A EMPRESA PRODUTIVA E A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA DE ADMINISTRAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ADMINISTRAO
A EMPRESA PRODUTIVA E A
RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
A Teoria da Ao Comunicativa de Jrgen Habermas
no Ambiente Organizacional Integrativo:
De Mary Parker Follett a Collins e Porras
Marcelo Lorence Fraga
Porto Alegre (RS), outubro de 2000
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minha amada filha Jlia, que trouxe luz,alegria e estmulo.
Que ela um dia compreenda e perdoe o papaipor passar tanto tempo "tudando nopomcadoi".
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA DE ADMINISTRAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ADMINISTRAO
A EMPRESA PRODUTIVA E A
RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
A Teoria da Ao Comunicativa de Jrgen Habermas
no Ambiente Organizacional Integrativo:
De Mary Parker Follett a Collins e Porras
Dissertao de Mestrado apresentada junto aoPrograma de Ps-Graduao em Administrao daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul comorequisito para obteno do ttulo de Mestre emAdministrao - Opo Curricular Organizaes.
Prof. Orientador: Dr. Francisco de Araujo Santos
Marcelo Lorence Fraga
Porto Alegre (RS), outubro de 2000
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RESUMO
Este estudo trata da possibilidade de as empresas produtivas possurem elementoscaractersticos das organizaes substantivas, tendo como perspectiva geral a construo de umambiente organizacional integrativo, com base na teoria da ao comunicativa, de JrgenHabermas e na noo de racionalidade substantiva, de Guerreiro Ramos. Apresenta, a partir dostrabalhos de Mary Parker Follett e de Araujo Santos, o conceito de ambiente organizacionalintegrativo, que sustenta a identidade de interesses entre trabalhadores e empresa e valoriza aspectoscomo a auto-realizao, o autodesenvolvimento e a satisfao do ser humano, confrontando-o com arealidade do ambiente cultural brasileiro e sua influncia nas prticas administrativas. Tendo como pontode partida a pesquisa empreendida por Maurcio Serva sobre o fenmeno das organizaessubstantivas, empreende, atravs de estudo de caso, um exame no cotidiano organizacional de umaempresa produtiva brasileira do ramo industrial, de modo a investigar a existncia da ao racionalsubstantiva nas suas diversas dinmicas, processos e prticas administrativas, submetendo-a a umaavaliao com base em uma escala de intensidade da racionalidade substantiva e da racionalidadeinstrumental. Investiga ainda a possibilidade da existncia de integrao de interesses entretrabalhadores e empresa, caracterizando assim o ambiente organizacional integrativo.
ABSTRACT
This study deals with the possibility of productive enterprises to be endowed with thecharacteristics of the so called substantive organizations, whose general perspective is theconstruction of an organizational scenario of integrative dynamics, inspired in the theory ofcommunicative action of Jrgen Habermas, and on the notion of substantive rationality of GuerreiroRamos. It presents also, on the basis of the work of Mary Parker Follett and of Araujo Santos, the ideaof an organizational scenario of integrative dynamics, which maintains the identity of interestsbetween workers and managers, and gives pride of place to values like self-realization, self-development and human satisfaction in the context of the whole cultural scenario of the Brazilian society,and its impact in the organizational practices. Following the pioneering work of Maurcio Serva aboutthe substantive organizations, a case study is here presented, where the day-to-day life an engineeringfirm is analyzed, considering the several dynamics aspects of the substantive rational action in theseveral administrative procedures productive processes. The testimonials of the several peopleinterviewed were evaluated along a scale with the intention of measuring the intensity of both thesubstantive and instrumental rationality. It was also taken into account whether there is a consistentevidence for the existence of a convergence of interests between workers and management,characterizing a working scenario of an integrative organizational dynamics.
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SUMRIO
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INTRODUO............................................................................................................. 9
1 TEMA................................................................................................................... 12
1.1 Delimitao do Tema..................................................................................... 12
1.2 Justificativa da Escolha do Tema.................................................................. 13
2 REFERENCIAL TERICO................................................................................ 15
2.1 A Racionalidade Instrumental...................................................................... 15
2.2 A Teoria da Ao Comunicativa, de Jrgen Habermas.............................. 19
2.3 A Racionalidade Substantiva, de Guerreiro Ramos.................................... 28
2.4 A Complementaridade entre as Abordagens de Habermas e Guerreiro
Ramos........................................................................................................... 33
2.5 As Organizaes Substantivas...................................................................... 38
2.6 As Organizaes como um Sistema Integrativo........................................... 42
2.7 Cultura Organizacional no Ambiente Brasileiro......................................... 50
3 FORMULAO DO PROBLEMA.................................................................... 56
3.1 Apresentao da Situao Problemtica e do Problema de Pesquisa......... 56
3.2 Questes......................................................................................................... 57
4 OBJETIVOS DA PESQUISA.............................................................................. 58
4.1 Objetivo Geral............................................................................................... 58
4.2 Objetivos Especficos..................................................................................... 58
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5 METODOLOGIA................................................................................................. 59
5.1 Classificao da Pesquisa............................................................................... 59
5.2 Procedimento................................................................................................. 59
5.3 Tcnica de Coleta de Dados........................................................................... 60
5.4 Coleta dos Dados............................................................................................ 62
5.5 Anlise dos Dados........................................................................................... 64
5.5.1 Apresentao do Quadro de Anlise............................................................. 65
5.5.2 Apresentao do Continuum de Avaliao da Intensidade da Ao
Racional Substantiva..................................................................................... 66
6 APRESENTAO E ANLISE DO CASO................................................ 68
6.1 Apresentao da Organizao Investigada Muri Linhas de Montagem 68
6.2 O Processo de Anlise dos Dados.................................................................. 75
6.2.1 Anlise das Categorias Iniciais...................................................................... 76
6.2.2 Anlise das Categorias Intermedirias.......................................................... 142
6.2.3 Anlise das Categorias Finais....................................................................... 180
CONCLUSES............................................................................................................. 183
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 192
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a diversas pessoas que, de uma forma ou outra, contriburam
para a elaborao deste trabalho.
Ao Professor Araujo Santos, que em um momento extremamente difcil, ofereceu
seu auxlio e apoio. Sua extraordinria capacidade, como pensador e como professor, serviu como
forte estmulo no apenas para a realizao do Mestrado, mas tambm em outras instncias onde
busco atuar no processo de ensino-aprendizagem.
Ao Professor Cludio Mazzilli, que penso talvez tenha sido o primeiro a acreditar
em mim, pelas aulas ricas, estimulantes e democrticas.
Professora Geni Valenti, pela confirmao de que o caminho poderia ser
fecundo e por buscar sempre nos fazer "cair na realidade".
Ao Professor Luiz Roque Klering, pela sua lucidez, interesse e compreenso.
Ao Professor Paulo Zawislak, que me ensinou, atravs da montagem de uma
matriz matemtica, como ponderar sobre a possibilidade de continuar o Curso.
Professora Valmiria, pelo nvel de exigncia, pelos calorosos debates que
permite em sala de aula e por fazer ver ao aluno que ele tem que estar preparado.
Professora Zil Mesquita, que sempre esteve disposta a ajudar.
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eterna Mestra e, mais do que isto, uma referncia, Professora Neusa
Cavedon.
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minha amiga, e por que no "anjo da guarda", Janete, que desde o incio do
Mestrado, mostrou, empiricamente, que existe a ao comunicativa de que fala Habermas: a busca do
entendimento sem pretenso de fazer valer objetivos individuais no explcitos.
Jackeline, a Jack, que num dia nublado, em um bate-papo no caf, disse-me:
"Tem que ter cuidado com a Escola de Frankfurt! complicado o negcio". E, a partir disso,
mostrou-me que era preciso aprofundar a anlise da construo terica daquela corrente de
pensamento.
Aos amigos Z Carlos, Janete (de novo) e seu marido Humberto, e Paulo
Ricardo, que estiveram em Santo Antnio da Patrulha (RS), numa bela tarde de sbado, para
conhecer a Jlia.
Aos amigos Andr Teixeira, Jorge e Ana, Juan, Denise e famlia, que foram ao
aniversrio da Jlia (a Edimara no foi mas est perdoada, pois a conheceu num outro dia, durante um
almoo). Edimara e Denise, guardo com carinho alguns bate-papos que tivemos.
A todos os colegas do Mestrado e Doutorado, Artur, Jordana, Luciana Hoppe ,
Luciana Vieira, Sibila, verson, Doriana, Maria, Gabriela, Jlia, Aline , Ronei e Andr
Arajo, Cristiane , Patrcia, Letcia Alves, Lenice, Letcia Martins , Ednlson, Dcio, Delia,
Divane e Simone , Egdio, Maria Ceci, Maria Ivete e Mariza. Lamento no ter tido mais tempo
para participar dos encontros da Turma.
Ao pessoal da Secretaria do PPGA: Luiz Carlos, Gabriela, Francele, Nanci e
todos os demais.
Ao colega de trabalho Andr Alvarenga, que ajudou a corrigir os "deslizes" para
com o Vernculo. Os erros que eventualmente tenham restado so de exclusiva responsabilidade do
autor.
Um agradecimento especial ao pessoal da Muri, que permitiu a realizao deste
trabalho e sempre esteve disposio para colaborar com a pesquisa. Espero que o presente estudo
possa, mesmo que de modo muito modesto, oferecer contribuies Empresa.
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"A verdadeira filosofia reaprender a ver o mundo."
Maurice Merleau-Ponty
"Se o homem no tem oportunidade de desenvolver eenriquecer a linguagem, torna-se incapaz no s decompreender o mundo que o cerca, mas tambm de agirsobre ele (...) se a palavra, que distingue o homem detodos os seres vivos, se encontra enfraquecida na suapossibilidade de expresso, o prprio homem que sedesumaniza."
Maria Lcia de Arruda Aranha
"Condenados, para podermos viver, a inventar, aprojetar constantemente o futuro, estamos condenados ainventar, a criar nossa vida, o que equivale a estarmoscondenados a viver."
Jean-Paul Sartre
"Em vez de desacreditar, como hoje moda, os ideais dosculo XVIII, isto , os ideais da Revoluo Francesa,deveramos tratar de buscar realiz-los, permanecendoconscientes, isto sim, de que ao Iluminismo inerenteuma dialtica que, sem dvida, comporta seus riscos(...)"
