A Equação do Terceiro Grau - Elon Lages Lima

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    ARTIGOSMatermtica Universitaria, N9 5, Junho de 1987,9-23.

    A Equacao do Terceiro GrauElon Laqes Lima

    A crontca da equa[;ao do ierceiro grau, apresentada a sequir, poderia taluezconter algumas palcuras a mais sabre L ..dovico Ferrari (1522 + 4 8 = 1585), 'l'!~nasceu e morreu em Bolonha mas foi para Milao aos 14 anos a fim de trabalhar no.casts de C ardano, Este, reconhecendo a ezcepcional inteligencia do [ouem, ensinou--lhe Latim e Matemdtica, promovendo-o a seu secreuirio, Aos dezoito anos, Ferraritornou-se professor do. Universidade de Milao e tinha apenas vintc e cinco anosquando de sua disputa com Tartaglia, depois da qual recebeu ojerias de empreqo depessoas importantes, como 0 imperador Carlos Ve 0 cardeal Gonzaga, de Mantua,a quem scrviu durante oito anos. Razoee de sadde 0 levaram de volta a Bolonha,onde morou com sua irma, foi professor na universidade e morreu aos 4 . 1 anos.Sua participa!;iio na ht"storia que contamos aqui e importanie, nao apenas par suacolaboraciio decisiva para 0 livro "Ars Magna" de Cardano, mas principalmenie porier sido 0 homem que, ao deduzir a formula de reeoiuciio por radicais da equaciiodo quarto grau, atingiu 0 limite do possivel.

    Com ejeito, dois seculos e meio depois, Paolo Ruffini (1765 + 57 = 1822)publico em Bolonhe (1799) um livro no qual demonstrou que a equaciio qerol degmu superior ao quarto niio pode ser resolvida pot meio de radicais. Independente-mente disto, 0 jovem matemdtico noruegues Niels Henrik Abel (1802 + 27 = 1829)pensou ter descoberto, em 1821, uma formula que ezpreesaoa as raizes de umaequaciio do quinto grau por meio de radicais. Verificou porem. que havia um erroem sua demonstraqiio e, retornando 0.0 problema tres anos depoie, (1824)] provouque as equa!;oes de gmu superior 0.0 quarto nao possuem formula geral de resolugiiopor radicais. A demonsiracdo de Abel e considerada satisfatoria enquanto que nade Ruffini" tem" sido obseroadae lacunas. 0 problema geral de determinar quaisequa[;oes de grau n tim suas raises ezpressas sob forma de radicais em fun~iio dOBcoefieientes s o veio ter uma soluciio definitiva com 0 trabalho do genial.matematicofrancis Euariste Galois (1811 + 21 =18S2). Este obieee uma condieiio necessaria esuficiente] a saber] que 0 "grupo de Galois" do. equa!;iio seja um grupo solUvel. Paraep,tender 0 que significa isto, ueja, por ezemplo, 0 liuro "Introdu!;ao a Albegra", porAdilson Gon~alves. {Projeto Euelides, IMPA, 1987, segundaedigiio.)

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    Int roducfioA historia da solucao da equacao do terceiro grau tern varies aspectos in-teressantes, em virtude dos quais ela se constitui num topico atraente paraestudo e discussao entre professores e alunos de Matematica.

    Urn desses aspectos eo enigma historico. Se os babilonios j a sabiam re-solver a equacao do segundo grau mil e setecentos anos antes da era crista,por que se teve de esperar mais de tres mil anos ate que Scipione Ferroresolvesse a equacao do terceiro grau e Ludovico Ferrari, logo em seguida,a do quarto grau? Ha tambem 0 lado humano, as figuras pitorescas e fasci-nantes dos homens envolvidos nas descobertas e nas disputas dai decorrentes.Alern disso, tem-se ainda 0aspecto cientifico, os progressos matematicos queadvierarn da solucao e 0 grande problema geral da resolucao por radicais,somente elucidado trezentos anos depois, por Ruffini, Abel e Galois. Tudoisto sem falar no cenario, aquela notavel atmosfera de elevada excitacaointelectual existente na Italia da epoca renascentista,

    A fim de dar ao leitor uma ideia do ambiente em que se desenrolou asaga que varnos relatar, achamos oportuno encerrar esta introducao com daistrechos retirados do livro "Histoire des Sciences Mathematiques en Italie",de G_Libri, Paris, 1840 [pags, 6 e 152 do voL III).

