proprietários.Eleições nas quais menos de 1% da população votava, eleições que, mesmo assim, eramsistematicamentefraudadas,perfaziama“democracia”daRepúblicaVelha.

Boa parte dos tenentes subiu ao poder com Vargas e ameaçava construir uma hegemonia não sópolítica, mas também uma hegemonia cultural duradoura por oposição ao mandonismo privatista dosproprietários.Osnovostemposexigiammudançanaformadedominaçãoelitistadaviolênciafísicadasterras aumentadaspor assassinatos edas eleições fraudadaspara aviolência simbólicada criaçãode

Page 67: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

umanovahegemoniadeclasse.Aviolênciasimbólicasignificaaconstruçãodeumanovaconcepçãodesociedade adequada aos interesses dos proprietários.A reprodução da dominação econômica passa aexigirmaisqueameracoaçãofísica,quesetornacrescentementeilegítimaseaplicadaaos“homensdebem”,comoaclassemédiasepercebia.

Passavaasernecessário,percebia-se,ganharocoraçãoeasmentesdaspessoasdebem,a classemédiaqueseconstituía,econtraaqualnãosepodiausarochicoteusadosempercalçoscontraosmaispobres. Esse é o contexto da criação da grande imprensa, das grandes universidades, do mercadoeditorialedonascimentodeumaesferapúblicamaisampliadaentrenós.Emboraessas instituições jáexistissemnoséculoXIXemcaráterincipienteecircunscritoàselites,vaiserapartirdosanos1920e1930 que uma esfera pública burguesa, tendo a classemédia comopúblico consumidor principal, vaipassar a existir e influenciar a vida social, política e cultural do país. A constituição de uma esferapública burguesa transforma a vida social e política de todas as sociedades ocidentais a partir dasegundametadedoséculoXVIII.É importantequeconheçamossuaespecificidadeparaquepossamoscompreenderomodosingularcomoelaseconstituinoBrasil.

Como essa esfera pública vai ser organizada de modo diferente entre nós do que foi na suaexperiência europeia, é importante ressaltar sua estrutura social e política peculiar. Afinal, são essesprocessos de institucionalização de uma dada consciência moral e política que explicam assingularidades de uma dada sociedade.Quando não se faz esse dever de casa de pesquisador, é quetemos os estoques culturais supostamente imutáveis explicando uma realidade de fato nuncacompreendida.

Apenasdessemodopodemosperceberoquefoidestruídonaexperiênciademocráticabrasileiraquenos fez tão suscetíveis aos golpes de Estado recorrentes. Como temos uma leitura economicista darealidade e olhos apenas para o PIB e o dinheiro, tendemos a não perceber a importância dosaprendizados societários simbólicos e morais. No entanto, sem aprendizado moral não se temdesenvolvimentoeconômicoquesirvaàmaioriadasociedade.Daíquea reconstruçãodoprocessodecolonizaçãodaesferapúblicaentrenóspelopoderdodinheirosejatãoimportante.Oqueéafinalumaesfera pública? Por que ela é tão importante para uma democracia sólida? Que tipo de aprendizadocoletivoelaenseja?

Page 68: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Aclassemédiaeaesferapúblicacolonizadapelodinheiro

Oquetemdeserexplicadoaquiécomoaelitedodinheiro,quedetémocapitaleconômicoe,porcontadisso,mandanaeconomia,passaamandardemodoindireto tambémnomundosocialepolíticopelaconstrução,colonizadapelodinheiro,daopiniãopública.Aeliteeconômicaprecisatravestirseusinteresses de proprietário em suposto interesse geral para garantir o controle da reprodução social,mantendoseusprivilégios.Apesarde controlarosmeiosdeproduçãomaterial e tambémosmeiosdeprodução simbólicos, como jornais e editoras, a tarefa, ainda assim, não é fácil. O dinheiro quer sereproduzirsempreaumentandosuaquantidade,oquesignifica,quasesempre,queoutrosestãoperdendonessa conta. O dinheiro, na forma da acumulação de capital, precisa ser legitimado politicamente emoralmenteparaconseguirsuareproduçãoampliadaadinfinitum.Comoissosedáemumasociedade,comoademocráticamoderna,quedizdesimesmoquerepresentaointeressegeral?

Esse tema é central para que compreendamos a perpetuação de relações de dominação social eeconômica no tempo. Isso significa, também, que, alémdemercado eEstado, temos que considerar ecompreender a ação de uma outra instituição fundamental que nasce – domesmomodo quemercadocompetitivo e Estado centralizado – apenas com o mundo moderno: a esfera pública. Semcompreendermos como essa esfera social funciona, não compreendemos como a elite do dinheiro seapropriasimbolicamente,jácomoefeitodeideiasquesetornamdepoisnaturaiscomoandarerespirar,dasclassesmédiasemformaçãononossopaís.

Aclassemédiasemprefoi,desdemeadosdoséculopassado,noBrasil,atropadechoquedosricoseendinheirados.É preciso compreender, no entanto, como isso se tornou possível.Como é possível seapropriardosdesejos,ambiguidadeseinsegurançadaclassemédiaparamantê-laservil,mesmocontraseusmelhoresinteresses,edeixarasclassespopularesparaapolícia truculenta?Ousosistemáticodainteligência nacional e da imprensa que a veicula em proveito dos interesses da pequena eliteendinheiradaéaresposta.

Paraentendermoscomoissosedeu,teremos,noentanto,quecompreenderasingularidadedaesferapública em relação ao Estado e ao mercado. Afinal, é lá, na esfera pública, que a classe média écolonizada pelos interesses do dinheiro. O domínio da elite sobre a classe média é simbólico epressupõe convencimento. O domínio sobre as classes populares baseia-se, ao contrário, mais narepressão e na violência material. Como se dá essa dominação pelo convencimento? Quem melhoresclareceuessaquestãoepercebeusuaimportânciaparaasformasmodernasdeaprendizadocoletivofoio filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Note o leitor que, em vez de recorrer a estoquesculturaisou supostasherançasmalditas, como fazoculturalismo racistaentrenós, temosque analisar,maisumavez,apresençaouausênciadeaprendizadoscoletivosparacompreendernossasingularidadecomosociedade.

ParaHabermas, a esfera pública não se confunde coma interpretação clássica da sociedade civilcomo“reinodenecessidades”opostoaoEstado.Esferapúblicapassaadesignar,apartirdasuaobraseminalparaopensamentodesteséculo,umterceiromomentofundamentaldassociedadesmodernas,oqualnãoseconfundenemcomomercadonemcomoEstado.Otemadaesferapúblicajáéotemacentralda tese de livre-docência deHabermas,Mudança estrutural da esfera pública,72 datada de 1962.OinteresseprimáriodeHabermasnesse livro, onde já encontramos emgerme todosos temasque iriam

Page 69: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

concentrarosseusesforçosnasdécadasseguintes,émarcadamentegenealógicoehistóricoenosajudaacompreenderoqueestáemjogonaesferapúblicaenodebatepúblico.

Eleseinteressa,primeiramente,emperceberagênesehistóricadacategoriade“público”.NaIdadeMédia,acategoriade“público”assumeaformademerarepresentatividadepública.Representatividadeaquipossuiumsentidoliteral,deteatralização,vistoquenãosetratadeumarepresentaçãodeautoridadederivada da soberania popular, mas sim de uma representação do poder de fato perante o povo. Aimportânciadasinsígnias,dogestuário,dasregrasdeetiquetaaponta,precisamente,paraesseestadodecoisas.

O sentido moderno de público começa a desenvolver-se em combinação com fatores materiais esimbólicos novos, que se constituem no alvorecer da modernidade. Desde o início, a categoria depúblicosemostra intimamente ligadaàcategoriadeprivado.Éapenasapartirdadelimitaçãodeumaesfera privada inviolável do indivíduo que temos a possibilidade de perceber a novidade do sentidomodernodepúblico.Umaprimeiraformadeprivacidadecomimplicaçõespúblicasóbviasdá-seapartirdaprivatizaçãoda fé.A liberdadede confissão, duramente conquistada emguerras sangrentas, apontaparaumaprimeiraformadeliberdadeprivada.EsseéoprimeiropassoparaaconstituiçãodaquiloqueHabermas irá chamar de esfera pública, ou seja, de uma esfera composta de sujeitos privados comopiniãoprópria,oqueasseguraapossibilidadedacontraposiçãocoletivaadecisõesdiscricionáriasdopoderpúblico.

Dessemodo, liberdade pública é indissociável da liberdade privada. O queHabermas chama deesferapúblicanascedaredefiniçãodoslugaresdopúblicoedoprivado,formando,oEstadoeapequenafamília burguesa, as duas instituições fundamentais de cada um desses respectivos espaços. Além daliberdade de confissão como antecedente principal da liberdade de consciência tipicamente burguesa,temosfatoresmateriaisimportantesemjogo.Acimadetudo,apassagemdocapitalismocomercialparaocapitalismo industrial engendra toda uma infraestrutura de novas formas de transporte e de troca deinformações. Na esteira da troca de mercadorias, desenvolve-se, concomitantemente, um aumentocorrespondentedetrocadeinformações,deiníciodirigidasaumpúblicorestritodecomerciantescomnotíciasdeinteresseprofissional.

Paralelamente, desenvolve-se, também como consequência da passagem de um capitalismocomercial, limitado localmente, em favor de grandes empreendimentos nacionais e internacionais, oEstadopermanente,baseadoeminstituiçõesburocráticasemilitares,assimcomoapartirdeumeficientesistemadeimpostos.Todoesseconjuntodenovasinstituiçõeseraindispensávelaoestímuloeàproteçãodasatividadeseconômicasnasesferasinternaeexterna.

Umaesferapúblicadeconteúdonãoestatalnasce,noentanto,apenasapartirdamudançadafunçãoda imprensadesdeumaatividademeramente informativaemanipulativadoque interessava aoEstadotornarpúblico,emfavordaconcepçãodeumveículo,deum“fórum”apartadodoEstado.Éessefórumde pessoas com capacidade de julgar que permite a formação de uma opinião pública crítica queintroduz, pela primeira vez, a questão da legitimidade discursiva da política. O que é público, deinteressegeraleparaobemdetodos,precisa,apartirdeagora,provar-seargumentativamenteenquantotal.Deinício,osburocratasdoincipienteaparelhoestatal,profissionaisliberais,pastores,professoresecomerciantes formamabasesocialdessanovaesfera.Aesferapúblicaburguesaque seconstitui aquideveserentendida,antesdetudo,comoareuniãodepessoasprivadasnumambientepúblico.

Essaesferaéregulamentadapelaautoridade,masédirigidadiretamentecontraaautoridadepolítica,namedidaemqueoprincípiodecontrolediscursivoeargumentativoqueopúblicoburguêscontrapõeà

Page 70: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

dominação pretendemodificá-la enquanto tal. Em termos históricos, a entrada em cena de uma esferapúblicapolíticacoincidecomapassagemdoEstadoabsolutoemdireçãoaodespotismoesclarecido.Jáaevidentecontradiçãodostermosquecompõemessaformadeexercíciodopoderpolíticoevidenciaoencontro de uma forma de dominação tradicional monárquica e despótica, a qual, no entanto, pelaprimeiravez,temqueprestarcontasdeseugoverno,ouseja,temqueseesclarecerperanteumpúblico.

ParaHabermas,ademandapolíticaporumamaiorreflexividadenaformaçãodaopiniãocoletivatemcomopressupostoexperiênciasprivadasqueseoriginamnaesferaíntimadapequenafamília.Esseéolugarondeseoriginahistoricamenteaprivacidadenosentidomodernodoespaçodeexercíciodeumainterioridade livre e satisfeita. O status do homem privado, enquanto dono de mercadorias e pai defamília,secompletacomacompreensãopolíticaqueaesferapúblicaburguesafazdesimesma.Antesdeassumir funçõespolíticas, no entanto, oprocessode autocompreensãodaspessoasprivadas adquire aforma literáriade trocasdeexperiênciassobreoexercíciodanovaformadeprivacidade.Essaesferapúblicaliterárianãoéoriginariamenteburguesa,massimumaherançadaaristocraciacortesãtransmitidaàvanguardadaburguesiaquemantinhacontatocomo“mundoelegante”.

Ocrescimentodascidadesvaipossibilitar,apartirdaproliferaçãodaculturadoscafés,dossalõesedos clubes literários, a institucionalização da esfera pública. Os herdeiros burgueses do humanismoaristocrático,noentanto,logopassamaconferircarátercríticoàssuasconversaçõessociais,quebrandoaponteentreasduasformasdeesferapúblicaeengendrandoumelementohistoricamentenovo:aesferapública burguesa. A partir de 1750, também as novas formas literárias dominantes assumemcaracterísticas especificamente burguesas, como o drama burguês e o romance psicológico, ou seja,adquiremformasquepropiciamtematizaromodoespecificamenteburguêsdanovasubjetividadequeseconstitui nessa época. A passagem da carta ao romance psicológico, como a forma paradigmática deproblematizaçãodasquestõesexistenciaise subjetivas, jáapontaparaomaiorgraudeabstraçãoedeelaboraçãodareflexividadequeseinstitucionaliza.

Apequenafamíliaburguesaquesecriarepresentaumaformadecomunidadefamiliardistinta tantoda família aristocrática quanto da família camponesa.A essa sociabilidade original corresponde umanovaformadearquiteturadascasas,garantindoumespaçodeprivacidadeparacadaumdosintegrantesdafamília,assimcomoformasdeconvívioquesedestinamaexercitaronovotipodeindividualidadequeseconstitui.

A esfera pública literária dos indivíduos privadosmantém já uma conexão profunda com a esferapública política. A subjetividade literariamente trabalhada do burguês já é desde sempre pública (apassagemdacartaaoromance,comonotamosacima,jáodemonstra),funcionandocomoumaespéciedeautofalante das necessidades e experiênciasmais íntimas. Por outro lado, e até de forma ainda maisfundamental,opúblicoliterárioimplicaumaigualdadedaspessoascultascomopinião, igualdadeessaindispensável para a legitimação do processo básico da esfera pública: a discussão baseada emargumentoscomoaspectodecisivoquesubordinaaquestãodostatussocialrelativodosparticipantes.

Éageneralizaçãodessanovaatitudeemrelaçãoaopoderqueirátornarirresistíveltambém,primeirona classe burguesa e depois na sociedade como um todo, a própria ideia de soberania popular comoúnicalegitimaçãopossíveldopoderpolítico.Afinal,quandoseabremespaçosdereflexividadeemumadimensãodavida, elanão fica resignada e quieta nesse espaço restrito.Ela tende a se expandir paratodasasdimensõesdavidasocial.

Desde essa época, podemos perceber como a atenção do jovemHabermas já se dirige ao estudodaquelainovaçãosocialqueseráparaeleacaracterísticaessencialdomundomodernoeacujaanálise

Page 71: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

depressupostosdedicarátodasuavidadepesquisador:adescobertadeumaforçainterna,capazdecriarobrigaçõesrecíprocasentreossereshumanos,àcomunicaçãoeaodiálogo,queexigeadesconsideraçãodefatoressociaisexternoscomopoder,riquezaeprestígio.Essaforçainternaéocarátervinculantequenasce domelhor argumento, ou, como prefereHabermas, já nesse escrito da juventude antecipando aproblemáticamoraldoHabermasmaduro,aforçainternadaquelaracionalidademoralmentepretensiosaquebuscavincularaverdadeeajustiça.

O ponto aqui não é, como críticas superficiais de críticos superficiais procuravam fazerinfantilizandooargumentohabermasiano,negaropoderdaviolênciaedodinheiroemnomedomelhorargumento.OqueéditoporHabermasapartirdesuaanálisedaesferapúblicaéque,alémdopoderedodinheiroedas formasdeviolência físicae simbólica, asquais continuamdecisivas emqualquer casoconcreto,oexercíciodopoderpolíticodeve,também,selegitimardiscursivamente.Anovidadeaquiéqueojogodadominaçãosocialse tornamaiscomplexocomaentradadeumelementohistoricamentenovo.Dependendo da conjuntura histórica, inclusive, essa nova instância de poder pode ser decisivacomoahistóriarecentecomprovasobejamente.Tantoodireitoà igualdadedostrabalhadoresquantoodireito à igualdade das mulheres foram conquistados, também, não apenas pela violência, mas porprocessosdeconvencimentonaesferapúblicaquelograrampenetrareconvencerpartessignificativasdasociedade.

Em boa parte essa dialética do aprendizado social pelo convencimento já está prefigurada peloideáriodasociedadeburguesadesera“melhor sociedade” jáexistente,a sociedadeda liberdade, daigualdade e da fraternidade. Como percebia o jovemMarx, esse fato abre a possibilidade da críticasocialnamedidaemquepermiteacomparaçãodasociedaderealcomaquiloqueeladizeprometeser.Há sempre, agora, apossibilidadededesmascarar amentira e a fraude antes santificada e sagrada.Éesseovínculointernoquesecriahistoricamenteentreverdadeejustiça.

Já o século XIX, e mais ainda o século XX por oposição ao século XVIII, testemunha umamodificação estrutural da esfera pública: a ampliação do público que exige a consideração de seusinteresses.Asmassasmenosletradasdoproletariadoemergentequepassamapressionarpelaefetivaçãodeseusinteressesdeclassequebrampordentroaunidadedaesferapúblicaburguesa.Comisso,aesferapública deixa de ser um espaço de convencimento entre pessoas com interesse semelhante para ser,também,umespaçodepressãodasclassesquehaviamsidoalijadasdoprocessodeesclarecimento.

Duasrespostasclássicasforamformuladasparareagiraessedesafio.Porumlado,temosaposiçãosocialistaondeateoriadeKarlMarxlogrouformularavisãomaiscoerenteeconsequente.ParaMarx,todasasinstituiçõesburguesas,inclusiveaesferapública,fundamentam-senoencobrimentomanipulativoda dissidência básica da sociedade de classes em explorados e exploradores. Aos primeiros cabe atarefadetransformarradicalmenteainfraestruturasocialqueperpetuadesigualdades.Asocializaçãodosmeiosdeproduçãoencontranessaformulaçãosuarazãodeser.

Aoutra reaçãoclássicaaodesafiodaascensãodoproletariado industrialopera-seno contextodoliberalismoclássico.Coma resignaçãoperante a impossibilidadede resolução racional dos conflitosqueagoradilaceramaesferapública,desejamos liberais umadefesa contra uma eventualmaioria naopinião pública suspeita, agora, de possuir um núcleo não racional. A noção de populismo comomecanismodedeslegitimaçãodosinteressespopulares,sobaformadeumareaçãoliberalàentradadasmassastrabalhadorasnapolítica,temaquiseunascimentohistórico.Comoosinteressesdasmassassãodiferentes,aformadedeslegitimá-losénegar-lheracionalidade.Foioquenossoliberalismofezefazotempotodoentrenós.

Page 72: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Com a despedida do conceito de crítica restrita a umamesma classe com interesses parecidos, acrítica agora tende a ser taxada de radical por tocar na questão sagrada da propriedade privada. Asoberaniapopular temque ser restrita e sóvotaquem temdinheiro ou propriedades, ou se constroempesosecontrapesosdentrodaestruturadepoderparaqueseeviteocesarismonapolíticanocontextodeumhomemumvoto.Arespostaliberaléreacionárianosentidodemeramentereativoàtomadadoespaçopúblicopelasmassasdespossuídas.

Oadventodosufrágiouniversaledaeducaçãopara todosabreapossibilidaderealdeumaesferapúblicamaisinclusiva.Noentanto,novosemaispoderososinimigosaindaestãoàespreita.Asesferasestatais, públicas, e privadas, domercado, passam a formar um único contexto funcional, a partir daprivatizaçãodoEstadopelocapitalismoorganizado(ouseja,arealprivatizaçãodoEstado,emrelaçãoaqual nossos teóricos do patrimonialismo pretendem nos cegar, ao chamar atenção à privatização porindivíduos),processoesseaceleradopelaconcentraçãodecapitais.

A passagem da lógica da produção capitalista das mercadorias materiais para as mercadoriassimbólicas é o momento decisivo da decadência da reflexão racional como recurso societário. Ocapitalismoorganizadoexpande-sedaesferadeproduçãodebensmateriaisparaaprodução industrialdebenssimbólicos,constituindoaquiloqueT.W.Adornohaviachamadode“indústriacultural”.73ParaAdorno,aindústriaculturaléaaplicaçãoconsequentedalógicacapitalistadamaximizaçãodolucroàesferadosbenssimbólicos.Ouseja,alémdeseraformadominantedeproduzirmercadoriasmateriais,como salsichas e roupas, o capitalismo também passa a ser a forma dominante da produção demercadoriassimbólicas,comoa informaçãoeoconhecimento.Assim,senaesferadosbensmateriaisuma salsicha mantém seu valor de uso enquanto alimento, seja em contexto pré-capitalista, seja elaproduzidasobcondiçõescapitalistasdeprodução,omesmonãosedánaesferadosbenssimbólicos.

A lógica da maximização do lucro, que envolve a preponderância do valor de troca de umamercadoria,ouseja,seupreçofinal,emrelaçãoaseuvalordeuso,ouseja,autilidadedestaparaseucomprador,aplicadaàproduçãodebenssimbólicosdesvirtuaoprópriovalordeusodobemcultural,queépossibilitarodesenvolvimentodacapacidade reflexiva.Dessemodo, amercadoriada indústriacultural precisa abrir mão da complexidade inerente aos objetos culturais e produzir umahomogeneização psíquica “por baixo”, de modo a poder garantir a maior vendagem possível demercadorias simbólicas ao maior número de pessoas. Embora se possa criticar a ideia da indústriaculturaladornianasepensadaemtermosabsolutos,comotendênciafundamentaldasociedademoderna,hojeemdiamaisquenuncaelaéirretocável.

Aesmagadoramaioriadosprodutosdaindústriaculturaledamídianãosedirigeaoconhecimento,quetransformaeemancipaosujeito,massimaoreconhecimentodeestereótipos,clichêsechavões,quereproduzem o mundo e os interesses que estão ganhando. O clichê político dos jornalões e da TVbrasileira,emépocarecente,dechamarde“chavismo”e“bolivarianismo”qualquercríticaasimesmoajudaemqueareflexão?Asnovelas,filmesdegrandebilheteria,livrosdeautoajudaebest-sellersquerepetem as mesmas fórmulas gastas e repetitivas de provocar seu público ajudam em que a reflexãoverdadeira?

Opúblico,deixadoindefeso,épresafácildetodotipodemanipulação.Aameaçaaquiéumainvasãodosimperativosdaesferaeconômicasobreaesferapública,transformandosuaracionalidadeespecíficaem mero bem de consumo econômico74 ou de manipulação política. Como vimos acima, suaracionalidade específica tem a ver com uma discussão de argumentos que se opõem e que almejamproduzir convencimento refletido. É apenas a exposição a argumentos opostos que pode permitir ao

Page 73: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

sujeitoconstruirsuaprópriaopinião.Aoseexporàsrazõesconflitantes,osujeitoéinstigadoapercebersuaprópriainclinaçãoequaisargumentoslheparecemmaisjustoseverdadeiros.Éesseconvencimentorefletidoquepodeproduziraproximaçõessucessivasaoobjetivodeunirverdadecomjustiça.Esseéoobjetivodeclaradodaesferapública,tantoqueamanipulaçãodagrandeimprensaentrenósnãopodeseassumirenquanto tal.Ela temque fazerde contaqueéplural e argumentativa.Essa é sua legitimaçãoexplícita.

Com a passagem histórica de uma esfera pública de pessoas privadas para uma esfera públicamediadapelomercado,temosaambiguidadetípicadomercadodebenssimbólicosnocapitalismo:comoconciliaroacessodemocráticoàinformaçãocomosinteressesprivatistasdamaximizaçãodolucroedaexpropriaçãodotrabalhocoletivo?Porcontadisso,amudançaestruturaldaesferapúblicanosséculosXIXeXXestáintimamenterelacionadacomamudançaestruturaldasuainstituiçãomaisimportante:aimprensa.

Originariamente,aimprensafoiaparteiradaesferapúblicaaomediarodiálogoentreosindivíduosefazeropapeldeautofalantedeumpúblicopensantequediscutiasuasexperiênciasprivadasepúblicasnum fórum compartilhado coletivamente. Os jornais e semanários agiam ainda em primeiro plano deacordocomo interessedodebatepúblicodequestõesexistenciais,moraisepolíticas.Apassagemdaimprensadeopiniãoparaaimprensacomonegóciosedáapartirdanecessidadedegarantiroaumentoeaperfeiçoamentodatécnicaprodutivaeorganizacional.

A consequente necessidade de assegurar a rentabilidade do novo capital empregado acarreta asubordinaçãodapolíticaempresarialàsnecessidadesdareproduçãoampliadadocapitalempregadonaempresa.Oimperativodeasseguraroacessoacadavezmaisleitorestransformaointeressecomercialemfatorprincipaldamudançadeumaimprensapedagógica,interessadaemesclarecerseupúblico,emmeramente manipulativa. Balzac, no seu clássico As ilusões perdidas, analisa precisamente aentronizaçãodaimprensamanipulativaevenalnaFrançadesuaépoca.Esseéonúcleodurodaquestãoquenos interessa aqui. Se toda a informação disponível para a sociedademoderna tende agora a sermediada, de cima para baixo, por empresas capitalistas, não necessariamente interessadas noaprendizado de seu público cativo, mas em aumentar seus lucros, como garantir o acesso plural dainformação?

A resposta a essa pergunta é percebida por Habermas como apenas possível por meio de umademocratizaçãoinstitucional.Instituiçõespolíticas,comoospartidoseasassociaçõesdeclasse,devempropiciarumespaçocomunicativoparaumacríticapúblicareflexiva.ParaHabermas,noentanto,seriaimpossívelpretender-sevoltaraumaesferapúblicadotipoquevigoravanasegundametadedoséculoXVIII. A crítica racional e pública da dominação política não pode ser restabelecida, em meio aosinteresses privatistas organizados, segundo o modelo das pessoas privadas reunidas num público. Aestratégiadefensivadevedirigir-seaumaespéciedecontrolerecíprocodeinstituiçõesrivaisquelutamporespaçoemmeioàlutapelopodersocial,econômicoepolítico.

Foiprecisamenteessecontextoqueconstruiuopanode fundoparauma reformulaçãoprofunda daimprensa europeia – especialmente domeiomais poderoso da imprensa, que é a televisão – no pós-guerraapartirde1945.Oobjetivoaquifoicriarumcontrapesoàameaçadacapturadosinteressesdasociedadeinteiraemumdebateabertoepluralporinteresseseconômicosdeocasiãorepresentadosnasempresascapitalistasdagrandeimprensa.Esseobjetivofoiprecisamenteonorteparaomodelopúblicodeimprensatelevisiva,muitomaisimportantequequalqueroutromeiodedifusão,seguidopordiversospaíses europeus no pós-guerra. A televisão europeia e, em pequena parte, até a norte-americana, émarcadapeloadventodatelevisãopública.

Page 74: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Atelevisãopúblicanãoseconfundecomtelevisãoestatal,emboraamaioriadastelevisõespúblicaseuropeias tenhasurgidocomotelevisõesestatais.ConsideraçõescomoasquepreocupavamHabermas,comoa independência do conteúdo televisivode interesses políticos e econômicos de ocasião, foramfundamentais para que as televisões estatais pudessem se transformar em televisões públicas. EssapassagemsedeuempraticamentetodosospaísesdedemocraciamaissólidacomoFrança,Alemanha,Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal. O fortalecimento da democracia e da cidadania, no pós-guerra,impôsocontrolepúblico,aparticipaçãodasociedadenagestãodasemissoraseacriaçãodeconselhosderepresentantesdepartidos,associaçõeseigrejasdiversas.

As televisões públicas quase sempre possuem estrutura semelhante a grêmios ou conselhos, quecontrolam a empresa e o conteúdo de sua programação. Esses conselhos, e isso é essencial para seucaráterpúblico,independentementedoEstadoedomercado,refletemumapluralidadesocialondetodotipo de interesse significativo, patronal e dos trabalhadores é representado. Esses interesses sãodefendidos por múltiplos sindicatos, partidos, representantes religiosos, representados na direção datelevisão pública. Essa é a origem de televisões públicas como a BBC inglesa, a TVE espanhola, aFranceTelevisón,aRAIitaliana,aRTPdePortugal,aARDeaZDF,alemãs,entreoutras.OsEUAeoCanadátambémtêmTVspúblicas,aPPSeaCSA,respectivamente.

Esse,infelizmente,nãofoiodesenvolvimentodaimprensaedatelevisãonoBrasilmoderno.Aqui,ointeresseunicamentecomercialdegrandesconglomeradosnaáreadacomunicaçãofoia regra.Todoopoder de fogo, de pressão e de ameaça e chantagem do poder político foi utilizado para destruir nonascedouro,porexemplo,umatelevisãopúblicaentrenós.Presaunicamentedointeressecomercial,semaconcorrênciadetelevisõespúblicascomonocontextoeuropeu,essetipodeimprensa,emvezdeserinstância de mediação da esfera pública, assegurando a circulação dos argumentos em disputa, podeentãotransformar-seemarregimentadoraeinstrumentodeinteressesprivadosquesãoexpostoscomosefossempúblicos.ARedeGlobovicejounessecontexto.

Dessemodo,ocírculodiscursivosequebranoseuprimeiroeprincipalelodatransmissãopúblicadosargumentos.Opúblicodepessoasprivadasperdeapossibilidadedeconstruirumaopiniãoautônomaeindependenteapartirdapluralidadedosargumentosemdebate.OstelejornaiseprogramasdedebatedaTVGloboeoutroscanaiscompessoasquerefletemamesmaopiniãocriamumafraudeevidente.Asemelhançadeopiniõesvisacriar,emumpúblicosempadrãodecomparação,umarremedodedebate.Abre-secaminhoparatodotipodemanipulaçãomidiáticacomoaqueocorreurecentementeentrenós.

Acolonizaçãodaesferapúblicapelodinheiroevitaaqueletipoderacionalidadequepermiteauniãoentreverdadeejustiça.Sóapluralidadedeinformaçõesedeopiniõesasseguraaproximaçõessucessivasàverdade.Eapenasesseesforçodeaproximaçõessucessivaspararestauraraverdadefactualpermiteescolhaautônoma,ouseja,moralidaderefletidacomoumatributodossujeitosenvolvidosnessaformadeaprendizado coletivo.A ausência de pluralidade de informações e opiniões na grande imprensa gerasereshumanosfacilmente influenciáveisemanipuláveise incapazesdepensarporsimesmos.Éoquetemoshojeentrenós.

EssetipodeespaçopúblicocolonizadopelodinheiroesuasnecessidadesdereproduçãoampliadageraaquiloqueHabermaschamaderefeudalizaçãodaesferapública.Essanovapublicidade,comonarepresentaçãodopoderdaIdadeMédia,nãosignificamaisumaproduçãopúblicadeopiniãoporpessoasprivadas,masaproduçãoparaumpúblicodeopiniõesquesãoapresentadascomosefossempúblicas.Aesferapúblicatemqueserproduzidaemaquiadaartificialmenteporqueelanãomaisexiste.ComonosprogramasdedebatedaTVGlobo,tudofuncionacomosehouvessedebate,ouseja,opiniõesdivergentesemdisputa,quando,naverdade,temosaverumafarsa,umteatro,precisamentecomonaesferapública

Page 75: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

feudal.Aelitedoatrasoconstruiuaesferamidiáticaadequadaaseusfins.É incrível que, em um país onde se fala sempre da privatização do público como seu problema

principal, nuncaninguém tenha sequer refletido seriamente acercadaprivatizaçãoda opinião pública,como efeito da colonização da esfera pública pelo interesse econômico. Enquanto a privatização doEstado por uma suposta elite estatal é o embuste do patrimonialismo como jabuticaba brasileira, aprivatizaçãodoespaçopúblico,queéreal,étornadainvisível.Porsuavez,éaprivatizaçãodaopiniãopública que permite a continuidade da privatização do Estado pelo interesse econômico. Em grandemedida,comosempreacontecenessescasos,umafalsacontradiçãoestásemprenolugardeumconflitoreal.Afinal,afalsaameaçadacorrupçãopatrimonialistafoisempreacionadapelosinteressesprivadosquecomandam,demododiretoeindireto,agrandeimprensa.