Jrgen Habermas
"O resto de utopia que consegui manter simplesmentea idia de que a democracia e a disputa livre por suasmelhores formas capaz de cortar o n grdio dosproblemas simplesmente insolveis. Eu no pretendoafirmar que iremos ser bem-sucedidos nesseempreendimento (...) devemos ao menos tentar (...)"
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Jrgen Habermas
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INTRODUO
Este estudo tem sua origem em uma inquietao acerca de algumas caractersticas
que ainda do forma s prticas organizacionais brasileiras, s portas do novo milnio. Caractersticas
como a hierarquizao, a concentrao de poder, o paternalismo, o formalismo, as relaes baseadas
no uso da autoridade e na submisso persistem nas organizaes brasileiras, conforme se observa em
trabalhos como os de Barros e Prates (1996), Motta e Caldas (1997) e Motta e Alcadipani (1999),
Caldas e Wood Jr. (1999).
Estas caractersticas do ambiente organizacional brasileiro parecem incompatveis
com os avanos notveis observados nas ltimas dcadas nas cincias e na tecnologia, j que o
progresso nestes ramos do conhecimento deveria trazer consigo uma maior possibilidade de o ser
humano buscar sua satisfao e emancipao, seja no mundo do trabalho, seja em na sua vida em
geral. Contudo, o que se verifica no mbito das organizaes brasileiras que a racionalizao dos
processos administrativos no proporcionou um incremento da autonomia e da capacidade de auto-
realizao do ser humano no trabalho.
Ao contrrio, as empresas parecem estar ainda presas s estruturas tradicionais de
formao da sociedade brasileira, onde a presena de caractersticas como a concentrao de poder, o
aristocracismo, o atendimento dos interesses das camadas mais favorecidas da sociedade, em
detrimento das aspiraes das classes desfavorecidas, provocam at hoje no Pas profundas
dicotomias e constante contradio.
Este estudo parte da premissa de que a Teoria Organizacional, notadamente no
mbito brasileiro, precisa empreender uma anlise crtica desta situao, debatendo suas origens e
conseqncias. Mas, acima de tudo, deve oferecer alternativas viveis para a construo de um
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ambiente organizacional que permita efetivar os anseios de auto-realizao, satisfao e autonomia,
inerentes a todo ser humano, ainda que l estejam, em sua subjetividade, latentes e potenciais.
exatamente nesta direo que este trabalho pretende oferecer mais uma
contribuio, ainda que modesta. O presente estudo parte do pressuposto de que uma empresa
produtiva necessita incorporar elementos que caracterizam as organizaes do tipo substantivas, se
quiser construir um ambiente organizacional que consiga conciliar satisfatoriamente tanto os interesses e
objetivos da empresa, quanto os dos trabalhadores, isto , um ambiente organizacional integrativo.
Para tanto, analisa-se neste estudo o que so organizaes substantivas e quais os
elementos que as caracterizam. Buscar-se tambm demonstrar porque se pode considerar que estas
possuem um ambiente organizacional integrativo, em que as aspiraes dos participantes e da prpria
organizao so atendidas mutuamente.
A evidncia emprica foi buscada mediante um estudo de caso, em que investiga-se
de que forma as empresas produtivas podem incorporar os elementos caractersticos das organizaes
substantivas, e como isto exercer influncia em aspectos como a auto-realizao, o
autodesenvolvimento e a satisfao dos seus integrantes.
O suporte terico para a anlise dado pela teoria da ao comunicativa,
desenvolvida pelo filsofo alemo Jrgen Habermas (1987 [a] e [b])1, pelas construes de Alberto
Guerreiro Ramos (1989), sobre a racionalidade substantiva, e pelas contribuies de Maurcio Serva
(1996), no que se refere s organizaes substantivas e seus elementos de constituio. Importante
apoio terico buscado tambm nos trabalhos de Mary Parker Follett (in Graham, 1997), Araujo
Santos (1992 e 1997 [c]) e Collins e Porras (1998).
Permeando a discusso destes conceitos, esteve presente a anlise do ambiente
cultural brasileiro e sua inter-relao com a cultura organizacional, sob amparo das obras de Barros e
Prates (1996), Motta e Caldas (1997), Motta e Alcadipani (1999), Caldas e Wood Jr. (1999), entre
1 Umberto Eco (1989) defende o ponto de vista de que no se deva fazer um trabalho sobre um autor estrangeiro seno for possvel ler suas obras no original. Neste estudo, foram utilizadas, basicamente, obras do filsofo alemotraduzidas para o espanhol e para o portugus. Seria pertinente expor algumas razes para que aqui no se tenhacumprido risca a orientao de Umberto Eco: a) este estudo no sobre Jrgen Habermas, embora encontre na suaobra fundamental amparo; b) as principais obras do autor, para efeito do que aqui se pretende, foram traduzidas para
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outras. A anlise destes assuntos foi conduzida de modo interdisciplinar, com o auxlio principalmente
dos conhecimentos atuais da Filosofia, Sociologia, Antropologia Social e da prpria Teoria
Administrativa.
Este estudo pretendeu, portanto, empreender uma investigao, sob a forma de
estudo de caso, que permitisse o uso dos conceitos aqui explorados e que possibilitasse ainda uma
contribuio, mesmo que modesta, para o avano e refinamento dos temas abordados. Mais
especificamente, esta investigao analisou em que medida uma empresa produtiva brasileira, atuante
no ramo industrial, pode contar com elementos que possam caracteriz-la como uma organizao
substantiva, em que a ao comunicativa e a racionalidade substantiva so componentes
fundamentais, como se pretende demonstrar com o apoio do referencial terico utilizado.
A pesquisa empreendida e aqui apresentada de carter exploratrio e faz uso
exclusivamente de dados qualitativos.
Finalmente, importante registrar que, tendo em vista a complexidade e riqueza do
assunto proposto, este estudo, embora aspire contribuir para seu desenvolvimento em futuras
pesquisas, no pretende esgotar o debate em torno de seus desdobramentos.
o espanhol e portugus; c) outros trabalhos acadmicos brasileiros que se valeram da obra do filsofo no utilizaramtextos em alemo: Valenti (1995) e Serva (1996) teses de doutoramento.
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1 TEMA
1.1 Delimitao do Tema
A temtica principal tratada nesta pesquisa foi a anlise da ao racional no interior
de uma organizao produtiva2 brasileira e a possibilidade de caracteriz-la como uma organizao
substantiva3, dentro do conceito elaborado por Maurcio Serva (1993 e 1996), com base nos estudos
de Guerreiro Ramos (1989).
O estudo do tema proposto foi levado adiante com o amparo fundamental da teoria
da ao comunicativa, proposio do filsofo alemo Jrgen Habermas (1987[a] e [b]). Mais do que
isto, este estudo partiu do pressuposto de que a forma de ao social descrita por Habermas a ao
comunicativa e a forma de racionalidade caracterizada por Guerreiro Ramos racionalidade
substantiva so requisitos para a construo de um ambiente organizacional integrativo, como
constitudo o ambiente das organizaes substantivas, onde a identidade de interesses dos
participantes e da organizao permite, efetivamente, a auto-realizao, a satisfao e autonomia do ser
humano.
No desenvolvimento de sua construo terica, Habermas procura descrever as
diversas formas de ao social que o ser humano utiliza em suas interaes com os demais indivduos e
estabelece a fundamentao de uma orientao tica centrada na busca processual do consenso e em
2 No enfoque deste trabalho, adotar-se- o conceito de organizao produtiva como se referindo s organizaes dosegundo setor (setor privado). importante registrar, contudo, que no h nisto qualquer espcie de conotaopejorativa em relao s organizaes do primeiro setor (setor pblico) e terceiro setor (setor alternativo, novinculado diretamente ao Estado ou s organizaes privadas). Como organizao produtiva aqui se entende asorganizaes que produzem bens ou servios para consumo das pessoas e com fins lucrativos.3 O conceito e a caracterizao das organizaes substantivas so apresentados no captulo destinado ao ReferencialTerico. Preliminarmente, pode-se dizer que as organizaes substantivas (ou alternativas, ou coletivistas) soaquelas em que indivduos se unem espontaneamente e por sua livre iniciativa para atingirem objetivos geralmentesem fim lucrativo, sem estarem regidas por procedimentos que as caracterizem como organizaes burocratizadas ouhierarquizadas e sem estarem ligadas diretamente ao Estado ou ao setor privado.
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relaes intersubjetivas livres de coao. Esta nova orientao tica denominada por Jrgen
Habermas tica do Discurso (1998 e 1999).
fundamental ressaltar que permeia toda a anlise do assunto aqui em foco a
caracterizao do ambiente cultural da sociedade brasileira e sua interpenetrao com o ambiente
cultural das organizaes do Pas. Esta caracterizao foi levada a termo com base nos trabalhos de
Barros e Prates (1996), Motta e Caldas (1997), Motta e Alcadipani (1999) e Caldas e Wood Jr.
(1999).
Um outro importante aporte terico para esta pesquisa, tanto no que se refere ao
ambiente cultural das organizaes brasileiras quanto no que tange ao conceito de racionalidade
substantiva, foi oriundo dos trabalhos de Alberto Guerreiro Ramos (1989), socilogo e terico da
Administrao.
A discusso dos temas acima referidos foi conduzida sob o modo interdisciplinar e
contou principalmente com o auxlio dos conhecimentos atuais da Filosofia, Sociologia, Antropologia
Social, alm, claro, da Teoria Administrativa.
1.2 Justificativa da Escolha do Tema
Em trabalhos como aquele levado a efeito por Maurcio Serva (1996), j se
demonstrou a possibilidade de considerar-se as organizaes produtivas como equivalendo s
organizaes substantivas. Contudo, as organizaes investigadas por Serva eram pertencentes ao
setor de prestao de servios e desenvolviam um tipo de atividade bastante semelhante quele
empreendido pelas organizaes substantivas (assistncia social, aconselhamento e acompanhamento
psicolgico, entre outras atividades correlatas).