    "Em nossa opiniao, como j a repetimos tantas vezes, e 0carater, e a ener-gia que faz os grandes homens, e otalento nunca faltou aos povos que senteme que desejam com todo ardor. Entretanto, uma reunifio de homens como~ .Leonardo da Vinci, Machiavel, Colombo, Raphael, Michelangelo, Ariosto,que congregaram pleiades de discipulos ilustres e de rivais, e urn fato quenunhuma pesquisa hist6rica parece poder explicar" .

    "Os quesiti sao uma colecao, em nove livros, de respostas dadas porTartaglia a questoes que lhe eram enderecadas por principes, monges,dou-tares, ernbaixadores, professores, arquitetos, etc. Freqiienternente, essasquestoes continham problemas do terceiro grau. Ao ver todos esses proble-mas propostos no comeco do seculo XVI, compreende-se a importancia quese atribuia naquela epoca as descobertas-algebricas, Seria dificil achar nahistoria das ciencias exemplo de fato semelhante. As apostas, as disputaspublic as, os panfletos se sucediam sem interrupcao: todas as classes da so-ciedade se interessavam par essas lutas cientfficas, do mesmo modo comona, antigiiidade se interessavam pelos desafios dos poetas e pelos jogos dosatletas. Parecia que se pressentia a descoberta, e a descoberta nao se fezesperar" .

    Evidentemente, nas limitadas dimensoes deste artigo nao seria possfvel

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    tratar exaustivamente todos os angulos acima aludidos do epsodio que vamosnarrar. Pocuraremos, entretanto, fazer uma exposicao coerente e inteligivel,a qual sera dividida em trespartes: Historia, .Algebra e Calculo.

    Hist6riaLendo 0 primeiro capitulo do livro de A. Aaboe "Episodios da Hist6riaAntiga da Matematica", publicado pela SBM, aprendernos que os mate-maticos babilonicos, por volta do ana 1700 AC., ja conheciam regras pararesolver equacoes do segundo grau, sob forma de problemas, como 0de achardoisnumeros conhecendo sua soma s e seu produto p, (Esses mimeros sa.oas raizes da equacao x2 - sz + p = 0 e, na realidade, achar as raises dequalquer equacao do segundo grau equivale a resolver urn problema dessetipo.) No capitulo 2 daquele livro, aprendemos que os gregos aperfeicoaramesse conhecimento demonstrando tais regras e conseguindo, pela utilizacaode processes geometricos, obter raizes irracionais (representadas por certossegmentos de retas) mesmo numa epoca em que os mimeros irracionais naoeram ainda conhecidos.

    Na "Historia da Matematica" de C. Boyer e contada com maiores de-talhes a evolucao da disciplina conhecida pelo nome de Algebra, palavraarabe que constava do titulo do livro de Mohamed Ibn Musa al Khowarism,livre que teve grande influencia na preservacao do conhecimento matematicodurante a Idade Media.

    Ainda no livro de Boyer, lemos sobre as contribuicoes do extraordinariomatematico Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, que viveu nocomeco do seculo XIII, foi autor de livros notaveis, continuando a obra deDiofanto de Alexandria sobre solucoes inteiras de equacoes indeterminadase teve seu nome imortalizado na "sequencia de Fibonacci" 1, 1, 2, 3, 5, 8,13 etc., onde cada termo e a soma dos dois que 0 precedem imediatamente.Esta sequencia originou-se Dum problema sobre reproducao de coelhos mastern aplicacoes surpreendentes e variadas. (V. pag. 186 do livro de Boyere 0 artigo de G. .Avila na RPM 6, pag. 12.) Os livros de Fibonacci, em-bora de alto valor cientifico, nao tiveram aceitacao e influencia educacionalcornparaveis, por exemplo, as de al Khowarism, urn compilador muito bernsucedido.