Page 76: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Omoralismopatrimonialistaeacríticaaopopulismocomonúcleodopactoantipopular

Acriaçãodaclassemédiaentrenóssedeudemododistinto,tantotemporalquantoqualitativamente,doexemploeuropeu.Éissoqueajudaaexplicaradiferençadosprocessosdeaprendizadocoletivoaquie lá e não supostas heranças culturais imutáveis, como nosso culturalismo racista dominante apregoa.ComonosmostraGilbertoFreyre,emsuareconstruçãoempíricasingulardoséculoXIXentrenós,umaclassemédiaemsementejácomeçaaexistirnasgrandescidadesquesofreminfluênciadocapitalismocomercial,quecomeçaachegaraopaísapartirdaaberturadosportos.Eleserefereàqueleelementoque, certamente demodo aindamuito incipiente, começa a surgir nos interstícios da velha sociedadeescravocratabaseadanagrandelavoura.Seusnichosprincipaissãotantoopequenocomércioquantoosofíciosmecânicosquepassamaserumanovademandaurbana.

Mesmosobessaformaincompletaepontual,ossetoresdeclassemédiamerecemessadenominação,postoquejáapontamparaumprimeiroaparecimentodoelementodistintivodaclassemédiaemrelaçãoatodasasoutrasclassessociais:aclassequeseformaapartirdareproduçãodocapitalculturalsobaformadeconhecimentoútilevalorizadoemtermoscomparativoscomasclassespopulares.Masaquiosnichosdeatuaçãosãoquantitativamentepequenosepoliticamenteaindapoucorelevantes.

AprimeirametadedoséculoXXtestemunhaavançosignificativo, tantodeatividades industriais ecomerciaisquantodo tamanhoedaefetividadedoEstadonavidasocial.Essas são, classicamente, asmudanças estruturais na sociedademoderna que criam a classemédia. Ela nasce e se reproduz comoaquelesegmentointermédioentreosproprietárioseasclassespopularesdotrabalhomanualoumenosqualificadoemtermoscomparativos.

A classe média não é uma classe necessariamente conservadora. Também não é uma classehomogênea.Omovimento tenentista,conhecidocomooprimeiromovimentopolíticocomandadopelossetores médios no Brasil, revela bem essas características. Ainda que tenha sido protagonizado poroficiais militares de baixa e média patente (daí o nome tenentismo), a partir dos anos 1920, essemovimento refletia já a nova sociedade mais urbana e moderna que se criava. A parte rebelde dainstituiçãomilitareraumaexpressãodessesnovosanseios.

AoposiçãoaopactoconservadordaRepúblicaVelha,comsuaseleiçõesfraudadaserestritas,eraoponto de união entre os tenentistas. Dentro domovimento, no entanto, conviviam desde as demandasliberaisporvotosecretoepormaiorliberdadedeimprensaatéodesejodeumEstadofortecomomeiode se contrapor aomandonismo rural. Parte do grupo se radicalizou politicamente naColunaPrestes,cujolíder,CarlosPrestes,seriaofundadordoPartidoComunistaBrasileiro.PartedogruposealinhoudesdeaRevoluçãode30comGetúlioVargas,enquantooutraparteaindalheexerceuferrenhaoposiçãotodootempo.Onossoprimeiromovimentopolíticocomclarosuporteeapoiodaclassemédiajámostraaextraordináriamultiplicidadedeposiçõespolíticasqueessaclassepodeabrigar.

Quando SérgioBuarque elegia o patrimonialismo das elites que habitam oEstado como o grandeproblema nacional, ele não estava dando vida, portanto, a nenhum sentimento novo. A corrupção doEstado era uma das bandeiras centrais do tenentismo. A falta de homogeneidade de pensamento dostenentes, sua confusão em relação à hierarquia das questões principais, refletiam uma carência real.Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como efeito da captura do mesmo pela

Page 77: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

própriaeliteeconômicaqueousaparadefendereaprofundarseusprivilégios.Issoterialevadoaumaconscientização coletiva dos desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seusprivilégios.

Nãofoiessaainterpretaçãoqueprevaleceu.Aelitedodinheiropaulista,quehaviaperdidoopoderpolíticoaindaquemantidoopodereconômico,agiudemodoastucioso,calculadoeplanejado.Percebeuclaramenteossinaisdonovotempo.Atruculênciadovotodecabrestoestavacomosdiascontados.Emvez da violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir asobrevivênciaelongevidadedosproprietárioseseusprivilégios.ComoEstadonamãodosinimigos,aelitedodinheiropaulistanadescobreaesferapúblicacomoarma.Senãosecontrolamaisasociedadecom a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controleoligárquicotemqueassumirnovasvestesparasepreservar.Odomíniodaopiniãopúblicapareceseraarmaadequadacontrainimigostambémpoderosos.

Oqueosnovostempospedemé,portanto,umliberalismorepaginadoeconstruídoparaconvencerenãoapenasoprimir.Omoralismodanascenteclassemédiaurbanaseriaamelhormaneiradeadaptaromandonismoprivadoaosnovos tempos.Odomíniodocamponacidade temque ser agoracivilizado,adquirindoascoresdaliberdadeedadecência,osmantrasdaclassemédiacitadina.Oqueestavaemjogo aqui era a captura agora intelectual e simbólica da classemédia letrada pela elite do dinheiro,formandoaaliançadeclassedominantequemarcariaoBrasildaíemdiante.

ComoseconstruiuesseprojetonoalvorecerdoséculoXX?AUSP,aUniversidadedoEstadodeSãoPaulo,foicriadaporessamesmaelitedesbancadadopoderpolítico,epensadacomoabasesimbólica,uma espécie de think tank gigantesco, do liberalismo brasileiro a partir de então. E também desseprojetobemurdidode contrapor a forçadas ideias generalizadasna sociedade contra o poder estataldesde que este seja ocupado pelo inimigo político à época representado por Getúlio Vargas. SérgioBuarque émenos o criador emais o sistematizadormais convincente domoralismo vira-lata que irávaler,apartirdeentão,comoversãooficialpseudocríticadopaísacercadesimesmo.ComooEstadocorruptopassaaseridentificadocomoomalmaiordanação,aelitedodinheiroganhaumaespéciedecarta na manga que pode ser usada a partir de então sempre que a soberania popular ponha,inadvertidamente,alguémcontrárioaosinteressesdopodereconômico.

Apartirdesseeixointelectualeivadodeprestígio,essaconcepçãosetornadominantenopaísinteiro.Todaavida intelectuale letradavai respirarosnovosares. IssonãosignificaobviamentedizerqueaUSPnãotenhaproduzidocoisadistintadoliberalismoconservadordaselites.FlorestanFernandesesuaatenção aos conflitos sociais realmente fundamentais provam o contrário. Existe uma tradição nessesentidotambémporlá.Maséumatendênciadominadaporduasrazões:émenospoderosaqueaversãodominante,postoque semanetwork comas editoras, agênciasde financiamento, agrande imprensa eseusmecanismosdeconsagração;alémdeelaprópria terassimiladoaspectos importantesda tradiçãoconservadoraelitistavisíveisaténocasodopróprioFlorestanFernandes.

Desde essa época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da higiene moral danação,vai serapedrade toquedaarregimentaçãodaclassemédiaquesecrianessaquadrahistóricapela elite do dinheiro. O discurso moralista havia mostrado todo seu potencial de arregimentar econvencer sua clientela já na década de 1920 com o movimento tenentista. Os tenentes, oficiais dasforçasarmadasmaisjovensdebaixaedemédiapatente,pretendiamarenovaçãomoraldanaçãodecimaparabaixo.OEstadoNovodeVargas foium lócusprivilegiadoparaváriosdeles,aindaque disputasintestinastenhamlevadováriosatrocaremdeladocomotempo.Otenentismohaviamostradoaeficáciadessenovodiscursotípicodaclassemédia.

Page 78: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Issonãosignificadizerqueomoralismonãotenhaecotambémnasoutrasclasses.Emalgumamedidaessediscursonos tocaa todos.Masnaclassemédiaele está emcasa.Éque as classes sociais estãosempredisputandonãoapenasbensmateriais e salários,mas, também,prestígio e reconhecimento, oumelhor: legitimação do próprio comportamento e da própria vida. As classes superiores, quemonopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto, seus privilégios. O capitaleconômicoselegitimacomoempreendedorismo,dequemdáempregoeergueimpérios,ecomosupostobomgostoinatodeseuestilodevida,comoseapossedodinheirofossemerodetalhesemimportância.

A legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é invisível pelareprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho prévio de formar vencedores, a classemédia é a classe por excelência da meritocracia e da superioridade moral. Eles servem tanto paradistingui-laeparajustificarseusprivilégiosemrelaçãoaospobrescomotambémemrelaçãoaosricos.Éque,seospobressãodesprezados,osricossãoinvejados.Existeumaambiguidadenessesentimento,emrelaçãoaosricos,quevinculaadmiraçãoeressentimento.Asupostasuperioridademoraldaclassemédiadá a sua clientela tudo aquilo que elamais deseja: o sentimentode representaremomelhor dasociedade.Não só a classe quemerece o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia dameritocraciapropicia;mas,também,aclassequetemalgoqueninguémtem,nemosricos,queéacertezadesuaperfeiçãomoral.

Éclaroqueperfeiçãomoralpodemuitobemtomarocaminhoqueensejeumaaberturaao temadaresponsabilidadesocialcomosestratosmaisfrágeis,comoaconteceunocasoeuropeuemmuitospaíses.Umcaminhoaliásjáabertopelocristianismoquefoisecularizadoemproposiçõespolíticas.QueentrenósperfeiçãomoraltenhatomadoaformaestreitadereaçãoàcorrupçãoapenasnoEstado–eaíapenasquandoocupadoporlíderespopulares–éreflexodabemperpetradamanipulaçãointelectualepolíticadestinadaatornaraclassemédiamassademanobradosendinheirados.

Aelitedodinheirosoubemuitobemaproveitarasnecessidadesdejustificaçãoedeautojustificaçãodos setores médios. Comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista feita comprecisãodealfaiateparaasnecessidadesdopúblicoquequeriaarregimentarecontrolar.Esse tipode“compra”daeliteintelectualpelaelitedodinheironãosedáapenas,nemprincipalmente,comdinheiro.Sãoosmecanismosdeconsagraçãodeumautoredeumaideiaseguindo,aparentemente,todasasregrasespecíficasdocampocientífico.Masaquempertencemosjornais,aseditoraseosbancoseempresasquefinanciamosprêmioscientíficos?Dessemodo,semparecercompra,oexpedienteémuitomaisbem-sucedido.Depois,usousuaposiçãodeproprietáriadosmeiosdeproduçãomaterialparaseapropriardosmeiossimbólicosdeproduçãoereproduçãodasociedade.Éaquiqueentraocontextoqueexisteatéhojeentreimprensa,universidade,editorasecapitaleconômico.

Como o dinheiro não pode aparecer comprando diretamente os valores que guiam as esferas dacultura,doconhecimentoedainformação,essasesferasprecisamconstruirmecanismosdeconsagraçãointernos a ela como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e do poder. Isso explica, em grandeparte,que tantoadireitaquantoaesquerda tenhamsedeixadocolonizarporesse tipodepráticaedediscurso.

Todoodiscurso elitista e conservador do liberalismobrasileiro está contido emduas noções queforam desenvolvidas na USP e que depois ganharam o Brasil: as ideias de patrimonialismo e depopulismo.Ganharomundonão significaqueos intelectuais e o campo científicopassama estudá-laseriamenteetê-lascomoreferênciaemseustrabalhos.Emboraissotambémaconteça,nãoénemdelongeoaspectomaissignificativo.Significativoéqueaesferapúblicapassaapensaropaísapartirdessascategorias.

Page 79: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Isso não acontece, como aliás nada no mundo social, espontaneamente. Isso só ocorre porque agrande imprensa irá reverberar essas categorias em praticamente todas as análises e torná-lasconsagradas, ou seja, ideias evidentes para além de debate e discussão. É assim que se conseguetransformar uma ideia em uma arma política letal: quando ela passa a ser aceita como evidência nãorefletida,inclusive,porquemnãotemnadaaganharcomelas.

Asprincipaispessoasligadasaosurgimentodessasideiasjácomprovamnossatesedesuainfluênciaavassaladora:SérgioBuarquecomocriadordanoçãodepatrimonialismo–continuadaporRaymundoFaoroeváriosoutros–entrenós,eFranciscoWeffort,umpoucomaistarde,comoadaptadordaideiadepopulismo ao contexto brasileiro. Que essas ideias conservadoras passam a dominar tanto a direitaquanto a esquerda do espectro político fica claro como a luz do Sol. É do livro clássico de SérgioBuarque,Raízes doBrasil, que oPSDB, o partido orgânico das elites paulistanas, hoje associado aorentismo,retiratodooseuideárioeseuprogramapartidário.Aomesmotempo,asalanobredafundaçãoPerseu Abramo, do PT, tem também seu nome. Maior símbolo da colonização da esquerda peloliberalismoconservadordaeliteconservadoraparece-meimpossível.

FranciscoWeffort,quefoitambémumdosfundadoresdoPT–comoopróprioSérgioBuarque–edepois ministro da cultura de FHC, sistematizou entre nós a outra ideia-força do liberalismoconservador:adopopulismo75comocategoriaexplicativadocomportamentodasclassespopularesnapolítica.Comoaideiadepatrimonialismoedecorrupçãoapenasestatal,aideiadepopulismotambémépensada, inicialmente, para estigmatizar o legado de Vargas. Por extensão ela será usada paraestigmatizarqualquerpresençadasmassasnapolítica.

Efetivamente, adornado com o prestígio científico da noção de populismo, o desprezo secular eescravocrata pelas classes populares ganhauma autoridade inaudita e passa a ser usado compose dequemsabemuito.Juntas,ademonizaçãodapolíticaedoEstadoeaestigmatizaçãodasclassespopularesconstituemoalfaeoômegadoconservadorismodasociedadebrasileiracevadomidiaticamentetodososdiasdesdeentão.

Além dessas similitudes entre seus criadores que navegam com omesmo impulso na direita e naesquerda, as duas ideias possuem outra semelhança que salta aos olhos: ambas não valem um tostãofuradosobopontodevistacientífico.Anoçãodepatrimonialismoéfalsaporduasrazões:primeiroaselites que privatizam o público não estão apenas nem principalmente no Estado, e o real assalto aoEstado é feito por agentes que estão fora dele, principalmente no mercado. A elite que efetivamenterapinaotrabalhocoletivodasociedadeestáforadoEstadoesematerializanaelitedodinheiro,ouseja,domercado,queabarcaapartedoleãodosaque.

Aeliteestatalepolíticaficaliteralmentecomassobras,umamerapercentagem,mínimaemtermosquantitativos,dosnegócios realizados.Cria-se aí a corrupçãodos tolos,quevemoshojenoBrasil.Aatençãosefocanapropina,nos“3%dosSérgioCabral”davida,etornainvisíveloassaltoaotrabalhocoletivo como um todo em favor de meia dúzia de atravessadores financeiros. O principal efeito danoçãodepatrimonialismoétornaressedado,queéomais importante, literalmenteinvisível;depoisopatrimonialismo como privatização do bem público, suprema “viralatice”, é percebido comosingularidadebrasileira,comoseoEstadoapenasaquifosseprivatizado.

Naverdade,oEstadoéprivatizadoemtodolugar,eanoçãodepatrimonialismoapenasescondemaisessefato fundamental,possibilitandoumadupla invisibilização:dos interessesprivadosque realmentedominam o Estado; e do rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas osestrangeiros,masosinteressesestrangeiros,comosuperioreseprodutodeumamoralidadesuperior.A

Page 80: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

atual destruição da Petrobras – sob acusação de corrupção patrimonialista, como se as petroleirasestrangeiras que irão substituí-la também não o fossem e em grau seguramente muito maior – é umperfeitoexemplopráticodosefeitosvira-latasdessateoria.

Ocidadão,devidamenteimbecilizadopelarepetiçãodovenenomidiático,pensaconsigo:“émelhorentregaraPetrobrasaosestrangeirosdoqueelaficarnamãodepolíticoscorruptos”.Tudocomoseasupremacorrupçãonãofosseentregaraumameiadúziaariquezadetodosquepoderiaserusada,comoestavaprevistoopré-sal,paraalavancaraeducaçãodedezenasdemilhões.

Deresto,aoposiçãoentreopúblicoeoprivadoassumeaformadosensocomumquepercebeapenasoEstadocomoumaconfiguraçãodeinteressesorganizados.Assim,seoporiaaoEstadoerepresentariaaesferaprivadaapenasossujeitosprivados,pensadoscomoinstânciadeumaintencionalidadeindividual.Sendoaesferaprivadapercebidacomoindividual,ohomemcordialdeSérgioBuarque,entãoomercadocapitalista e competitivo é tornado literalmente invisível na sua positividade e eficácia. A partir deRaymundoFaoro,inclusive,omercadoépercebidocomooverdadeirocéunaterra,prenhedevirtudesdemocráticasqueapenasoEstadonãopermiteflorescer.

Em resumo, a real e efetiva privatização do Estado, aquela feita pelos interesses organizados domercadosobaformadecartéiseoligopólios,esobaformadeatuaçãodosatravessadoresfinanceiros,setornacompletamenteinvisívelconceitualmente.Melhorlegitimaçãodospioresinteressesdeumaelitedosaqueedarapinado trabalhocoletivomeparece impossível.Noentanto,boapartedaesquerda–alémde toda a direita obviamente– temesses autores e suas ideias como interpretações intocáveis eirretocáveisparaoBrasildehoje.

Jáanoçãodepopulismoevocaamobilizaçãomanipulativadasmassasurbanasapartir“decima”,quasesemprepormeiodeumlídercarismático,acarapuçaperfeitaparaademonizaçãodefigurascomoGetúlioVargaseLula.Ointeressantenessaideiaéqueelapartedoprincípionuncademonstradodequeasoutrasclassessociaisnãosãomanipuladasporninguém,como,porexemplo,aevidentemanipulaçãomidiáticadaclassemédiabrasileira,queéumdostemasprincipaisdestelivro.Naverdade,aideiaquesequerpassaraquiporconhecimentoválidoéadequeexistem“classesinteligentes”,comconsciênciadeseusinteresseseporcontadissonãosãomanipuladasporninguém;easclassesdopovo,iletradas,umpessoalquenãofoiàuniversidade,equesãofacilmenteiludidasporumlídercarismáticoardiloso.

Anoçãodepopulismo,atreladaaqualquerpolíticadeinteressedosmaispobres,serveparamitigaraimportânciadasoberaniapopularcomocritériofundamentaldequalquersociedadedemocrática.Afinal,comoospobres,coitadinhos,não têmmesmonenhumaconsciênciapolítica,a soberaniapopulare suavalidadepodemsersempre,emgrausvariados,postasemquestão.Ovoto inconscientecorromperiaavalidadedoprincípiodemocráticopordentro.Aproliferaçãodessaideianaesferapública,apartirdasuarespeitabilidadecientíficaedepoispeloaparatolegitimadormidiático,queorepercutetodososdiasdemodos variados, é impressionante.Os best-sellers da ciência política conservadora comprovam aeficáciadessabalela.76

Issojustificaaproliferaçãodeideiascomoadequeopovonãosabevotar,queseuvotovalemenos,postoquemenosinstruído,evaifuncionar,naprática,comocondenaçãodademocraciaedasoberaniapopular.Isso,quandosuavalidadecientíficaémenorquezero.Comomostraocasobrasileirorecente,aclassemédialetradasóagoracomeçaaperceberquedeuumtironopéapoiandoogolpedo“sindicatodeladrões”paraacabarcomacorrupção.Algunsdeles,inclusive,nãovãoadmitirissonunca,oquesómostracomointeligêncianuncatevenadaavercomanosnauniversidade.

Jáasclassespopularesdesconfiam,comrazão,deumapolíticaquepercebemcomo“jogodericos”e

Page 81: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

adotam uma postura pragmática de esperar para ver o que sobra para eles. Paramim, confesso, esseracionalismopráticodasclassespopularesmeparecebemmaissensatoeinteligentedoqueumaclassemédiaressentidaeinsegura,vítimafácildequalquermoralismoqueafaçasesentirmelhordoqueelaé.

Naverdade,aforaasépocashistóricasquelograramorganizarasclassespopularesouascamadasmédiasporalgumperíodobrevedetempo,aúnicaclasseconscientedeseusinteressesentrenósfoieéaindaaínfimaelitedodinheiro.Foielaqueconstruiuesquemasgigantescosdedistorçãosistemáticadarealidade, como os que estamos reconstruindo neste livro, apenas para manter o padrão de rapinaselvagemdotrabalhodetodosparaseusbolsos.Foiela,aofimeaocabo,que,comsatânicainteligênciae clarividência de seusmelhores interesses de classe, percebeu que o assalto ao bolso coletivo e aotrabalhoalheiosópoderiasedarpelacolonizaçãodacapacidadedereflexãodaclassemédia.

Atesedopopulismoeadopatrimonialismoservem,precisamente,comoumaluvaparaosinteressesdessa elite.Elas servemprimeiropara tornar invisível a açãopredatória de ummercado desreguladocomoonosso.Depois,paraculparoEstadoesuaselitescorruptas–especialmentedeesquerda–detudoqueaconteça sempreque se façanecessário.A responsabilidade da elite e de seus instrumentos,como amídia, fica também invisível; eles não são chamados nunca à responsabilidade. Depois, elesdeslegitimam as demandas populares como demagogia e populismo. Hoje em dia, essas são as duasideiasmaisrepetidasportodososjornaisecanaisdetelevisão.Elasestãohoje,comgradaçõesdiversasdeclareza,nacabeçadetodobrasileiro.

Comoissofoipossível?Comotantosforameaindasãoenganadosportãopoucos?Ora,ahabilidadedasteoriasexplicativasdominantesdescritasacimareside,precisamente,nofatodeseremaparentementecríticas,ouseja,elasparecemcríticas,masestãosistematizandoeconferindoprestígioàs ideiasmaisconservadoras.Elassãorepetidas,inclusive,porintelectuaisrefinadosdaesquerda.Opatrimonialismoaponta o dedo acusador apenas às elites aparentes, ligadas ao Estado,mas que no fundo só fazem otrabalhosujodaverdadeiraelitedodinheiro,quemandanomercadoepermaneceinvisível.

Opopulismo,porsuavez,sedisfarçade leituracríticadamanipulaçãodasmassas,aparentementeemfavordeumaorganizaçãoconscientedasmassas,porelasmesmas,assumindoocontroledoprópriodestino.Agrandefraudeaquiéesconderoprincipal:queasmassaslutamcomasarmasdosmaisfrágeis,tendotodaaorganizaçãoinstitucionalizadadaviolênciasimbólicaedaviolênciafísicadoEstadoedomercadocontraelas.Essaéa fragilidadedeseus líderescarismáticos também.Eles têmqueandarnacordabambadosinteressescontraditóriosedosinúmeroscompromissos,jáqueoqueasmassaspodemsonharéapenasumafatiamenordobolo.Aindaassim,issosóaconteceraramenteentrenós.

Otemadaesferapúblicacolonizadaéfundamentalparanossoargumento,postoquefoieéolócusondeaclassemédiaéarregimentadaparaosinteressesdaelitedodinheiro.Tudoacontece,nessaesferada informação seletiva edaopinião instrumentalizada, como se omundo fosse umprolongamento dasfantasiasedaautoimagemdaclassemédia.Adecênciaeavirtudepassamaserpercebidasdentrodoestreito contexto damoralidade dessa classe. Para uma classe que explora as outras abaixo dela sobformascruéisehumilhantes,moralidadenãopodeser,porexemplo,otratamentoigualitáriodosoutrossereshumanos,ouocomprometimentocomchanceseoportunidadesparatodos.Ora,emumcontextodesociedades influenciadas pelo cristianismo, moralidade deveria ser, antes de tudo, igualdade efraternidade.

Masnão é essa amoralidade que foi cevadapela grande imprensa e por nossos intelectuaismaisinfluentes.“Moralidade”significa,aqui,unicamenteseindignarcomasfalcatruas–sempreseletivasecuidadosamenteselecionadaspelaimprensa–dosistemapolítico,derestomontadoparasercorrupto,já

Page 82: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

quemontadoparasercompradopelodinheirodaelitedodinheiro.Aclassemédiapodeganharsua“boaconsciência”,mesmohumilhandoeexplorandoosmaisfrágeis,apenasseescandalizandocomasupostaimoralidadeestatal.

Nesse sentido, a elite do dinheiro e seus comandados na vida intelectual e na imprensa passam apossuirocoraçãoeamentedaclassemédiaepodemrecorreraessecapitalnalutapolíticasemprequenecessário. Como as classes populares são menos influenciáveis por esse tipo de mecanismo –protegidaspeloseuracionalismoprático–,avidapolíticadoBrasil,desdeentão,édominadaporgolpesdeEstadomovidospelaelitedodinheiro,comoapoioda imprensaedabasesocialdaclassemédia,sempre que a soberania popular ameaçar ou efetivar, por pouco que seja, interesses das classespopulares.

Já nos anos 1950, o embate se dá entre a elite do dinheiro aliado à imprensa que ela, elite dodinheiro,nãosóconstruiumaterialmente,mastambémlhedeuodiscursosimbólicoqueacaracteriza.Oembate desigual se deu, já nessa época, como se dá ainda hoje, entre a elite do dinheiro e a fraçãoconservadoradominantenaclassemédia,comosua“basepopular”,contraasclassespopularesesuaslideranças.Todooesquemaqueoperouno recente“golpeachment”de2016 jáestavaarmadodesdeosegundogovernoVargas.

Muito especialmente o tema da corrupção seletiva passa a ser usado sistematicamente já contraGetúlioVargascomretumbantesucesso.CarlosLacerdae todaamídiaconservadoracerramfileiraseprovocamcomoçãopopularjáseutilizandodedispositivosquehojesãoconhecidoscomopós-verdade,ou seja, a construçãodeversões semprovacomo intuitodeproduzirdeterminadoefeitodifamatório.Mesmoqueamentirasereveleenquantotalmaistarde,seuefeitodestrutivojáfoirealizado.OsuicídiodeVargasapartirdecomprovadasinverdadesditascontraelemostraaeficáciadoesquema.

As ideias dominantes para a reprodução do elitismo brasileiro, como a do patrimonialismo quedemonizaseletivamenteoocupantedoEstadoeadopopulismoquedemonizaasclassespopulares,nãosãoapenasensinadasnasescolasenasuniversidades.Seuensinonasuniversidadesé importantepoisconfere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de universalidade e neutralidadeobjetiva, a essas visõesmuito particulares da vida social e política. Armadas dessa consagração docampocientífico,elaspassamateraindamaispesonaformaçãodeumaopiniãopúblicamanipuladaaosetransformarememmotesusadoscomoarmapolíticapelagrandeimprensa.

Dependendodocasoespecífico, àsvezes temosa corrupçãoapenasdoEstado,opatrimonialismocomomoteprincipal, ouopopulismo, o velhomedoda ascensãodas classes populares.Mas os doisestãosemprepresentes.Afinal,essaésuafunçãoenquantomecanismoquesemprepodeserativadoaosabordascircunstâncias:semprequearegrademocráticaferiromandonismoeprivatismodaelitedodinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a captura da classe média moralista e aestigmatizaçãodasclassespopularesesuasdemandas.Aesferapúblicacompradaéodadodecisivodetodooprocesso.Porcontadisso,suaanáliseétãoimportante.

MaisaindaqueaquedadeGetúlioVargas,foiogolpede1964,quemostrouasentranhaseosperigosdessemecanismo.Nesse caso, o populismo foimais importante que omote do patrimonialismo e dacorrupção.Aindaqueambostenhamandadodemãosdadascomosempre.Emumcontextodeebuliçãosocial e clamor por reformas de base que tornassemo paísmais inclusivo, a acusação de populismocasa-se com a de comunismo emobiliza as ForçasArmadas chamadas pela imprensa e pela elite dodinheiroadesempenharseu“papelconstitucional”.Afraçãoconservadoramajoritáriadaclassemédiafazsuaparteeconfereaaparênciadebasepopulardogolpe.Comoosgolpesprecisamteraaparência

Page 83: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

de legalidade, as Forças Armadas desempenharam esse papel interpretando a seu modo dispositivosconstitucionais.Mesmafunçãoexercidapeloaparelhojurídico-policialdoEstadonogolpeatual.

Foram mais de vinte anos de ditadura feroz e de aprofundamento da já abissal desigualdadebrasileira.Desenvolveu-seummodeloeconômicoesocialquebeneficiouunicamenteaelitedodinheiro,que ganhou novos parceiros internacionais na exploração de um mercado interno cativo e de poucaprodutividade. A classe média, que somava no máximo 20% do país, tornou-se a consumidora dosautomóveisedosbensduráveismaiscarosedemenorqualidade,nacomparação internacional,queopaíspassouaproduzir,relegandoasclassespopularesaoarrochosalarial.OBrasildaelitedodinheirorealizouoseuidealeseconverteuemumpaíspara20%desuapopulação,queeraeaindaéotamanhodaclassemédiaentrenós.

O golpe de 1964 realiza na prática o acordo antipopular da elite e da classemédia ao levar aoparoxismo a constituição de uma sociedade baseada nomais completoapartheid de classes. Passa aexistir ummercado de produtos restritos para as classes do privilégio e outro mercado pior e maisprecário para as classes populares. Além disso, também todos os serviços, inclusive os do Estado,passamainstitucionalizaresepararaescoladeclassemédiadaescoladospobres,hospitaldaclassemédiaehospitalparapobres,bairrosdeclassemédiaebairrosparapobres,eassimpordiante.

Passamasubsistirdoispaísesdentrodomesmoespaço,queoeconomistaEdmarBachachamoude“Belíndia”, uma pequena Bélgica para os 20% de privilegiados e uma grande Índia empobrecida ecarenteparaos80%restantes.Épossívelagoraserdeclassemédiaenãomaiscompartilharespaçossociais comas classespopulares.Obrasileirode classemédia passa a se ver efetivamente comoumbelgaesóveros“indianos”,emcasaobedientesedomesticados,comoosvelhosescravosdomésticos.Essapassaaseranormalidadedavidasocialbrasileira.

A modernização conservadora dos militares construiu a classe média que hoje conhecemos. AexpansãodomercadoedoEstadonesseperíodoaumentounãosóquantitativamenteaclassemédiaqueserviaàs funçõesdesupervisão,controle,amparo legal,planejamentoeadministração, funções típicasdowhitecollarporoposiçãoaobluecollardostrabalhadores,nessasduasesferasdasociedade.Umaoutrafraçãodaclassemédia,comoutrotipodecapitalcultural,menostécnicoemaisliterário,ligadoaonovopúblicodeconsumodebensculturais, entraemcena.Essanova fraçãodaclassemédiaassume,nessa época, um perfil mais crítico e é o público consumidor da pequena revolução cultural que seestabelecenoBrasilnosanos1960e1970.ChicoBuarqueeCaetanoVelososãoexpressõesdessafraçãonascenteemaiscrítica.

Aclassemédia se fracionae sediferencia internamente, aumentando suacomplexidade.A própriaexpansãoeaprofundamentodocapitalismonopaís,queirá,porexemplo,criaroagronegóciocomaltaprodutividadeparaexportação,começaaconstruirtambémumsetordaclassemédialigadoàproduçãodebens simbólicosnopaís.Apossede conhecimento legítimo, facilitada pela notável ampliação dasuniversidadespúblicasnoBrasilsobosmilitares,eraofatordistintivo–comoaindahoje–paraumaclassemédiaquesediferenciademodofundamental.Aclassemédia,apartirdaí,jáassumesuafeiçãomaisheterogênea,comohojeemdianoBrasil.

Parte importante da cultura de resistência desse período vem,mais uma vez, como no tenentismoantes dele, das frações da classe média menos tradicionais e conformistas contra o governo militar.Muitas delas ligadas às novas elites e vanguardas culturais de uma classe média que então sediferenciavainternamente.Aelitedodinheironãotinha,atéentão,nadacomisso.Ademocraciasemprehavia sido para ela um estorvo e um grande mal-entendido. Ela tinha o que desejava e dizia muito

Page 84: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

obrigadoaosgolpistasarmadosincentivadosporelamesmapormeioda“suaimprensa”.Osanos1960e1970noBrasilpresenciaramumalutadesigualcontraaDitaduraMilitardefrações

maiscríticase rebeldesdaclassemédia,especialmentenocampodacultura,aindaquealguns tenhamchegado à radicalidade da luta armada. Foi apenas a entrada das classes trabalhadoras organizadas,semente doPT, já no fimdos anos 1970, que propiciou a esses setores descontentes o aliado de quenecessitavam.