Esta pesquisa pretende reproduzir, com pequenas adaptaes, o modelo de
investigao desenvolvido por Serva (1996) para demonstrar a utilizao dos conceitos de ao
comunicativa e de racionalidade substantiva na prtica administrativa de uma empresa produtiva
brasileira do setor industrial, mais especificamente, pertencente ao segmento de produo de bens de
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capital. Almejou ainda investigar a possibilidade de localizar-se ali elementos caractersticos das
organizaes substantivas, avaliando sua intensidade.
O estudo de Maurcio Serva, no captulo destinado s concluses, levanta, com o
propsito de orientar novas pesquisas, a seguinte questo: "Como decorre a prxis administrativa
numa organizao substantiva do setor industrial?" (1996, p. 602). Comenta ainda o seguinte:
"Uma vez que as empresas aqui pesquisadas atuam no setor de servios, valeria pena
realizar estudos em empresas do setor de transformao, onde as relaes entre homem e
mquina, ritmo/tempo de trabalho e processo tecnolgico, dentre outras, poderiam talvez
colocar novos desafios razo substantiva na prxis administrativa." (1996, p. 602).
O presente estudo, portanto, justifica-se por esses novos desafios: a necessidade de
se aprofundar o debate sobre a ao comunicativa e a racionalidade substantiva no mbito de uma
empresa produtiva brasileira do setor industrial e pela possibilidade de se construir, com base nesses
elementos, um ambiente organizacional integrativo, que permita o autodesenvolvimento, a auto-
realizao e a satisfao do ser humano no trabalho.
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2 REFERENCIAL TERICO
Para que se possa discutir a possibilidade de que as empresas produtivas
apresentem elementos que caracterizam as organizaes substantivas, faz-se necessrio, primeiramente,
analisar alguns conceitos como: teoria da ao social, teoria da ao comunicativa, ao
instrumental, racionalidade instrumental, racionalidade substantiva, sistemas integrativos,
cultura nacional e cultura organizacional. com este propsito que se revisa o referencial terico a
seguir descrito.
Contudo, considerando o escopo deste trabalho, no se espera esgotar temas de tal
densidade e complexidade. Pretende-se, apenas, oferecer mais uma contribuio para a sua anlise.
2.1 A Racionalidade Instrumental
O sentido da razo humana na era moderna e a construo de uma Teoria Crtica da
sociedade moderna foram duas preocupaes centrais da Escola de Frankfurt4. Horkheimer e
Adorno dois de seus principais representantes , na obra Dialtica do Esclarecimento (1997),
afirmam que a razo na sociedade moderna encontra-se regida por uma forma de razo denominada
racionalidade instrumental.
A racionalidade instrumental refere-se ao exerccio de uma racionalidade
cientfica, tpica do positivismo, que visa dominao da natureza para fins lucrativos, submetendo a
4 O Instituto de Pesquisas Sociais foi criado em 3 de fevereiro de 1923. Com sede na cidade universitria de Frankfurt,o instituto tinha o objetivo de lanar a noo de um marxismo no-ortodoxo, "verdadeiro" ou "puro", e seu nomequase chegou a ser Instituto para o Marxismo. O projeto do Instituto modificou-se em relao quele originrio,avanando em direo ao estudo de fenmenos sociais, sob a denominao de uma filosofia social, a partir de umareorganizao promovida por Max Horkheimer em 1931. A preocupao central do Instituto passou a ser a produode uma Teoria Crtica sobre a sociedade e a razo modernas. A corrente de pensamento que a se formou passou a
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cincia, a tcnica e a prpria produo cultural ao capital. Os autores da Escola de Frankfurt, partindo
do pensamento, principalmente de Nietzsche, Freud e Heidegger, argumentam que no se pode analisar
a razo de modo ingnuo, pois a razo por si s no garante ao ser humano autonomia e liberdade
(Adorno e Horkheimer, 1997; Matos, 1995).
Os pensadores da Escola procuraram estabelecer uma abordagem que se afastasse
do cientificismo materialista, que postulava a cincia e a tcnica como condies de emancipao
social. Ao contrrio, para os frankfurtianos, o progresso da decorrente recompensado com o
enfraquecimento do sujeito autnomo, provocado pela estratgia uniformizante da indstria cultural ou
da sociedade unidimensional (Matos, 1995).
Os representantes da Escola de Frankfurt, portanto, analisaram a crise da razo
contempornea, que denominaram "a eclipse da razo", e buscaram desenvolver um trabalho de
recuperao de uma forma de racionalidade no repressora, capaz de autocrtica e que pudesse
pretender a emancipao humana.
A Teoria Crtica da Escola de Frankfurt5 buscou contrapor-se ao carter
instrumental da razo, isto , a sua reduo a um mero instrumento. Os autores frankfurtianos
pretenderam restabelecer o papel da razo como uma categoria tica e como elemento de referncia
para uma teoria crtica da sociedade (Assoun, 1991).
Conforme se v, a anlise da razo humana foi uma das preocupaes centrais da
Escola de Frankfurt e, a partir dela, pode-se inferir que, na sociedade moderna, a racionalidade tenha
transformado-se, em muitas situaes, em um instrumento, por vezes de carter subliminar, de
perpetuao da represso social, em vez de um meio por onde se buscar as condio para a
emancipao e auto-realizao do ser humano.
Por seu turno, Eugne Enriquez (1996) afirma que a racionalidade instrumental
a forma de razo que prevaleceu no mundo ocidental aps o surgimento do capitalismo. Para o autor,
ser conhecida como a Escola de Frankfurt. Seus principais representantes foram Max Horkheimer, Theodor Adorno,Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Erich Fromm (Assoun, 1991).5 importante registrar que a Teoria Crtica da Escola de Frankfurt, como passou a ser conhecida aquela corrente depensamento, no significou exatamente a mesma coisa para todos os seus integrantes, isto , que tenha havidoidentidade de concepo entre os componentes do Instituto de Pesquisas Sociais (Valenti, 1995).
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esta forma de racionalidade fez prevalecer a questo como sobre a questo por qu, em um ambiente
macrossocial onde a economia tomou o posto de comando da sociedade, disseminando a noo de
que todos deviam trabalhar e contribuir para o aumento das riquezas, e onde tudo passvel de
racionalizao, de quantificao, de matematismo.
A razo, deste modo, ficou preponderantemente subordinada tcnica, ao clculo
da relao custo e benefcio, isto , baseada em elementos mensurveis ou quantificveis. Os valores
democrticos e subjetivos tornaram-se de segunda ordem e, em conseqncia disso, no so
consideradas variveis humanas e sociais, tais como a tica e a valorao, que no so passveis de
serem simplesmente processadas atravs de um sistema de equaes e inequaes (Enriquez, 1996).
J no mbito da Teoria Administrativa, os trabalhos de Herbert Simon (1965 e
1972) sobre racionalidade nas organizaes so at hoje um importante referencial terico. Para
Simon, a racionalidade na conduta ou nas decises humanas no uma questo de contedo qualitativo
intrnseco, mas sim uma questo de alcance ou no dos objetivos ou fins. Contudo, questes como o
que bom para o homem ou para a sociedade no tm espao na anlise de racionalidade
empreendida por Simon. Na viso do autor, o homem racional no se preocupa com a natureza tica
dos fins per se, ele um ser que calcula, decidido apenas a encontrar meios adequados para atingir
suas metas, indiferente ao seu contedo de valor (Guerreiro Ramos, 1989).
Guerreiro Ramos (1989) chama a ateno para o fato de que este aspecto da
racionalidade o homem como ser que calcula foi incrementado com a emergncia da sociedade
centrada no mercado. Antes desta caracterstica da sociedade, este tipo de racionalidade, interessada
apenas em meios de atingir metas determinadas, fora apenas um aspecto limitado de um conceito mais
amplo de racionalidade. Para o autor, a construo terica de Herbert Simon feita como se os
critrios da sociedade centrada no mercado fossem os nicos critrios de racionalidade ou como se
envolvesse tudo que se pode supor sobre racionalidade.
No mbito das organizaes, a partir do uso extremado da racionalidade
instrumental, o ambiente organizacional, distanciado de uma noo tico-valorativa, poder tornar-se
propcio ao abuso de poder, dominao, dissimulao de intenes. Isto pode acabar conduzindo
os participantes da organizao a travarem uma permanente competio, que resultar em um ambiente
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produtor de ansiedades e, at mesmo, de patologias psquicas, redundando em insegurana
psicolgica, em degradao da qualidade de vida, produzindo uma atmosfera incapaz de prover a
satisfao e a realizao humana (Serva, 1996).
Uma situao como esta acima descrita pode tornar a organizao esquizofrnica,
passando a existir um ambiente falso, quando, por fora do autoritarismo do sistema de relaes de
trabalho, instigada a superconformidade dos participantes, encobrindo, desse modo, os
descontentamentos com o sistema. Uma estrutura assim autoritria nas organizaes pode provocar o
que Guerreiro Ramos denomina de uma "revoluo silenciosa" dos subordinados, onde estes "em
conflito com os dirigentes, filtram, distorcem, sonegam e ocultam informaes
deliberadamente, uma vez que no se sentem identificados com a organizao." (Guerreiro
Ramos, 1983, p. 66).
Feita esta anlise da racionalidade instrumental, para efeito do que se pretende
neste estudo, utiliza-se o conceito de ao racional instrumental6 desenvolvido por Maurcio Serva,
com base nos trabalhos de Habermas e Guerreiro Ramos: "Ao baseada no clculo, orientada
para o alcance de metas tcnicas ou de finalidades ligadas a interesses econmicos ou de
poder social, atravs da maximizao dos recursos disponveis".(1996, p. 342).
Os elementos que caracterizam a ao racional instrumental no mbito da
organizao, de acordo com Serva (1996, pp. 342-343), so os seguintes:
a) Clculo: projeo utilitria das conseqncias dos atos humanos;
b) Fins: preocupao com metas de natureza tcnica, econmica ou poltica
(aumento do poder);
c) Maximizao de recursos: busca da eficincia e da eficcia mximas, no
tratamento de recursos disponveis: humanos, materiais, financeiros, tcnicos, energticos ou de tempo;
6 importante ressaltar que o conceito de ao racional instrumental e seus elementos compem o quadro deanlise desta pesquisa, juntamente com o conceito de ao racional substantiva e seus elementos, cujaapresentao feita posteriormente.