    No meio do seculo XV teve inicio 0 fenomeno socio-cultural conhecidocomo a Renascenca, caracterizado por uma renovacao do interesse pelascoisas do espirito emseus mais altos nfveis, por uma efervescencia cria-

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    tiva e uma extraordinaria explosao produtiva nasartes plasticas, literatura,arquitetura e ciencias. Seu epicentro se localizou na Italia, onde surgiramgenios do porte daqueles ji mencionados por G. Libri, aos quais acrescentare-mos Scipione Ferro, Girolamo Cardano, Niccolo Tartaglia, Loudovico Ferrarie Galileu Galilei, que nasceu no dia ern que rnorreu Michelangelo e viria amorrer no ana do nascirnento de Isaac Newton, fazendo lembrar uma corridade revezamento olirnpica.

    Em 1494, Frei Luca Pacioli, amigo de Leonardo da Vinci, renomado pro-fessor de Matematica, tendo ensinado em diversas Universidades da Italia,escreveu 0 livre "Summa de Aritrneticae Geometria" , urn born cornpendiode Matematica, contendo nocoes de calculo aritrnetico, radicais, problemasenvolvendo equacoes do primeiro e segundo grau, geomenria e contabilidade.Ate 0 aparecimento da Algebra de Raphael Bombelli, em 1572, 0 livre deLuca Pacioli (que tinha, alem de suas qualidades intrinsecas, a vantagemsobre seus predecessores trazida pela invencao de Guttemberg) teve grandedivulgacao e prestigio. Como era costume, a incognita, que hoje chamamosx era nele denominada "a coisa" enquanto x2 era "censo" x3 era "cubo"] ),x. = censo censo, etc. A Algebra era na epoca chamada "a arte da coisa" ou"arte maier". Depois de ensinar, sob forma de versos, a regra para resolvera equacao do segundo grau, Pacioli afirmava que nao podia haver regra geralpara a solucao de problemas do tipo "cubo e coisas igual a mimero" , ouseja,x3 + px = q.

    Muitos matematicos, entre os quais Girolamo Cardano, de quem falare-mos a seguir, acreditaram nessa afirrnacao peremptoria de Pacioli. Mas urn,pelomenos, nao acreditou e fez muito bern em ser cetico,

    Coube a Scipione Ferro (1465 + 61 = 1526), professor da Universidadede Bolonha, personagem sobre cuja vida muito pouco se conhece, a gloriade resolver esse problema de 3 mil anos. Ao que se saiba, ninguern jamaissuperou seu recorde, resolvendo urn problema que tenha desafiado a arguciados matemiticos pormais tempo. 0 curioso e que Ferro nunca publicou suasolucao, Na realidade, nunca publicou nada. Sabemos que a duas pessoas elecomunicou 0 segredo da solucao dos problemas do tipo "cubo e coisas iguala mimero" (x3 + px = q)e "cubo igual a coisas e mimero" (x3 = px + q):seusdisdpulos Annibale Della Nave (mais tarde seu genro e sucessor nacadeira de Matematica em Bolonha) e Antonio Maria Fiore. A este ultimo,deu a regra mas nao a prova. A descoberta ocorreu provavelmente em tornode 1515. Em 1535 Fiore teve a infeliz ideia de desafiar Tartaglia para umadisputa matematica.

    Comovimos acima, esses duelos intelectuais.nao eraminfreqiientes, Eram

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    cercados de ritual, presididos por alguma autoridade e muitas vezes assisti-dos por numerosa audiencia, Alguns contratos de professores universitarioseram temporaries e muitas vezes a perman encia na catedra dependia de urnborn desempenho nessas disputas. Isto talvez explique a atitude sigilosa deFerro; era bom ter uma bala na agulha para 0 casu de necessidade. Divulgarsua descoberta seria gastar municao a toa.

    Niccol6 Tartaglia era professor em Veneza e ja tinha derrotado outrosdesafiantes. Fiore propos 30 problemas, todos envolvendo, de urn modo aude outre, equacoes do terceiro grau. Tartaglia fez tambern sua lista, denatureza bern mais variada. A unica arma de Fiore era a f6rmulade Ferro.As de Tartaglia eram seu solido conhecimento e sua inteligencia. Oito diasantes do encontro, depois de longas tentativas, ocorreu a Tartaglia comodeduzir a formula da equacao do terceiro grau. Sem duvida, isto foi umanotavel descoberta, porem nao tao grande quanto a de Ferro pois Tartagliasabia, pelas questoes que lhe foram propostas, que uma tal formula deviaexistir, enquanto Ferro nao podia ter essa certeza. Quem j a fez pesquisaem Maternatica sabe a grande diferenca que isto faz. : I t a mesma que existeentre resolver urn exercicio ou demonstrar urn novo teorema. Seja como for,Tartaglia resolveu de urn golpe os 30 problemas de Fiore, ganhou a disputae recusou magnanimamente os 30 banquetes estipulados como premio aovencedor.