Paraaelitedodinheiro,oarranjocomosmilitaresazedouquandoelespropuseram,aindaquedecimaparabaixoedemodoautoritário,uminteressanteprojetonacionaldedesenvolvimento,oIIPNDdaera Geisel. Uma série de investimentos na área de mineração e tecnologia, com a abertura deuniversidadesecentrosdepesquisaemtodoopaís,deveriaproporcionarumabasevigorosaparaumdesenvolvimentoeconômiconacionalautônomo.AindaqueoEstadofosseocondutordoprocesso,eleeraabertoàiniciativaprivada.

Istoétudoquejamaisinteressouanossaelitedodinheiroedarapinafáciledoaquiedoagora:umprocessonacionaldedesenvolvimentodelongoprazosobaconduçãodoEstado.Agrandeimprensaaseu serviço começa a bombardear o projeto e a minar por dentro o acordo que havia propiciado ogolpe.77 O apoio dessa elite do dinheiro e de sua imprensa ao Diretas Já vem daí.78 Para a grandeimprensa,aressacafoigrande.Censuradaemanietada,teveseuprestígioesuainfluênciadecisivamentereduzidos.Algunsórgãosmais liberais,comoaFolhadeS.Paulo,assumemumaformamaispluralnadécadade1990epermitemqueoutrasvozessejamouvidas.79AsclassesmédiasdasDiretasJáabrem-separaumexperimentodemocráticomaisumavezpelamãodosinteressesdosproprietários.

Page 85: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Opactoelitistaesuaviolênciasimbólica

Como discutimos anteriormente, a classemédia como conceito genérico e homogêneo não existe.Comoaclassesocialnãopodesercompreendidapelarenda,maspeloscapitaisqueestãoaseualcanceequeservirãocomoarmasdos indivíduosseparadosporclassesnacompetiçãosocialpelos recursosescassos, a classemédia é uma classe do privilégio. É a socialização familiar diferencial da classemédia,comojávimos,queacapacitaprivilegiadamente,emrelaçãoàsclassespopulares,paraosucessoescolare,depois,paraosucessonomercadodetrabalho.

Afinal,éelaquemonopolizaareproduçãodocapitalculturalvalorizadoquetantoomercadoquantoo Estado irão necessitar para se reproduzir. Advogados, economistas, publicitários, artistas,administradores, contadores, e assim por diante são, em sua esmagadoramaioria, especialistas dessecapitalculturalvalorizadoquecaracterizaaclassemédia.

NãoexistenenhumafunçãodomercadooudoEstadoquepossaserexercidasemoconcursodessesespecialistas.Emgrandemedida,essasfunçõessãotodasdecontrole,direção,supervisãoelegitimaçãodosistemaeconômico,socialepolítico.Daíqueaclassemédiasejaumaclassedoprivilégio.Elatemosalário e o prestígio correspondente de quem realiza no dia a dia a dominação social, econômica epolítica em nome da elite do dinheiro. Traçando um paralelo com nosso passado escravista, a classemédiaéocapatazdaelitedodinheirodemodoasubjugarasociedadecomoumtodo.

Obviamente,nãoéesseomodocomoaclassemédiasevê.Todasasclassesdoprivilégiotendem,necessariamente,averseuprivilégiocomoinatooumerecido.ComodiriaWeber,osprivilegiadosnãoqueremapenasexerceroprivilégio,masqueremtambémqueessemesmoprivilégiosejapercebidocomomerecidoecomoumdireito.Jáasclassespopularesestãocondenadasàsarmasfrágeisdosdominados.Suaação tendea ser reativa e construída contra os valores das classes dominantes sobodomíniododiscursodoinimigo.Assim,seoindividualismoéovalormáximodasclassesdominantes,nasclassespopularesasolidariedadeeoespíritodegrupotendeaser,porexemplo,maisimportante.Seanoçãodesensibilidade tende a ser dominante nas classes superiores, a ética da virilidade tende a ser o seucontrapontoperfeitonasclassespopulares.

A situação dos excluídos sociais, que chamamos provocativamente de ralé de novos escravos, éainda mais precária. Se a classe trabalhadora qualificada e semiqualificada ainda tem perspectivas,aindaquerestritas,defuturoedeascensãosocial,araléfoi tãosecularmentedesprezadaehumilhadaque, sem contexto político favorável, ela está condenada ao fracasso. Toda a importância do lulismorecenteresideaí.Foicomeleiniciadoumesforçoque,casofosselevadoadiante,redimiriaessaclassecondenadapeloódiocovardedevotadoaoescravonoespaçodepoucasgerações.

O desprezo e a humilhação que essa classe sofre desde o berço, unindo socialização familiarprecária, que é o essencial do seu aspecto de classe, com o preconceito covarde e secular contra oescravo,queéseuaspectoderaça,alevamafantasiarsuarealidadeintolerável.Afantasia,queassumeaformadafuganadroga,especialmentenoálcool,oudostiposdereligiosidademágicaqueprometemoquenãosepoderealizar,éexemplodoescapismodequemnãotemfuturo.80

Essanãoéasituaçãodasclassesdoprivilégio.Aelitedodinheirotendeaperceberseuprivilégiocomodecorrentedeumasuperioridadeinata.Essaancestralidadedoprivilégiotemaver,porumlado,comaherançadesangue,queimplica,nãosóodesfrutedariqueza,mastambémodeverdeaumentaro

Page 86: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

patrimônioea influência.Poroutro lado, os ricos sãoohabitat natural danoçãodebomgosto inato,comoseapossedodinheiro,quepossibilitaoconsumodascoisasmelhoresemaiscaras, fossemerodetalhesemimportância.Oconsumodiferenciadodeveaparecercomoexpressãodeumasensibilidadetambémdiferenciada.Oricoquesótemdinheiroéumricobronco.

Aclassemédiatendeaimitaraeliteendinheiradanasuaautopercepçãodeclassecomosensíveledebomgosto,mostrandoque essa formaé essencial para toda a separaçãodas classes doprivilégio emrelaçãoàsclassespopulares.Masaclassemédiaadicionaanoçãodemeritocracia,demerecimentodesuaposiçãoprivilegiadapeloestudoepelotrabalhoduro,méritopercebidocomoconstruçãoindividual.Aindaqueameritocracia,comoanoçãodesensibilidadetambém,sejatransclassista,aclassemédiaéseuhabitatnatural.

Como a socialização familiar que produz os indivíduos com capacidades diferenciais écuidadosamenteescondidaenuncalembrada,nãoselembraqueosfilhosdasclassespopularesnãosónãorecebemosmesmosestímulosdesdeoberço,mastambémtêmquetrabalhareestudardesdeatenraadolescência.Naclassemédia,nãosósetransmitemosestímulosprivilegiadosqueserecebeudospaisaos filhos, como capacidade de concentração e pensamento prospectivo, como também se compra otempolivredosfilhossóparaosestudos.Osfilhosdaclassemédiaquandocrescem,nãoobstante,olhampara os filhos das classes populares menos afortunados e consideram seu sucesso fruto de méritoindividual.

Todaessa lutapeladistinçãosocialé tão importantequantoa lutapelosbensmateriais.Quemnãopercebeissonãopercebenadadeimportantenavidasocial.Maisainda.Sãoosmecanismosdedistinçãosocialquelegitimamparasieparaosoutrosoacessoprivilegiadoatodososbensescassos,sejamelesmateriaisouideais.Ossereshumanos,emqualquerépocaeemqualquerlugar,queremnãoapenasserricosefelizes,mastambémsaberquetêmdireitoàfelicidade,mesmoàscustasdainfelicidadealheia.

Nomundo ocidentalmoderno, não existem duzentas formas, como quer o liberalismo vulgar, paraproduzirdistinçãosocialconsideradalegítima.Aformaéúnica,apesardeinvisívelemummundoondese percebe apenas a ação do dinheiro e do poder.Ela tem a ver com a dominação de certa visão damoralidadeedavirtudecomoopredomíniodanoçãodeespíritosobreanoçãodecorpo.Essaformamuitosingulardeseperceberamoralidadeeavirtudenãocaiudocéu.Elaestáassociadaàhistóriadocristianismo e ao fato de o cristianismo ter incorporado a noção platônica de virtude, que defende ocontrole das paixões do corpo pelo espírito, ao caminho de salvação exigido daí em diante de todocristão.

Essa é a gênese.Mas a caminhada dessa noção de virtude assume formas seculares e capitalistasdepois.Essasformasdeperceberavirtudesão,noOcidente,duas:elase transformaemdignidadedotrabalhadorútileprodutivo,eemsensibilidadedapersonalidadeexpressiva.Anoçãodedignidadedotrabalhadorútil,daquelequecontribuicomseutrabalhoparaobemcomum,éprotestantenocomeço–quandootrabalhoévistocomosagradopelaprimeiravez–edepoisgenericamentecapitalista.Anoçãode meritocracia nasce, portanto, aqui, como contribuição individual de cada um à riqueza socialcompartilhadapor todos.Apartir de então,querqueiramosounão– não existe criação individual namoralidadequesentimos–,passamosaadmirarquemcontribuicomseutrabalhoparaobemcomumeanãoadmirarquemnãoofaz.

Anoçãodesensibilidadeémaistardiaenascecomofrutodevanguardasintelectuaisempartecomoreaçãoaomundopercebidoapenas como trabalhoe acumulaçãode riquezas.Nasce a ideiaqueo serhumanodeveexpressarsuanaturezainteriorenãoapenastrabalhareacumulardinheiro.Oquepassaa

Page 87: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

serditoagoraéquerealizar-secomoserhumanoenvolvenãoapenasadisciplinadotrabalhoprodutivo,mastambéme,atéprincipalmente,aexpressãoautênticadesuasemoçõesesentimentos.

Tendo sido forjada nas elites literárias e intelectuais do século XVIII, essa noção de virtude semassificanosanos1960comosmovimentosdajuventudecontraculturaleéhojeemdiapatrimôniodenóstodos.Todosnós–queiramosounãoetenhamosounãoconsciênciadisso–somosseresdominadosparaobemeparaomalporessesvalores.

Quando se fala no mundo do trabalho e no casamento e na família como as duas instânciasfundamentais da vida de cada um, estamos apenas repetindo, com a linguagem da vida cotidiana, acentralidadedessanoçãobipartidadevirtude.Todosnósnosvemoscomo fracasso ou como sucesso,dependendodonossodesempenhodiferencialnessasduasáreas.

Isso significa que toda forma de autorreconhecimento e de reconhecimento social dos outros tem,necessariamente,avercomessasduasfontesocidentaisdanoçãodevirtude.Porcontadisso,também,nãoexistemcentenasdeformasdiferentesdedotaravidadesentido,comoacreditamoliberalismoeoslivrosdeautoajuda,masapenasessas ideiascriadashistoricamente.Osvaloresque regemnossavidasão,portanto,sociaisecompartilhadosenuncacriaçãoindividual.

Normalmente, as pessoas no dia a dia não têm a menor ideia disso. Quando não se percebeconscientemente o que determina nossa ação e nosso comportamento, isso apenas significa que suaeficáciaéaindamaior.Somoscomandadosporessahierarquiadevaloresnonossodiaadiaenãotemosamenor ideia disso. Isso só faz com que a força dessa hierarquiamoral seja aindamaior apesar deinvisível. Nesse caso, não temos literalmente nenhuma defesa em relação a ela, posto que ela noscomandapré-reflexivamenteeantesdequalquertomadadeconsciência.

Foi, inclusive, minha intuição inicial como pesquisador de que essa hierarquia comanda toda arepresentaçãosocialdocapitalismoocidental,sejanocentro,sejanaperiferiadocapitalismo,quemefez desconfiar da validade de nossa teoria dominante: o culturalismo racista e vira-lata. Afinal, essahierarquiaconstróitodaalegitimaçãodahierarquiasocialaquinoBrasil,noMéxicoenaArgentinadomesmomodoqueofaznaAlemanha,naSuéciaounosEUA.Nossasingularidadeéoutra.

O passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria acorrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passadointocadoatéhoje,precisamenteporseuesquecimento,éodoescravismo.Doescravismonósherdamosodesprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedademinimamente igualitária comoa europeia.Foi precisamenteporque aEuropanão teve escravidãoqueNorbertEliaspôdeconstruiroprocessocivilizatórioeuropeuapartirda rupturacomaescravidãodaantiguidade.

OprocessocivilizatórioparaEliaséprecisamenteumgigantescoprocessodehomogeneizaçãosocialque abrangeu todas as classes sociais dos principais países europeus, permitindo a construção depatamarmínimouniversalizadoparatodos.Elefoiresultado,portanto,deumprocessodeaprendizadocoletivodegrandesproporções.Houveumauniversalizaçãodospressupostospsicossociaisdaquiloquechamamosde “dignidadedoprodutorútil”,que pressupõe internalização de disciplina, autocontrole epensamentoprospectivo.

Nessecontexto,éissoqueexplicaquenãohá“subgente”nasgrandesdemocraciaseuropeias,jáqueas precondições do sucesso escolar e depois nomercado de trabalho competitivo para a esmagadoramaioriadaspessoasestãoalcançadas.NolinguajarfreudianodeElias,eleserefereàinternalizaçãodosuperego,representandoainstânciadoautocontrole–quepressupõedisciplinaepensamentoprospectivo

Page 88: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

–individualindependentedecoerçãoexterna.Éissoquepropiciaumaconduçãoracionaldavida,comfoconofuturo.Tudoqueassociamosànoçãodepersonalidadetemaquisuabasematerial.

Omesmoprocessodeaprendizadoesclareceporquelásedesenvolveuumasensibilidadeemrelaçãoaosofrimentoalheio, transformandomecanismospsicossociais,comoculpaeremorso,emgatilhoparaumasensibilidadepolíticaquepossibilitarepresentarnossujeitosadoreosofrimentodosmaisfrágeis.Comoesseprocessodehomogeneizaçãojamaisaconteceuentrenós,temos,aqui,aocontrário,ódioaosmaisfrágeis,eaculpabilizaçãodaprópriavítimapeloseuinfortúnioconstruídosocialmente.

Éaausênciadeprocessosdeaprendizadocoletivoedesuainstitucionalizaçãosocialepolíticaqueexplicanossaabissaldesigualdadeeindiferençaaosofrimento.Nãotemnadaavercomcorrupçãovira-lata herdada dos portugueses e estoques culturais imutáveis. São, afinal, processos de aprendizadocoletivo que garantem uma economia emocional/moral e cognitiva, em alguma medida, efetivamentecompartilhadae,portanto,umpatamarcomumparatodososindivíduosdetodasasclassessociais.

Emumcontextocomoesse,aleijurídicadaigualdadeformalnãofuncionaperfeitamente,maspossuiumaeficáciacomparativacomrelaçãoapaísescomooBrasilqueéinegável.Issonãosignifica,comosabemos depois de estudar as hierarquias opacas do capitalismo, que todos são iguais nos principaispaíseseuropeus.Obviamentenãoosão.Asupostavirtudedasensibilidadeseparaasclassessuperioresdas classes populares na Europa como em todo lugar. A noção de dignidade meritocrática tambémhierarquizaosdesempenhosnaesferadotrabalhodemodomuitovisível.

Masoquelánãoseteméadivisãoentre“gente”e“nãogente”típicadepaísesescravocratasquenuncacriticaramessaherança.Nonossocaso,criamos, inclusive,umaherança fantasiosa,comoseos350anosdeescravidãonãovalessemnadaeumacontinuidadefictíciacomPortugalhouvessedefinidoanação e explicado ao modo dos vira-latas a distância em relação aos EUA. O que precisa sercompreendidodeumavezpor todaséque ser “gente”, ser considerado“serhumano”,nãoéumdadonatural, mas, sim, uma construção social. Existem características básicas, como consensos sociaiscompartilhados, que precisam ser universalizadas para que a igualdade jurídica formal tenha algumaeficácia.

Sem a efetiva generalização de uma economia emocional que permita o aprendizado escolar e otrabalhoprodutivo,cria-seumaclassede“sub-humanos”paratodososefeitospráticos.Pode-sechacinaremassacrarpessoasdessaclassesemqueparcelasdaopiniãopúblicasequersecomovam.Aocontrário,celebra-se o ocorrido como higiene da sociedade. São pessoas que levam uma subvida em todas asesferas da vida, fato que é aceito como natural pela população. A subvida só é aceita porque essaspessoas são percebidas como subgente e subgente merece ter subvida. Simples assim, ainda que anaturalizaçãodessadesigualdademonstruosanodiaadianosceguequantoaisso.

O que singulariza nossa sociedade como um todo, a intuição inicial que guiou todos os meustrabalhos, é, portanto, a subclasse dos sub-humanos. A economia, a sociedade e a política vão sersingularesnonossocasodecorrente,antesdetudo,dessefato.Assim,paracompreendermosoqueexistede singular entre nós e que nos diferencia da França, Suécia ouAlemanha e atémesmo de Portugal,Espanha ou Itália, temos que acrescentar à hierarquia social compartilhada por todo o capitalismomodernonossahistóriasingularescravocrata.

Afinal,omoralismoseletivodenossasclassesdoprivilégiovemdaíefoicevadoparaconstruirasolidariedadeentreaelitedodinheiroeaclassemédiacontraqualquerpretensãodasclassespopulares.Éaquiqueentramostemasdopatrimonialismo,segundooqualasupostaelitequerapinaopaísestarianoEstadoenãonomercado,edopopulismo,tornandosuspeitaqualqueraçãopolíticapopularnoBrasil.

Page 89: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Éaaçãocombinadadessespilaresdahierarquiamoralista,estasim,genuinamentebrasileira,quepodeesclarecerosinstantesmaisdramáticosdenossahistóriasocialepolítica.

O“golpeachment”de2016permiteanalisarasingularidadedasituaçãosocialepolíticabrasileirademodocristalino.Nassituaçõeslimite,ospreconceitossociaisquenosguiamnavidapráticavêmàtonasem fingimento ou vergonha. Os interesses inconfessos dos atores e das classes sociais também sãoassumidosousemostramparaaanálisedemodoespecialmenteclaro.Aseguir,analisarei,apartirdopapelquedesempenharamno“golpeachment”,asquatroclassessociaisquecompõemoBrasilmoderno:aelitedodinheiro,aclassemédiaesuasfrações,aclassetrabalhadoraprecáriaeosexcluídosdaralédenovosescravos.

Comoessegolpefoireacionário,ouseja,umareaçãodecimaàpequenaascensãosocialdesetorespopulares, o decisivo é compreender a ação das classes do privilégio: a elite do dinheiro e a classemédia e suas frações. É isso que iremos fazer a seguir. As classes populares permaneceram, forainstantes episódicos importantes,81 passivas e algumas vezes, inclusive, açodando e participando domovimento.Ogolpede2016,comoaliás todososoutros, foigestadoepostoempráticapelaelitedodinheiro e cabe analisar e perceber seus motivos e compreender a ação de seu “partido político”específico:agrandeimprensa.

A grande imprensa é uma grande empresa que se disfarça, mentindo para seus leitores etelespectadores, e tira onda de serviço público.Como “partido político” é a instituição que conseguearregimentareconvencersuaclientela,coisaqueospartidoselitistascomooPSDBsóconseguemhojeem dia em bolsões regionais, o partido verdadeiramente nacional da elite endinheirada é a grandeimprensa.A“política”dogolpefoimidiaticamenteproduzidaeospartidossó tiveramqueratificarosconsensos sociais produzidosmidiaticamente. Por conta disso, chamar o golpe de “parlamentar” é seprenderàsaparênciaseesqueceroprincipal.

Iremos a seguir analisar os motivos inconfessos da elite do dinheiro para o golpe e a ação dasdiversasfraçõesdaclassemédiacomomassademanobradaselitesapartirdaarregimentaçãomidiática.Digoqueaclassemédiafoimassademanobradadoquenãohavia,excetoparaascapassuperioresdaclassemédiaassociadasaopactorentista,nenhummotivoracionalparaisso.Aclassemédianãoganhounadaesóvaiperdercomogolpe.Maselaagiucomosefosseaprotagonistadoprocesso.Esseéafinaloacordo elitista do Brasil desde Getúlio Vargas. O incrível é que ele foi ativado em um contextosocioeconômicopositivoeatéúniconahistóriabrasileira.Éissoqueprecisaseraprofundadoemelhorcompreendido.

Depoisanalisaremosas fraçõesdaclassemédiaparacompreendersuadiferenciação interna e suacomplexidade.Emseguida,examinaremosaformaqueamanipulaçãomidiáticasedeupossibilitandooengajamentoativodamaioriadaclassemédiaemumprocessorealizadocontraseusmelhoresinteresses.

Page 90: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Aelitedodinheiroeseusmotivos

O fundamental para compreender os reais interesses envolvidos no golpe de 2016 no Brasil éperceberanovarelaçãocomapolíticaeasociedadequeanovadominânciadocapitalfinanceirosobreas outras frações do capital implica no mundo inteiro. Entre os anos de 1945 e 1975, o mundodesenvolvido viveu suas três décadas de ouro, no sentido de menor concentração de renda, maiorigualdadeemtodasasesferasdavidaeumaumentosignificativodaescolaridadeedobem-estargeral.OBrasiltambémeracandidatoàmesmabonança,masogolpede1964,apoiadopelamesmaeliteepelamesmaimprensadehoje,abortouoprocesso.

Essa época de bonança tem a ver com o pacto socioeconômico quemarcou o pós-guerra. Paísesdestruídosousemidestruídospelaguerrasoboimperativodereconstruirsuaseconomiasnecessitavamda forçade trabalhode seuspaíses e atédo estrangeiro.O capital precisava dos trabalhadores comonunca antes e tiveram que entrar em compromisso. Dessa vez, também não podiam apelar para asdivisõesdostrabalhadoresquehaviampossibilitadoseudomínioirrestritoatéentão,comoasdivisõesentre trabalhadores brancos e negros nos EUAmostra tão bem. Divisão em muitos casos açodada ealimentadapelocapital.

Poroutrolado,a“ameaça”comunistatinhaagora,depoisdalibertaçãodegrandepartedocontinenteeuropeu pelas forças soviéticas, um componente real e palpável. O novo pacto social do pós-guerraenvolvia,portanto,pelaprimeiravezemgrandeescala,redistribuiçãoderendaeacessoaoconsumoebem-estarparaasgrandesmassasdapopulação.

Ochamadopactosocial-democrataenvolviaumainéditaparticipaçãopolíticadossindicatosedospartidosdaclassetrabalhadora,quemuitofrequentementedecidiamoresultadodaseleições.Osestadosnacionais desfrutavam do máximo poder que jamais tiveram e regulavam grande parte da atividadeeconômica. Pela primeira vez na história, a capacidade produtiva do capitalismo tinha sido posta aserviçodasociedadecomoumtodoenãoapenasparaoproveitodemeiadúziadecapitalistas.

Euprópriotive,enquantojovemestudanteemmeadosdadécadade1980fazendomeudoutoradonaAlemanha, uma experiência pessoal nesse tipo de regime social. Apesar de uma bolsa de estudospequena–equivalenteaoqueosprópriospaisalemãesdavama seus filhosparapoderemestudar emoutracidade–edepagarosegurodesaúdemaisbarato,aqualidadedevidaeraexcelente.Literalmentenãoseviampobresnasruas.Mesmoosfilhosdefamíliasproblemáticas,quemoravamnasestaçõesdetremdasgrandescidadescomseuscachorros,recebiamdinheirodogovernoparanãopassaremfome.

Eupodiaescolherqualquermédico independentedoprestígiocommeumódicoplanode saúde.OmédicodopresidentedaMercedes-Benzpoderiatersidomeumédicotambém,seeuassimodesejasse,pordeterminaçãolegal.Lembro-medoorgulhodosalemãesdenãoteremumasaúdediferenciadaparacadaclassesocial.Naminhaprimeira idaaooftalmologista,ganheiunsóculoseuma lentedecontatosemcustoadicional.Qualquerremédio,pormaiscaroquefosse,custavaaoconsumidoroequivalentea1 euro – ou R$ 3,50 – namoeda de hoje. O restante era subsidiado. Saúde e educação de primeiraqualidadeparaliteralmentetodasaspessoas.

Eissotudosemcomprometeraeficiênciaeodinamismodaeconomiacomoumtodo.Omantradenossoseconomistasconservadoresdesdesempre,dequeénecessárioachatarosaláriodostrabalhadoresparasetercrescimentoeconômico,mostravasuafalácia.AAlemanhaqueconhecicomojovemrefletia

Page 91: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

riquezaportodolado.Opaíspossuía,comoaindahojepossui,dequatroacincograndescorporaçõesdealtatecnologiaemtodososramosindustriaisdeimportância.QuasesemprecomcapitaldivididoentreoEstadoeocapitalprivado.Paramim,aquilotudoeracomoarealizaçãoconcretado“paraísocomunista”de Karl Marx: a cada um segundo a sua necessidade. Aprendi que o capitalismo regulado e não osocialismoestatizadoeraaformamaisperfeitadeorganizaçãosocial.

Mas esse arranjopassoua ser criticadoobstinadamente apartir dos anos1970e1980.A taxadelucro dos capitalistas era ligeiramente decrescente devido à ação dos sindicatos e dos partidos dostrabalhadoreseàpressãopolíticaporredistribuição.Nadamaisrazoáveldoqueretribuiràsociedadeumapartedoqueseapropriadotrabalhocoletivopelocapital.Oscapitalistasnãodeixavamdeterumpadrãodevidaexcelenteenãosabiamoquefazercomtantodinheiro.Masqueriammais.Sempremuitomais.Avelhaacumulaçãoinfinitadonarcisismoinfantilquelutaporumacontacommaiszerosdoqueosoutros. Um dinheiro que não se consegue sequer gastar e não tem mais nenhuma relação comnecessidades reais.Umaversãoadultadabrincadeira infantildemediropênisparaverquem tinhaomaiscomprido.

Empoucotempo,alutaporumataxadelucromaiorvaisetornaraobsessãodoscapitalistasemtodoomundo.AquedadomurodeBerlimretiradecenaaconcorrênciasocialista,oquefacilitaaimposiçãode novos discursos. A estratégia bem-sucedida equivaleu a uma revolução reacionária de impactomundial:revertertodososganhosdaclassetrabalhadoranosúltimosduzentosanos,sejanomercadoenavidaeconômica,sejanoEstadoenavidapolíticaesocial.

Noâmbitodomercadoedavidaeconômica,oinimigoprincipalaserabatidosãoossindicatos.NaAlemanha,sedáviolentoataqueaosalárioacertadoemnegociaçõescomgrandessindicatosapartirdaprodutividade de cada setor.NosEUA, o ataque é aindamaior.Os salários estacionam, nas décadasseguintes, aomesmonível de 1975, ainda que a produtividade tenhamais do que dobrado nomesmoperíodo.82 Os grandes aliados da guerra contra os sindicatos foram o desemprego tornado estruturalpossibilitando a “flexibilização” do regime trabalho, por um lado, e a massiva entrada do trabalhofeminino,quefoipercebidocomo“libertação”pormuitaslíderesfeministas.83

Com os sindicatos na defensiva, o desafio da reorganização do capitalismo, a partir dos anos de1980, passa a ter, na dimensão econômica, dois pilares interligados: transformar o processo deacumulaçãodecapital,demodoavoltaragarantirtaxasdelucrocrescentes;ejustificaresseprocessodemudança segundo a semântica do “expressivismo” e da liberdade individual, que havia fincadofundamentossólidosnoimagináriosocialapartirdosmovimentoscontraculturaisdosanosde1960emtodo o mundo. Como havia chamado atenção Boutanski e Chiapello, o capitalismo só sobrevive se“engolir”seuinimigo–nocasoacontraculturaexpressivista–etransformá-lonosseusprópriostermos,ouseja,nostermosdaacumulaçãoinfinitadecapital.

Todaasemânticadalutaexpressivistadirigidacontraumcapitalismofordistadotrabalhorepetitivoealienadorparaos trabalhadores seráutilizada segundoos interessesdo capitalismo financeiro e seunovodiscurso,queassociatrabalhosuperexploradoaempreendedorismo,liberdadeecriatividade.Essa“antropofagia”ésempreumdesafio–ouseja,éumriscoepodefalhar–erequerenormecoordenaçãodeinteressesemtodasasesferassociaisparavencerresistênciasecriarumimagináriosocialfavorável,ou,emoutrostermos,umaviolênciasimbólicabemconstruídaeaceitaportodoscomoautoevidente.Tãoautoevidentequantoaconstruçãodafaláciadopatrimonialismoedopopulismoentrenós.

Omaiordesafiodareestruturaçãodocapitalismofinanceiroeflexívelfoi,comonãopodiadeixardeser,umacompletaredefiniçãodasrelaçõesentreocapitaleotrabalho.Desdeoseuinício,ahistóriada

Page 92: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

industrializaçãonoOcidentehaviasidoaepopeiadeumalutadeclassescotidianaemtodasasfábricas,umcombatelatente–emuitasvezesdeclaradoemanifesto–entreadominaçãodocapitalpormeiodeseus mecanismos de controle e disciplina, por um lado, e a rebelião dos trabalhadores contra suaopressão,poroutro.

Mesmoemplenoperíodode“compromissodeclassesfordista”,faziapartedatradiçãodelutadostrabalhadores se perceber como um soldado de uma “guerra de guerrilha” contra toda tentativa decontrole e disciplina do trabalho julgada excessiva. A uma rotina de trabalho baseada na mediçãomilimétricadetemposdemovimentossecontrapunhatodaacriatividadedostrabalhadoresemconstruirnichos secretos de autonomia. Durante os duzentos anos de hegemonia do capitalismo industrial noOcidente–muitoespecialmenteduranteo“compromissodeclassesfordista”–,adominaçãodotrabalhopelocapitalsignificousemprecustoscrescentesdecontroleevigilânciadotrabalho.Nessesentido,nãoé demodo algum surpreendente que a nova forma fabril que estava destinada a substituir o fordismoviesse,sintomaticamente,deumpaísnãoocidental,semqualquertradiçãoimportantedelutadeclassesedemovimentoorganizadodostrabalhadoresnosentidoocidentaldotermo,84oJapão.

A grande vantagem do toyotismo japonês em relação ao fordismo ocidental era, precisamente, apossibilidadedeobterganhosincomparáveisdeprodutividadegraçasao“patriotismodefábrica”,quesubordinavaostrabalhadoresaosobjetivosdaempresa.Achamadaleanproduction(produçãoflexível)fundamentava-seprecisamentenanãonecessidadedepessoalhierárquicoparaocontroleedisciplinadotrabalho,permitindocortessubstanciaisdoscustosdeproduçãoepossibilitandocontarapenascomostrabalhadores diretamente produtivos. A secular luta de classes dentro da fábrica, que exigia gastoscrescentes com controle, vigilância e repressão do trabalho, aumentando os custos de produção ediminuindo a produtividade, deveria ser substituída pela completamobilização dos trabalhadores emfavordoengrandecimentoemaiorlucropossíveldaempresa.

Oqueestáemjogonocapitalismoflexívelétransformararebeldiaseculardaforçadetrabalhoemcompletaobediênciaou,maisainda,emativamobilização totaldoexércitode soldadosdocapital.Otoyotismopós-fordistapermitianãoapenascortargastoscomcontroleevigilância,mas,maisimportanteainda, ganhar corações e mentes dos próprios trabalhadores. A adaptação ocidental do toyotismoimplicoucortargastoscomcontroleevigilânciaemfavordeumaauto-organização“comunicativa”dostrabalhadores por meio de redes de fluxo interconectados e descentralizados. A nova semântica“expressiva” – o velho inimigo de 1968 agora “engolido” e redefinido “antropofagicamente” – serveparaqueostrabalhadorespercebamacapitulaçãocompletaemrelaçãoaos interessesdocapitalcomouma reapropriação do trabalho, sonhomáximodomovimento operário ocidental nos últimos duzentosanos,pelosprópriostrabalhadores.