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d) xito e resultados: preocupao com o alcance em si mesmo de padres,
nveis, estgios, situaes, considerados como vencedores em processos competitivos em uma
sociedade centrada no mercado e no lucro;
e) Desempenho: valorizao de performances individuais elevadas na realizao de
atividades, com nfase em projees utilitrias;
f) Utilidade: considerao de que o carter utilitrio deva ser a base das interaes
entre os indivduos ou grupos;
g) Rentabilidade: medida de retorno econmico dos xitos e resultados
pretendidos;
h) Estratgia interpessoal: influncia planejada de um indivduo sobre outro
indivduo ou grupo, a fim de atingir resultados previamente estabelecidos, com base na antecipao de
reaes ou sentimentos frente a estmulos e aes planejadas.
Analisada a noo de racionalidade instrumental e apresentado o conceito de
ao racional instrumental, bem como seus elementos caractersticos, passa-se anlise da Teoria
da Ao Comunicativa, desenvolvida pelo filsofo alemo Jrgen Habermas7, para depois
comentar-se a racionalidade substantiva e o conceito de ao racional substantiva.
2.2 A Teoria da Ao Comunicativa, de Jrgen Habermas8
Buscando avanar em relao Teoria Crtica elaborada pela Escola de Frankfurt,
Jrgen Habermas desenvolve, em sua obra Teoria da Ao Comunicativa9 (1987 [a] e [b]), uma
construo terica que visa servir de apoio a uma nova teoria crtica da sociedade.
7 Jrgen Habermas, filsofo e socilogo alemo, nasceu em 1929, em Dsseldorf (algumas fontes registramGummersbach). Doutorou-se em Filosofia em 1954. Foi convidado a trabalhar no Instituto de Pesquisas Sociais Escola de Frankfurt , onde foi assistente de Adorno de 1956 at 1959. A partir da, comeou a esboar uma TeoriaCrtica com caractersticas prprias. Foi professor de Filosofia em Heidelberg e depois de Filosofia e Sociologia emFrankfurt. Foi diretor do Instituto Max Planck, de Starnberg (Baviera).8 Evidentemente, no pretenso deste estudo, nem seu escopo, abordar amplamente toda a construo e osdesdobramentos da teoria habermasiana, cuja complexidade pode ser comprovada pela quantidade e pelo renome dosautores que sobre ela se debruam Anthony Giddens, Martin Jay, Richard Rorty, Thomas McCarthy e DavidIngram, somente para citar alguns , sejam estas abordagens crticas ou complementares.
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Para Habermas, a Teoria Crtica da Escola de Frankfurt ganhou uma conotao
resignada e contemplativa e de feio pessimista e negativa. Denunciava o carter instrumental da razo
sem, contudo, oferecer uma alternativa de ao. Segundo o autor, no entanto, h como se evitar o
pessimismo caracterstico dos ltimos trabalhos dos frankfurtianos notadamente de Adorno e
Horkheimer. Para isto, Habermas considera fundamental abandonar o paradigma da filosofia da
conscincia, que tem foco principal na relao epistemolgica do sujeito para com o objeto (McCarthy,
1995).
Em Habermas, a razo no est centrada no sujeito epistmico, ou seja, no sujeito
autonomamente capaz de apreenso da realidade, em que a cognio vista como uma relao entre
um sujeito isolado e o objeto, que uma viso tipicamente kantiana. A razo, na perspectiva de
Habermas, desloca-se para a linguagem e a possibilidade de intersubjetividade que ela proporciona.
Assim, a teoria comunicativa de Habermas tem como pilares fundamentais a concepo dialgica da
razo e o carter processual da verdade, atravs da busca do consenso (Valenti, 1995).
Habermas, ao realizar a substituio do paradigma da conscincia pelo paradigma
da linguagem, ressalta que a linguagem no deve ser vista apenas enquanto categoria sinttica ou
semntica, mas fundamentalmente como forma de expresso e entendimento. Diz o autor: "Se
partimos do pressuposto de que a espcie humana subsiste atravs de atividades socialmente
coordenadas de seus integrantes e de que esta coordenao estabelece-se por meio da
comunicao, e fundamentalmente por meio de uma comunicao tendente para um acordo,
ento a reproduo da espcie exige tambm o cumprimento das condies de racionalidade
imanentes ao comunicativa."10 (1987[a], p. 506).
Para Habermas, grande parte do pensamento moderno est centrado na filosofia da
conscincia relao sujeito-objeto , onde o sujeito se depara com um mundo de objetos com os
quais estabelece duas relaes bsicas: representao e ao. A forma de racionalidade
correspondente a este modelo a racionalidade do tipo cognitivo-instrumental, ou seja, o sujeito
capaz de obter conhecimento sobre uma determinada situao e, a partir da, agir com base no
conhecimento adquirido para vencer ou contornar as contingncias decorrentes desta situao
(McCarthy, 1995).
9 Traduo livre para o idioma portugus do ttulo da edio espanhola.10 Traduo livre para o portugus, realizada a partir da verso espanhola.
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O filsofo alemo, contudo, chama a ateno para o fato de que as aes dos
diferentes indivduos, em que estes tratam de atingir seus propsitos ao teleolgica, ou destinada
aos fins , acontecem em um contexto socialmente preordenado, enquadrando-se a ao em estruturas
de interaes ou de relaes sociais (Habermas, 1987 [a]).
Geni Valenti (1995, p. 14) assim explica o processo de estabelecimento das
verdades atravs da busca do consenso, no enfoque de Habermas: "Razo e verdade, antes
conceitos fundamentais e valores absolutos, agora passam a ser procedimentos ou
simplesmente regras do jogo, estabelecidas em funo do consenso. Esta inverso ocorre
porque seu idealizador segue a teoria da descentrao de Piaget, segundo a qual, a razo e a
verdade s podem resultar na organizao social dos indivduos, com a interao da vida
interior e entre as pessoas.".
O modelo comunicativo de ao de Habermas distingue ao de comunicao. A
linguagem, ressalta o autor, um meio de comunicao que serve ao entendimento, ainda que os
atores, ao buscar este entendimento para coordenar suas aes, persigam cada um seus prprios fins
(Ingram, 1994). Deste modo, os conceitos de ao social distinguem-se pela forma como especificam a
coordenao das aes teleolgicas destinadas aos fins dos distintos participantes em uma
interao:
a) como um entrelaamento de clculos egostas de utilidade;
b) como um acordo socialmente integrador acerca de valores e normas, regulado
pela tradio cultural e pela socializao;
c) como um entendimento no sentido de um processo cooperativo de interpretao.
As operaes em que se baseiam os processos cooperativos de interpretao constituem-se em um
mecanismo de coordenao da ao (Habermas 1987 [a]).
Assim, no intuito de construir seu conceito de ao comunicativa, Habermas realiza
uma profunda anlise da teoria da ao e de seu fundamento racional, alm de analisar a capacidade
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comunicativa da linguagem, visando ampliar o conceito de racionalidade weberiano, posicionando-se
criticamente em relao construo levada a efeito por Max Weber.
Weber, em Economia e Sociedade (in Castro e Dias, 1992), caracterizou quatro
tipos de ao social:
1. Ao racional conforme fins determinados: determinada por uma expectativa
no comportamento de objetos e de outros homens, e utilizando essas experincias como condies ou
meios para conseguir fins prprios, racionalmente avaliados e perseguidos;
2. Ao racional conforme valores: determinada pela crena consciente em
valores ticos, estticos, religiosos, ou outros, prprios de uma determinada conduta, sem relao
alguma com o resultado, ou seja, puramente motivada por estes valores;
3. Ao efetiva: determinada por emoes ou estados sentimentais;
4. Ao tradicional: determinada por costumes arraigados, tradicionais.
Habermas ir concentrar sua crtica proposio de Weber especialmente em dois
pontos. O primeiro no que tange ao sentido da ao pois, para Habermas, Weber considera em seu
constructo no uma teorizao em torno do significado da ao, mas sim em relao inteno do
sujeito da ao, e isto o impede de atingir um conceito consistente de ao social, isto , considera o
sujeito como se estivesse encapsulado ou isolado do conjunto da sociedade ao desempenhar seu ato,
no caracterizando, assim, propriamente uma ao social.
O segundo ponto da crtica que faz Habermas ao conceito de ao social de Weber
que este parece mais interessado em distinguir graus de racionalizao na ao, do que em alcanar
uma teoria da ao abrangente. Ou seja, o que centraliza a preocupao de Max Weber a relao
meios e fins, em um agir tipicamente teleolgico, cabendo julgar apenas a eficcia da ao e a
organizao racional, pelo sujeito, dos meios utilizados.
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Guerreiro Ramos refora esta posio ao afirmar que a anlise da racionalidade
inerente sociedade moderna empreendida por Max Weber suspendeu o exame da valorao tica
contida na ao.
Guerreiro Ramos (1989, p. 6) diz que:
"O julgamento que Max Weber fez do capitalismo e da moderna sociedade demassa foi essencialmente crtico, apesar de parecer laudatrio. Chocava-se ante a maneirapela qual tal sociedade fazia a reavaliao do significado tradicional da racionalidade,processo que intimamente lamentava, embora tenha deixado de diretamente confront-lo(...) a distino que fez, entre Zweckrationalitt e Wertrationalitt e que, verdade,algumas vezes minimiza constitui, possivelmente uma manifestao do conflito moralem que se sentia com as tendncias dominantes da moderna sociedade de massa (...) elesalientou que a racionalidade formal e instrumental (Zweckrationalitt) determinada poruma expectativa de resultados, ou "fins calculados" (...) a racionalidade substantiva, ou devalor (Wertrationalitt), determinada 'independentemente de suas expectativas desucesso' e no caracteriza nenhuma inteno humana interessada na 'consecuo' de umresultado ulterior a ela (...) na verdade, ele foi incapaz de resolver essa tensoempreendendo uma anlise social do ponto de vista da racionalidade substantiva. De fatoa Wertrationalitt apenas, por assim dizer, uma nota de rodap em sua obra; nodesempenha papel sistemtico em seus estudos. Se o fizesse, a pesquisa de Weber teriatomado um rumo completamente diferente. Escolheu ele a resignao (isto , aneutralidade em face dos valores, no a confrontao) como posio metodolgica, em seuestudo da vida social".