Na verdade, as demandas impostas ao novo trabalhador ocidental – quais sejam: expressar a sipróprio e se comunicar – escondem o fato de que essa comunicação e expressão são completamentepredeterminadasnoconteúdoenaforma.Transformadoemsimpleseloentrecircuitosjáconstituídosdecodificação e de descodificação, cujo sentido total lhe escapa, o trabalhador “flexível” aceita acolonizaçãodetodasassuascapacidadescriativasemnomedeuma“comunicação”queserealizaemtodas as suas vicissitudes exteriores, excetuando-se sua característica principal de autonomia eespontaneidade.85

ComonotaAndréGorz,averdadeéqueacaricaturadotrabalhoexpressivodocapitalismoflexívelsó é possível porque não existe autonomia no mundo do trabalho se não existir também autonomiacultural, moral e política no ambiente social maior. Vimos anteriormente neste livro a ênfase de

Page 93: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Habermasnovínculoentreasesferasprivadaepública,umaretroalimentandoaoutra,paraquequalquerprocessodeaprendizadodurávelsejapossível.Éprecisosolaparasbasesdaaçãomilitante,dodebatelivreedaculturadadissidênciapararealizarsempeiasaditaduradocapitalsobreotrabalhovivo.Asnovasempresasda leanproduction noOcidente preferem contratarmão de obra jovem, sem passadosindical,comcláusulasexplícitasdequebradecontratoemcasodegreve:emsuma,onovotrabalhadordeveserdesenraizado,semidentidadedeclasseesemvínculosdepertencimentoàsociedademaior.Éesse trabalhadorquevaipodervernaempresao lugardeproduçãode identidade,deautoestimaedepertencimento.

O novo espírito do capitalismo que se consolidou a partir dos anos de 1990 revelou-se umacaricaturaperfeitadosonho iluministaeexpressivista.Osnovosgerentes,engenheiroseexecutivosseapropriaram nos seus próprios termos – ou seja, como sempre, os termos da acumulação infinita docapital–depalavrasdeordemcomocriatividade,espontaneidade,liberdade,independência,inovação,ousadia,buscadonovoetc.Oqueanteserautilizadocomocríticadocapitalismotornou-seafirmaçãodomesmo,possibilitandoacolonizaçãodanovasemânticaaserviçodaacumulaçãodocapital.Temosaquium perfeito exemplo da tese de Boltanski e Chiapello acerca das virtualidades antropofágicas docapitalismoemrelaçãoaseusinimigos.86

NoâmbitodoEstadoedapolítica,oataquetambéméfrontaleredefineaformacomoapolíticavaiserpercebidaeexercidaapartirdeentão.EstavanabasedocontratosocialdoEstadodebem-estaraideiadistributivistadequeumaestruturadeimpostosnaqualquemganhamaistambémpagamais,seriaabase financeira que possibilitaria uma sociedade afluente e igualitária. No âmbito do capitalismofordista,ondeafraçãomaisimportantedocapitaléaburguesiaindustrial,esseesquemaeraviável.

Com a dominância crescente do capitalismo financeiro, todo o esquema do Estado fiscal cai porterra. Os novos capitalistas financeiros passam a ter um poder de chantagear a política e o Estadocomparativamente muito maior. Em um átimo, um fundo de investimento pode retirar investimentosbilionáriosemumpaíseaplicá-losemoutro.Transferirumaplantaindustrialébemmaiscomplicado.Opoderdebarganhaaumentaatalpontoqueosricospodemsedaraoluxodequebraropactodemocráticodequequemganhamaistemtambémdepagarmaisimpostos.Crescentemente,osricospassamapagarmuitopoucooudeixamsimplesmentedepagar impostospormecanismoslegaise ilegaisdeevasãoderenda, agora facilitados pelos paraísos fiscais, especialmente criados para “lavar dinheiro” docapitalismo financeiro e satisfazer a novamáxima dos capitalistas vitoriosos: sonegadores fiscais detodoomundo:uni-vos!

ComoEstadoimpossibilitadodeforçaropagamentodetributodosmaisricos,emumcontextodeextraordinária concentração de renda nas mãos de poucos, passa a existir a necessidade de “pediremprestado”aquiloquenãosepodemaisexigir.ApassagemdoEstadofiscalparaoEstadodevedorémarcadaporessefatobasilar.OEstadoprecisasefinanciarcomoresultadodotrabalhocoletivo.Esseresultado,ariquezasocial,porsuavez,passaaestarconcentradano1%maisricoquenãopagamaisimposto,sejaporquecompraospolíticosparanãopassarleisnessesentido–casodaCPMFnoBrasil,porexemplo–,sejapelaevasãofiscalilegal.Nocasobrasileiro,estima-seaevasãofiscalemUS$520bilhões.“Corrupçãoreal”,estamuitomaiorquetodaacorrupçãoapenasda“política”,quenãoévistacomotalpelapopulaçãomidiaticamentemanipulada.NãonosesqueçamosdequeafarsadaLavaJatoserejubiladeterrecuperadoamerrecadeR$1bilhão!87

Como os ricos que ficam cada vez mais ricos deixam de pagar imposto por métodos “legais” eilegais, o Estado tem agora que pedir emprestado o que lhe era devido por direito. Como quem tem

Page 94: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

dinheirosãoosplutocratas,osbancoseosfundosde investimentodocapital financeiro,oEstado temque pedir emprestado a eles o que eles não pagammais em imposto. O Estado, em nome de toda asociedade, tem que pedir aos ricos o que eles pagavam em impostos devidos, agora sob a forma deempréstimo,epagar,aindaporcima,jurosque,nocasobrasileiro,sãoestratosféricos.

AtaxadejurosreaisnoBrasiléamaiordomundopararemunerarprecisamenteo1%maisricoque,nonossocaso,deixaliteralmentedepagarimposto.Oorçamentoestatal,agorapagopelaclassemédiaepelospobresemsuamaiorparte,deixadeserusadoemserviçosessenciaisparapagardevoltaaosricoso que eles deveriam ter pagado como todos os outros cidadãos. Os ricos não só não pagam o quedeveriam,comoficamaindamaisricosporquecobramumasobretaxa,queéamaiordomundonocasobrasileiro,pelodinheiroqueemprestamequedeveriamterpagadocomoimposto.

A situação seria cômica se não fosse tão trágica.Osmuito ricos passama ser credores de toda asociedade, e passam a exigir dela todo tipo de sacrifício, por meio de uma dívida pública criadaprecisamentepelofatodequequemdeveriapagarmaisimpostossimplesmentedeixadepagá-los.Issosem contar o fato de que ninguém no Brasil sabe de onde efetivamente essa dívida pública provém.Jamaisfoirealizadaumaauditorianadívidapública.Comotodoespecialistaqueestudaoassuntosabemuitobem,osegredodadívidapúblicasóserveparaencobrirtodotipodefalcatrua.88Amaiscomumtem a ver com a socialização das dívidas de plutocratas e poderosos que ficam com o lucro e apopulação,comoprejuízo.

Édessemodo,pelomecanismoabsurdodeumadívidaassumidapelasociedadecomoumtodoaumaclassede sonegadores,que seexplicaa capturadoEstadoedapolíticapelo capital financeiro.Todacrisefiscal,inclusiveabrasileira,é,portanto,umacrisedereceitaenãodedespesacomoaimprensavenalecomprada–devedoradosbancosquesãotambémosseusprincipaisanunciantes–alardeia.Alutainglóriapelosridículos0,38%daCPMFmostracomoaclasserentistanaturalizouessenovostatusquo.OpatodaFIESPno“golpeachment”de2016éumescárnio,postoquenãoéessaelitequepagaoorçamento.Quempagaopatosãoospobres,responsáveispor53%doorçamentobrasileiro.

Ocapitalismofinanceiropassaaserafraçãodominanteentreasfraçõesdocapital,postoque,agora,todasasfraçõesdosproprietários,comodoagronegócio,docomércioedaindústria,passamatersuafontedeganhoprincipalnosinvestimentosespeculativosdocapitalfinanceiro.Adívidapúblicafuncionacomo um gigantesco bombeamento de recursos da sociedade inteira para o bolso da classe dossonegadores. Esse 1% que tudo detém não é apenas dono das empresas, do agronegócio, dosapartamentosdascidades,dosbancosedosfundosdeinvestimento.EleagoraéodonodoorçamentodoEstado.

APEC55,quecongelatodasasdespesasporvinteanosparagarantiropagamentodadívidapúblicaàclassedossonegadores,comdinheiropagopelospobres,éomelhorexemplodequeogolpede2016foifeitoporessaclasseparaatenderseusinteressesmaisvenaiseindefensáveis.UsaracorrupçãodoEstadocomopretextoéoutroescárnio.Quercorrupçãomaiordoqueesseesquema?Qualadiferençadele em relaçãoaqualquer esquema criminoso? “Legal”, ou seja, produzido segundo as formalidadeslegaisdoprocessolegislativocomandadoporumparlamentocompradoporessaclasseparafazeroquefaz?

Éaquiqueentraagrandeimprensacomo“partido”docapitalfinanceiro.Paradesviaraatençãodapopulaçãoparaogigantescoprocessodeexpropriaçãodaqualelaévítimae criarbodes expiatórios.Como é possível todos os dias tamanha distorção sistemática da realidade? Ora, a espoliação dasociedade inteira pode ser facilmente deslocada para a corrupção dos tolos, a propina dos políticos

Page 95: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

desonestos.O temadopatrimonialismo,ou seja, da elite supostamente dentro doEstado comograndeproblemanacional,enãoaelitedodinheiroforadoEstadoequeousaparaseusfins,serveexatamenteparaisso.

O grande esquema de corrupção sistêmica que o capitalismo financeiro impõe, que implicasuperexplorareenganarasclassessociaisabaixodela,capturaroEstadoeapolíticaparaseusfins,einstaurar uma imprensa e uma esfera pública que implicam distorção sistemática da realidade, énaturalizadoepercebidocomodadoimutável.Umarealidadeemrelaçãoaqualsósepodeobedecer.Secorrupçãoé,antesdetudo,enganarooutro,perguntoaoleitor:qualéacorrupçãoverdadeiraequaléacorrupçãoparaostolos?

Mas tamanhamanipulação e logro da população não poderia existir se a própria classemédia, opúblico privilegiado da imprensa desde seus primórdios, já não tivesse, ela própria, propensão edisposiçãoparasermanipuladaeenganadaprecisamentedessemodoenãodenenhumoutro.Aimprensamanipulativanãocriaomundo.Elanãoétãopoderosa.Elamanipulapreconceitosjáexistentesdemodoaretirardelesamaiorvantagempossível,tantomaterialquantosimbólica,paraaelitedodinheiroqueasustentacomanúnciosefalcatruasdiversas.

Page 96: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Aclassemédiaesuasfrações

Qualaespecificidadedaclassemédia?Quaisosmodosmaisadequadosparalhesfalaràmenteeaocoração?Quaisseusmedosespecíficos?Quaisseusdesejosparticulares?Éapartirdessasquestõesquepodemos conhecer o comportamento de qualquer classe social, assim como de qualquer indivíduotambém. Saber a sua renda, a forma como o liberalismo (não) percebe as classes sociais não nosesclarecenenhumadessasquestões.

Omaisimportanteaquiépercebercomocadaclasselegitimasuavidaesuaaçãonomundo.Comoaclassemédiaéumaclasseintermediária,entreaelitedodinheiro,dequeméumaespéciede“capatazmoderno”,easclassespopularesaquemexplora,ela temqueseautolegitimar tantoparacimaquantoparabaixo.Umaestruturadejustificaçãodavidabifronte,comoodeusJunodamitologia.

Minhateseéqueelasejustificaparacimacomomoralismoeparabaixocomopopulismo.Nãoporacaso precisamente as duas ideias centrais que a elite do dinheiro e seus intelectuais orgânicosconstruíram para tornar a classe média cativa e manipulável simbolicamente pela elite. Nossosintelectuaisepensadoresdopatrimonialismoedopopulismolegaramàmídiaalinguagemeasemânticapara que elas possam se dirigir a seu público cativo, a classe média consumidora do capitalismoseletivo,fazendodecontaquedefendeseusinteresseseosinteressesdanação.

Aelitedodinheirosoubemuitobemaproveitarasnecessidadesdejustificaçãoedeautojustificaçãodos setores médios. Comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista feita comprecisãodealfaiateparaasnecessidadesdopúblicoquequeriaarregimentarecontrolar.Esse tipodecompranãosedáapenasnemprincipalmentecomdinheiro.Sãoosmecanismosdeconsagraçãodeumautoredeumaideiaseguindoaparentementetodasasregrasespecíficasdocampocientífico.

Nãobastaconstruirauniversidademaisimportanteedemaisprestígio,comoaelitepaulistanacriouaUSPeastesesdopatrimonialismoepopulismo.Énecessárioterosjornaistambémnasmãosdaeliteparareverberarasteoriasfalsamentecríticasparaopúblicoindefeso.Éprecisoteraseditorasdemaiornomeeinfluênciaeoacessoaosfinanciamentosdepesquisa,aosprêmios,honrariasemecanismosdeconsagração intelectual. Assim, é possível usar a posição de proprietária dos meios de produçãomaterial para se apropriar dosmeios simbólicosdeprodução e reproduçãoda sociedade.É aqui queentra o contexto que existe até hoje entre imprensa, universidade, editoras, premiações e honrarias ecapitaleconômico.Comoodinheironãopodeaparecercomprandodiretamenteosvaloresqueguiamasesferasda cultura, doconhecimentoeda informação, essas esferas precisam construirmecanismos deconsagraçãointernosaelacomosefosseminfensosàautoridadedodinheiroedopoder.

Seosricosselegitimampelobomgostosupostamenteinatoparaescondersuaorigemmonetária,elevamumavida“exclusiva”,apartadadorestantedasociedade,alegitimaçãodosprivilégiosdaclassemédiaédistinta.Comoseuprivilégioéinvisívelpelareproduçãodasocializaçãofamiliarqueescondeseutrabalhopréviodeformarvencedores,aclassemédiaéaclasseporexcelênciadameritocraciaedasuperioridademoral.Elesservemtantoparadistingui-laeparajustificarseusprivilégiosemrelaçãoaospobrescomotambémaosricos.

Os pobres são desprezados, enquanto os ricos são invejados pela classe média. Existe umaambiguidadenessesentimento,emrelaçãoaosricos,quevinculaadmiraçãoeressentimento.Asupostasuperioridademoraldaclassemédiadáasuaclientelatudoaquiloqueelamaisdeseja:osentimentode

Page 97: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

representarem omelhor da sociedade.Não só a classe que “merece” o que tem por esforço próprio,confortoqueafalsaideiadameritocraciapropicia;mas,também,aclassequetemalgoqueninguémtem,nemosricos,queéacertezadesuaperfeiçãomoral.

Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras classes. Em algumamedida,essediscursonostocaatodos.Masnaclassemédiaeleestáem“casa”.Comoaúnicacorrupçãoqueincomodaaclassemédiatradicionaléacorrupçãoreservadaaospoderosos,quecontrolamopoderpolíticoeeconômico,suaprópria impotênciasocialospreserva.Como,na imensamaioriadoscasos,nãopossuiosmeiosdeseenvolvernasgrandesnegociatasqueenvolvemmilhões,aclassemédianãotemsequer,naprática,odilemamoraldesedeixarounãocorromper.Comojustificaçãoelegitimaçãodaprópriavida,oesquemamoralistaé,portanto,perfeito.Emrelaçãoaospoderosos,aclassemédiapodeseversemprecomo“virgemimaculada”emoralmenteperfeita.

Deoutromodo,comoexplicar tamanhoestreitamentodanoçãodemoralidade,aqual faz comquedeixe de ter qualquer relevância, por exemplo, a forma como se relaciona com os mais frágeissocialmente?Comoalguémqueexploraasoutrasclassesabaixodelasobaformadesaláriovil,demodoapoupartemponastarefasdomésticas,equeapoiaamatançaindiscriminadadepobrespelapolícia,ouaté a chacina de presos indefesos, consegue ter a pachorra de se acreditar moralmente elevado?MoralidadenoOcidentesignifica,antesdetudo,respeitopelooutro,especialmenteooutrofragilizadoporsituaçõesemrelaçãoàsquaisnãopossuinenhumaculpa.Daíqueaindignaçãomoraltãoseletivadaclassemédiaentrenós,comacorrupçãodospoderosos,sejapoucomaisquelegitimaçãomesquinhadeumacondutacotidianaimoralsobqualqueraspectorelevante.

Osegundopontoda justificaçãodaclassemédiaparabaixo,emrelaçãoàsclassespopulares, é omaisinteressanteequeatransformadefinitivamentenamarioneteperfeitadaelitedodinheiro.Aclassemédiabrasileira possui umódio e umdesprezo cevados secularmente pelo povo.Essa é talvez nossamaiorherançaintocadadaescravidãonuncaverdadeiramentecompreendidaecriticadaentrenós.Paraquesepossaodiaropobreeohumilhado,tem-sequeconstruí-locomoculpadodesuaprópria(faltade)sorteeaindatorná-loperigosoeameaçador.

Sepossível,deve-sehumilhá-lo,enganá-lo,desumanizá-lo,maltratá-loematá-locotidianamente.Eraissoquesefaziacomoescravoeéexatamenteamesmacoisaquesefazcomaralédenovosescravoshoje em dia. Transformava-se o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema, como “coisa depreto”,edepoisseespantavaqueonegronãoenfrentasseotrabalhoprodutivocomamesmanaturalidadequeosimigrantesestrangeiros,paraquemotrabalhoerasímbolodedignidade.Dificultava-sedetodasasformasaformaçãodafamíliaescravaenosespantamoscomasfamíliasdesestruturadasdosnossosexcluídosdehoje,meracontinuidadedeumativismoperversoparadesumanizarosescravosdeontemedehoje.

Osescravosforamsistematicamenteenganados,compravamaalforrianasminaseeramescravizadosnovamente e vendidos para outras regiões, eram brutalizados, assassinados covardemente. A matançacontinuatambémagoracomosnovosescravosdetodasascores.OBrasil temmaisassassinatos–depobres–quequalqueroutropaísdomundo.São60milpobresassassinadosporanonoBrasil.Existeumaguerradeclasseshojedeclaradaeaberta.Construiu-setodaumapercepçãonegativadosescravosede seusdescendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos epreguiçosos, isso tudo sob formairônica,povoandoocotidianocomditosepiadaspreconceituosas,ehojemuitossecomprazememveraprofeciarealizada.

A concepção que um ser humano tem de simesmo não depende de sua vontade e é formada pela

Page 98: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

formacomooindivíduoépercebidopeloseumeiosocialmaior.Éissoquesignificadizerquesomosprodutos sociais.Nos tornamos, em grandemedida, aquilo que a sociedade vê em nós.OBrasil nãosimplesmente abandonou os escravos e seus descendentes à miséria. Os brasileiros das classessuperiorescevaramamisériaeaconstruíramativamente.Construiu-seumaclassedehumilhadosparaassim explorá-los por pouco e para construir uma distinçãomeritocrática covarde contra quem nuncateveigualdadedepontodepartida.Nãoseentendeamisériapermanenteeseculardosnossosexcluídossociaissemesseativismosocialepolíticocovardeeperversodenossasclasses“superiores”.

Em um contexto de democracia de massas, a dominação covarde precisava ser repaginada emodernizada. A teoria do populismo das massas serve a esse propósito. Qualquer tentativa, mesmotímida,comoaquetivemosrecentemente,demitigaressesofrimentoeessacondenaçãosecular,temqueserestigmatizadaecondenadanonascedouro.Seexiste algumapolítica a seu favor, sópode ser paramanipularseuvotosupostamenteinconsciente.Quandosedizqueademocraciaentrenóssemprefoiummal-entendido,comoafirmouSérgioBuarque,omotivonãoéopatrimonialismoqueeleinventou.Omal-entendido é que classes sem valor não devem nem podem ter qualquer participação na política.Umaclassequenãosabevotar,umaclassequenemdeveriaexistir.Essaéafunçãodanoçãodepopulismoentrenós:revestirdecarátercientíficoopioreomaiscovardedospreconceitos.

O moralismo estreito para inglês ver e o ódio secular às classes populares parece-me a maisbrasileiradetodasasnossassingularidadessociais.Comoospreconceitossãosociaisenãoindividuaiscomo somos inclinados a pensar, todas as classes superiores no Brasil partilham desse preconceito.Aindaque,maisumavez,eleestejaverdadeiramenteemcasanaclassemédia.Aindaqueaclassemédiasejamuitoheterogênea,todaela,semexceção,inclusiveoautorqueaquiescreve,éportadoraemmaioroumenorgraudessetipodepreconceito.Dealgumamaneira“nascemos”comeleeointrojetamoseoincorporamosdemodosejainconscienteepré-reflexivo,sejademodorefletidoeconscientecomoódioaberto.

Maisumavez,asideias,osvalores,ospreconceitossãotodossociaisenãoexistenadadeindividualneles.Mesmoquemcriticaospreconceitosos temdentrodesicomoqualqueroutrapessoa criadanomesmoambientesocial.Oquenosdiferenciaéavigilânciaemrelaçãoaeleseatentativadecriticá-losdemodorefletidoemalgunsenãoemoutros.Mas todosnóssomossuasvítimas.Afinal,elesnossãopassadosdesde tenra idadequandonão temosdefesas conscientes contra eles.E nos são transmitidosnormalmentenãocomodiscursoarticulado,oque facilitariasuacrítica,masporcoisas comoolhares,inflexão de voz, lapsos, expressões faciais, etc. Tudo isso por parte de pessoas que amamos e quetendemos a imitar.As crianças decodificam o que esses sinais procuram dizer e assumem para si ospreconceitos,naturalizando-oscomonaturalizamosoatoderespirar,ouofatodeoSolnascertodososdias.

Édessemodoquetodaaclassemédiadesenvolveumamisturademedoederaivaemrelaçãoaospobresemgeral.Comospobresqueaservemarelaçãopodese tornar,eventualmente,maisambígua,especialmentenas fraçõesmaiscríticasque tentamdesenvolvermecanismosdecompensaçãopara suaculpa de classe. Mas a regra é o sadismo mesmo nessas relações mais próximas de modo muitosemelhanteaotratamentodosescravosdomésticosnaescravidão.Acontinuidadeéóbvia.Comonuncacriticamosaescravidão,ecomosempre,inclusive,tentamostorná-lainvisívelcomoseelanuncativesseexistido, suas práticas continuadas com máscaras modernas também não são percebidas comocontinuidade.

Masseamaiorpartedaclassemédiaétendencialmenteconservadora,porsercriadanessetipodeambiente,elanãooédomesmomodoemtodosossegmentos.Maisainda.Opróprioredutodacrítica

Page 99: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

social mais acerba também é composto e representado pela classe média com capital cultural maiscrítico.

Em estudo que ainda estamos realizando, combinandomaterial empírico produzido no IPEA – empesquisa que idealizei e coordenei pessoalmente,89 quando presidente desta entidade de pesquisa,acrescidadeentrevistasquerealizeiporcontaprópriaemváriasgrandescidadesbrasileiras–,podemos,comohipótesedetrabalho,diferenciarquatronichosoufraçõesdeclassenaclassemédia.Asquestõescentrais que permitiram essa reconstrução foram precisamente a noção demoralidademais oumenosabrangenteemaisoumenosrefletida,eaformacomosepercebeasoutrasclassessociais.Essasduasquestõesouvariáveisnosdãoumaideiaprecisadaformacomoosindivíduosentrevistadospercebemasimesmoseaosoutros.Essassãoasquestõesquenosdãoacessoàmoralidadeespecíficadecadaume,portanto,aoquechamamosdevisãodemundopolítica.Avisãopolíticadecadaum,assimcomodasfraçõesdeclasseaquepertencemos,éprecisamenteresultadodaformacomopercebemosanósmesmoseaosoutros.

O fatordecisivoparaacompreensãodaheterogeneidadedasvisõespolíticasdaclassemédia é otipodecapitalculturaldiferencialqueéapropriadoseletivamentepelasrespectivasfrações,construídopelas socializações familiar e escolar distintas. Como vimos, as classes sociais são construídas pelasocializaçãofamiliareescolar.Éessacombinação,inclusive,queirádeterminarsuarendamaistarde.Sãoelas,portanto,queformamosindivíduosdiferencialmenteaparelhadosparaacompetiçãosocial.Aclassemédiaéaclasseporexcelênciadocapitalculturallegítimoevalorizado.Aqueletipodecapitalculturalquejuntaumcertoconhecimentoquecapacitaessaclasseàfunçãodecapatazmodernodaelitecomformasdesociabilidade,tambémaprendidasnafamíliaenaescola,quepossibilitamsuautilizaçãocomoprivilégioedistinção.

Acomplexidadeeheterogeneidadedaclassemédiaéqueajunçãodeconhecimentovalorizadocomhabilidades sociais específicas, além de certo capital econômico de partida, os três aspectos que asseparamdasclassespopulares,possuidistinçõesimportantesaindaquenomesmosegmentoprivilegiadodaclassemédia.Nenhumdessesaspectosquemencionamoséconscienteourefletidoparaaspessoas.Nósosutilizamosotempotodonavidacomomeiodeauferirsucessonodiaadia,semobrigatoriamentesabermosconscientementeoqueestamosfazendo.

Issotemavercomumapeculiaridadeimportantedocapitalculturalqueéofatodeeleseconfundircomaprópriapessoa.Ocapitalcultural,aocontráriodocapitaleconômico,precisaserincorporado,ouseja, tornado corpo, reflexo automático, para produzir os seus efeitos. Ele representa um conjunto depredisposiçõesparaaaçãoqueassimilamosnafamíliaenaescolaquenosdefinem,emgrandemedida,enquanto indivíduo. Geralmente, não temos distanciamento reflexivo em relação àquilo que o capitalculturalqueincorporamosfazdenós,domesmomodoquetambémnãotemosdistanciamentoreflexivoem relação àquilo que somos. Ao contrário, desenvolvemos um estilo de vida e um conjunto dejustificaçõesparaprotegerelegitimaraquiloquejásomos.

A atividade profissional que “escolhemos” já está, assim comoo nível de renda que se terámaistarde, emboamedida, prefigurada pelo tipo de capital cultural que incorporamos.Os tipos de classemédia que construímos refletem esse fato.Os quatro nichos ou frações de classe que reconstruímos apartir desse trabalho ainda em andamento se referem às frações que denominamos como,respectivamente, fração protofascista, fração liberal, fração expressivista, que costumo apelidar de“classemédiadeOslo”,eamenorfraçãodetodas,afraçãocrítica.

Em termos quantitativos, a fração liberal é amaior, com cerca de 35%do total, vindo a seguir a

Page 100: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

fraçãoprotofascista,comcercade30%.Os35%restantescompõemaquiloquepoderíamoschamardeclassemédiacommaisaltocapitalcultural,oucapitalculturalreflexivo.Nocontextodessasfraçõescommais alto capital cultural, composto por pessoas que, comparativamente, estudaram mais tempo,conhecem outras línguas, viajam e leem mais, consomem produtos culturais mais diferenciados e seinclinamaperceberaprópriavidaeavidasocialmaiscomoinvençãoculturalemenoscomonaturezajádada,existeumasubdivisãoimportante.

Cercade60%dessaclassemédiamaisinstruída,oucercade20%dototaldetodaaclassemédia,forma aquilo que podemos chamar de fração expressivista da classe média. Já vimos aqui que oOcidente,nasuahistória,lograinstitucionalizarduasfontesdetodaamoralidadepossível:anoçãodeprodutividadeparaobemcomum,aquiloqueconferedignidadeparaqualquerindivíduo;eanoçãodepersonalidadesensível,empartecriadacontraoprodutivismo,comoformadeseinventarnarrativamenteumnovotipodeserhumano.

Aideiaaqui,queganhaasmenteseoscoraçõesdetodosemgradaçõesdiversas,équeaquiloquedefine o que há de mais alto, ou seja, a virtude, nos seres humanos não é apenas sua capacidadeprodutiva, mas a possibilidade de ser fiel a seus sentimentos e emoções mais íntimos. Como essessentimentos e emoções são, por definição, reprimidos e silenciados para o bem da disciplina e dacapacidadeprodutiva,nóstemosqueaprenderaconhecê-loseexpressá-los.

Jávimostambémqueocapitalismoaprendeualidaratécomestaquefoiacríticamaisradicalasuaessência, tendoemvistaqueacrítica socialista tambémeraprodutivista.Foio capitalismo financeiroquedomouoconteúdorevolucionáriodoexpressivismoetransformouasbandeirasdacontraculturaemestímuloàprodução.Desdeentão,criatividadepassaasersoluçõeságeisparaosdilemascorporativosesensibilidadepassaaserahabilidadedegerirpessoas.

Mais importante ainda, pode-se agora ser expressivista sem qualquer crítica social que envolvaefetiva distribuição de riqueza e de poder.Expressivismo, tambémempaís demaioria pobre comoonosso, passa a ser a preservação das matas e o respeito às minorias identitárias e temas comosustentabilidadeeresponsabilidadesocialdeempresas.Ocharmedessaposiçãoéqueelatiraondadeemancipadora,comonalutapelosdireitosdasminoriasepelapreservaçãodanatureza.

Essestemassão,naverdade,realmentefundamentais.Oenganoresidenareversãodashierarquias.Emumpaísondetantoslevamumavidamiseráveleindignadestenome,asuperaçãodamisériadetantoséalutaprimeiraemaisimportante.Aslutaspelapreservaçãodanaturezaedasliberdadesdasminorias,importantescomoelassão,devemseracopladasaessefiocondutorqueimplicaasuperaçãodetodasasinjustiças. Não é assim que a fração expressivista percebe o mundo. As lutas pelas minorias e pelanaturezapreservadasãolevadasacabo,narealidade,emsubstituiçãoaumapautamaisabrangentequepermitirialigaressaslutasàlutageralcontratodotipodeopressãomaterialousimbólica.

Tudosedácomoseessepessoalbem-intencionadomorasseemOsloetivesseapenasrelaçõescomseusamigosdeCopenhagueeEstocolmo,acreditando,aofimeaocabo,quemoranaEscandináviaenãono Brasil. Para um sueco que efetivamente resolveu os problemas centrais de injustiça social edistribuiçãoderiquezas,nãoéestranhoquesedediqueàpreservaçãodeespéciesrarasefaçadessalutasuaatuaçãopolíticaprincipal.Queumbrasileiro faça omesmo e se esqueça da sorte de tantos sereshumanostãopertodeleéapenascompreensívelseeleostornainvisíveis.Porcontadisso,decidichamaressafraçãodaclassemédia,quetiraondademodernaeemancipadora,de“classemédiadeOslo”.ElaéfundamentalparaquepossamoscompreenderoBrasilmoderno.

OseleitoresdacandidataMarinaSilvasãoexemplosclássicosdessetipodeclassemédia.Comoa

Page 101: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

questãodadivisãoderiquezaepoder,oquerealmenteimportanasociedade,estáemsegundoplano,ocapitalismofinanceiroestámuitoàvontadenesseesquema.Explorarmulherouhomem,brancoounegro,heterossexualouhomossexual,nãoapresentaqualquerdiferençaparaocapital financeiro.Nãoà toaacandidata é apoiadapor bancos conhecidos.ARedeGlobo tambémnadade braçadanessemundodopseudocharme emancipador. Essa é a inteligência do novo capitalismo que usa a linguagem daemancipaçãoparamelhoroprimireexplorar.

Naoutrapontadesses40%daclassemédiademaiorcapitalculturalcomparativo, temos amenorfraçãoentretodas,queéafraçãoquedenominodecrítica.Elaperfaznosnossoscálculosapenas15%dototaldaclassemédia.Oquefazcomqueadenominedecríticanãoénenhumatomadadeposiçãopolíticaparticular, mas sim uma atitude em relação ao mundo singular. O mundo social é percebido comoconstruído, o que enseja também uma atitude mais ativa em relação a ele. Essa atitude básica secontrapõeàpercepçãodomundocomodado,comoumanaturezasoboutraforma,emrelaçãoàqualéprecisoseadaptar.Aformadeadaptaçãomaiscomumésesentirpertencendoacorrentesdominantesdeopinião.Apequena fraçãocrítica temquenavegaremmares turvos, jáque em luta constante contra acorrentedominante.Elamostraadificuldadedesechegaraformasdeliberdadepessoalesocialedeautonomia real no contexto de uma sociedade perversa e repressiva. Por conta disso, ela também éprenhedecontradiçõescomotodasasoutrasfrações.

Quantoàsfraçõesdominantes,responsáveispelaamplamaioriade2/3,aanálisedasentrevistasmelevouasepará-lasemprotofascistaeliberal.Essaéaclassemédiatradicionaldoconhecimentotécnico,ouseja,daqueletipodeconhecimentoqueservediretamenteàsnecessidadesdocapitalesuareproduçãoe demenor contribuição para uma transformação da própria personalidade. Esta inclusive, a própriapersonalidade,nãoévistacomoumprocessodedescobertaecriação.Odistanciamentoemrelaçãoasimesmoeodistanciamentoreflexivoemrelaçãoàsociedadeexigempressupostosimprováveis.Daíquesejamraros,mesmonaclassemédiaprivilegiada.