Habermas (1987 [a]) tambm argumenta que Weber vislumbrou um conceito mais
amplo de racionalidade, mas lamenta que este conceito esteja localizado apenas como pano de fundo
na anlise weberiana, quando deveria merecer uma identificao emprica semelhante ao subsistema de
ao racional conforme fins determinados.
O filsofo alemo tambm considera insuficiente o esquema conceitual da ao de
Talcott Parsons, embora reconhea-lhe o mrito de ter construdo um conceito mais abrangente de
ao social. Para o socilogo norte-americano, a ao social consiste em:
"Estruturas e processos atravs dos quais os seres humanos formam intenessignificativas e, com maior ou menor xito, as executam em situaes concretas. A palavra'significativa' supe o nvel simblico ou cultural de representao ou referncia.Consideradas em conjunto, as intenes e a implementao implicam uma disposio dosistema de ao individual ou coletivo para modificar sua relao com sua situao e
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ambiente numa direo desejada (...) a ao humana 'cultural' medida que sentidos eintenes relativas aos atos so formados em termos de sistemas simblicos (onde seincluem os cdigos atravs dos quais operam em padres) que quase sempre secentralizam no aspecto universal das sociedades humanas, isto , na linguagem." (Parsonsin Castro e Dias, 1992, p. 218).
Buscando ampliar as abordagens de Weber e Parsons, Habermas afirma que uma
ao social a cooperao entre pelo menos dois agentes que dirigem e coordenam suas aes
instrumentais para a execuo de um plano de ao comum (Ingram, 1994).
A partir desta viso, em sua anlise da ao social, Habermas ir reforar a funo
da linguagem na relao sujeito-objeto, e procura, ento, transcender o esquema da filosofia da
conscincia relao sujeito-objeto que privilegia o subjetivismo , utilizando-se da perspectiva
trazida pela filosofia da linguagem, onde a relao sujeito e objeto entendida como sendo mediada
por outros tantos elementos como: a interao com o meio, a cultura, o universo simblico, valorizando
assim a fundamental importncia do carter intersubjetivo e relacional para a apreenso do objeto.
Segundo Habermas, a racionalidade de uma ao funo da extenso em que
pode ser justificada. As aes, implcita ou explicitamente, tem pretenses verdade, correo
moral, propriedade, sinceridade e compreensibilidade e estas pretenses referem-se a crenas
que podem ser articuladas em linguagem. O ser humano ao se expressar refere-se a itens de sua
experincia fatos, normas, intenes que constituem exatamente o universo em que ao se
desenvolve. Sem um acordo acerca deste universo, a ao social no seria possvel.
Assim, para o filsofo alemo, a ao possui um significado inerente a ela justamente
por exprimir a inteno do agente em relao realidade. Sem considerar esta relao de
intencionalidade para com a realidade objetiva, social e subjetiva, a ao perde seu contedo cognitivo,
normativo e expressivo e, portanto, no mais poder ser avaliada criticamente.
Habermas (1987[a]) distingue quatro categorias de ao, que so apresentadas a
seguir.
a) Ao teleolgica: aquela em que a ao realizada por uma s pessoa em
busca de um certo objetivo. Ela ser estratgica na medida em que as decises e o comportamento de
pelo menos uma outra pessoa forem includas no clculo correspondente aos meios e fins a serem
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utilizados. Esta forma de ao racional em funo do clculo feito pelo agente sobre o meio mais
eficaz para o alcance do fim desejado. No modo estratgico de ao, os agentes se relacionam como
meios objetificveis ou como obstculos para a realizao dos seus fins e, por causa disto, o agir
estratgico pode ser interpretado como utilitarista j que se supe que o ator v eleger seus meios e fins
sob o ponto de vista da maximizao de sua expectativa de utilidade.
b) Ao normativa: caracteriza-se como sendo aquela em que a inteno primria
atender a expectativas de carter recproco, mediante o ajuste da conduta a normas e valores
compartilhados. Deste modo, a busca por objetivos pessoais poder ser neutralizada pelos deveres
sociais dos agentes ou mesmo pelos padres estticos. Os que se empenham em aes normativas
tambm necessitam calcular as conseqncias objetivas de seu agir em relao aos demais agentes. A
ao ser racional na medida em que seja adequada aos padres de comportamento socialmente
aceitos em dada comunidade cultural e que atenda ao interesse geral das pessoas afetadas.
c) Ao dramatrgica ou expressiva: este tipo de ao social tem por objetivo a
projeo de uma imagem pblica. Ela constituda pela representao das intenes do ator atravs de
seus atos de forma a permitir que o outro compreenda sua legitimidade e justificativa. Alm disso,
busca obter uma determinada resposta de uma certa audincia e, por isto, implicitamente estratgica.
Contudo, para que seja racional no sentido no-estratgico , a ao dramatrgica necessita ser
sincera e possuir autnticas intenes declaradas, ou seja, os demais atores envolvidos no devem ser
enganados.
d) Ao comunicativa: esta forma de ao acontece quando dois ou mais atores
sociais buscam chegar a um acordo voluntrio e cooperativo sobre determinado aspecto. A ao
comunicativa envolve um esforo explcito de alcanar um acordo sobre a totalidade das reivindicaes
de validade. Embora os atores possam usar as outras formas de ao para comunicarem-se e
coordenarem seus esforos, no necessariamente o faro visando atingir um livre acordo. Podero agir
estrategicamente, forando os demais atores a contribuir com seus objetivos, utilizando-se de artifcios
como ordens, ameaas, mentiras e proposies manipulativas, o que descaracterizaria a ao
comunicativa em torno de consenso e entendimento mtuo.
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Destas quatro categorias de ao resultam trs tipos de ao (Habermas, 1987
[a]):
1) Ao instrumental: ao orientada para o xito, e cujo grau de eficcia da
interveno que esta ao representa pode ser avaliado atravs da observncia de regras de ao
tcnicas. A este tipo de ao pode estar associada uma interao social, mas no necessariamente, j
que pode representar apenas um ato individual;
2) Ao estratgica: aquela em que a ao orientada ao xito instrumental
considera, racionalmente, as decises e o comportamento de pelo menos uma outra pessoa, de modo a
realizar o clculo egocntrico correspondente aos meios mais eficazes a serem utilizados para atingir os
fins predeterminados. A ao estratgica representa, em si mesma, uma ao social.
3) Ao comunicativa: quando os planos de ao dos atores esto orientados no
pelo clculo egocntrico de resultados, mas por atos de entendimento. Os fins individuais so
perseguidos, mas sob a condio de que os respectivos planos de ao possam harmonizar-se entre si
sobre uma base compartilhada de interesses, buscando-se um acordo racional livre de presses ou
imposies, estabelecido atravs de convices comuns. Evidentemente que a ao comunicativa
tambm representa, em si mesma, uma ao social.
Para Habermas, o conceito de ao estratgica por si s no subsidia um conceito
de ao social adequado. Se o ator social baseia suas orientaes de ao em termos de busca por
dinheiro ou por poder, estabelece suas relaes exclusivamente por dominao. Esta ordenao
puramente econmica denominada por Habermas como instrumental, j que surge de relaes em
que os participantes das interaes sociais instrumentalizam uns aos outros como meios para a
consecuo de seus prprios fins, ou seja, os outros agentes so simplesmente meios ou restries para
a realizao de um plano de ao (Ingram, 1994). A atitude de orientao para o entendimento ao
comunicativa , por outro lado, torna os participantes da interao dependentes uns dos outros. So
dependentes das atitudes de afirmao ou negao de seus destinatrios, porque somente podem
chegar a um consenso constitudo sobre uma base de reconhecimento intersubjetivo das pretenses de
validez.
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Deste modo, os participantes de uma interao que tratam de coordenar em comum
acordo seus respectivos planos de ao, somente os executam sob a condio de consenso sobre qual
a melhor maneira de execut-los, que ser obtida atravs de uma postura relativizadora (que tenta
compreender a viso de mundo do outro colocando-se em seu lugar) entre os interlocutores.
Entretanto, para o filsofo alemo, na sociedade industrial, a pesquisa, a cincia, a tecnologia e a
utilizao industrial fundiram-se em um s sistema, atingindo uma forma repressiva de estrutura
institucional, onde as normas de entendimento mtuo dos indivduos esto absorvidas por um sistema
comportamental de ao racional de propsito determinado.
Portanto, o significado foi subordinado ao imperativo do controle tcnico da
natureza e da acumulao de capital. Uma conseqncia disto que, atravs do domnio da
racionalidade instrumental sobre as sociedades modernas, a comunicao entre as pessoas tornou-
se sistematicamente distorcida e isto passou a ser considerado normal na sociedade contempornea,
disfarando assim o carter repressivo das relaes sociais. Este fenmeno da comunicao distorcida
tornou-se preocupao fundamental da obra de Habermas, que prope uma distino entre ao
racional com propsito, ou ao instrumental, e a ao de comunicao, ou de interao simblica.
Para Habermas, nas modernas sociedades, as antigas bases de interao simblica
foram dissimuladas pelos sistemas de conduta de ao racional com propsito, ou ao instrumental,
e a interao simblica ao de comunicao somente permitida em enclaves bastante residuais
ou marginais. Na sociedade moderna, a lgica da racionalidade instrumental, que tem por fim
ampliar o controle da natureza e o desenvolvimento das foras produtoras, acabou tornando-se a lgica
da vida humana em geral, aprisionando a prpria subjetividade do indivduo (Ingram, 1994).
Assim, nas sociedades de capitalismo avanado, a comunicao entre os atores
sociais tornou-se distorcida e massificada, passando a adquirir o carter de ao estratgica, voltada
apenas ao prprio xito, condicionada pelo interesse monetrio e pelo exerccio do poder, impedindo
assim a ao comunicativa, voltada para o entendimento O desenvolvimento capitalista imps limites
livre e autntica comunicao entre os homens. Por isto, Habermas afirma que a premissa de Marx, de
que a liberdade e a racionalidade seriam inevitavelmente atingidas, atravs do desenvolvimento das
foras de produo, mostrou-se insustentvel (Ingram, 1994).