Paraquesepercebaavidacomoinvenção,énecessáriosaberconvivercomaincertezaeadúvida,duasdascoisasqueapersonalidadetradicionaleadaptativamaisodeia.Aconvivênciacomadúvidaéafetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. Omaior desafio aqui não é simplesmentecognitivo, mas de natureza emocional. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança dascertezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza ecorreção.Andarnacorrentedeopiniãodominantecomamaioriadasoutraspessoasconfereasensaçãodequeomundosocialcompartilhadoésuacasa.

Essas são as frações mais suscetíveis à imprensa e a seu papel de articular e homogeneizar umdiscurso dominante para além das idiossincrasias individuais. O que a grande empresa de imprensavendeaseupúblicocativoéessatranquilidadedascertezasfáceis,oquetornaomoralismocínicodaimprensa–quenuncatematizaseuprópriopapelnosesquemasdecorrupção–oarranjodemanipulaçãopolíticaperfeitoparaessesestratossociais.Éessecompartilhamentoafetivoeemocional,jáadvindodaforçadasocializaçãofamiliaranterior,quefazcomqueessaspessoasprocuremotipodecapitalculturalmaisafirmativodaordemsocial.Neleocapatazdaelite,queajudaareproduzirnarealidadecotidianatodososprivilégiosqueestãoganhando,estáemcasa.

Seessassãoasfraçõesdeclassemédiacujascabeçassãofeitaspelamídiatradicionaledominante,oprocessonãoéunilateral.Amídianãocriaparaelesuma interpretaçãodomundodonada.Trata-semuitomaisdeumadialéticadeinterdependência,emqueamídiaaprendeasecomunicarcomsuaclassedereferênciaeseusconsumidoresmaisleais,enquantoasfraçõestradicionaisrecebemdamídiaoqueprecisam:umdiscursohomogêneoetotalizadorquepermitaadefesadesuasopiniões,egeneralizadoe

Page 102: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

compartilhadoosuficienteparalhesdarascertezasdequetantoprecisam.Oconfortoaquiéaquelequelegitima a vida tradicional e afirmativa do mundo. A tranquilidade de se estar no caminho correto,correção esta que não é por definição uma descoberta pessoal e arriscada, mas sim aquela que sepercebecorretaporquesetemacompanhiadamaioria.

Essas são também as frações do moralismo, ou seja, daquela noção de moralidade tão poucoarriscadaeconstrutivistaquantosuaformadecogniçãodomundo.Oqueéjustoemoralnãoépercebidocomo algo que se construa paulatinamente, à custa de experiências cotidianas desafiadoras, em umprocessodeaprendizadodolorosopormeiodoqualsereconhece,nomelhordoscasos,nossopróprioenvolvimentoemtudoaquiloquecriticamosdabocaparafora.Essetipodeaprendizadomoralqueexigeo incondicional reconhecimento de que omal nos habita a todos, e que só nos livramos dele apenasparcialmenteeaindaassimsobocustodeumavigilânciaeterna.

Omoralismoémuitodiferente.Elepulatodasasetapasarriscadaseincertaseabraçasóoprodutofácilevendidoabaixocustopelamídiaepelaindústriaculturalconstruídaparasatisfazeressetipodeconsumidor:aboaconsciênciadascertezascompartilhadas.Énesse terrenoqueo liberalseafastadoprotofascista.Paraoliberal,osrituaisdaconvivênciademocráticasãoconstitutivos,aindaquepossaserconvencidodasnecessidadesdeexceçõesnocontextodemocrático.Eleéotipodeclassemédiaquesesenteenganado,hojeemdia,pelapropagandadogolpevendidocomocombatecontraacorrupção.Asexceçõesdaordemdemocráticanãose reverteramemmaisdemocraciacomoele,nonível conscientepelomenos,legitimavaseuapoioaogolpe.

Oprotofascista,que,naverdade,seespraiadaclassemédiaparasetoressignificativosdasclassespopulares,ébemdiferente.Ogolpelhetrouxeomundoondepodeexpressar legitimamenteseuódioeseu ressentimento.Oódio às classes populares é aqui aberto e dito com orgulho, como expressão deousadiaousinceridade.Oprotofascistaseorgulhadenãoserfalsocomoosoutrosepoderdizeroquelhe vem à mente. O mal e o bem estão claramente definidos e o bem se confunde com a própriapersonalidade.

Maisainda.Comonuncaaprendeuasecriticar,oprotofascistatemumasensibilidadeàflordapeleequalquercríticaacionaumareaçãopotencialmenteviolenta.Assim,qualquercríticaépercebidacomonegação da personalidade como um todo, pela ausência de qualquer distanciamento em relação a simesmo,gerandoumaviolênciatambémtotalizadora.Essabanalidadedomalnãoexistiaantesentrenós.Elafoicriaçãomidiática,aindaqueninguémnaRedeGloboounasoutrasmídias,agora,queiraassumiraresponsabilidadepeloquefez.

Page 103: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

A

ACORRUPÇÃOREALEACORRUPÇÃODOSTOLOS

Acorrupçãorealeacorrupçãodostolos:umareflexãosobreopatrimonialismo

classemédia,malgradosuaheterogeneidade,édominadaporideiassemelhantes,oquedificultaenormementeaconstruçãodeumaconcepçãoalternativaecríticadenossa sociedade.Foi issoque fez comque, quando aRedeGlobo e a grandemídia conservadora chamaram seu público

cativo–afraçãoprotofascistadaclassemédia–àsruasentre2013e2016, fraçõessignificativasdasoutrasfraçõestambémreagissemaoapelo.Todaamanipulaçãopolíticadessessetoresémarcadapeloprestígiodanoçãodepatrimonialismoeporconsequênciadacorrupçãoapenasdapolíticaenuncadomercado.AnãoserqueoempresáriotenhacometidoocrimecapitaldeterseassociadoaogovernodoPT.Paraestesnãoháperdão.Devemficar,inclusive,comoexemplosparaofuturo.Mastodososoutrosnãoapenasestãosoltos,comotambém,comoJoesleyBatista,culpamapolíticacomosetivessemsidoforçados por estes e não o contrário.Como é possível tamanha desfaçatez na inversão da captura dapolíticapelomercado?

Isso se deve, a meu ver, à carga de prestígio associada à noção de patrimonialismo como apseudoexplicação mais importante para tudo o que acontece na sociedade brasileira. A noção depopulismo, também muito importante para legitimar o ódio e o desprezo aos pobres, é uma noçãoauxiliar.Aideiadepatrimonialismoéaindamaisfundamental, jáqueeivadadeprestígioacadêmicoerepetidapor todosos intelectuaisorgânicosdessas frações.Agrande imprensa,depois, envenena seusleitoresdistribuindoadistorçãosistemáticadarealidadequeessa leitura implica,porassimdizer,empílulas todososdias.Porcontadisso, iremosnestecapítuloexaminarmaisdepertoessanoção sobopontodevistadesua(in)capacidadeexplicativa.Comoessecapítuloéinevitavelmenteumdebatemaisteórico,oleitormenosinteressadonessasquestõespodepulá-loepassardiretamenteaocapítulomaispolíticodaconclusão.Nocapítulodaconclusão,iremosvermaisdepertocomooconluioentreagrandemídia e aLava Jato, legitimando sua ação com a noção de patrimonialismo, preparou o terreno paranossaelitedoatraso,maisumavez,praticarseusaqueesuarapinaàscustasdetodaapopulação.

Comopesquisador,achoimportantesecomprovarempiricamenteoquesediz.Porcontadissovourealizar um experimento empírico que possa comprovar, para qualquer um, a influência avassaladoradessaideia-força,falsaesuperficialcomoelaé,nanossasociedade.Reunireiaquiasideiasdefiguraspúblicas dedestaquenavidabrasileira que expressamoquadroheterogêneoquemontamosda classemédia,ouseja,aclassequeéresponsávelpelareproduçãodasociedade,assumindotantoasfunçõesdecontroleesupervisãomaterialquantoas funçõesde justificaçãoe legitimaçãodaordemsocial.E issotanto no mercado quanto no Estado. Veremos como a ideia-força do patrimonialismo efetivamente

Page 104: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

conseguiu dominar todas as frações da classemédia e se tornar o principal obstáculo para qualquerpercepçãoefetivamentenovaecríticadasociedadebrasileira.

Assim,tomeicomoexemplosrecentesintervençõespúblicasdetrêsfigurasquesãoreferênciaparatodasasfraçõesdaclassemédiaqueanalisamosatéagora:oprocuradorDeltanDallagnol,ointelectualdaLavaJato,comoexpoentedafraçãoprotofascistadaclassemédia;oministroLuisRobertoBarroso,doSTF,comorepresentantedasfraçõesdocentro,aliberaleaclassemédiadeOslo;e,finalmente,oex-prefeitoFernandoHaddad,comorepresentantedafraçãocrítica,maisàesquerda.Oqueexistedecomumemtodoseleséofatodepensaremasociedadebrasileirasobaégidedanoçãodepatrimonialismo.

Essefatomostraaforçaespantosadessaideiaquesenaturalizouentrenósdetalformaquepessoastãodiferentes,cominteressesatéopostos,expressamsuavisãodemundocomumamesmaideia.Comovimos,aeliteeconômicaque logrouconsolidarumavisãodemundohegemônicaemseubenefício fezcomquemesmoacríticasocialsejafeitasegundoseuspróprios termos,enfraquecendo,obviamente,oalcance e a radicalidade de qualquer crítica. A ausência de perspectivas efetivamente críticas quevivemosadvémdessefatomaisquedequalqueroutro.

EntreostrêsexemplosquemestámaisemcasanotemadopatrimonialismoéointelectualdaLavaJato,oprocuradorDeltanDallagnol.Afraçãoqueeleexpressa,afraçãoprotofascistadaclassemédia,quelogrounosúltimosanossairdoarmárioeseassumirenquantotal,gritandoemaltoebomsomseuspreconceitoseseusódiosantesescondidos,temnacorrupçãoseletivadosupostoEstadopatrimonialsualegitimação mais importante. Retirei o texto que exponho a seguir de Dallagnol de sua página doFacebook. Um texto entre literalmente centenas com exatamente o mesmo conteúdo. Percebemos,facilmente,porquenãoa reflexão,massimarepetiçãodeumasupostacertezafazpartedonúcleodejustificaçãodessafraçãodeclasse.

Postde8dejaneirode2016,umentretantoscommesmoconteúdo.

No post de 25 de dezembro (que encontra aqui:https://www.facebook.com/deltan.dallagnol/posts/994207707289605), vimos que a ausência deorganizaçãodasociedadeedaformaçãodeumaidentidadenacionalpermitiuumEstadocontroladopor elites corruptas, os “donos do poder”, num ambiente favorável a práticas como clientelismo,coronelismo,nepotismo.Alémdisso,oestamentoaristocrático,naclássicaavaliaçãodeRaymundoFaoro,desenvolveu-seem um “estamento burocrático”, formado por autoridades públicas que são espécies de “seressuperiores”quenão se subordinamà lei: fazemoquequeremenão sãopunidos.A autoridade étransferidadoscargosaosseusocupantes,comoseopoderirradiassedapessoaesemlimites,emvezdeirradiardesuafunçãoedentrodoslimitesdeseuexercício–oqueexplicariaacomum,masinfeliz,pergunta:“vocêsabecomquemvocêestá falando?”.Some-se,dentrodessecontexto,que,analisando as características do brasileiro, o célebre Sérgio Buarque de Holanda, em seuconsagradoRaízesdoBrasil,definiu-oo“homemcordial”.Otecidosocialteriaporbaserelaçõesdeafetividade,paixãoousentimento,criandoo“jeitinhobrasileiro”.

A concepção vira-lata do brasileiro que estamos criticando mostra-se aqui à luz do Sol. SérgioBuarque e Raymundo Faoro como legitimação perfeita do protofascismo brasileiro. O brasileiro émalformado de nascença por uma herança cultural pensada como estoque domesmomodo e com osmesmosobjetivosqueoracismodacordapeleantescumpria.Amanipulaçãomidiáticadaconjuntura

Page 105: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

políticaconcretafazcomqueessafraçãosejaatropadechoqueperfeitadaeliteeconômica,aqualsepodedaraoluxodesemanteràsombrasemprecisarseenvolvernasdisputaspolíticasderua.

Os “camisas amarelas”, tão explorados como todas as outras classes e setores sociais por essamesmaelite,dispõem-seadefenderseus interesseseconômicosdevidamente travestidosemprincípiosmoraisprecisamenteparadirigiroódiodessaclasseaqualquerliderançapopular.AoperaçãoLavaJatofoidesdeseucomeçoumacaçaaospetistaseaseu lídermaior,comoformadegarantireasseguraramesmadistânciasocialemrelaçãoaospobresquenãoos torne tãoameaçadorescomoeleshaviamsetornadocomLula.Omaiorperigorepresentadopelospobresfoiquandoelescomeçaramapoderentrarparaauniversidadepública,redutodosprivilégiosdaclassemédia,poisduranteaadministraçãodoPTaumentoude3para8milhõesonúmerodematriculados.

Senãofosseessaarazão,oquefariaos“camisasamarelas”–versãonacionaldos“camisanegra”deMussolini–ficarememcasaquietinhos,agora,emmeadosde2017,quandoacorrupçãorealmostrasuapior face?Se fosseacorrupçãooque indignasseessepovo,opanelaçodeveria serensurdecedoragora,nãoconcorda, leitor?Ondeestãoos“camisasamarelas”?ÉaseletividadedacorrupçãonãosóapenasnoEstado,masapenasdospartidosdeesquerda,quequeremdiminuiradistânciaentreasclassessociais,oqueverdadeiramentemoveecomovenossos“camisasamarelas”.DeltanDallagnolésuamaisperfeitaexpressão:lídertosco,primitivo,cheiodecertezaseverdadesseletivas.

Mas o patrimonialismo, como leitura social dominante dos brasileiros acerca de si mesmo, nãocomoveapenasosprotofascistas.Os liberaiseos“classemédiadeOslo” tambémsãodominadosporessa leitura. O ministro Luis Roberto Barroso é um perfeito exemplo dessa fração. Para umacomunicaçãonodia8deabrilde2017,emumauniversidadeamericana,oministrodoSTFpreparaumafala que condensa sua imagem do Brasil moderno. O título da fala é sugestivo: “Ética e jeitinhobrasileiro: por que a gente é assim?”. Retirei os seguintes parágrafos, os quais são os pilares daargumentaçãodoministroBarroso:

O patrimonialismo remete à nossa tradição ibérica, ao modo como se estabeleciam as relaçõespolíticas, econômicas e sociais entre o Imperador e a sociedade portuguesa, em geral, e com oscolonizadoresdoBrasil,emparticular.NãohaviaseparaçãoentreaFazendadoreieaFazendadoreino, entrebensparticularesebensdoEstado.Osdeverespúblicose asobrigaçõesprivadas sesobrepunham.Oreitinhaparticipaçãodiretaepessoalnostributosenosfrutosobtidosnacolônia.Vemdesdeaíadifícilseparaçãoentreesferapúblicaeprivada,queéamarcadaformaçãonacional.O cor ou cordis vem de coração e revela o primado da emoção e do sentimento nas relaçõesinterpessoais, acima dos formalismos e do verniz superficial da polidez. A cordialidade, nestaacepção,reconduzàversãopositivadojeitinho,manifestadonapessoalizaçãodasrelaçõessociaispelaafetuosidade,informalidadeebomhumor.Masestaé,também,araizdasdisfunçõesapontadasacima,quesematerializamnaindisciplina,nodesapreçoaosritosessenciais,noindividualismoquesesobrepõeàesferapública.

Comomostrei,exaustivamente,nodecorrerdeste livro,patrimonialismoepersonalismo,assaltoaoEstadoeo“jeitinhobrasileiro”do“homemcordial”estãoumbilicalmenteligados,eumnãoexistesemooutro. Os dois parágrafos do ministro não me deixam mentir. Um explica o Brasil na dimensãoinstitucionaleooutronadimensãosubjetivaeinterpessoal.Obviamente,demodomuitoconveniente,ainstância do mercado é tornada invisível e só resta o Estado como amálgama institucional eprolongamento do jeitinho supostamente brasileiro do homem cordial. É a críticamais desprovida de

Page 106: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

consequênciaspráticasquesepodefazere,aomesmotempo,aqueaparentamaiorradicalidade.Investe-secontraumaeliteabstrataquepodesertodoseninguém,inclusiveopróprioministro,mantendo-seaconsciênciatranquilaeganhandoaboavontadedequalquerplateia.

Issodeve-seaofatodequeoquedistingueessafraçãodosprotofascistasésuamaiorligaçãocomosvalores da “civilização europeia”, em termos de abertura aos princípios democráticos abstratos. Oministrochegaafalaremdesigualdadecomoumelementofundamentaldenossasociabilidade,algo,porexemplo,completamenteausentedodiscurso tacanhamentemoralistaemoralizadordeDallagnoledosprotofascistas.Noentanto,comonodiscursofalsamenteemancipadordaRedeGlobo,ouadesigualdadeépensadanachaveidentitária–quenãocontemplaadivisãoderiquezas–dasminoriasouaquestãocentralda redistribuiçãode rendase riquezasassume importânciamarginale semconsequências reaisparaaanálise.

Aindaassim,aocontráriodosprotofascistasqueencontraramagoraoqueprocuraramavidainteira,umdiscursodeódioparachamardeseu,midiaticamenterepetidotodososdiasparafornecerailusãodesegurança e certeza compartilhada, os liberais e os integrantes da “classe média de Oslo” estão emposiçãodiferente.Elessãoboapartedosincomodadoscomasituaçãoatual,osquesesentemenganadospelaondade soberaniavirtual criadapelamídia compradapela elite financeira.Afinal, omundo quereceberam em troca por seu apoio ao golpe foi muito pior que o anterior. Estão atarantados,bestializados, sem discurso alternativo, sem compreensão do quadro como um todo, e, pior, semcomprometimentoafetivocomumamudançapolíticaefetiva.

Mas, infelizmente, essa leitura conservadora da sociedade brasileira não é privilégio das fraçõesconservadorase liberaisdaclassemédia.Elaatinge tambémafraçãocríticadessamesmaclasse.Atémesmoumrefinadoesofisticadointelectualcomooex-prefeitodeSãoPaulo,FernandoHaddad,defendeposiçõesmuitopróximasdoministroBarrosoedoprocuradorDallagnol.EmartigonarevistaPiauídomês de junho de 2017, denominado de “Vivi na pele o que aprendi nos livros: um encontro com opatrimonialismobrasileiro”,Haddadrefletesobresuatrajetóriautilizando-sedosmesmosconceitoseosmesmosautores,levando,nãoporacaso,avisõesmuitopróximas.Senãovejamos:

Opatrimonialismoé,antesdemaisnada,umaantítesedarepública.Odespotismoéoutraantítesedarepública.Entrenós,brasileiros,nenhumaobradopensamentosocialepolíticodescrevemelhoropatrimonialismo,hojecomsuasentranhasexpostasnonoticiáriodopaís,doqueOsdonosdopoder,de Raymundo Faoro. O texto, publicado em 1958, deveria ser relido, cum grano salis, comoveremos.“Napeculiaridadehistóricabrasileira”,escreveFaoro,“acamadadirigenteatuaemnomepróprio,servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Não hásutilezaaqui:eleafirmaqueoEstadonoBrasiléobjetodeposse, tomadopela camadadirigentecomoseu.Eprossegue:acomunidadepolíticacomandaesupervisionatodososnegóciosrelevantes,“concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulaçõesfinanceiras,monopolistas,deconcessãopúblicadeatividade,decontroledecrédito,deconsumo,de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material daeconomia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios comonegócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois em linhas que se demarcamgradualmente.”A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo tipo de domínio, Faoro chama depatrimonialismo.Enotaque,aocontráriodomundofeudal,queé“fechadoporessência,nãoresiste

Page 107: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

ao impacto com o capitalismo, quebrando-se internamente”, o patrimonialismo se amolda “àstransições,àsmudanças,emcaráterflexivelmenteestabilizadordomundoexterno”.Ouseja,Faorojápercebiaqueopatrimonialismobrasileiro–quesegundosuateseremontaàdinastiaportuguesadeAvis(1385–1580)duranteaexpansãocomerciallusitanaparaaÁfrica,ÍndiaeBrasil–adaptou-seà chegadadocapitalismo.Ou seja, eleo concebia comoummodelo arcaicoque sobreviveuàmodernização.EmumartigopublicadonarevistaReportagememjaneirode2003,logoapósaprimeiraeleiçãodeLula, eualertavaqueoPTaindanãohavia feitoodiagnósticoadequadosobreanaturezadoquechameide“patrimonialismomoderno”.Argumenteique,dadaanaturezapatrimonialistadoEstadobrasileiro,“amerachegadaaopoderdeumpartidodeesquerda,porsisó,aindaqueprometesserespeitartodososdireitosconstituídoseoscontratos celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório”. E, portanto,passíveldefortereaçãocontrária.Masqueonódaquestãoera,comoopróprioFaoroapontavaemsua obra, a possibilidade histórica de um patrimonialismo social-democrata, que empreendesse“umapolíticadebem-estarparaasseguraraadesãodasmassas”.

Aindaqueotextodenoteacapacidadedoautordereflexãopessoaledeapropriaçãoautônomadeconceitos, o que inexiste nos exemplos anteriores, temos um exemplo perfeito de como uma leituranaturalizadaenãorefletidanosseuspressupostosessenciaispodecomprometeracapacidadedeanáliseatémesmo dasmentesmais brilhantes. Falar de “patrimonialismomoderno”, como fazHaddad, é umcontrassenso conceitual. Por boas razões, como veremos a seguir, para Max Weber, o inventor doconceitoedequemseretirao“prestígiocientífico”paratornaraideia“respeitável”,opatrimonialismoéinseparáveldeprecondiçõesquesãopré-modernas.

Seexistemfenômenosmodernosqueparecemsemelhantesàquelesaqueadominaçãopatrimonialsereferia,entãovaleapenanãosóumoutro termo,paraevitarasconfusõesquenadaajudamaciência,mas,muitomais importante, se requeroutraanáliseeoutrospressupostos.Muitasvezes,oquepareceigualnãooéefetivamenteemreflexãomaiscuidadosa.Depois, aindasecorreo riscode sepensaraapropriaçãoprivadadapolíticanostermossubjetivadosepessoalizadosqueatesedopatrimonialismonasceu para implementar e legitimar. Com isso, esconde-se ainda mais a relação já obscura entreeconomiaepolítica.

Como os exemplos mostram, da direita à esquerda, a sociedade brasileira é colonizada por umamesma interpretação. Como não se tem prática social alternativa sem uma compreensão da realidadetambémalternativa,aquestãoédevidaemorteparaacrisebrasileira.Ouaatravessamossemnenhumaprendizadoreal,queéaameaçamais real,ourepensamosnossaherançaenossasociedadedemodoradicalmentenovo.Porcontadisso,équepretendocontribuir,naspróximaspáginas,paraesseprocessodeaprendizado,desconstruindooconceitodepatrimonialismoedesvelandoasrazõesmaisprofundasdesuainfluênciaubíquaparaquenossasvelhasquestõespossamserpercebidasdemodonovo.

Oconceitodepatrimonialismoéanoçãoexplicativamaisimportante–importantecomoumjuízodefato e não de valor – para a compreensão do Brasil moderno. E isso acontece tanto na dimensãointelectualdosespecialistasquantonadimensãodosensocomumcompartilhadopelaspessoascomunseleigasnaanálisedarealidadesocial.Asuatrajetóriadesucessoésemigualelograserdominantetantona direita quanto na esquerda do espectro político. Paramim, esse sucesso tão acachapante reflete avitóriadoliberalismoconservadorentrenós,levandoàcolonização,inclusive,dopensamentocríticoede“esquerda”noBrasil.

Page 108: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Sérgio Buarque é o pai do liberalismo conservador brasileiro ao construir as duas noções maisimportantes para a autocompreensão da sociedade brasileiramoderna: a noção de homemcordial e anoçãodepatrimonialismo.Ohomemcordialéaconcepçãodobrasileirocomovira-lata,ouseja,comoconjunto de negatividades: emotivo, primitivo, personalista e, portanto, essencialmente desonesto ecorrupto. O homem cordial deve ser tornado pelo mercado e pela industrialização um homem tãodemocrático,produtivo,puroehonestocomoosamericanos,oexemplodehomem-divinoparaSérgioBuarque e para a esmagadora maioria dos brasileiros, intelectuais ou não. O desmascaramento dofabulosoesquemadecorrupçãoplanetáriodocapitalismofinanceiroamericanoapartirdacrisede2008nãopareceterenfraquecidoasbasesdoviralatismonacional.

Já o patrimonialismo é uma espécie de amálgama institucional do homem cordial, desenvolvendotodas as suas virtualidades negativas dessa vez no Estado. Por alguma razão, Sérgio Buarque nãoconstrói o mercado como marcado pela mesma viralatice. Aliás, o mercado sequer existe comoconfiguração de interesses organizados, sendo a única instância institucionalizada e organizada,percebida pelo autor e apartada dos indivíduos, o próprio Estado. Além dele só existem indivíduosprivados,semqueumalógicadapropriedadeprivadaesuatendênciaàacumulaçãoampliada,levandoaoligopólios emonopólios, seja sequermencionada.A lógica de funcionamento domercado é tornadainvisíveleanoçãodeelitedominante,portanto,restringe-seàesferaestatal.

Apartir da obra deSérgioBuarque, temos a possibilidade de articular demodo convincente umaconcepção de mundo liberal conservadora, como a interpretação dominante de toda a sociedadebrasileiraacercadesimesma.Comoessavisãocontemplaumacríticadaelitesupostamenteincrustadaapenas no Estado, a visão de Sérgio Buarque passa a ter toda a aparência de uma visão crítica dasociedadebrasileiracomoumtodo.IssoaconteceaindaqueseuhomemcordialsuponhaexistirnoBrasilumtiposocialgenéricoecompartilhado,malgradotodasasnossasmarcadasdistânciassociaisentreasclasses.Comoaideialiberaldosujeitogenérico–anoçãodeumindivíduosempassado,semfamíliaesem classe social – esconde a origem social de todos os privilégios individuais, negar todas asdistinçõessociaiseaindapassar-sedecríticonãoéparaqualquerum.MasacriaçãodeSérgioBuarquejá comemora quase cem anos de domínio indisputado, enquanto interpretação dominante do Brasilmoderno.

A prova da enorme influência dessa ideia, tanto na vida intelectual quanto concreta e prática dasociedadebrasileira,podeservistaecomprovadanaobradosmaisrespeitadoseinfluentespensadoresbrasileiros a partir de então. Como as ideias influentes de uma sociedade não ficam nos livros,masganhamassalasdeauladasescolaseuniversidades,inspiramprogramasdegoverno,dãoomoteparaosartigos dos jornais, estimulam o que é dito nasTVs e o que é discutido em todas as conversas entreamigos nos botequins país afora, então estamos lidando com a forma como toda uma sociedade sepercebe e age emconformidade a isso. Issonão épouco.Afinal, todadecisãoprática e concreta, emqualqueráreadavida,émotivadaporumaideiaaindaquenormalmenteestasemantenhaimplícitaenãoarticulada.

AsacadagenialdeSérgioBuarquedeconstruirumavisãodemundo liberalconservadora– postoqueescondeasverdadeirasrazõesdadesigualdadeedainjustiçasocial–comaaparênciaeocharmedeuma suposta crítica social é a ideia-força mais importante para a compreensão da manutenção dadesigualdadeedainjustiçasocialnoBrasil.Afinal,a injustiçaflagrantedosprivilégiosquese tornampermanentestemqueser–nocontextodeumasociedadequedizteracabadocomtodososprivilégiosdenascimento–legitimadaparaquepossasereproduzir.

Essa legitimação temdeesconderomundosocial injustocomoeleée também,sepossível,ainda

Page 109: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

deslocar a atençãopara aspectos falsamente importantes – ou, pelomenos, de importância secundáriacomrelaçãoàsquestõesmaisimportantes–,demodoaperceberomundosocialescondendooessencialeenfatizandoosecundário.Aformamaisimportantedecomooessencialéreprimidoemnomedaênfaseno acessório na sociedade brasileira é por meio da repressão dos conflitos de classe em favor dodeslocamento da questão da corrupção sempre estatal para o núcleo da análise social. Como essedeslocamento é, a meu ver, objetivamente falso, então é possível demonstrá-lo, com as armas daargumentaçãocientífica,paraqualquerleitordeboavontade–ouseja,aquelequeameaverdade–demodoirrefutável.

Se SérgioBuarque é o filósofo do liberalismo conservador brasileiro, ao construir o esquema decategorias teóricas nas quais ele pode ser pensado de modo pseudocrítico, Raymundo Faoro é seuhistoriadoroficial.ÉFaoro,afinal,quemcriaanarrativahistóricade longaduraçãodesdeo iníciodoEstadoportuguêsunitárioesuasupostatransposiçãoparaoBrasil.Suainegávelerudiçãocriouumefeitodeconvencimentoque foi capazdeganhar,nãoapenaso coraçãodos leigos,mas, também,da imensamaioriadosintelectuaisehomensdeletrasdoBrasilcontemporâneo.Devidoàimportânciadesuavisão,nãosuperadaatéhoje,iremosreproduzirecriticaremdetalheseusargumentos,tentando,comosempre,ser claros o bastante para que qualquer leitor de boa vontade, mesmo sem ser treinado em ciênciassociais,possacompreender.

AtesedolivrodeFaoroéclaradesdeoinício:suatarefaédemonstrarocaráterpatrimonialistadoEstado e, por extensão, de toda a sociedade brasileira. Esse caráter patrimonialista responderia, emúltimainstância,pelasubstânciaintrinsecamentenãodemocrática,particularistaebaseadaemprivilégiosque sempre teria marcado o exercício do poder político no Brasil. Ou seja, o conceito depatrimonialismopassaaocuparolugarqueanoçãodeescravidãoedaslutasdeclassequeseformamapartirdeladeveriaocupar.Acorrupçãopatrimonialsubstituiaanálisedasclassessociaisesuas lutasportodososrecursosmateriaiseimateriaisescassos.Faoroprocuracomprovarsuahipótesebuscandoraízes que se alongam até a formação do Estado português no remoto século XIV de nossa era. Umargumentocentralqueperpassa todoo livroéodequeoBrasilherdaa formadoexercíciodopoderpolíticodePortugal.ComoemSérgioBuarque,aherançaibéricaquesupostamentefincariafundasraízesnanossasociedadepassaaserresponsávelpornossarelaçãoexterior,eparainglêsver,comoprocessodemodernizaçãocapitalista.

OBrasilseriaumasociedadepré-moderna,poisreproduzaformapatrimonialista,quevigoravaemPortugal, de exercício do poder. Como nas várias centenas de páginas de seu livro Faoro procurademonstrar, precisamente, a correçãohistórica e sociológicade seu argumento, éno embate comsuasideiasquepoderemosperceberafragilidadeteóricadessasideiasteleológicas,ouseja,construídasparavalidar uma única tese política: a ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à açãointrinsecamentevirtuosadomercado.Essaéaideia-forçafundamentaldoliberalismobrasileiroporboasrazões.Afinal,naspoucasvezesemqueseverificouhistoricamentequalquerpreocupaçãopolíticacomasdemandasdas classes populares, estas semprepartiramdoEstado.É aqui que começa, portanto, odeslocamentodaquestão secularmenteprincipalda sociedadebrasileira, sua abissal desigualdade e aatmosferadeconflitoabafado/generalizadoqueelaproduz,comoamaisimportantepeculiaridadesocialbrasileira, em nome do falso conflito mercado/Estado. Esse conflito é falso por vários motivos queaprofundaremosmaistarde.PorenquantoexaminemoscomoFaoroconstróiseuargumento.