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Desta forma, Jrgen Habermas, na construo de sua teoria crtica da sociedade,
entende necessrio aprofundar o exame da racionalidade e desenvolve a Teoria da Ao
Comunicativa como elemento de compreenso para a fundamentao de sua tica do Discurso, que
uma teoria da moral que recorre razo para sua fundamentao. O autor parte do conceito de
razo reflexiva de Kant para desenvolver o conceito de razo comunicativa. Enquanto na razo
kantiana o juzo categrico est fundado no sujeito e supe uma razo monolgica, a razo
comunicativa est centrada no dilogo, na interao entre os indivduos do grupo, mediada pela
linguagem e pelo discurso (Habermas, 1998).
A razo comunicativa enriquecida por ser processual, construda pela interao
entre os sujeitos enquanto seres que se posicionam criticamente frente s normas. A validade das
normas, portanto, no deriva de uma razo abstrata e universal, tampouco depende da subjetividade de
cada um, mas do consenso encontrado a partir do grupo, do conjunto dos indivduos e, assim, a
subjetividade se transforma em intersubjetividade.
Contudo, do ponto de vista da razo comunicativa, a interao entre os sujeitos
precisa ser estabelecida sem as presses tpicas dos sistemas econmico e poltico da sociedade
moderna, que se fundam na fora do dinheiro e no exerccio do poder. A ao comunicativa supe o
entendimento entre os indivduos que buscam, pelo uso de argumentos racionais, convencer o outro a
respeito da validade da norma, permitindo um avano para uma sociedade baseada na espontaneidade,
na solidariedade e na cooperao (Habermas, 1998).
Demonstrada a Teoria da Ao Comunicativa de Jrgen Habermas, j se pode
ento, com base em Guerreiro Ramos (1989), explicitar a noo de Racionalidade Substantiva, e
ainda, com o auxlio de Maurcio Serva (1996), expor o conceito de ao racional substantiva, bem
como seus elementos constituintes, o que se examina a seguir.
2.3 A Racionalidade Substantiva, de Guerreiro Ramos
O socilogo e terico da Administrao Alberto Guerreiro Ramos, em seu livro A
Nova Cincia das Organizaes uma reconceituao da riqueza das naes, lanado
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originalmente em 1981, props que se analisassem as organizaes sob o enfoque da racionalidade, em
uma abordagem que denominou "teoria substantiva da vida humana associada" (1989, p. 26).
Na viso de Guerreiro Ramos, a razo constitui-se em um conceito bsico para a
anlise de qualquer cincia da sociedade e das organizaes, pois em bases racionais que so
estabelecidos os preceitos de como deve ser ordenada a vida humana em geral.
Em seu exame da racionalidade, Guerreiro Ramos (1989) parte da distino que
Max Weber fez entre os conceitos de Wertrationalitt (racionalidade substantiva, ou de valor) e
Zweckrationalitt (racionalidade formal, ou funcional). Entretanto, diferentemente do socilogo
alemo, que pautou seus trabalhos pela adoo da razo funcional como categoria de anlise,
Guerreiro Ramos utiliza a racionalidade substantiva, como categoria de anlise bsica da teoria da
vida humana associada, tendo a tica como disciplina orientadora.
A racionalidade substantiva , para Guerreiro Ramos, um atributo natural do ser
humano, visto que reside na psique humana (isto o aproxima fortemente da teoria da ao
comunicativa de Jrgen Habermas, pois em ambos os desenvolvimentos tericos o sujeito, o ser
humano, ocupa lugar central), e a partir dela que os indivduos podem buscar conduzir sua vida
pessoal na direo da auto-realizao e do autodesenvolvimento, engajando-se de forma mais
expressiva no processo de desenvolvimento social e, no mbito da teoria administrativa, no processo
de desenvolvimento da prpria organizao.
Guerreiro Ramos (1989) adverte que a sociedade moderna adotou a racionalidade
funcional e a centralizao no mercado como sendo as bases orientadoras das cincias sociais e da
vida humana em geral, em detrimento da razo substantiva, trazendo assim limitaes ao bem-estar e
satisfao do ser humano.
Pois exatamente a racionalidade substantiva, na perspectiva de Guerreiro
Ramos, que permite ao indivduo ordenar sua vida em bases ticas, atravs do debate racional,
buscando encontrar um equilbrio dinmico entre a satisfao pessoal e a satisfao social,
potencializando o anseio e a capacidade humana de auto-realizao, autodesenvolvimento e
emancipao.
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Para Guerreiro Ramos, no mbito da Teoria Organizacional, a abordagem da
racionalidade substantiva deve ter por objetivo a busca sistemtica da eliminao de compulses
desnecessrias, agindo sobre as atividades humanas nas organizaes econmicas, de forma a tornar
pleno o desenvolvimento das potencialidades do ser humano. A racionalidade substantiva no interior
das organizaes , portanto, a oposio orientao organizacional fornecida pela razo
instrumental, que pautada pela busca do sucesso individual, primando pelo utilitarismo e
pragmatismo (Guerreiro Ramos, 1989).
Como mostra Maurcio Serva (1996, pp. 118-119), cinco pontos so fundamentais
na abordagem substantiva das organizao, de Guerreiro Ramos:
1) As necessidades humanas so variadas e atendidas por mltiplos cenrios sociais.
possvel, portanto, categorizar e formular as condies operacionais particulares a cada cenrio
social;
2) Somente algumas necessidades humanas so atendidas pelo sistema de mercado,
que determina um cenrio social especfico, fortemente influenciado pela comunicao operacional e
por critrios instrumentais. Assim, o comportamento administrativo constitui-se como uma forma de
conduta humana condicionada por imperativos econmicos;
3) Os diferentes cenrios organizacionais esto correlacionados a diferentes
categorias de tempo e espao. A categoria de tempo e espao dos cenrios econmicos mostra-se
como uma situao particular entre outras tantas;
4) Diferentes cenrios organizacionais possuem diferentes sistemas cognitivos. Deste
modo, as regras cognitivas referentes ao comportamento administrativo tambm mostram-se como um
conjunto particular de normas em face a uma epistemologia multidisciplinar dos diversos cenrios
organizacionais;
5) Diferentes cenrios sociais tm como requisito diferentes enclaves territrios
dentro do tecido social, embora possuam vnculos entre si.
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Infelizmente, no foi possvel ao socilogo brasileiro dar andamento s suas
pesquisas sobre a abordagem substantiva das organizaes11, uma vez que pretendia, a partir da
construo e apresentao dos conceitos bsicos de seu arcabouo terico, investigar e comprovar
empiricamente suas teses. No prefcio da edio brasileira de The New Science of Organizations,
lanado em 1981 nos Estados Unidos, o autor indica que pretendia, aps a construo da base terica
da Racionalidade Substantiva, empreender estudos empricos no sentido de demonstr-la
operacionalmente. Contudo, o projeto foi interrompido em 1982, com a morte do autor.
Maurcio Serva (1993, 1996 e 1997) buscou, em seus trabalhos acerca do assunto,
dar continuidade proposta de Guerreiro Ramos, transformando o arcabouo terico do socilogo
brasileiro em esquema conceitual de carter operacional, prprio portanto para a aplicao em
pesquisas empricas. Serva agrega nesta construo importantes contribuies da obra de Jrgen
Habermas, como est referido no artigo A Racionalidade Substantiva demonstrada na prtica
administrativa (Serva, 1997).
Desse modo, com base em Maurcio Serva (1996, p.340), assim define-se a ao
racional substantiva12: "Ao orientada para duas dimenses: na dimenso individual, que se
refere auto-realizao, compreendida como concretizao de potencialidades e satisfao;
na dimenso grupal, que se refere ao entendimento, na direo da responsabilidade e
satisfao sociais".
Os elementos constitutivos da ao racional substantiva no interior da organizao
so (Serva, 1996, pp.340-341):
a) Auto-realizao: pode ser descrita como um conjunto de processos de
concretizao do potencial inato do ser humano, que se complementa pelo alcance da satisfao
individual;
11 Alberto Guerreiro Ramos morreu em 1982, aos 67 anos, apenas um ano aps o lanamento de A Nova Cincia dasOrganizaes .12 Novamente importante ressaltar que o conceito de ao racional substantiva, bem como seus elementos compeo quadro de anlise desta pesquisa, juntamente com o conceito de ao racional instrumental e seus elementos, japresentados.
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b) Entendimento: forma pela qual os indivduos estabelecem acordos e consensos
racionais, sempre mediados por processos de comunicao livre, de onde decorrem atividades comuns
coordenadas, ao amparo de sentimentos de responsabilidade e satisfao social;
c) Julgamento tico: processos decisrios baseados em emisso de juzos de valor
do tipo bom, mau, verdadeiro, falso, certo, errado, que se do atravs do estabelecimento de um
debate racional sobre as pretenses de validez emitidas pelos indivduos em suas interaes com os
demais membros do grupo;
d) Autenticidade: so interaes e relacionamentos interpessoais estruturados em
torno de sentimentos como integridade, honestidade e franqueza dos indivduos;
e) Valores emancipatrios: preocupao e observncia de valores que levem ao
aperfeioamento do grupo, na direo do bem-estar coletivo, da solidariedade, do respeito s
individualidades, da liberdade, do comprometimento e da integrao com o ambiente interno e externo,
presentes tanto nos indivduos que compem o grupo, quanto no prprio contexto normativo do grupo;
f) Autonomia: a condio plena dos indivduos para poderem agir e expressarem-
se livremente nas interaes, sem que estejam condicionados por coaes ou presses exercidas por
outros indivduos;
Convm salientar que as organizaes econmicas que registrem as duas formas de
racionalidade j descritas instrumental e substantiva , em quaisquer que sejam suas propores,
podem ser produtivas e rentveis. Contudo, a nfase demasiada no uso da razo instrumental em uma
empresa pode determinar seu insucesso a longo prazo, em face da deteriorao das relaes humanas,
que podero ficar desprovidas de uma dimenso tica e valorativa.
De outro lado, uma organizao com predominncia da ao racional substantiva,
com alto grau de autonomia e auto-organizao, com processos interativos baseados em julgamentos
ticos e em debates racionais e democrticos, proporcionaria uma atmosfera favorvel auto-
realizao e satisfao pessoal dos indivduos, o que resultaria em uma maior harmonia e dinamismo
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internos, permitindo organizao responder s novas demandas externas com agilidade, flexibilidade e
criatividade, mesmo em um horizonte de longo prazo.
Assim, analisada a Teoria da Ao Comunicativa, examinadas a racionalidade
instrumental e a racionalidade substantiva, e apresentados os conceitos e elementos da ao
racional instrumental e da ao racional instrumental, convm agora explicitar a relao de
complementaridade existente entre as construes tericas do filsofo alemo Jrgen Habermas e do
socilogo brasileiro Guerreiro Ramos, de modo a justificar a reunio e a utilizao das duas abordagens
neste estudo.
2.4 A Complementaridade entre as Abordagens de Habermas e Guerreiro Ramos
Esta seo busca demonstrar o carter complementar existente entre a Teoria da
Ao Comunicativa, de Jrgen Habermas (1987 [a] e [b]), e o desenvolvimento terico da Razo
Substantiva, levado a efeito por Alberto Guerreiro Ramos (1989). Pretende-se com isto justificar a
reunio e a utilizao destes dois autores como pilares fundamentais deste estudo.
Torna-se importante analisar um pouco mais detidamente esta relao de
complementaridade, uma vez que talvez o prprio Guerreiro Ramos no a tenha percebido em toda a
sua extenso. Isto deve-se, provavelmente, ao fato de que a principal obra do socilogo brasileiro, no
que tange Racionalidade Substantiva, foi lanada em 1981, nos Estados Unidos, praticamente ao
mesmo tempo em que o filsofo alemo lanava seu mais completo livro sobre a Teoria da Ao
Comunicativa, na Alemanha, tambm em 1981 (Theorie des kommunikativen Handels). nesta
obra13 que Jrgen Habermas rene todos os elementos de justificao de sua construo terica sobre
a ao comunicativa e clarifica vrios aspectos de sua abordagem, at ento, de certo modo,
deficitrios em seus trabalhos anteriores. Um dos principais analistas do trabalho de Habermas, Thomas
13 Neste estudo, utilizou-se a verso espanhola Teora de la accin comunicativa, de 1987.
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McCarthy (1995), j chamou a ateno para isto, referindo-se ao livro como a mais importante obra
sistemtica do filsofo alemo14.
Guerreiro Ramos, portanto, ao elaborar seu principal trabalho sobre a
racionalidade substantiva, no teve acesso mais importante obra de Habermas sobre a ao
comunicativa, e valeu-se de textos anteriores do pensador alemo, onde determinados aspectos
conceituais ainda careciam de maior refinamento terico15.
Feitos estes comentrios, pode-se tratar mais especificamente de cada ponto de
convergncia entre os autores. Antes de mais nada, fundamental referir que os dois estudos utilizados
partem de uma mesma premissa: a necessidade de buscar-se o caminho da emancipao do ser
humano diante das limitaes e dos constrangimentos oferecidos sua auto-realizao na sociedade
ps-industrial.
Relao entre Sujeitos Capazes e Autnomos e Atributo da Psique do Sujeito
O primeiro ponto de contato entre os dois pensadores, portanto, o destaque que
ambas as construes tericas do ao ser humano, ao sujeito.
Para Guerreiro Ramos, a razo atributo natural do ser humano e est localizada em
sua psique como recurso potencial. Para Habermas, o potencial da racionalidade se concretizar
atravs da ao comunicativa, onde o sujeito capaz de orientar sua ao com base em pretenses de
validez intersubjetivamente conhecidas da comunidade com quem se relaciona, tendo como requisitos
a plena capacidade de comunicao, a autonomia para agir e a responsabilidade.
Relao entre Mundo da Vida Cotidiano e Busca de Entendimento e Senso Comum
14 Ver prlogo e eplogo da edio espanhola do livro The Critical Theory of Jrgen Habermas, lanadooriginalmente por Thomas McCarthy em 1978 nos Estados Unidos (La Teora Crtica de Jrgen Habermas, 1995).15 Guerreiro Ramos em The New Science of Organizations, de 1981, utilizou-se fundamentalmente dos seguintestextos de Habermas: Toward a rational society, de 1970, Knowledge and human interests, de 1971, e Toward atheory of communicative competence, de 1970. Thomas McCarthy (1995) afirma que muitas das construes atento apresentadas por Habermas foram reformuladas e clarificadas em Theorie des kommunikativen Handels.
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O segundo ponto onde se tangenciam na idia de senso comum, ou busca do
entendimento e mundo da vida cotidiano.
Segundo Guerreiro Ramos, o que vai atribuir significado razo o senso comum,
atravs da comunicao, do debate, de modo que a regulao da vida humana associada seja
harmonizada em torno das questes ticas e polticas. Nas palavras do autor: "(...) o debate racional,
no sentido substantivo, que constitui a essncia da forma poltica de vida, tambm o requisito
essencial para o suporte de qualquer bem regulada vida humana associada" (1989, p. 27).
Habermas, por sua vez, desenvolve a teoria da ao comunicativa orientando-a
na busca processual do entendimento e da posterior coordenao das atividades dos sujeitos capazes,
autnomos e responsveis. Esta ao, ou interao, ocorre no plano social, na instncia que Habermas
denomina de mundo da vida (1987 [b]). Para o autor, o mundo da vida o espao das relaes
sociais onde os participantes tm sua disposio um conjunto de cdigos de referncia, valores,
normas, que lhes permitem elaborar as interpretaes voltadas ao consenso. Este consenso
pretendido pela necessidade de que o entendimento seja alcanado em face de uma determinada
situao. O mundo da vida possui como elementos bsicos: a personalidade, a cultura e a sociedade.
Afirma Habermas: "A partir da perspectiva dos participantes da ao social
envolvidos em determinada situao, o mundo da vida surge como o contexto formador do
horizonte dos processos de entendimento e que delimita a situao da ao empreendida
(...)"16 (1997 [b], p. 494).
Conforme mostra Maurcio Serva (1996), o destaque dado por Guerreiro Ramos ao
senso comum dentro da sua Teoria da Vida Humana Associada exige que seja ressaltada a
possibilidade de debate racional e, conseqentemente, da atividade comunicativa, que tem como pano
de fundo, segundo Habermas, o mundo da vida, que nada mais do que o contexto normativo e
valorativo no qual os participantes se movimentam e interagem, mediados pela cultura, visando ao
entendimento.
16 Traduo livre.
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Relao entre Ao Comunicativa Baseada em Pretenses de Validez Sujeita Crtica e
Debate Racional e Superordenao tica
Um outro ponto de contato entre os dois autores que merece destaque a noo de
debate racional e superordenao tica, de Guerreiro Ramos e de pretenses de validez sujeitas
critica, de Habermas.
Guerreiro Ramos defende a idia de que a racionalidade substantiva est centrada
em uma viso de sociedade onde o debate racional o elemento fundamental da vida comunitria e
poltica. Na viso do socilogo brasileiro, o debate racional somente ser ensejado se estiver
associado ao princpio da superordenao tica da teoria poltica em relao s demais reas que
orientem a vida humana associada. Deste modo, um ideal de sociedade estar sempre regido por juzos
de valores, onde a tica e a poltica so imprescindveis para a boa regulao das interaes entre os
indivduos, numa viso tipicamente aristotlica.
Habermas estabelece o julgamento tico como sendo um elemento fundamental para
a ao comunicativa, j que nesta forma de ao social os interesses do outro so sempre levados
em considerao. Uma das condies bsicas para a ao comunicativa exatamente a
responsabilidade do sujeito, que est em sua capacidade de orientar a ao atravs de pretenses de
validez (pretenses de validade).
Estas pretenses de validade estaro, no agir comunicativo, sujeitas crtica
valorativa do interlocutor, transformando-se, assim, em um elemento fundamental do debate racional.
importante salientar que, para Habermas, existe na linguagem um ncleo universal,
isto , estruturas bsicas que todos os sujeitos, num determinado momento passam a dominar. Esta
competncia comunicativa, contudo, no pode estar reduzida produo de falas gramaticalmente
corretas, mas est relacionada a trs mundos aos quais correspondem trs pretenses de validade
requeridas pelos atores. Tais pretenses de validade permitem o entendimento entre os atores e
possuem carter universal, alm de estarem diretamente associadas racionalidade.
Conforme Nadja Hermann (1999), assim a relao entre pretenses de validade
e os trs mundos descritos por Habermas:
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a) O mundo objetivo: corresponde pretenso de que o enunciado seja
verdadeiro. As afirmaes sobre fatos e acontecimentos referem-se a pretenses de verdade;
b) O mundo social (ou das normas legitimamente reguladas): a que se vinculam as
pretenses de que o ato de fala seja correto em relao ao contexto normativo vigente. Trata-se da
pretenso de justia;
c) O mundo subjetivo: onde vinculam-se as pretenses de veracidade. As
intenes, opinies e desejos expressos pelo falante coincidem efetivamente com aquilo que pensa.
Relao entre Ao Orientada ao Entendimento e Boa Regulao da Vida Humana
Associada
Um outro ponto de correlao entre a construo terica de Guerreiro Ramos e de
Habermas est justamente na sua finalidade. Para o socilogo brasileiro, a noo de racionalidade
substantiva tem por fim ajudar a promover a boa regulao da vida humana associada, ou seja,
auxiliar na integrao e entendimento dos atores sociais em sua convivncia em sociedade.
Por sua vez, a Teoria da Ao Comunicativa do filsofo alemo tem, entre seus
principais objetivos, realizar uma crtica da sociedade moderna, reduzindo suas deficincias e
patologias, e sugerindo novas vias para a reconstruo do projeto de recuperao da razo. E, acima
de tudo, uma racionalidade voltada ao entendimento, isto , uma busca de acordo entre sujeitos com
competncia lingstica e interativa.
Para Habermas, os processos de entendimento tm como objetivo acordos que
estejam apoiados em contedos racionalmente motivados, sem imposies ou estratgias previamente
calculadas, que dissimulem intenes camufladas. Assim, o acordo, estabelecido com base na ao
comunicativa, deve estar apoiado em convices comuns (Habermas, 1987 [a]).
Relao entre Contexto Normativo do Mundo da Vida Baseado na Interpretao e Valores na
Interpretao dos Fatos
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Guerreiro Ramos e Habermas tambm aproximam-se ao buscarem,
fundamentalmente, um ponto de apoio para suas teorias em aspectos valorativos e princpios ticos que
regulam a conduta humana.