Iremosreconstruí-lo,paraposteriormentecriticá-lo,partindodassuasduastesesprincipaisquesãointimamenterelacionadas:1)oBrasilherdadePortugal,paranossadesgraça,suasingularidadesocialepolítica; 2) o principal elemento que prova essa herança é a estrutura patrimonial do Estado e, por

Page 110: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

consequência, de toda a vida social. A síndrome do liberalismo conservador construída por SérgioBuarqueécontinuadaeavançadaporFaoroemtodasassuasvirtualidadescomexceção,comotambémnocasodeSérgioBuarque,doracismodeclasseantipopulistaqueécriaçãoposterior.90

ParaFaoro, a formaçãodoEstadoportuguêspossui singularidades importantes dentro do contextoeuropeu.PortugaléoprimeiropaísdaEuropaaunificarseuterritóriosobocomandoindisputadodeumúnicorei.Enquantonamaiorpartedospaíseseuropeusalutapelaprimaziaecomandoentreosváriosgrandessenhoresterritoriaisaindadurariaséculos,atéqueopodereprestígiodeapenasumpudesseseimporemrelaçãoatodososoutroscomoumfatoindisputado,asituaçãoemPortugalfoibemoutra.

Aguerrada reconquistado territórioportuguês aomouropossibilitou a incorporaçãode terras doinimigoàpropriedadepessoaldosenhordoreinoedosexércitos.OpatrimôniodoreinoséculoXIVjáeramaiordoqueodocleroetrêsvezesmaiordoqueodanobreza.91Noteoleitorqueissonãosignificaqualquerconfusãoentrepúblicoeprivado,jáqueapróprianoçãodepúblicoéposteriorhistoricamente.Mesmocomosimplesideia,anoçãodesoberaniapopular,quedáensejoàoposiçãopúblicoxprivadocomoconhecemoshoje,émuitomaistardia,semfalarnasuaefetivaçãoconcretacomoideiapolítica.SeaideiadesoberaniapopularcomeçanoséculoXVII,suaefetivaçãoconcretaéaindamaistardia.Faorousa,portanto,umaideiaa-históricaeforadecontextoparafundamentarsuatese.AlgocomofazerfilmessobreaAntiguidadeeimaginarnelestramasdeamorromânticoqueforamcriadashistoricamente2milanosdepois.Assimcomoéa-históricaanoçãodepoder totaldo rei comonegativa, já que é ela queantecipaoEstadodemocráticomoderno.

De certo modo, o sucesso de Portugal, sua unificação prematura que o predispôs a grandesconquistas,éacausaúltima,paraFaoro,deseufracassocomosociedademoderna.Assimsendo,desdeaprematura centralização eunificaçãodoEstadoportuguêsmedieval, o qual, se por um lado permite aconcentração de recursos necessários à aventura ultramarina, guarda em si um efeito não esperado eperverso: impede as condições propícias para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Ou, emoutras palavras, impede a constituiçãomesma de uma sociedademoderna, visto que o Estado, ao sesubstituir à atividade empresarial individual baseada no cálculo, intervém inibindo o exercício dasliberdadeseconômicasfundamentais.Comisso,nãoapenasaatividadeeconômicaécomprometida,masopróprioexercíciodasliberdadespúblicasbásicas,acarretando,também,atibiezadavidademocráticaenquantotal.

Nesse sentido, a grande oposição ideológica do livro será aquela entre uma sociedade guiada econtroladapeloEstado,decima,eassociedadesondeoEstadoéumfenômenotardioeoautogovernosecombinacomoexercíciodasliberdadeseconômicas.Oconceitocentralparadarcontadasingularidadesociopolítica luso-brasileira é a noção de Estado ou estamento patrimonial. O estamento seria umacamadasocialcujasolidariedadeinternaéforjadaapartirdeumestilodevidacomumedeumanoçãodeprestígiocompartilhado,seguindoa liçãoweberiana.Demodoa-históricoeconceitualmente frágil,como veremos em breve, Faoro equipara o caso português com o dos mandarins chineses, em umasociedademuitodiferentedaportuguesa,inclusiveemrelaçãoaoaspectodecisivododesenvolvimentodaeconomiamonetária.92

MasasfiligranasconceituaisnãosãooobjetoprincipaldaatençãodeFaoro,mais interessadoemcriaraimagemdeum“estamentoincrustadonoEstado”–atal“elite”,comoseelaestivesseatéhojenoEstadoenãonomercado–aqualseapropriadoaparelhodeEstadoeusaopoderdeEstadodemodoaasseguraraperpetuaçãodeseusprivilégios.Historicamente,oestamentoseteriaconsolidadoapartirdacrise política portuguesa de 1383/85. O novo contexto de poder daí resultante consolida um novo

Page 111: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

equilíbrio entre a nascente burguesia e a nobreza lentamente decadente.Desse equilíbrio de forças,93temos a estruturação de uma comunidade dentro do Estado que fala em nome próprio: o estamento.Básicoparaoconceitodeestamentoéanoçãodehonra.Honraéoconceitocentraldassociedadespré-capitalistastradicionais.Elafunda-senoprestígiodiferencialenadesigualdade.ParaFaoro:

Os estamentos florescem, demodonatural, nas sociedades emqueomercadonãodomina toda aeconomia,asociedadefeudaloupatrimonial.Nãoobstante,nasociedadecapitalista,osestamentospermanecem, residualmente, em virtude de certa distinção mundial, sobretudo nas nações nãointegralmente assimiladas aoprocessodevanguarda [...]Oestamento supõe distância social e seesforça pela conquista de vantagens materiais e espirituais exclusivas. As convenções, e não aordem legal, determinam as sanções para a desqualificação estamental, bem como asseguramprivilégios materiais e de maneiras. O fechamento da comunidade leva à apropriação deoportunidades econômicas, que desembocam, no ponto extremo, nos monopólios de atividadeslucrativas e de cargos públicos. Com isso, as convenções, os estilos de vida incidem sobre omercado, impedindo-o de expandir sua plena virtualidade de negar distinções pessoais. Regrasjurídicas,nãoraro,enrijecemasconvenções,restringindoaeconomialivre,emfavordequistosdeconsumoqualificado,exigidopelomododevida.Deoutrolado,aestabilidadeeconômicafavoreceasociedadedeestamentos,assimcomoastransformaçõesbruscas,dastécnicasoudasrelaçõesdeinteresse, os enfraquecem. Daí que representem eles um freio conservador, preocupados emassegurarabasedeseupoder.Háestamentosquesetransformamemclasseseclassesqueevolvemparaoestamento–semnegarseuconteúdodiverso.Osestamentosgovernam,asclassesnegociam.94

Temos,nessa citação,odenso resumodoargumentoque serádesenvolvidonodecorrerde todoolivro. Temos a ideia do resíduo (de outras épocas) estamental que se torna permanente e fragiliza aatividade do livre mercado (para o liberalismo radical de Faoro, o mercado enquanto tal, e não omercado temperadoecontrolado,éabase tantodocapitalismoquantodademocracia).Areferênciaasituaçõesdeinstabilidade,quandoocorremmudançasbruscas,ajudaaesclareceradialéticadeconstantedesaparecimento/reaparecimentoda realidade estamental, sob a forma do eterno retorno domesmo, ofamoso“vinhonovo emodresvelhos”nametáfora antissociológica–postoquenega a influênciadosambientes institucionais cambiantes – tão repetida no decorrer do livro pelo autor. De resto, paracompletaroquadro,adefiniçãodafunçãodoestamentocomosendoadegovernar.Éesseseutrabalho.OEstadoéoseunegócio.

O ponto fundamental da definição, no entanto, que responde tanto por sua fragilidade em últimainstância como conceito, quanto por sua extraordinária eficácia menos como instrumento deconvencimentointelectual,mas,especialmente,comomensagempolítica,éaintencionalidadequelheéatribuída. Aí, precisamente, creio eu, reside sua enorme força de convencimento. Ela possibilitaencontrarumculpadoparanossasmazelasenossoatraso.Emoposiçãoaousohistóricoedinâmicodacategoria de patrimonialismo emWeber, seu uso por Faoro é estático e tendencialmente a-histórico.Faoroseinteressapoucopelas transformaçõeshistóricasdoqueelechamadeestamentoburocráticoeprocurasempre ressaltar, aocontrário,apermanência inexoráveldomesmosobmildisfarces que sãoapenas uma aparência de diferença. Isso resulta, creio eu (sem prejuízo da primorosa historiografiapolítica,especialmentedoperíodoquevaide1822a1922,queele,apesardetudo,conseguerealizar),daformateleológicaeesquemáticadecomoeleconstróiseuargumento.

Seu argumento é teleológico, ou seja, antecipa um fim estranho à argumentação que coloniza e

Page 112: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

subordinatodososargumentosutilizados.Issoacontecenamedidaemqueele,apartirdesuaprimeiraintuição influenciada pela leitura de Joaquim Nabuco acerca da influência da elite de funcionáriosletrados noBrasil da segundametade do séculoXIX, alonga essa influência retrospectivamente a umperíododequaseoitoséculos.95Nessecaminho,oleitoratentopercebemuitasvezesacamisadeforçaque significa a transposiçãopara as situações históricas asmais variadas de uma ideia que deixa, aolimite,deserumacategoriahistóricaeassumeaformadeumamaldição,umaentidadedemiúrgicaquetudoexplicaeassimila.

É ele que irá explicar de quemodo a categoria a-histórica de estamento patrimonial que o autorconstrói possa transmutar-se, quase que imperceptivelmente, na noção pura e simples de Estadointerventor. Toda a argumentação do livro baseia-se nessa transfiguração: sempre que temos Estado,temosumestamentoqueocontrolaemnomede interessespróprios impedindooflorescimentodeumasociedadecivillivreeempreendedora.

Apesardanarrativaeleganteeerudita,literalmentetodosospressupostos,tantooshistóricosquantoos sociológicos, da análise de Faoro são falsos. Eles repetem também passo a passo a síndromeconceitualdoliberalismoconservador,cujafragilidadeconceitualehistóricaéclaracomoaluzdoSoldemeio-dia:oBrasilnãoherdadePortugalsuaestruturasocial,massimdaescravidãoquenãoexistiaem Portugal. O patrimonialismo ou a existência de um estado forte não se contrapõem aodesenvolvimentocapitalista, comomostrao exemploprecisamentedosEUA,oqualdesdemeadosdoséculoXIXdevesuaexpansãoterritorialeeconômicanãosóaopoderiomilitarestatal,mas tambémàintervenção do Estado na construção de ferrovias e de universidades em todo o país para turbinar odesenvolvimentotecnológicoeprodutivo.Éapartirdessaépocadeforte intervençãoestatal, inclusivecomprotecionismoetarifasalfandegáriasquevigoraramatéaSegundaGuerraMundial,queosEUAsetornampotênciamundial,comoaliástodososexemploshistóricosconcretosantesedepoisdele.

Frágil e absurda como essa ideia é, ela continua a ser a ideia-força principal do liberalismoconservadorbrasileiroquepermanecevivonoimagináriosocialcotidianodetodosnós.EpisódioscomoosescândalosdecorrupçãonoEstado–todos,semexceção,estimuladosporinteressesdemercado–nasua subjetivação e novelização infantilizada dos conflitos políticos, que passam longe de qualquerdiscussão racional dos conflitos sociais e políticos verdadeiramente em jogo, aludem à tese dopatrimonialismo. É essa tese superficial e sem qualquer fundamento conceitual sério que serve decontrapontoparaapobrezadodebatepúblicopolíticoentrenós.

Assimsendo,valeapenaumapequenadigressãoconceitualehistóricadessanoçãoemMaxWeber,dequemtodos, inclusiveFaoro,vãobuscaroprestígiocientífico.O leitormenosafeitoaesse tipodedebatepodetranquilamentepularessaspáginas.MascomoéasupostareferênciaaWeber–oautorqueestudeimaistempoemaisapaixonadamentequequalqueroutro,porhavermeensinadoaimportânciadadominação ideal e simbólicanomundo social – que confere prestígio a essa noção, essa discussão éincontornável.Adiscussãoweberianaacercadadanoçãodepatrimonialismoécomplexaemultifacetada.No sentido mais formal, o patrimonialismo é uma variação do tipo de dominação tradicional.96 Aocontrário das formas primárias de dominação tradicional, como a gerontocracia e o patriarcalismo,caracterizadas pela ausência de um quadro administrativo, o patrimonialismo se caracteriza pelapresençadeumquadroadministrativo,oquetrazparaWeberasconsequênciasmaisimportantesparaoexercíciodadominaçãopolítica.97

Équenaestruturatripartite,apartirdaqualWeberpensaadinâmicainternaàsesferassociais,98aesferasocialresponsávelpelapolíticaarticula-seedefine-seenquanto talapartirdopesorelativoda

Page 113: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

relação também triádica entre líder, quadro administrativo e os dominados. A entrada, portanto, doquadro administrativo em cena inaugura, de certomodo, a política em toda a sua complexidade. Issoporqueentraemcenatambémotemacentraldadelegaçãodopoder,jáqueoexercíciodopodersobregrande número de pessoas e sobre extenso território exige um quadro administrativo como elointermediárioentrealiderançaeosliderados.

A partir da forma específica que o quadro administrativo intermediário assume na relação entredominadoredominados,teremosoexercíciodopodermaisoumenoscontroladopelolíder;ouaindadoexercíciomaisoumenosde fatonasmãosdequem temadelegaçãodopoder, aindaquenãoopoderformal. Por conta disso,Weber irá definir também as diversas subdivisões do subtipo de dominaçãopatrimonialprecisamenteapartirdamaiorimportânciarelativadolíderoudoquadroadministrativo.

Quando atentamos para a contextualização histórica emWeber, queremos, acima e antes de tudo,enfatizarofatodequeopatrimonialismonãoécompatívelcomesferassociaisdiferenciadas,ouseja,naspalavrasdeWeberecomoelepreferiasereferir,“esferasdavida”.Asesferasdavidadiferenciadasimplicamque cada qual possui umprincípio valorativo ou critério regulador que lhe é próprio e queservedepadrãoparaacondutadossujeitosnessaesfera.Implicatambémquetodooconjuntodepapéissociais,expectativasdecomportamento,construçãoorganizacionalepadrõesdeinstitucionalizaçãovãoseguiareseravaliadosprecisamentepelomesmocritérioregulador.Todaasociologiaweberianapode,inclusive,sercompreendidacomoumatentativadeexplicardemodogenéticoecausalporqueapenasnoOcidentemoderno logrou-seuma configuração social que não só possibilita,mas, também, estimula adiferenciaçãoentreasdiversasesferassociaiseoganhoemeficiênciaeracionalidade(instrumental)queessamesmadiferenciaçãosocialimplica.

Tambémessaideiaépassíveldesercompreendidaporqualquerleitordeboavontade.Pensemosnaeconomia.Ésó,porexemplo,quandoaeconomiaselibertadareligião,queimpediaapráticadausura,ouseja,oempréstimodedinheiroajuros,queaeconomiapodesedesenvolvercomoesferaprópriasema intromissãodeprincípios e valores de outras esferas.Omesmo processo ocorreu como direito.Odireitoautônomonascehistoricamentecomogarantiadeprocedimentosformais–essesqueaLavaJatoaboliu para regredir o direito brasileiro em séculos – que são universais, precisamente para que apolítica,ouseja,odireitodomaisforte,nãosejaaregra.Adiferenciaçãodasesferasdavidaexisteparaqueelassedesenvolvamsemaintromissãodosprincípiosdasoutrasesferas.Nomundopré-moderno,aindiferenciaçãodasesferasdavida,quecomprometiasuaeficiência,eraaregra.

Toda a explicação weberiana do patrimonialismo em todos os seus casos concretos parteprecisamentedaimpossibilidadedaexistênciadeesferassociaisdiferenciadasnocontextopatrimonial.Issonãoquerdizerquenãoexistamaspectospolíticosou aspectos econômicosda ação social nessescampos,masessasaçõessãosituadasecontextualizadas,crescendo,porexemplo,emtemposdeguerra,para voltar a inexistir em tempos de paz, não desenvolvendo, portanto, todas as virtualidades de umcampodiferenciado.Nessesentido,opatrimonialismoparaWeberrepresenta,antesdetudo,umsimplesaumentoquantitativodaeconomiadoméstica(Hausgemeinschaft),99quenomundopré-modernoabarcavatodasasesferasemsi,aindaqueexistampressupostosideaisnovos,comoanecessidadedelegitimaçãocarismáticadolíderpatrimonial.100

Mesmo que o aumento quantitativo de novas conexões e funções para o exercício do poder sejarequerido nessa grande comunidade doméstica, o que acontece, como nota Thomas Schwinn em suaexcelentediscussãoacercaprecisamentedocaráternecessariamente indiferenciadodas esferas sociaisno patrimonialismo,101 é a mera substituição do princípio segmentado-horizontal da comunidade

Page 114: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

domésticaemfavordeumasegmentaçãoverticalizadacomcaráterhierárquiconopatrimonialismo.102

O aspecto decisivo aqui é que todos os aspectos da vida estão amalgamados de modo radical,especialmente, mas não apenas, os aspectos econômicos e políticos. Mesmo que possam existirempreendimentos de grande vulto econômico no contexto patrimonial, como os assegurados porprivilégiosdemonopóliodecomércioemanufatura,osmesmospodemser retiradosdemodomaisoumenos arbitrário, impedindo cálculo e previsibilidadeque são indispensáveis à institucionalização daesferaeconômica.Estápressupostonoargumentoweberianoqueéprecisamenteairremediávelconfusãoentreasdiversasesferassociaisquegaranteaapropriaçãodoexcedentesocialnostermospatrimoniais:precisamentecomo“botimlivreparaaformaçãodefortunas”dossetoresprivilegiados.103

Comoainterpretaçãodominantedosupostopatrimonialismobrasileiro104enfatizaavarianteondeoestamento(stand),ouseja,ondeoquadroadministrativoenãoa liderançaassumeaproeminênciaeoefetivoexercíciodopoder–emprópriointeresseeemdesfavortantodaliderançaquantodosliderados–,entãonadamais razoávelque ilustremosnossacríticaaessaapropriação indébitapelacomparaçãocom o caso histórico analisado em detalhe por Weber, e por ele considerado o caso mais puro depatrimonialismoestamental.105

Se prestarmos atenção na análise queWeber desenvolve em seu estudo sobre o confucionismo etaoísmonassuasrelaçõescomoimpériopatrimonialchinês,106podemosperceber facilmenteoquantoseu conceito de patrimonialismo é contextual e historicamente determinado. Como o patrimonialismojamais se reduz à esfera da política strictosensu, já que a esfera política em sentido diferenciado eestritoaindanãoexiste, adominação social implicaumaarticulaçãoespecíficadediversos interessesalémdosestritamentepolíticos.Emprimeirolugar,aconfusãoentreasdiversasesferassociais,daqualo patrimonialismo retira sua própria condição de possibilidade, exige a existência de uma série defatores socioeconômicos externos ao que chamaríamos hoje emdia de dominação política em sentidoestrito.Algunsdessesfatoresimportantessão:ainexistênciadeumaeconomiamonetáriadesenvolvida,aexistência de um direito não formal e uma legitimação em grandemedidamágico-religiosa do poderpolítico.Todosesseselementosmarcamasociedadechinesapatrimonial.

O ponto central em todos esses casos parece-me a impossibilidade de cálculo racional que todosesses fatores envolvem e estimulam reciprocamente. A extração do excedente social concentrado noestamentopatrimonialdosmandarinssópodeserobtidaemumcontextoondenãoapenasexisteenormedificuldade de controle pela autoridade central, mas, também, onde a possibilidade de cálculo daatividadeeconômicaedoprodutodotrabalho,precisamentepelopoucodesenvolvimentodaeconomiamonetária,éreduzidaaomínimo.Todaapossibilidadedecálculoentrereceitaedespesa,planejamentoeracionalização da vida depende da existência dessas precondições que, no caso chinês, não estavamdadas.Sendoumaformapolíticaaextraçãodoexcedentesocialviatributo,opatrimonialismovivedaimpossibilidadedesesaberoquantoseproduzequaissãooscustosdaprodução.Daíseratradiçãoaúnica barreira efetiva aos impostos excessivos. Os mandarins retiravam seu poder dessedesconhecimento dos fatores de produção, tanto para iludir o poder do imperador que desconheciaquantoeraproduzido,quantopara forçaraomáximopermitidopela tradiçãoopagamentode impostosdoscamponesespobres.

No caso brasileiro, só emmeados do século XX se constitui uma verdadeira burocracia com osmeios para a atuação em todo território nacional. Mas aqui já num contexto de desenvolvimentocapitalista intenso e rápido.Ocasobrasileiro era, portanto,muito diferente sob todos os aspectos docaso chinês. Primeiro, tomando o caso brasileiro como ilustração, jamais existiu no período colonial

Page 115: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

qualquercoisasemelhanteaoestamentoburocráticochinês.AcolonizaçãodopaísfoideixadanasmãosdeparticularesqueeramverdadeirossoberanosnassuasterrasondeoEstadoportuguês,apenasdemodomuitotênue,conseguiaimporsuavontade.AênfasedeFaoroemumadominaçãodelongedePortugalnoBrasil, que atravessava praias e sertões com seus olhos de Big Brother que tudo via e controlava,equivaleaumaquimera.Portugaleraumpaíspequenoepoucopopuloso,esuaestratégiadedelegaraparticularesacolonizaçãodasnovasterraseraumimperativodesobrevivência.Aqui,comoemoutroslugares,afantasiahistóricaserveapenasparacorroborarumatesepolíticasemqualquerfundamentonarealidade.

Além disso, entre 1930 e 1980, o Brasil foi um dos países de maior crescimento econômico nomundo,lograndoconstruirumparqueindustrialsignificativosemparalelonaAméricaLatina.Comosepodeexibirtamanhodinamismoeconômicoemumcontexto,comoodopatrimonialismo,quepressuporiaindiferenciaçãodaesferaeconômicae,portanto,ausênciadepressupostosindispensáveiseausênciadeestímulosduradourosde todaespécieàatividadeeconômica?Essaquestãoporsi sóseriaumdesafiointransponívelparaosdefensoresdopatrimonialismobrasileiro.Maselanuncaéfeita.Daíessanoçãofuncionaratéhojecomopressupostocentralenuncaexplicitadodecomofuncionaarealidadebrasileira.Paraseusdefensoresdehoje,elaseriatãoóbviaquedispensariaexplicitação.107

Na sociologia brasileira, portanto, o conceito de patrimonialismo perde qualquer contextualizaçãohistórica,fundamentalnoseuusoporMaxWeber,epassaadesignarumaespéciedemaldeorigemdaatuaçãodoEstadoenquantotalemqualquerperíodohistórico.EmFaoro,108quefez,comovimos,dessanoçãoseumoteinvestigativocomextraordinárioimpactoeinfluênciaatéhoje–enquantonamaioriadosintelectuaisbrasileiroselaéumpressupostoimplícitoemborafundamental–,anoçãodepatrimonialismocarece de qualquer precisão histórica e conceitual. Historicamente, na visão de Faoro, existiriapatrimonialismo desde o Portugal medieval, onde não havia sequer a noção de soberania popular e,portanto,senãohaviasequeraideiadaseparaçãoentrebemprivado(dorei)ebempúblico,oreieseusprepostosnãopodiamroubaroquejáeradelededireito.

Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo acaba setransformando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a mera intervenção estatal. Nodecorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculoconcreto, passando a ser substitutivo da mera noção de intervenção do Estado, seja quando este éfuriosamentetributárioedilapidador,porocasiãodaexploraçãodasminasnoséculoXVIII,sejaquandoomesmoébenignamenteinterventor,quandod.Joãocria,noiníciodoséculoXIX,asprecondiçõesparaodesenvolvimentodocomércioedaeconomiamonetária,quadriplicandoareceitaestataleintroduzindoinúmerasmelhoriaspúblicas.

Aimprecisãocontaminaatéanoçãocentraldeestamento,umasupostaeliteincrustadanoEstado,queseriaosuportesocialdopatrimonialismo.Otalestamentoécomposto,afinal,porquem?Pelos juízes,pelo presidente, pelos burocratas?Oque dizer do empresariado brasileiro, que foi, no nosso caso, oprincipal beneficiário do processo de industrialização brasileiro financiado pelo Estado interventordesde Vargas? Ele também é parte do estamento estatal? Deveria ser, pois foi quem econômica esocialmentemaisganhoucomosupostoEstadopatrimonialbrasileiro.Comofica,emvistadisso,afalsaoposiçãoentremercadoidealizadoeEstadocorrupto?

Aaplicaçãodanoçãodepatrimonialismoaocasobrasileiroé,portanto,umaóbviafraudeconceitual,destinadaausaroprestígiocientíficodeumdosmaisimportantespensadoresdetodosostempos,paralegitimarumaideiaextremamenteconservadoraefrágilconceitualmenteelhedarumafalsaaparênciade

Page 116: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

rigorcientíficoedecríticasocial.Onossoliberalismo,falsoeconservadorcomosemprefoi,conseguecomessecontrabandoconceitualpassar-seporinterpretaçãoinovadoraeerudita.Naverdade,anoçãodepatrimonialismoaplicadaàrealidadebrasileiranãovaleumtostãofurado.

Aliás,anoçãodepatrimonialismopassaaserfundamentalexatamenteporsuaimprecisãoconceitual.Elaestánolugardanoçãodeescravidãoeserveparatornarinvisíveisasrelaçõessociaisdehumilhaçãoe subordinação criadas nesse contexto. Além disso, tenta criar uma aparência de crítica social, umcharminhocríticofalso,aoapontarodedomoralizadorcontraaelite.Nocaso,noentanto,aelitefalsa,postoquecompradapelaeliteeconômicaquepermanece invisívelnaanálise,mostrandoseupotencialmistificador.

NãoéqueFaoronemosoutrosliberaisnãofalemdeescravidão.Elesfalamsim.Muitosefalasobrea escravidão e pouco se reflete a respeito. Fala-se na escravidão como se fosse um nome e não umconceito científico que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossascaracterísticasàditaherançaportuguesa,masnãohaviaescravidãoemPortugal.Somos,nósbrasileiros,portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiçaespecífica,umaeconomiaespecífica.Aquivaliatomaraterradosoutrosàforçaparaacumularcapital,comoaconteceatéhoje,econdenarosmaisfrágeisaoabandonoeàhumilhaçãocotidiana.Issoéherançaescravocrata e não portuguesa. O patrimonialismo, percebido como herança portuguesa, substitui aescravidãocomonúcleoexplicativodenossaformação.Essaésuafunçãoreal.Porcontadisso,atéhoje,reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas, como exclusão social massiva, violênciaindiscriminadacontraospobres,chacinascontrapobresindefesosquesãocomemoradaspelapopulação,etc.

Masissoaindanãoéopior.Opatrimonialismoescondeasreaisbasesdopodersocialentrenós.Eleassume que interesse privado é interesse individual privado, de pessoas concretas, as quais secontraporiam aos interesses organizados apenas do Estado. Tudo como se houvesse interessesorganizadosapenasnoEstado,supremaestratégiadedistorçãodarealidade.Umanoçãodesensocomumdoleigoquenãopercebeosinteressesprivadosorganizadosnomercadoesuaforça,ouseja,quenãopercebe,emsuma,comoocapitalismofunciona.Daídecorreanoçãoabsurda,mastidacomoverdadeacima de qualquer suspeita entre nós: a noção de que a elite poderosa está no Estado, com issoinvisibilizandoaaçãodaelitereal,queestánomercado,tantonosoligopóliosquantonaintermediaçãofinanceira.

Secompararmosnossocapitalismocomonarcotráfico,opolíticocorruptoéoaviãozinhodotráfico,quemficacomassobras;abocadefumoquefazodinheirograndeéomercadodarapinaselvagemquetemosaqui.Oconceitodepatrimonialismoserve,precisamente,paraencobrirosinteressesorganizadosno mercado, que funcionam para se apropriar da riqueza social, já que a noção de privado éabsurdamente pessoalizada, permitindo todo tipo de manipulação. A real função da noção depatrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a dominação mais tosca e abusiva de ummercadodesreguladocompletamenteinvisível.

Page 117: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

Normalizandoaexceção:oconluioentreagrandemídiaeaLavaJato

Nodia17de junhode2017,arrisqueiumaolhadelanoprogramaPainel,comandadoporWilliamWaacknaGloboNews.Foiamaisperfeitaintroduçãoaestaconclusãodolivroqueeupoderiaimaginar.Waackpropõea seusconvidadosaanálisedaconjunturapolíticanacional combasena crise entreospoderesdaRepública.Apartirdaí,cadaumseesmeranaanálisedequalpoderestariainvadindoasearaalheia.Omaisimportante,comosempreacontecenavida,noentanto,seriaaquiloquenãofoiperguntadoe,portanto,quenãopoderiatersidorespondido:seriaperguntarquemmaisajudouparaqueabagunçainstitucionalentreospodereseacriseatualdoBrasilatingissetamanhasproporções?

Pus-me, então,naquelaposiçãoquecertamenteo leitor também jádeve ter seposto em diferentesocasiões: e seeuestivesse lá respondendoàsquestõeserradasmontadasno perverso teatrinho globalparafazeraspessoasdeimbecis?Ninguémnasceimbecil,maspodemosserfeitosdeimbecis,eaRedeGloboseespecializounesse trabalho.Bem,eu teria aproveitadocada segundoparadesmontar a farsaparamilhões,oquegarantequejamaisseriaconvidadoparacoisasassimpelorestodavidanaGlobo.Eu teria respondidoquequemmais contribuiupara a crise atual, tanto a econômicaquanto a política,assimcomotambémparaaprópriacriseentreospoderes,foiaprópriaGlobo, juntamentecomtodaagrandemídia,queelacomandaaoconstruirapautadamídiacomoumtodo.Teríamosdecomeçarporanalisarseupapelnogolpeenopós-golpe,portanto,jáquetodoodescalabrofoiefeitoemconsequênciadamentiramidiaticamenteproduzida.Seria interessante saberoqueo jornalistaWilliamWaack faria:interromperiaoprograma?Fariadecontaquenãoexisto?Bem,deve serpor issoqueele sóconvidaquempensacomoele.

Porqueagrandemídia,emuitoespecialmenteaGlobo,continuatratandoacorrupçãocomoseelaestivesseemtodasasinstituiçõesmenosnela?Atéquando?Eaindasepõemcomentaristaseâncorascomardeindignadoscomasituaçãomoraldopaís,permitindoaidentificaçãocomaaudiênciaimbecilizada?Por que os procuradores da operação Lava Jato, da boca para fora tão indignados com a corrupçãoquantoosâncorasdaGlobo,nãotiveramomenorinteressedesaberaefetivaparticipaçãodaimprensae,emparticular,daemissora,nosesquemasdebeneficiamentoaempresasprivadasqueapenasaOdebrechtestavasendoacusada?EmílioOdebrechtemsuadelaçãoàLavaJato, referindo-seàsnecessidadesnoBrasildesuaempresa,ressaltouque,alémdeaportaraengenhariadosprojetos,tinhatambémdecuidardesuaviabilidadefinanceira.Assimeledeclaroutextualmente:

Oquemeentristece,eaíeudigo(emrelaçãoa)daprópriaimprensa,queaimprensatodasabia,queo que efetivamente acontecia era isso. Por que agora é que tão fazendo tudo isso? Por que nãofizeramissohádez,quinze,vinteanosatrás?Porqueissotudoéfeitohátrintaanos...Porexemplo,na quebra dos monopólios, nós ajudamos a quebra dos monopólios, inclusive sobre a parte detelecomunicações, nós chegamos amontar uma sociedade privada com três ou quatro empresas...uma delas era até a Globo... para criar um embasamento acerca do que estava acontecendo nomundo...paraqueissofacilitasseaquiloqueeradecisãodegoverno,dequebrademonopóliodastelecomunicações,dapartedopetróleo,eoutrascoisas...

UmprocuradordaLavaJato,queestáouvindoadelação,interrompeopresidentedaOdebrecht,nãoparapedirmaisdetalheseabrirumfulcronainvestigaçãoquelevariaaoelomaisinteressantequeuma

Page 118: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

investigaçãodessetipopoderiaabrir.Nãoameraassociaçãocompartidospolíticos,masaassociaçãoentreempresasprivadas, imprensaepoderpúblico,como fitodeenganaropúblico.Emvezdisso,oprocuradordiz, candidamente, “sempre há ummomento para começar”, se autojustificando emvez deaproveitar a revelação para inquirir e saber mais. Emílio Odebrecht não se faz de rogado com odesinteressedosprocuradoresevoltacomoassunto:

Masé importantequehaja compreensãodisso, isso éuma realidade...Essa imprensa sabia dissotudo,eficaagoracomessademagogia...todossabiamcomofuncionavaeachoquetodosdeveriamfazeressalavagemderoupasuja...pelaomissãoquetiveramdurantetodoessetempo...

Oempresáriomencionouaexistênciadeumasociedadeprivada,comparticipaçãodaGlobo,comoobjetivodefazerlobbypelaprivatizaçãodatelefoniapúblicaepelaquebradomonopóliodoEstadonosetordopetróleoeoutrossetores.FernandoHenriqueCardosodiriadessetrabalhodamídiadeenganaropúblicocomassupostasvantagensdaprivatização,comuminterlocutorprivilegiado,que“opessoalestáatéexagerando”.109ApesardarelutânciadosprocuradoresdaLavaJato,visivelmenteconstrangidoscom a revelação, afinal, ela se referia não ao patrimonialismo do PT ou Lula, mas à associação deinteressesentreaelitedoatrasoedarapinaeaopapeldesuaimprensadedourarapílulaaosaquedasriquezasde todosembenefíciodeumameiadúziadericaços,EmílioOdebrechtsódesistiudepoisdemuitotentarchamaratençãodospaladinosdajustiça.

EmílioOdebrechtqueriacontar,afinalelesabiaqueaGloboeasoutrasmídiasestavammantendoumaimagemimaculadaemumesquemadelesarasociedade,ficandoapenaseleesuaempresacomaconta.Ninguémgostadesertratadocomotoloeverseuparceirodeesquemasesair imaculadoesemculpa,eaindatirandoondade“virgemnocabaré”efazendooteatrinhodeenojadopelasituação,comoaRedeGloboeorestantedagrandeimprensafaz.AhipocrisiadaGloboedaimprensaemgeraleraoqueirritavaeenojavaEmílioOdebrecht.Porcontadisso,opatronodaOdebrechtsereferiuváriasvezesaofato,oquequalquerumpodeconferirnasuadelaçãoquecontinuanainternet,masosprocuradoresdaLavaJatosemostraramtãoseletivosnoseucombateàcorrupçãoquantoWilliamWaacknaescolhadeseusinterlocutores.Certamente,acharamqueessainformaçãonãoviriaaocaso,comocostumadizerojuizSérgioMoroquandoasinformaçõesnãosereferemaLulaeaoPT.

Como aGlobo conseguiu tamanho poder de, comoEmílioOdebrecht insinuou, saber de tudo queaconteciaeaindatirarondadevestaldamoralidadenacional?E,combasenoseumonopóliovirtualdainformação,manterumasociedadeimbecilizadaeconscientementedesinformada,subjugarospoderesdademocracia representativaecooptaroaparelho judiciário-policialdoEstado,eajudar,comonenhumaoutra instituição,oaprofundamentodeumacrisesistêmica, semperderaconcessãopública?Tamanhofeitorequergovernosautoritárioseditadura.ComoaGloboconseguiuofeitoemtemposdedemocraciaformal?

A formação do que chamei de pacto antipopular entre uma ínfima elite do dinheiro, que encara asociedadecomoumtodocomoespólioparasaquefinanceiro,eossetoresmaisconservadoresdaclassemédiadeu-sepeloquechamamosdecolonizaçãodaesferapúblicapelopoderdodinheiro.Seasclassespopularessãoexploradasereprimidascomviolênciaeaquestãosocial,atéhoje,étratadacomoquestãodepolíciaeviolênciafísica,aclassemédiaémantidalealporoutrosmotivos.EssepontoéessencialparaacompreensãodoBrasilcontemporâneo.

Aservidãodaclassemédiaedesuasfraçõesmaisconservadorasàelite,queasexploraeasusapara

Page 119: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

areproduçãodeseupodercotidiano,éconseguidapormeiossimbólicos.Emvezdocassetetedapolícia,temosaquiamanipulaçãomidiáticadasnecessidadesdeautolegitimaçãodaclassemédiatransmutadasem defesa damoralidade estreita da suposta corrupção patrimonialista. A crítica da imaturidade dasclassespopularessobaformadopopulismofechaopacotedoacordotransclassistaqueseunecontraqualquerformadeascensãopopularverdadeira.

O lócus, onde esse acordo entre desiguais se consuma, é uma esfera pública para inglês ver,colonizadapelodinheiroesemqualquerpluralidadedeopiniõesquepermitaa construçãode sujeitosautônomosecomopiniãoprópria.Contraaclassemédia,portanto,aviolênciadaelitedeproprietáriosque controla não só a produçãomaterial,mas, também, a produção intelectual e a informação, é umaviolênciasimbólica.Umtipodeviolêncianãopercebidoenquantotal,postoquesevendecomosefosseconvencimentoreal.

Omecanismoprincipaldessetipodedominaçãoéumaimprensadesreguladaevenal,quevendeumainformação e uma interpretação da vida social enviesada pelos interesses do pacto antipopular. Issoacontecetantoporqueédependentedeseusanunciantesquantoporqueparticipa,elaprópria,domesmoesquemaelitistadominantedosaqueedarapinadotrabalhocoletivo.ComonãohouveaquiacriaçãodomecanismodaTVpública,quenãoseconfundecomTVestatal,emumasociedadecompoucaleituraepoucareflexão,adominaçãosimbólicamaisviolentaencontrouterrenofértilparasedesenvolver.

Ahistóriadasociedadebrasileiracontemporâneanãopodesercompreendidasemqueanalisemosafunção damídia e da imprensa conservadora. É a grandemídia que irá assumir a função dos antigosexércitosdecangaceiros,queéassegurareaprofundaradominaçãodaelitedosproprietáriossobreorestantedapopulação.Agrilagemagoranãoassumirámaisapenasaformaderouboviolentodaterradosposseirospobres,massimtambémaformadacolonizaçãodasconsciênciascomofitodepossibilitar,noentanto, amesma expropriação pela elite. Substitui-se a violência física, como elemento principal dadominaçãosocial,pelaviolênciasimbólica,maissutil,masnãomenoscruel.

Nos últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais bem-sucedidoempresarialmente,nemseesmerou tantona tarefadedistorcersistematicamentea realidade brasileira,emnomede interesses inconfessáveis,quantoaRedeGlobo.Nãoqueelaestejasozinhaousejamuitopiorqueorestodagrandeimprensa.Não,todaagrandeimprensaseirmananoataqueàdemocraciaeàsoberania popular.Recentemente, aFolha de S.Paulo eOEstado de S. Paulo, apenas para citar umexemploentremilharespossíveis,mostraramamesmafotodecapadepoisdasmanifestaçõesnodia24demaioemBrasíliacontraogovernoTemer,ondeumvândaloatacacompedrasumprédiopúblico.

Paraquemviu,comoeu,amanifestaçãointeiraporfilmequedeixavaclarooataqueeaprovocaçãopolicialcomcavalariaecombombasdeefeitomortalsobreosmanifestantesentãopacíficos,aviolênciasimbólica, amentira consciente e a fraudedopúblicoeram estarrecedoras.Uma imprensa em conluiocomumarepressãoantidemocráticaeabusiva,emnomedadistorçãosistemáticada informação,nãoéprivilégiodaGlobo.ArevistaVeja,porexemplo,seesmeraemmatériascujafinalidadeéproduziródioe informação enviesada e distorcida para seupúblico da fraçãoprotofascista da classemédia.Mas aGlobo levoua fraude e adistorção sistemáticada realidade aníveisde ficção científica.E, pelo seutamanho,influênciaeousadianoúltimogolpe,mereceatençãoespecial.Alémdisso,osdonosdejornalerevistaspossuemumaempresaprivada,enquantoaRedeGloboéumaconcessãopública.

OcomeçodoimpériodaGlobofoiconstruídoàsombradaDitaduraMilitar.Passandoaoperaremrede no país como um todo, ela passa a servir como porta-voz dos interesses do governomilitar. Oprograma Amaral Neto, o repórter serve diretamente como propaganda ufanista do governo e suas

Page 120: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

realizações de modo acrítico. O Jornal Nacional, cuidadosamente monitorado, assume a forma“nacional”,comoonomejádiz,ealcançatodaapopulaçãocomummotecaroaosmilitaresnopoder.

De resto, a Globo assume mimeticamente a dinâmica e a forma da época do “Brasil grande”.Excelênciatécnicapassaavalercomosímbolodotipodemodernidadequechegavaaopaíseaprópriaempresapassaaexploraraomáximoosganhosmateriaisesimbólicosqueessaassociaçãolhegarantia.Modernidade capenga certamente, posto que retirava da esfera pública sua característica principal edecisiva: a pluralidade dos argumentos em disputa. Vimos na reconstrução histórica inspirada porHabermas que “modernidade” efetiva e real é a capacidade de produzir informação plural e juízoautônomo.Éfundamentalmente issoqueamodernidade temdepositivoquandocomparadacomoutrasépocashistóricas.Orestoésecundáriooumaisdomesmoqueexistiaantescomoutrasmáscaras.Éissoque seperdecomsuacolonizaçãopelodinheiro: a capacidadede reflexão e aprendizado de todo umpovo!

Nossa esfera pública tardia já nasce sob império damanipulação sem jamais ter conhecido outraexperiência.Faltaaopúblicobrasileiroqualquerpadrãodecomparaçãoparaavaliaroquerecebeemcasa.AGlobovicejounessecontexto.Malesdaépoca,poder-se-iadizer.Nãoéverdade,jáque,mesmonaredemocratização,omesmoprojetoéinclusiveaprofundado.Apartirdaí,aGlobojamaisdeixoudeseapresentarcomoummistodeTVestatal epública,utilizando-sedosganhos simbólicosemateriaisqueessetipodeconfusãoconscienteprovocanoseupúblicocativo.

Essaconfusão,quefoivitalparaocrescimentodaempresasobosmilitares,serevelariaaindamaisprodutivanocontextoda redemocratização.GalvãoBuenoeseunacionalismode fachadae exageradosãoumsímbolodessaestratégiaempresarialqueprocuraconfundirdepropósitoaempresacomanação,o interesse particular e venal com o interesse público e universal. Quem não lembra, entre os maisvelhos,dotemadeAyrtonSennaacadavitóriaedepoisavoltatriunfalenvoltonabandeirabrasileira,enquantoolocutoraosgritoscomemoravamaisumavitóriaqueeradetodaanaçãoesentidaenquantotal pelos telespectadores? Os exemplos práticos dessa estratégia de engodo volitivo e refletido sãoincontáveis.

CampanhascomoCriançaEsperançareforçamessaimagemdeTVdeinteressepúblico,desviandoofitorealdaempresa.Mas,alémdessafarsainicial,queacompanhaaempresaatéhoje,aGlobotambémse especializou em veicular a farsa maior do capitalismo financeiro em escala mundial: esconder asuperexploração do trabalho que ele implica e ainda se vender como crítica da sociedade. Assim, adefesa deminorias, desde que não envolvam repartição de riqueza e de poder social, é apoiada pelaempresa, quepode posar de crítica e emancipadora.A glorificação da periferia das grandes cidades,desdequenãoenvolvarealincorporaçãodasclassespopularesaosbenscivilizatórios,oqueexigiriaadiscussão de suas carências que são reais, também é defendida pelaGlobo. Inúmeras novelas, assimcomo o programa Esquenta, com Regina Casé, servem para esconder o engodo.110 Aqui se chama“favela”de“comunidade”,comosecomissoavidapráticadessaspessoaspudessemelhorarpelamagiadapalavrabonitaqueespelhaumamentira.

AGloboéaroupagemperfeitaparaumcapitalismoselvagemepredatórioquechamaasimesmodeemancipador eprotetordos fracos eoprimidos.Aglorificaçãodooprimidonão ajuda emnada que ocotidianocrueleopressivodospobressejamelhorado,masemulaanecessidadedelegitimaçãodavidaque se leva quando as mudanças efetivas estão fechadas. O mais cruel é que as possibilidades deredenção real são tanto mais impossíveis quanto maior a influência dessa mensagem mistificadoraproduzidapelaemissora.Comonogolpede2016, a emissoraajudoua impedir a continuidadede umprocessodeascensãosocialdospobresqueerareal.Oprocessodemanipulaçãosocialcaminhasempre

Page 121: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

nosentidodeextrairariquezadetodoseconcentraropodernasmãosdepoucos–inclusivedafamíliaquemandanaempresa–,dandoaimpressãodequeseédefensordosmelhoresvaloresdaigualdadeedajustiça.Mesmo toda a fraude golpista damoralidade seletiva é construída como se a TV fossemeroveículoneutrodeinformação.

Assim, no augedodesmantelamento doEstado, da economia e da democracia brasileira, aGlobomostraumasériedeprogramasespeciaisquecriticamofascismodeDonaldTrump,lálongenosEUA,comosenãoestivesseacontecendoalgomuitopioraquicomaprópriaGlobonocentrodoesquemadelegitimação.EcomoseofascismodescritoporGeorgeOrwell–omotedacríticadaTVaTrump–aquinão tivesse o dedo da empresa como um dado fundamental. A Rede Globo opera como uma TVfalsamente pública, daDitadura até hoje, sem qualquermudança. Programas especiais são realizadospara mostrar a corrupção como dado cultural e histórico do Estado e dos políticos, encobrindo omercadoeaaçãodaprópriamídia.ProgramascomoosdeWilliamWaackapresentamopopulismocomogrande farsa petista, confirmando nossa intuição de que esses dois elementos são as mentirasconstitutivasdaviolênciasimbólicaconstruídadesdeoséculopassado.

Acolonizaçãodaesferapúblicaassumenãoapenasaformaderebaixamentodetodososconteúdospara ampliar o público consumidor, ela assume a formada confusão cevada e proposital do interesseprivadosempreapresentadocomopúblico.Coloniza-seaínãoapenasoconsumidordoprodutocultural,mastambémcoloniza-senesseengodoefraudedeliberadaocidadãoinduzidoemumacrençacontraaqualseencontraliteralmentesemdefesa.Éapartirdessaconfusãodeliberada,construídacommaestriatécnicaecujaexpressãoécorporificadaporfigurasbonitas,talentosasecharmosas,queaGloboassumeum papel central e muito mais importante que todos os outros veículos e mídias de comunicaçãosomados.111

AGloboéamídiaporexcelênciaquefezreverberarnapopulaçãoindefesaopactoantipopularquereconstruímos neste livro. O que foi produzido pelos intelectuais na construção da oposição entremercado divinizado eEstado demonizado, quando ocupado por líderes populares, foi a ideia-guia daGloboedojornalqueexistiaantesdisso,todavezquefezpolítica.Atacoudemodovirulentoeajudouno episódio do “suicidamento” deGetúlioVargas, apoiou o golpe de 1964 e se tornou com prazer edesenvoltura a voz da Ditadura. Também perseguiu Leonel Brizola – como sempre por dinheiro – eajudounodesmontedosCIEPSedosinvestimentosemeducaçãopopularnoRiodeJaneiro.Envolveu-seemfraudesexplícitasnaapuraçãodeeleiçõesparabeneficiarMoreiraFrancocontraBrizola.112ApoiouFernandoCollor deMello contra Lula, utilizando-se dos recursosmais baixos que um jornalismo delatrinapodeusar,comaediçãomaldosadodebateentreosconcorrentesparafavorecerCollor.Apoiouavendaeprivatizaçõesdopatrimônio público, enganando seupúblico nogovernoFHCpara facilitar osaquedopatrimôniopúblico.113

OenvolvimentoemepisódioscomoaoperaçãoLavaJatofaz,portanto,partedoDNAdaemissora.Foi a Globo que apoiou, juntamente com a mídia venal, a rejeição da PEC 37, desconhecida dapopulaçãoemgeral,antesqueoJornalNacional,navozdeWilliamBonner,recomendasseasuaturbados“camisasamarelas”asuaderrubadaemnomedocombateàcorrupção.114Ainiciativa,naverdade,era uma medida autoritária de interesse da fração corporativa dominante noMinistério Público, quequeria aumentar seu poder e diminuir controles democráticos que são a regra em toda sociedadecivilizada.Apartirdaí,umasériedevazamentosseletivoseilegais,entãocriminalizandounilateralmenteo PT, levou ao “golpeachment” da presidente eleita pelo voto popular. O conluio entre a Globo,comandandoagrandemídia,eafarsadaoperaçãoLavaJatotemaísuasemente,suaestratégiaeseualvoseletivo. Tudo descarado desde o começo, quando o próprio juiz Sérgio Moro já havia defendido

Page 122: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

explicitamentequeoapoiodamídiaéfundamentalparadeslegitimaropoderpolítico.115Poderpolíticoqueum juiz,monocraticamente, decide ser dignode deslegitimação comalvopartidário seletivo e deumaparcialidadechocante.

Uma espécie de soberania judicial autoconstituída, levando o caso até a própria escuta ilegal dapresidenta,oqueemqualqueroutrolugarondeasleistambémseaplicamajuízesinfladosporumamídiavenal teria que ter levado a sua prisão e destituição do cargo. Esse é certamente um caso único nassociedadesmodernas: umgrupo demídia se intromete seletivamente na política, se alia a juízes comagendaprópriaecorporaçõescominteressesparticularistas,comooMPeaPolíciaFederal,chantageiaeameaçajuízesdetribunaissuperioresepolíticos,usandoa turbaprotofascistadaclassemédiacomomassademanobra,econseguedestronarumgovernoeleitodemocraticamente.

Nãosatisfeita,decideassumiragovernançadasociedadeemsuasprópriasmãos.Ajudaaelegerumgovernoque todos sabiamserumaquadrilhade ladrões,hojedenunciadapor todos, inclusivepor elaprópria, em nome do combate à corrupção.Apoia uma agenda recessiva e retrógrada que nunca teveapoiopopularaoarrepiodavontadedamaiorpartedasociedade. Isso tudocomoseestivesseapenasinformandoarealidadecomoelaé.Narealidade,coubeàGloboopapelprincipal,sendoacompanhada,no entanto, por toda a grande mídia, na construção do estado atual de deslegitimação crônica dasinstituiçõesdemocráticasacusadasdepráticasqueaGlobodeveriatersidoaprimeiraapagar.Comainstânciapolíticafragilizada,eaespadadeDâmoclesdomoralismoseletivonacabeçadapolíticacomoumtodo,aGlobosealçaàinstânciadecisivadoprojetopolíticoemvigor.Oobjetivo,comosempre,élegitimar o saque da elite do atraso sobre a sociedade como um todo, da qual faz parte e da qual étambém,porassimdizer,asuaboca.

Sua sanha se dirige ao PT e aos movimentos populares que o apoiam. A Lava Jato forneceuconcretude ao ataque à democracia pelos vazamentos seletivos ilegais até as eleições municipais de2016,fazendocrerapopulaçãoqueapenasoPThaviacometidoilegalidades.Comessafraude,logroudizimar o partido e fazer o PSDB renascer das cinzas nas eleições daquele ano. Tudo em nome daverdadeedademocracia.AmentirainstitucionalizadapelascorporaçõesdoEstado,quedeveriamzelarporaquiloqueestavamdestruindo,sóhápoucotempoveioàtona.Oqueestáemjogo,portanto,nãoéapenasoataqueàdemocraciaeaoprincípiodasoberaniapopular.Mastambémaopróprioprincípiodaigualdadesocial,queéabandeiramáximadoPT.

Asoberaniapopularfoiatacadaconstantementedesde2013.Éimportanteperceberaquipressupostosimportantes.Mesmoasentençadeumjuiz,quenãoéeleitodiretamente,sótemalgumavalidadejurídicaposto que se pressupõe que foi ungido no cargo por delegação de competência, que pressupõe asoberaniamanifestapopular.Depoisqueanoçãodesoberaniapelodireitodivinodosreiscomsangueazul perdeu validade, o único princípio que justifica e legitima o poder no Ocidente é a soberaniapopularconsagradapelovotodetodososcidadãos.

Não existe saída ao tema da soberania popular como única forma legítima de exercício do poderpolítico.Aopçãoàsoberaniapopularéaviolênciaditatorial.Nãoexistenadanomeiocaminhoentresoberaniapopulareviolêncianuaecrua,assimcomonãoexistemulhermaisoumenosgrávida.Assimsendo, a Globo, no seu ataque à ideia de soberania popular, teve que se valer de uma fraude bemperpetrada:aochamarseupúblicocativoàs ruas,primeiroa fraçãoprotofascistaesódepois,comosvazamentosseletivossócontraoPT,porçõessignificativasdasoutrasfrações,aGlobofabricouailusãodasoberaniavirtual.

Asoberaniavirtualcolonizaopotenciallegitimadordasoberaniapopularaodaraimpressãoquea

Page 123: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

corrige em ato, como povo nas ruas sob amáscara de umademocracia direta comandada pelaRedeGlobo,corrigindooquesefeznasurnas,supostamentesemsaberoqueseestavafazendo.Semisso,nãoseentendedeondeaGloboeagrandeimprensaaserviçodaelitedosaqueretiraramlegitimidadepararealizar a lambança que fizeram no país, fazendo de conta que estavam interessadas no combate àcorrupção.Semafraudegigantescadasoberaniavirtualnãosecompreendeoquesepassoude2013a2016sobabatutadessafábricadementirasinstitucionalizada,hojeliteralmentetãosemcontrolequantoasinstituiçõesecorporaçõesdoEstadoqueaGloboliderounessemassivoataqueàjovemdemocraciabrasileira.

Éclaroqueasempresasarriscamseucapitaldeconfiançanessejogoacreditandoquepodemfazerseu público de tolo o tempo todo.Umcálculo arriscado,mesmo se levarmos em conta a ausência depadrãodecomparaçãodopúblicobrasileiroacostumadoaserusadocomomassademanobrasemnuncater tido acesso a uma mídia plural. A distorção sistemática da realidade nos últimos anos superouqualquer coisa que tenhamos testemunhado antes. A possibilidade de se perceber que as própriasempresasdecomunicaçãofazempartedojogodaelitedoatrasonamanutençãodosprivilégiosdeumameiadúziaemdesfavordapopulaçãocomoumtodosetorna,hoje,maisquenunca,umriscoreal.

Repareoleitorquejamaisserefleteacercadeumsistemapolíticoconstruídoparasercorrupto,ouseja, construído para ser comprado pela elite do atraso para manter seus privilégios econômicos. Oataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidosespecíficos.Issoacontecemesmoqueessetipodemanobramanipulativa,comovemosagoraemmeadosde 2017, não tenha como se manter no decorrer do tempo, agora que o PSDB, o partido da elitefinanceira,estánocentrodosescândalos.Masentre2013e2016apenasoPTfoicriminalizadoeviusuarepresentação ser dizimada pelos vazamentos seletivos comandados pelamídia e por seus aliados noaparelhodoEstado.

O crescente apoio popular à Ditadura, assim como as formas não democráticas também desociabilidade e de ódio aberto que se instauraram noBrasil desde então, tem nessa fraude midiáticagigantescaseuinício.Équeoataquenãoselimitouàdemocracia.AGlobocomoqueconcentraoódioseculareescravocrataaopovoepassaaexpressaropactoelitistaeantipopularemato.AperseguiçãoseletivaesemtréguasaoPTeaosmovimentossociaisqueoapoiamequivaleaumataqueaoprincípiomesmoda igualdadesocialcomovalor fundamentaldasdemocraciasocidentais.Équea lutacontra adesigualdadedoPTedeLulafoitornada,pelapropagandatelevisiva,meroinstrumentoparaacorrupçãonoEstado.

ComooPTfoiomotordaascensãosocialdosmiseráveisepobresemgeral,atacá-locomocorruptoe comoorganização criminosa – sendo acompanhada pelos próprios agentes doEstado envolvidos naoperação Lava Jato nesse ataque inescrupuloso – equivale a tornar suspeita a própria demanda porigualdade.Éa igualdadequeé tornadameioparaumfim,nocasoasupostacorrupção,oque implicaretirarsuavalidadecomovalor,ouseja,comoumfimemsi.AGloboeagrandemídia–esuaaliada,aoperaçãoLavaJato–nãosócontribuíramparaomaismassivoataqueàdemocraciaeaodireitodequesetemnotícia,masatacaramtambém,emumadassociedadesmaisdesiguaiseperversasdoplaneta,aigualdadesocialcomoprincípio,aotorná-lasuspeitaemeroinstrumentoparaoutrosfins.

Depois, quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogio à tortura e àviolênciamaisgrotesca,comoJairBolsonaroeseufascismoaberto,passamarepresentarameaçasreaisà democracia e aos direitos humanosmais elementares, aGlobo e a grandemídia agem como se nãotivessemnenhuma responsabilidade.Escondeo fascismo que pratica diariamente e critica o resultadoqueproduz semassumir amenor responsabilidade pelo que faz.AGlobo e a operaçãoLava Jato, no

Page 124: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

entanto,sãoosagentesprincipaisdessaverdadeiraregressãocivilizacionalquesacodeopaísdeixadoem frangalhos, econômica, política e moralmente, pela ação combinada desses agentes. Para suaaudiênciaimbecilizada,noentanto,comoaGlobocriticaBolsonarodabocaparafora,suaaçãoafavordosvaloresantidemocráticos,queéoque,na realidade, criaocampodeaçãoparaosbolsonarosdavida,passadespercebida.

Oresultado,queéoque importanavida,équeacruzadacontraacorrupçãodos sóciosGlobo egrandemídiaeaLavaJato,queseriaumapiadaridículaedignaderisoeescrachosenãofossetrágica,feriudemortenossojovemexperimentodemocráticoeaindacriminalizoueestigmatizouabandeiradaigualdadesocial.Nadamaisvivificadordonossoódiosecularaospobresdoqueisso.Existealgomaisfielanossatradiçãoescravocrataqueisso?Tudoproduzidoagorasimbolicamente,comosequisesseobemdosnecessitados,dourandoapílulaporfora,quecontém,noentanto,omesmoconteúdovenenosodesempre.

Enãoéapenasaparticipaçãodagrandemídianosesquemasdaelitedoatrasoedosaquequenãointeressa aos paladinos da justiça entre nós, comovimos.O assalto à sociedade fraudada e enganadapode ser ainda muito pior. A grande mídia coloniza para fins de negócios, escusos ou não, toda acapacidade de reflexão de um povo, ao impossibilitar o próprio aprendizado democrático que exigeopiniõesalternativaseconflitantes,coisaquenuncaninguémviuaconteceremépocaalgumaemnenhumdeseusprogramas. Issoequivalea imbecilizarumanaçãoquecertamentenãonasceu imbecil,mas foitornadaimbecilparaosfinscomerciaisdeumaúnicafamíliaquerepresentaeexpressaopiordenossaelitedosaqueedarapina.

Oqueseperdeaqui,comovimosemdetalhenestelivro,ésimplesmenteorecursomaisvaliosodeuma sociedade, que é sua capacidade de aprender e de refletir com base em informações isentas.Distorcer sistematicamente a realidade social ementir e fraudar uma população indefesa é, por contadisso,fazerummalincomparavelmentemaiorquesurrupiarqualquerquantiafinanceira.Équeomalaquiproduzidoéliteralmenteimpagável.Oquesefrustraaquisãoossonhos,osaprendizadoscoletivoseasesperançasdecentenasdemilhões.Oqueseimpedeaquiéoprocessohistóricodeaprendizadopossíveldetodoumpovoqueéabortadoporumaempresaqueagecomoumpartidopolíticoinescrupuloso.Issoapenasparaquefiqueregistradoanoçãodemalmaioremumasociedadequetendeaperderqualquercritériodeaferiçãoedecomparaçãodegrandezasmorais.

Mas o aspecto econômico do conluio entre a Globo e a Lava Jato também é estarrecedor. Umaempresavenalepoliticamenteradicalizada,agindosobosauspíciosdeumaconcessãopública,sejuntacomservidorespúblicoscegospor interessescorporativos,parapromover a pior recessão econômicacommilhõesdedesempregadosfrutosdesuaaçãodireta.Piorainda.Destroçandoanosdetrabalhoemdireçãoaumainserçãoeconômicainternacionalmaisautônomadopaísemenosdependente.

Não vamos ser ingênuos.O início da Lava Jato foi a perspectiva de se acabar com o sonho dosBRICS e dos brasileiros que aspiram a um país próspero para a maioria. Os americanos são osdefensoresdeumstatusquomundialondeoBrasileaAméricaLatinasóentramcomofornecedoresdematéria-prima, sem acesso a progresso industrial e tecnologia de ponta.A tecnologia para a usina deVolta Redonda, por exemplo, antes sempre recusada pelos EUA, teve que ser conseguida comocontrapartidadaentradadoBrasilnaSegundaGuerra.

OBrasildeveriaedevesubsistir,paraosamericanos,comoquintalempobrecidoemercadointernocolonizado.Opré-saleaPetrobraseramacartanamangadopaísparaumainserçãointernacionalmenosdependente.Comumesquemadeespionagemcomacessoatodosose-mailseacomunicaçãovirtualde

Page 125: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

todoomundo,comoficouprovadonosescândalosenvolvendoaliadoscomoaAlemanhaeaescutadacomunicaçãopessoaldaprimeiraministraAngelaMerkel,sóbastavaaCIAmuniciarosinimigosdoPTparadarinícioàoperaçãodesmonte.116Afinal,seexisteumacoisaquenãomudanaAméricaLatinaéqueosEUAestãoportrásdetodososgolpesdeEstado.

Essefoioresultadoreal,independentedoquejuristasimaturoseaçodadosmidiaticamentetenhamnacabeça,doconluioGlobo/grandeimprensaeLavaJato.AíseempobreceoEstadodoRiodeJaneiroaopontododescalabropúblicoe tem-seapachorradeculpar os 3%depropinadoSérgioCabral.Masquemmatou o Rio de Janeiro foi a ação da Globo à frente da imprensa golpista e da Lava Jato aoacabarem com a Petrobras, de quem o Rio de Janeiro é dependente, para vender o pré-sal aossaqueadoresdedentroede foradopaís.Troca-se a corrupção real, que retira as chancesdevidadecentenas de milhões, para se culpar a “corrupção dos tolos”, a da propina dos políticos, que éobviamentenefasta,masqueequivaleadosaviõezinhosdotráficodedrogas.

Se compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, do qual ele não se separa a não ser porexterioridades, a política e os políticos são os aviõezinhos que sujam asmãos, se expõem à políciaseletivaeficamcomassobrasdaexpropriaçãodapopulação.Abocadefumosãoosoligopólioseosatravessadores financeiros, que compram a política, a justiça e a imprensa de tal modo a assaltarlegalmente a população. Todas as reformas agora em discussão, apoiadas pela imprensa e peloempresariado, visamo arrocho salarial e a opressão dos trabalhadores e aposentados, para aumentaraindamaisolucrodessameiadúzia.

JáaPEC55,quecongelaosgastoscomsaúdeeeducação,garanteopagamentodosjurosreaismaisaltos do planeta – um assalto ao bolso coletivo que só os feitos de imbecis não percebem – por umorçamentopagopelospobres.Cinquentaetrêsporcentodoorçamentoépagoporpessoasqueganhamaté três salários mínimos, em um contexto onde os ricos ou não pagam imposto, ou o sonegam emparaísosfiscais.Esseéoassaltoeacorrupçãoreal,queacorrupçãodostolos–sódospolíticos,comopassanaGloboenarevistaVejaeépercebidanaLavaJato–temopapeldeesconder.

Como cidadão feito de completo imbecil, é fácil convencê-lo de que aPetrobras, como antro dacorrupçãodostolos,sódospolíticos,temqueservendidaaosestrangeiroshonestoseincorruptíveisquenossainteligênciavira-latacriouenossamídiarepeteempílulastodososdias.Combasenacorrupçãodostolos,cria-se,nasociedadeimbecilizadaporumamídiavenalquedistorcearealidadeparavendê-lacommaiorlucropróprio,asprecondiçõesparaacorrupçãoreal,avendadopaísedesuasriquezasapreçovil.Esse é o resultado real e palpável do conluio entre grande imprensa, com aRedeGlobo àfrente, e a Lava Jato: é melhor entregar de vez a Petrobras, a base de toda uma matriz econômicaautônoma,aosestrangeiroshonestosebem-intencionados.Oquantoselevounessatramoiasósaberemos,comosempre,quandoformuitotarde,tantoparaosculpadosquantoparaascentenasdemilhõesdevidasempobrecidasedesempregadas.