No trabalho do socilogo brasileiro, a valorao da conduta humana est fortemente
presente, desde a construo do conceito de racionalidade substantiva, passando pela teorizao
da vida humana associada, at chegar na Abordagem Substantiva das Organizaes. Os
constructos tericos todos de Guerreiro Ramos, em sua abordagem da racionalidade substantiva,
possuem carter normativo, de modo a caracterizar, acentuadamente, que a interpretao dos fatos
sociais e organizacionais deve estar orientada por valores, e valores que estejam comprometidos com a
boa regulao da vida humana associada.
Em Habermas, pode-se notar que a interpretao da realidade e das interaes
comunicativas acontece sempre situada em um contexto normativo do mundo da vida cotidiano. Para
Habermas, como afirma Maurcio Serva: "(...) os valores fornecem a medida da interpretao da
validade das pretenses dos agentes, condicionam o consenso, delimitando as possibilidades
de entendimento." (1996, p. 337).
Convm salientar que existem outros tantos pontos de contato entre a abordagem da
racionalidade substantiva, de Guerreiro Ramos (1989), e a teoria da ao comunicativa17, de
Jrgen Habermas (1987, [a] e [b]). Contudo, para efeito do que se pretende neste estudo, e tendo em
vista o escopo desta pesquisa, os aspectos convergentes apresentados revelam-se suficientes.
A esta altura do desenvolvimento terico deste estudo, fundamental descrever o
que so Organizaes Substantivas e quais as caractersticas das
2.5 As Organizaes Substantivas
17 Para uma comprovao deste fato, ver a detalhada anlise empreendida por Serva (1996).
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Para que bem se possa chegar caracterizao das organizaes substantivas,
preciso antes analisar aquilo que Guerreiro Ramos (1989) denominou como isonomias. Na viso do
autor, isonomia significa um contexto social onde todos os seus membros e participantes so
considerados iguais, como o caso da noo de polis, concebida por Aristteles em sua obra Poltica
(1997).
Dentro deste enfoque, as principais caractersticas de uma isonomia podem ser
assim descritas (Guerreiro Ramos, 1989, pp. 150-151):
a) O principal objetivo desta forma de organizao permitir a auto-realizao e a
emancipao de seus membros, sob um conjunto mnimo de prescries, que so estabelecidas por
consenso;
b) A atuao dos indivduos livremente associados em uma isonomia
compensadora em si mesma, com um relacionamento baseado na generosidade social e na
autogratificao;
c) As atividades desenvolvidas pelos indivduos so impulsionadas por aspirao
vocacional e no por interesses econmicos. Dentro do escopo de interesses fundamentais do indivduo
no est a maximizao da utilidade;
d) A isonomia concebida como uma comunidade, e no h dicotomias entre
grupos, ou distino entre liderana ou gerncia e subordinados. A autoridade atribuda por
deliberao de todos os membros e passa continuamente de indivduo para indivduo, de acordo com a
natureza dos problemas, em funo da habilidade dos indivduos em lidar com eles;
e) A eficcia de uma isonomia envolve a determinao de um tamanho timo. Um
aumento deste tamanho pode transform-la em oligarquia, ou burocracia, ou mesmo democracia, j
que poder exigir formas de relacionamento secundrios ou categricos, com a proliferao de
diferentes papis sociais entre os integrantes.
Guerreiro Ramos (1989) descreve e caracteriza as isonomias como uma espcie de
tipo ideal weberiano, e alerta que o faz para que possa expor ou materializar o conceito. Contudo,
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embora entenda que uma perfeita isonomia possa ser de difcil localizao na prtica, descreve o autor
o crescimento de ambientes organizacionais que se aproximam do tipo isonmico (notadamente nos
Estados Unidos, onde o autor vinha realizando suas pesquisas). o caso das associaes de pais e
professores, associaes de estudantes, associaes de minorias sociais, associaes artsticas e
religiosas, entidades comunitrias, entre outras (Guerreiro Ramos, 1989).
fundamental destacar que, para Guerreiro Ramos, a forma de racionalidade
predominante neste tipo de organizao a racionalidade substantiva. A partir disso, um Grupo de
Pesquisas sediado na Escola de Administrao da Universidade Federal da Bahia, e coordenado por
Maurcio Serva, em uma pesquisa sobre organizaes coletivistas ou alternativas, empreendida em
Salvador, na Bahia, decidiu denomin-las de Organizaes Substantivas (Serva, 1993)18.
As organizaes substantivas so aquelas em que indivduos unem-se
espontaneamente e por sua livre iniciativa para atingirem objetivos geralmente sem fim lucrativo, sem
estarem regidas por procedimentos que as caracterizem como organizaes burocratizadas e que, em
geral, destinam-se a atividades como prestao de assistncia a comunidades menos favorecidas,
preservao do meio ambiente, preservao de aspectos culturais de dado grupamento social,
atividades de carter filantrpico, associaes, fundaes, etc. Nestas organizaes, segundo Serva
(1993), existe uma forte preocupao com o efetivo resgate da condio humana, sendo que suas
atividades so marcadas por valores como autenticidade, respeito individualidade, dignidade,
solidariedade e afetividade.
Por sua vez, Fernando Tenrio (1998) descreve as organizaes do Terceiro
Setor19 de modo muito semelhante s organizaes substantivas: so entidades estruturadas em torno
de uma efetiva coordenao entre meios e fins, onde o bem comum o propsito principal, e o modo
18 Maurcio Serva (1993) demonstra que a expanso das organizaes substantivas um fenmeno de proporesmundiais. Na Alemanha Ocidental, por exemplo, no incio dos anos 80, estimava-se a existncia de aproximadamente11.500 delas, envolvendo 80.000 pessoas, atuando em vrios campos como agricultura, informao, tecnologiasapropriadas. J nos Estados Unidos, estimativas de 1976 indicavam a existncia de mais de 5.000 organizaes, e acriao de aproximadamente 1.000 delas a cada ano. No Brasil, no se dispe de qualquer tentativa rigorosa demapeamento quantitativo.19 O Primeiro Setor, ou Setor Pblico, formado pelo conjunto das organizaes e propriedades pertencentes aoEstado. J o Segundo Setor, ou Setor Privado, constitudo pelo conjunto das empresas particulares e propriedadespertencentes a pessoas fsicas ou jurdicas, fora do controle do Estado. Por sua vez, o Terceiro Setor, constitudopor organizaes estruturadas e localizadas fora do aparato formal do Estado e que no se destinam a distribuir oslucros auferidos entre seus diretores ou acionistas. So entidades autogovernadas e que envolvem indivduos em umesforo voluntrio para produzir bens ou servios de uso coletivo (Tenrio, 1998).
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de se buscar alcanar os objetivos estabelecido por relaes intersubjetivas em que o ser humano
elemento fundamental e central. Percebe-se, portanto, que o conceito de organizaes do terceiro setor
apresentado por Fernando Tenrio (1998) guarda uma estreita relao com a noo de organizaes
substantivas, de Maurcio Serva (1993).
Em seu artigo, Fernando Tenrio (1998) demonstra preocupao com o fato de que
as organizaes do terceiro setor, em sua nsia por sobrevivncia, possam comear a se valer dos
mesmos modelos e ferramentas gerenciais utilizados pelo setor privado, contagiando-se assim com a
racionalidade do tipo instrumental e retirando-lhes sua principal caracterstica, ou seja, a de estarem
fundamentalmente baseadas em uma racionalidade do tipo substantiva. O autor argumenta em sua
crtica que no se trata de desprezar ou menosprezar os modelos gerenciais do primeiro e segundo
setores quanto formao de polticas ou quanto produtividade. Trata-se, sim, da necessidade de se
buscar conduzir a racionalidade de mercado, de carter instrumental, em direo a uma forma de razo
livre e intersubjetiva, que promova o potencial de auto-realizao do ser humano na sociedade,
consubstanciado em sua cidadania.
apoiado neste argumento de Fernando Tenrio, que esta pesquisa ir empreender
uma investigao para avaliar em que grau pode-se caracterizar uma organizao produtiva do setor
industrial como uma organizao substantiva.
Para efeito do que se pretende nesta pesquisa, adota-se, aproveitando a
contribuio de Maurcio Serva (1996, p. 276), o seguinte conceito de organizao substantiva:
"Organizaes Substantivas so organizaes produtivas onde seja predominante, em seus
processos administrativos e organizacionais, a racionalidade substantiva, e que contenha o
ideal da emancipao do ser humano no mbito do trabalho entre seus objetivos e prticas
administrativas".
J, como conceito de organizao produtiva, este estudo considera que: aquela
que produz bens ou servios com a finalidade de coloc-los disposio de um mercado
consumidor em potencial, contando com a participao de trabalhadores profissionais
remunerados por sua prestao de servios , que possua sua finalidade exposta ou revelada
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para o ambiente social em que interage, que possua personalidade jurdica oficial e que
desenvolva atividades legais.
Neste ponto, reside uma diferena fundamental desta pesquisa em relao quela
levada a efeito por Serva (1996). Em seu estudo, o pesquisador no excluiu a possibilidade de
investigar organizaes que, mesmo sendo consideradas como produtivas, no buscassem lucro, ou
retorno financeiro, atravs de sua atividade. De fato, nem todas as unidades pesquisadas por Serva
tinham o lucro como sua finalidade, uma delas, inclusive, sendo uma fundao de direito privado. Neste
estudo, diferentemente, empreendeu-se uma investigao em uma organizao produtiva do ramo
industrial que tem entre suas finalidades a busca por retorno financeiro, ou seja, o lucro.
O fato de se pesquisar uma organizao produtiva que atue no ramo industrial
(uma indstria, portanto) outra diferena marcante em relao ao estudo de Maurcio Serva. As
organizaes por ele investigadas (Serva, 1996, pp. 371-387) eram todas unidades prestadoras de
servio, em atividades como produo de arte, escola infantil, psicoterapia individual e de grupo,
psicopedagogia, escola de msica e teatro, medicina naturista e homeoptica, ajustamento corporal,
tar de autoconhecimento, organizao de experincias de vida comunitria e agricultura natural,
xamanismo, lazer organizado excurses ecolgicas