O que se fez com a Odebrecht e a Petrobras foi algo que só uma sociedade completamenteimbecilizadaporumamídiapagaporsaqueadoreslegalizadosdariquezadetodostornapossível.Dosamericanos pode-se dizermuita coisa,mas, nunca, que foram ou são imbecis que destroem a riquezanacionaleacapacidadeprodutivanacionalcomoaGloboeaLavaJatoajudaramafazer,passando-sepor moralizadores da nação. Nos EUA, não só apenas pessoas são responsabilizadas, mas nuncaempresas comoum todo, comonaLava Jato. Para não provocar perdas na economia nacional, tudo éresolvidoemsecretsettlements (acordossecretos),entrecorporaçõeseinstânciasdaadministração.117AGlobo,emassociaçãocomagrandemídiaamaiorpartedotempo,eaLavaJatofizeramocontrário

Page 126: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

disso e a nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram elegitimaramacorrupçãorealcomonuncaantesnestepaísdasmultidõesdeimbecilizados.

Comoaconduçãodoprocessogolpistaé,emgrandeparte,externa,existe,inclusive,abemfundadasuspeitadealgunsdenossosmelhoresjornalistasinvestigativos118dequeaGlobojáestejaemmãosdoserviço de espionagem americano que tudo sabe, posto que espiona, controla e tem acesso a todainformaçãotrocadademododigitalnoplaneta.TendoaGlobosidoaemissoraeleitaparaserparceiradaCBFedaFIFAdurantedécadas,restaaocidadão,aindanãofeitodecompletoimbecil, imaginaroqueaCIAeaNSAtêmnamangapotencialmentecontraaGlobo,depoisdadevassaquerealizaramnosnegóciosescusosdaentidademaiordofutebolmundial.Precisamenteofutebol,ofundamentodolucromaior da Globo. Imagine a chantagem: apresentar a empresa que posa de defensora da honestidadenacional, uma verdadeira “virgem no cabaré”, em negócios que não ficam nada a dever aos SérgioCabraldavida?

EstariaoapoiodaemissoraàdelaçãodeJoesleyBatista,quetransfeririasuaempresaparaosEUA–comovimosnosEUAosórgãosdeEstadoprotegemaeconomianacionalemvezdedestruí-lacomofaznossoPoderJudiciário–,dentrodessecontexto?Talvez,maisumavez,jamaisosaibamosantesquesejamuito tardeparaacharosculpados.Parecequeestamosnosespecializandoemperseguirpormétodosjurídicospoucoortodoxosos suspeitosda corrupçãodos tolos, enquantoa corrupção real, do conluioentremercado,mídiaecorporaçõesjurídico-policiaisdoEstado,podepassarimpune.

O fundamento da confusão entre corrupção real e corrupção dos tolos é uma leitura enviesada einteressadadasociedadebrasileira,aqual,noentanto,logrouconfundireenganartantoadireitaquantoaesquerda.Énecessárioaprendercomanossacatástrofequeérecorrente.Asfalsasideiasexistemparafazeraspessoasdetolas,postoqueapenasosfeitosdetolosdãodebomgradoevolitivamenteoprodutode seu esforço a quem os engana e oprime. Sem uma crítica das ideias, não existe prática socialverdadeiramentenova.AideiacentralquenosfazdetoloséadequenossahistóriaeahistóriadenossasmazelastêmsuaraiznopatrimonialismosódoEstado.FoiporcontadelaqueaRedeGloboeaLavaJato legitimaram seu ataque combinado à economia e à sociedade brasileira. É a pseudoexplicaçãopatrimonialista que está no lugar da explicação pela escravidão e por sua herança de ódio e dehumilhaçãodosmaisfrágeis.

Éelaquelegitimaacorrupçãodostolos,queseregozijadeterrecuperadoamerrecadeR$1bilhãonaoperaçãoLavaJato,comofezRodrigoJanotemartigorecente, issoaopreçodedestruiçãode todaumaestruturaprodutivaemilhõesdeempregosperdidos?Ouseja,àcustadenossofuturo.AcorrupçãodostolosdafarsadaLavaJatoedaRedeGloboeseussóciosdagrandemídiacompradasóexisteparatornarinvisívelacorrupçãorealdaqualsãosócios.ExemplodacorrupçãorealéarecenteoperaçãodogovernoTemer,umamarionetedaelitedoatraso,que fezopaíseaReceitaFederalperderemR$25bilhões em decisão suspeita em favor do banco Itaú. Só nessa operação, carregada de suspeiçãoenvolvendo denúncias de venda de votos,119 o país perdeu 25 vezes mais que o recuperado pelacorrupçãodostolosdaLavaJato.

A cobertura da grande imprensa para esse tipo de transação suspeita é pífia por boas razões.Primeiro,osbancossãoosmaioresanunciantes,alémdeparceirosdenegóciosenegociatas.Depois,sóemumatransaçãorelativaaosdireitosdetransmissãodaCopade2002,aGloboteriasonegado,segundoauditoriadaReceitaFederal,emintrincadoesquemadeocultaçãoemparaísosfiscais,R$358milhõesao fisco.120 Outras grandes empresas de comunicação estariam na mesma situação segundo outrasauditorias.121FicaexplicadoporqueessetipodecorrupçãojamaisaparecenaGloboNews.

Page 127: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

A elite do atraso e seu braço midiático fazem parte, portanto, do mesmo esquema de depenar apopulaçãoemseubenefício.Éoqueexplicaaconstantenecessidadedecriarespantalhosparadesviaraatençãodopúblicodoquelheésurrupiadoeexplicarapenúriaqueseusaqueprovocaporoutrascausas.Oespantalhoperfeitoéacorrupçãodos tolossódapolítica,quandoessessãomeros lacaiosdequemfinancia sua eleição para que protejam seus privilégios no mercado. Usa-se o desconhecimento dapopulação, provocado pela distorção sistemática da realidade produzida pela própria mídia, paramanipulá-laaosabordaconjunturaqueconvémàelitedoatraso.

Quemcomandaoassaltoàpopulaçãoéafraçãofinanceiradocapitaledapropriedadepormeiodeumadívidapúblicaquesócresceepelomecanismode transferênciade rendavia juros e controledoorçamento público. Como as outras frações dos proprietários, como a indústria, o comércio e oagronegócio,retiramolucrograndetambémdaespeculaçãofinanceira, issoexplicaqueocomandodetodooprocessoeconômicoepolíticosejaexercidopelafraçãodosrentistas.

Que esse processo, por sua vez, representa um ataque direto à população como um todo por umapequena elite do saque fica claro quando vemos que os grandes bancos lucram mais, precisamente,quando o país como um todo fica pior. Emmeio à crise atual, por exemplo, em agosto de 2017, oBradescoeo Itaú,osdoismaioresbancosbrasileiros, registraram lucros estratosféricos.122Em2015,quandoopaísafundavanamaiorcrisedesuahistória,oItaú teveseumaior lucro,somandoR$23,35bilhõesou15,4%amaisemrelaçãoa2014,anoemquejátinhabatidoorecordeanteriorcommaisdeR$20bilhões.123OBradescoveio logo atrás.Como isso épossível?Como tamanha transferência derendaérealizadasemqueninguémnagrandemídianosesclareçacomoelaacontece?

É importante, por conta disso, analisar a corrupção real e não apenas a dos tolos propagada pelagrande imprensa. Certamente, nunca fomos tão feitos de tolos quanto na questão central da políticanacional: a dívida pública. Todo o orçamento público e toda a arrecadação tributária, que é obtidaonerandoprecisamenteosmaispobresnoBrasilsegundopesquisadoIPEA,124foramcapturadosparaoserviçodessadívidadeorigemobscura.Primeiramente,paraespecialistasdoportedeumAmirKhair,que estuda o fenômeno há décadas, as dificuldades fiscais do país não têm relação com as despesasconjuntasdapopulaçãoemeducação,saúdeeprevidência,comoamídiainforma,massimcomosjurosaltoseaaltataxaSelic.Aconclusãodesuaspesquisasinformaque98%dodéficitdosetorpúblicotêmavercomosjurosmaisaltosdomundoesó2%édéficitnominal.125AbaleladequeasaltastaxasdejuroservemaocontroledainflaçãoédesmentidapelofatodequeoscomponentesprincipaisdoIPCAtêmimpactoquasenulonataxadejuros.

OBrasil, governado pelos lacaios do sistema financeiro, precarizou sua saúde, sua educação, suacapacidade de produção de tecnologia e de pesquisa, em suma, está comprometendo seu futuro e seupresenteparaengordaruma ínfimaelitedodinheiro, esta sim,verdadeiramente,predadora e corrupta.Afinal, para seus mais dedicados estudiosos, como a coordenadora nacional da auditoria cidadã dadívida pública, a pesquisadoraMaria Lúcia Fatorelli, a dívida pública é a verdadeira corrupção. Oesquema criminoso foi tornado sagrado pela associação entre atravessadores financeiros, como osgrandes bancos de investimento aqui e lá fora, e seus sócios menores no aparelho de Estado – ascorporaçõesjurídicasmaiscarasdomundoquerecebemumaespéciede“propinadeclasse”daelitedodinheiroparadefenderseusinteresses–enamídia.

ParaFatorelli, que temparticipadodeauditoriasdedívidaspúblicas em todoomundo,o próprioiníciodadívidapúblicanosanos1990, sobogovernodograndeamigodosbancosque foiFernandoHenriqueCardoso,éobscuroeexisteasuspeitabemfundadadequedívidasjáprescritastenhamsidoo

Page 128: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

iníciodaboladenevequehojenostiraofuturoeopresente.AtaxaSelicde45%aoano,nogovernoFHC,turbinouumadívidadeorigemsuspeitaatétorná-laimpagávelcomoelaéhoje.Todooorçamentopúblicoéusadoparapagarjurosapenas,semqueadívidaemsisejajamaisdiminuída.Umadívidasemcontrapartida, imoral, ilegal e que só engorda uma ínfima elite do dinheiro que comprou a política, ajustiça e a mídia. Todos nós, que pagamos impostos, trabalhamos para esse esquema criminoso einconstitucionalquesetornainvisível,porquefomosfeitosdeimbeciseolhamosparaacorrupçãodostolos. Imbecis somos nós todos, ainda que em medida variável. O esquema se desdobra nos níveisestadual e municipal com a venda de ativos públicos e da própria arrecadação, muitas vezes semcontrapartida, diretamente para os atravessadores financeiros, como já está acontecendo nas grandescidadesbrasileiras.126Édessemodoqueolucrodessepessoalaumentaenquantoapopulaçãoficacadavezmaispobre.

Isso tudo, caro leitor, sem contar os R$ 520 bilhões em paraísos financeiros, fruto da sonegaçãofiscal dos milionários, em um país em grave crise fiscal, depositados no exterior. Um dinheiro queresolveriaafabricadacrisefiscaldoEstadobrasileiro,queestancariaacatástrofedoEstadodoRiodeJaneiro–reduzidoàmisériapelaaçãolesivadaLavaJatoedagrandeimprensaparapoderentregaraPetrobrasaosestrangeiroshonestos–segundoestudosdoTaxJusticeNetwork.127Enãoesqueçamosqueissoaconteceemumcontextoondeessesricosjápagammuitopoucoounadadeimposto,secomparamoscomospaísesricosdaOrganizaçãoparaaCooperaçãoeDesenvolvimentoEconômico(OCDE).128

Finalmente,caroleitor,nãonosesqueçamosdequetemosamaiortaxadejurosdoplaneta,embutidaemtudooquecompramos–quercompremosacréditoounão.Créditosessesquesomam15%doPIBouR$1trilhãotodososanos,segundodadosdopróprioBancoCentral.129Sesepararmosadiferençaentreos jurosextorsivos,praticadosaqui, comamédiade juros internacionais,quantascentenasdebilhõespagamostodososanos,semqualquermotivoaparentesenãoaganânciadosaquesobreumapopulaçãoindefesa, paranossos rentistas?Certamenteumagrandeza em tornodeoitocentasou novecentas vezessuperior ao montante orgulhosamente recuperado pelos paladinos da justiça da Lava Jato, a farsaprincipaldacorrupçãodos tolos.Nãonosesqueçamosdequeesse saquevia juros acontece todososanos. Essa é a real “boca de fumo” do nosso capitalismo, que só se separa do narcotráfico porexterioridades. A fonte real do assalto à população, que se torna invisível posto que toda a atençãomidiáticaévoltadaaosaviõezinhosdapolíticaqueficamcomassobras.Os3%dosSérgioCabraldavidapermitemtornarinvisívelacorrupçãoeoassaltoreal.

Caroleitor,vocêconhecealgumasociedadequetenhasidofeitadeimbecilaessepontopelanossacorrupçãodostolos?Eunãoconheço.Oinícioparaarecuperaçãodenossainteligência,roubadaporummecanismodedistorçãosistemáticadarealidadepelagrandemídia, temqueserpelaadmissãodequefomostodos,vocêeeu,feitosdeimbecis.Nãoexisteoutrocaminho.Nãoseaprendenadanavidasemahumildadeea coragemdeadmitirquenão se sabiamelhoreque sedeixouenganar.Nãoexisteoutrocaminhopararefazeravida.

Oespantalhodacriminalizaçãodapolítica só serveparaquea economiadispenseamediaçãodapolíticaeponhaseuslacaiossemvotoequesevangloriamdesuaimpopularidadevendidacomocartãodevisitasparaaelitedoatraso,comogarantiadaobediênciacegaàelitenarapinadapopulaçãocomoumtodo.Jáoespantalhodacriminalizaçãodaesquerdaedoprincípiodaigualdadesocialsóserveparaqueajustaraivaeoressentimentodapopulação,quesofresementenderosreaismotivosdosofrimento,percamsuaexpressãopolíticae racionalpossível.Foiassimqueamídia irresponsávelpossibilitou epavimentouocaminhoparaaviolênciafascistadoódiocegodosbolsonarosdavida.Oódiofomentadotodos os dias ao PT e a Lula produziu, inevitavelmente, Bolsonaro e sua violência em estado puro,

Page 129: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

agressividade burra e covarde.Agora, uma população pobre e àmercê de demagogos religiosos estáminandoaspoucasbasescivilizadasqueaindarestamàsociedadebrasileira.Essadívida temquesercobradadamídiaquecometeuessecrime.

Em relação aos setores conservadores da classe média, também, sua arregimentação pela elite apartirdacantilenadopopulismo,queéaversãoacadêmicadoódioaospobres, apenasa tornaagoramuitomaisexploradapelaelitequedefende,emtrocadapífiamanutençãodadistânciasocialemrelaçãoaospobres.Queaclassemédia,assimcomoamídiaeascorporaçõesdeEstadoqueseenvolveramnogolpe,nuncaderamamínimaparaacorrupçãoficaempiricamentecomprovado,agora,pormeiodesuapassividade total, enquanto a corrupçãomostra sua facemais danosa emais assassina.Onde estãoos“camisasamarelas”?Ondeestãoaspanelas?Acontadoódioaospobresfoioempobrecimentodetodos.

Seráquevaleuapena tudo issoparapagar saláriosde fomeàs empregadasdomésticas e nãovermais pobres nos aeroportos, nos shopping centers e, principalmente, nas universidades? Afinal, aeducação, a saúde e a previdência, agora sucateadas peloEstado capturado, abrem caminho para queessas áreas se tornem o novo negócio dos bancos, que controlam agora crescentemente essas áreastambém.Aliás, já ficou tudomais caro, não émesmo, leitor? Quanto seu plano de saúde privado jáaumentouesteano?Algunschegaramadobrar.Certamente,vaiaindaficarmuitopior.Seráquevaleapenatudoissoparamanterosescravosnoseulugar?Oamordegrandepartedaclassemédiapelaeliteéamordemulherdemalandro.

Masoinstantedecrisequenósvivemostorna,também,issotudoclarocomoaluzdoSol.Essaéagrandeoportunidadedemudançanomeiodastrevasemquevivemoshoje.Sónãovêaverdadequemnãoquerouquemperdeudevezacapacidadedeproduzir sinapsesnocérebro,oórgãomaisadoentadoefragilizadopelovenenodiáriodeumamídiaqueganhadinheirocomofábricadementiras.Aesperançade hoje tem que ser uma adaptação contemporânea do velho chamado aos explorados: os feitos deimbecis de todo o país: uni-vos! Recuperemos nossa inteligência, voltemos a praticar a reflexãoautônomaqueéachavedetudoquearaçahumanaproduziudebonitoededistintonavidadaespécie.Afinal,tudoquefoifeitoporgentetambémpodeserrefeitoporgente.

Page 130: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

NOTAS

1 SOUZA, Jessé.Amodernização seletiva. Brasília: UnB, 2000;A construção da subcidadania.BeloHorizonte:UFMG,2003;Aralébrasileira.BeloHorizonte:UFMG,2009;Atolicedainteligênciabrasileira.SãoPaulo:LeYa,2015.

2SOUZA,Jessé.Atolicedainteligênciabrasileira.3OfilósofofrancêsGastonBachelardéumdosgrandespensadoresdessavisãodaciênciaqueteve

extraordináriainfluênciaemfigurascomoMichelFoucaulteumainfinidadedeautoresimportantes.Ver,por exemplo: BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro,1968;Oracionalismoaplicado.RiodeJaneiro:Zahar,1977.

4Ver,porexemplo,entrecentenasdetítulospossíveis,oclássico:ALMOND,GabrielA.;VERBA,Sidney.Thecivicculture:politicalattitudesanddemocracyinFivenations.Londres:SAGE,1989.

5Ver:KNÖBL,Wolfgang.SpielräumederModernisierung.Weilerswist:Velbrück,2001.6Ver,porexemplo:EISENSTADT,Shmuel.Tradition,changeandmodernity.Flórida:JohnWiley

andsons,1983.7JürgenHabermas,porexemplo,dizquesuateoriacomunicativasóseaplicaao“AtlânticoNorte”

semexplicar porquenão se aplicaria no restodomundo.Ver:HABERMAS, Jürgen.Die Theorie deskommunikativen Handelns. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. Acerca de situação semelhante em PierreBourdieu,veromeuAtolicedainteligênciabrasileira.

8Ver:TAYLOR,Charles.Asfontesdoself.SãoPaulo:Loyola,2001.9 Ver por exemplo: PARSONS, T.; SHILLS, E. Towards a general theory of action New York:

Harper,1962.10Ver:STOCKING,George.Race,cultureandEvolution.Chicago:ChicagoPress,1982.11BUARQUE,Sérgio.RaízesdoBrasil.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2001.12SOUZA,Jessé.Aconstruçãosocialdasubcidadania.3.ed.SãoPaulo:LeYa,2017.Noprelo.13 Além dos meus A construção da subcidadania e A ralé brasileira, ver: Os batalhadores

brasileiros:novaclassemédiaounovaclassetrabalhadora.BeloHorizonte:UFMG,2010.14FREYRE,Gilberto.Casa-grandeesenzala.Lisboa:LivrosdoBrasil,1957.15Ibid.,p.17e18.16Ver:WILLIS,JohnRalph.SlavesandSlaveryinMuslimAfrica.Londres:FrankCass,1985.17FREYRE,Gilberto.Novomundonostrópicos.SãoPaulo:Edusp,1969.18Ibid.,p.180.19Ibid.,p.180.Destaquedoautor.

Page 131: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

20Ibid.,p.180.21Ibid.,p.181.22Ibid.,p.181.23 Para Freud, tanto o sadismo quanto o masoquismo são componentes de toda relação sexual

“normal”desdequepermaneçamcomocomponentessubsidiários.Éapenasquandooinfligirourecebera dor transforma-se em componente principal, ou seja, passa a ser o objetivomesmo da relação, quetemosopapeldeterminantedocomponentepatológico.

24 ELIAS, Norbert. Über den Prozeß der Zivilisation: Soziogenetische und PsychogenetischeUntersuchungen.Frankfurt:Suhrkamp,1976.VolumesIeII.

25ParaElias,um”pontozero”,uminícioabsoluto,nessetema,nãoexiste.Vol.I,p.75.26Ibid.,p.278.27FREYRE,Gilberto.Casa-grandeesenzala,p.59.28Ibid.,p.361.29Ibid.,p.354.30Ibid.,p.354.31VerespecialmenteacontribuiçãodeErichFromm,nocontextodosestudosrealizadosnadécada

de30,nacoletânea:StudienÜberAuthoritätundFamilie.DietrichzuKlampen,1987.32FREYRE,Gilberto.Casa-grandeesenzala,p.60,326e332.33FREYRE,Gilberto.Sobradosemucambos.RiodeJaneiro:Record,1990.34DEGLER,Carl.NeitherBlacknorWhite:SlaveryandRaceRelationsinBrazilandUnitedStates.

Madison:WisconsinUniversityPress,1971.p.84.35FREYRE,Gilberto.Casa-grandeesenzala,p.34,153,222e223.36VerminhacríticaemAtolicedainteligênciabrasileira.37Esseprocesso,nocasoeuropeu,éanalisadoadmiravelmenteporJürgenHabermas,emseu:Die

StrukturwandelderÖffentlichkeit.Berlin:Luchterhand,1975.38FREYRE,Gilberto.Sobradosemucambos,p.171-177.39Ibid.,p.88.40Ibid.,p.336.41Ibid.,p.489-508.42DEGLER,Carl.NeitherBlacknorWhite,p.205-265.43 Ver, mais adiante neste livro, a discussão sobre classe social e como essa classe singular é

construída.44FREYRE,Gilberto.Sobradosemucambos,p.399.45SOUZA,Jessé.Aradiografiadogolpe.SãoPaulo:Leya,2016.46Ibid.,p.366.47“Todos”osgrandesclássicosdasciênciassociaissouberamcompreenderatremendarevolução,

em todos os aspectos da existência humana, que a influência dessas instituições acarreta. Desde aabstraçãorealdotrabalhoemMarxàentronizaçãodarazãoinstrumentalemMaxWeber,ouaredefinição

Page 132: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

da subjetividade em todas as suas dimensões a partir do impacto da economia monetária em GeorgSimmel,ouaindaamudançaestruturalnasformasdedominação,especialmenteaconstituiçãodoEstadomodernocomseumonopóliodaviolênciafísica,esuainfluênciana“psique”modernaemNorbertElias.

48EssetemaéumdosfioscondutoresdolivrodeGeorgeReidAndrews:BlacksandWhitesinSãoPaulo1888-1988.Madison:UniversityofWisconsinPress,1991,especialmentep.54e90.

49GUIMARÃES,AntonioSérgioAlfredo.RacismoeantirracismonoBrasil.SãoPaulo:Editora34,1999.p.47.

50 FERNANDES, Florestan.A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática,1978.

51Ver:SOUZA,Jessé.Aconstruçãodasubcidadania.52SOUZA,Jessé.Aralébrasileira.53FERNANDES,Florestan.Aintegraçãodonegronasociedadedeclasses,p.26e27.54Ibid.,p.200.55Ibid.,p.92.56Ibid.,cap.III.57Ibid.,p.285.58Ibid.,p.300.59Sãoos trabalhos seminais dePierreBourdieu, a partir dos anos1960 e 1970, que abrem esse

novocontinenteparaasciênciassociais.60VeromeuAralébrasileira.61Otemadadiversidade,comoformadeprotegerasminoriasidentitárias,foiutilizadoparatornar

invisíveladesigualdadedeclassenoacessoariquezaepoder.Comisso,tantoocapitalismofinanceiroquanto a Rede Globo podem tirar onda de emancipadores. Para o capital, é irrelevante se ele estáexplorandohomemoumulher,brancooupreto,homossexualouheterossexual.

62Ver:BOURDIEU,Pierre.Adistinção.SãoPaulo:Edusp,2009.63E, hoje em dia, na sociedade do conhecimento, a posse de conhecimento aplicado à produção

como a base para inovações tecnológicas que se transformam em capital econômico de enormevalorização.PensemosemBillGatesouSteveJobs.

64SOUZA,Jessé.Aralébrasileira.65Ibid.66SOUZA,Jessé.Aradiografiadogolpe.67SOUZA,Jessé.Aralébrasileira.68WEBER,Max.DieWirtschaftsethickderWeltreligionen:HinduismusundBuddhismus.Tübingen:

Mohr,1991.69WEBER,Eugen.Peasantsintofrenchmen.Stanford:StanfordUniversityPress,1976.70Osassassinatosde índios e trabalhadores ruraisno“totalitarismocorporativo”denossosdias,

resultadodogolpede2016,voltaramcomtodaforçaaosnoticiários.71DELROIO,JoséLuiz.Agrevede1917.SãoPaulo:AlamedaEditorial,2017.72HABERMAS,Jürgen.StrukturwandelderÖffentlichkeit.Frankfurt:Suhrkamp,1975.

Page 133: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

73ADORNO, T.W.;HORKHEIMER,M.Dialektik der Aufklärung. Verlag: Fischer Taschenbuch,1995.

74ParaoleitorfamiliarizadocomostextosdoHabermasmaduro,especialmentecomseulivromaisambicioso sobre a teoria da ação comunicativa, é fácil perceber, já nesse escrito da juventude, umaprimeiraformulaçãodatesedacolonizaçãodomundodavida.VerHabermas,J.1985.

75WEFFORT,Francisco.Opopulismonapolíticabrasileira.SãoPaulo:PazeTerra,1978.76ALMEIDA,Alberto.Acabeçadobrasileiro.RiodeJaneiro:Record,2007.77O jornalOEstado de S. Paulo passa a publicar inúmeros panfletos denunciando a “república

socialistasoviéticadoBrasil”construídapelosmilitaresdogolpeanticomunistade1964.Valechegaraoridículoparaviabilizarosaquedaelitedodinheiro.

78AGloboeratãoligadaaosmilitaresquefoiaúltimaaaderir.79DepoimentodeLuisNassifaoautor.80VeraspesquisasempíricasemAralébrasileira.81Comonobelomovimentodosestudantessecundaristascontraoscortesnaeducaçãopública.82STREECK,Wolfgang.GekaufteZeit.Frankfurt:Suhrkamp,2013.83Ibid.84GORZ,André.Miseriasdelpresente,riquezadeloposible.BuenosAires:Paidós,1998.Cap.II.85Ibid.86 Ver: BOLTANSKY, L.; CHIAPELLO, E.O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins

Fontes,2009.87ArtigopublicadopeloPGRdoMPRodrigoJanotnaFolhadeS.Paulo,de25demaiode2017,

intituladode“Ocustoderomperocírculodacorrupção”.88EntrevistacomMariaLúciaFatorellipublicadaem09dejunhode2015pelositedarevistaCarta

Capital.89 A pesquisa “A radiografia do Brasil contemporâneo” realizou mais de seiscentas entrevistas

qualitativasemtodooBrasilcompessoasdetodasasclassessociais.Seuobjetivoinicialdeproduzirmaterial de reflexão para o programa “Pátria Educadora” foi abortado pelo golpe de 2016, mas setransformounomaiorbancodedadosqualitativossobreoBrasilcontemporâneo.

90Refiro-meaquiànoçãode“populismo”,cujomaiordivulgadorfoiFranciscoWeffortnoBrasil,queconsolidaoracismodeclasseaotornarsuspeitademanipulaçãoqualquerliderançapopular.

91FAORO,Raymundo.Osdonosdopoder.PortoAlegre:Ed.Globo,1984.p.4.92 WEBER, Max. Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen: Konfuzianismus und Taoismus,

Tübingen:J.C.B.Mohr,1991.93Precisamentenesseequilíbriodeforçasentreburguesiaascendenteenobrezadecadentepercebe

Eliasomomentomaispropícioparaamonarquiacentralizadaabsoluta.94FAORO,Raymundo.Osdonosdopoder,p.46e47.95EntrevistaaojornalistaMarceloCoelhoparaFolhadeS.Paulo,SuplementoMAIS,de14demaio

de2000.96WEBER,Max.WirtschaftundGesellschaft.Tübingen:J.C.B.Mohr,1985.p.130-139.

Page 134: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

97Ibid.,p.134e137.98 Ibid., cap.V, p. 245-381 e texto primoroso de PierreBourdieu acerca da estrutura triádica do

camporeligiosoverificávelemváriasesferas importantes,comoapolíticapor exemplo.BOURDIEU,Pierre.Uma interpretaçãoda teoriada religiãodeMaxWeber. In:Aeconomiadas trocas simbólicas.SãoPaulo:Perspectiva,2011.p.79-181.

99Ibid.,p.671e676.100 Ibid., p. 662, e SCHWINN, Thomas. Differenzierung ohne Gesellschaft: umstellung eines

soziologischenKonzepts.Weilerswist:VelbrückWissenschaft,2001.p.216.101Ibid.,p.211-302.102Ibid.,p.217.103WEBER,Max.WirtschaftundGesellschaft,p.642-646.104OsdoisgrandesnomesdarecepçãoweberiananoBrasilsãoSérgioBuarqueeRaymundoFaoro.105WEBER,Max.WirtschaftundGesellschaft,p.650.106WEBER,Max.DieWirtschaftsethikderWeltreligionen:KonfuzianismusundTaoismus.107 LAMOUNIER, Bolivar; SOUZA, Amaury de. A classe média brasileira. Rio de Janeiro:

Campus,2009.Vertambémobest-sellerAcabeçadobrasileiro,deAlbertoCarlosdeAlmeida(RiodeJaneiro:Record,2007).

108FAORO,Raymundo.Osdonosdopoder.109VeromeuAradiografiadogolpe.110Verosinteressantestrabalhosdaprofa.MariaEduardaRochadaUFPE.Dentreeles,“Onúcleo

GuelArraesdaRedeGloboeaconsagraçãoda‘periferia’”.111 Ver: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/06/rede-globo-e-emissora-preferida-aponta-

pesquisa-encomendada-pelo-governo-federal.html>.Acessoem:agostode2017.112 AMORIM, P.H.; PASSOS, Maria Helena. Plim-plim: a peleja de Brizola contra a fraude

eleitoral.SãoPaulo:Conrad,2005.113Ver:BIONDI,Aloysio.OBrasilprivatizado.SãoPaulo:Geração,1999.114VeromeuAradiografiadogolpe.115 MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani pulite (Mãos limpas).

Disponível em: <https://ferreiramacedo.jusbrasil.com.br/artigos/187457337/consideracoes-sobre-a-operacao-mani-pulite-maos-limpas>.Acessoem:agostode2017.

116OfilmeSnowden,deOliverStone,aocontaravidadofamosoespiãoamericanoquesevoltoucontraaestratégiadeescutaplanetáriadeseupaís,apontaaPetrobrascomoempresa-chavequecabiadesestabilizar.

117 Ver: “Corporate settlemnts in The United States: criminalization of american business”, TheEconomist,29deagostode2014.

118“XadrezdecomoaGlobocaiunasmãosdoFBI”,JornalGGN,porLuisNassif,em22dejunhode2017.

119 Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/04/10/decisao-do-carf-sobre-fusao-de-bancos-faz-receita-deixar-de-arrecadar-r-25-bi.htm>.Acessoem:ago.2017.

Page 135: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

120Disponível em:<https://pragmatismo.jusbrasil.com.br/noticias/127902357/divida-da-globo-em-impostos-chega-a-r-358-milhoes>.Acessoem:ago.2017.

121 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/por-que-a-divida-da-globo-nao-e-manchete-de-jornal-670.html>.Acessoem:ago.2017.

122 Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/apesar-da-crise-bradesco-e-itau-fecham-o-trimestre-com-alto-lucro/>.Acessoem:ago.2017.

123 Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2016/02/lucro-do-itau-unibanco-atinge-r-2335-bilhoes-em-2015.html>.Acessoem:ago.2017.

124 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/carga-tributaria-dos--mais-pobres-de-54-diz-estudo-do-ipea-3127574>.Acessoem:ago.2017.

125 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3233&catid=30&Itemid=41>.Acessoem:ago.2017.

126VeraentrevistadeMariaLúciaFatorelliaoprogramaEncontrosdaEscoladeContas,disponívelem:<http://www.escoladecontas.tcm.sp.gov.br/>.

127 Disponível em:<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/07/120722_ricos_evasao_brasil_rp>. Acesso em: ago.2017.

128 Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3233&catid=30&Itemid=41>.Acessoem:ago.2017.

129A análise dos dados está disponível no recente livro do prof. LadislauDowbor, da PUC-SP,intituladoAeradocapitalimprodutivo.

Page 136: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5

1aedição Setembrode2017

papeldemiolo PólenSoft70g/m2

papeldecapa CartãoSupremo250g/m2

tipografia MinionPrográfica

Page 137: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 138: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 139: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5
Page 140: A elite do atraso: Da escravidão à Lava Jato · A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato / Jessé Souza. - Rio de Janeiro: Leya, 2017. Notas de fim ISBN 978-85-441-0537-5