    Noticias sobre 0concurso e a natureza dos problemas resolvidos chegarama Milao, onde vivia 0 doutor Girolamo Cardano, que ficou muito curioso parasaber se e como fora conseguido aquilo que Pacioli julgara impossivel.

    Cardano usou de todos os meios para atrair Tartaglia a sua casa e la, me-diante promessa de guardar segredo, obteve dele, em 1539, a regra para re-solver a equacao x3+px =q, dada sob forma de versos urn tanto enigmaticos,sem nenhuma indicacao de prova.

    A vida de Niccol6 Tartaglia (1499+ 58 = 1557) foi muito diffcil. Nascidoem Brescia, ficou orfao de pai aos seis anos e foi criado, com seus tres irmaos,por uma mae devotada e pauperrima. Aos 14 anos, no saque de Brescia portropas francesas, refugiou-se na Catedral mas, ali mesmo, foi seriamenteferido no rosto por golpes de sabre que the deixaram desfigurado e, porlongo tempo, quase sem poder falar. Isto the valeu 0 apelido de Tartaglia E otartamudo), que posteriormente assumiu como sobrenome. Aprendeu sozi-nho, "somente em companhia de uma filha da probreza chamada diligencia,estudando continuamente as obras dos homens defuntos". Superou to-das as difuldades e conseguiu chegar ao limite do conhecimento da epocaem Matematica, Mecanica, Artilharia e Agrimensura. Descobriu a lei de

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    formacao dos coeficientes de (x + a)n,e foi autor de algumas descobertassobre tiro e fortificacoes. Por causa delas, sonhava conseguir recompensado comandante militar de Milao. Esta foi a isca usada por Cardano paraatrai-lo.

    Girolamo Cardano (1501 + 75 = 1576) era urn personagem rico em face-tas contraditorias e em talentos varies. Sua vida the trouxe altemancias defama, fortuna, prestigio, desgraca familiar, severas punicoes e probreza. Eramedico, astronomo, astrologo, matematico, filosofo, jogador inveteradoe urnincansavel investigador, cuja curiosidade e interesse por todos os tipos deconhecimento nao tinham limites. Escreveu muitos livros sobre todos estesassuntos (mais de cern!), inclusive uma interessantissima e reveladora auto-biografia. Tendo conseguido melhorar varies assuntos tratados par Pacioli,Cardano pretendia publicar urn livro de Algebra,ajudado por seu brilhantee fiel disdpulo Ludovico Ferrari.

    Depois da visita de Tartaglia, Cardano, com algum esforco, conseguiudemonstrar a validez da regra para resolver a equacao x3 +px =q. Naquelaepcca, nao era costume concentrar os termos da equacao no primeiro mem-bra, deixando apenas zero depois do sinal de igualdade. Nem sepercebiaque uma equacao sem 0 termo x2 e 0mesmo que ter a mesmo terrno comcoeficiente zero.

    Cardano mostrou que a substituicao x = y - !ermite eliminar a termoem x2 e, ao todo, deduzir as formulas para resolver 13 tipos de equacoesdo terceiro grau! Evidentemente, hoje essas formulas se reduziram a umatinica. Mas e preciso observar que as equacoes daquele tempo erarn todasnumencas. (0 uso de letras para representar mimeros em Algebra teveinicio com Francois Viete, em 1591.) Logo, a rigor, nao haviaformulas esim receitas ou regras, explicadas com exemplos numericos, uma regra paraXS + px = q, outra para x3 = px + q, outra para x3 + px2 =q, etc.

    Os estudos de Cardano, feitos com a colaboracao de Ferrari, o qual obtevea solucao por radicais da equacao do quarto grau, conduziram a import antesavancosnateoria das equacoes, como 0 reconhecimento de raizes multiplasem varies casos, relacoes entre coeficientes e raises, e aceitacao de raisesnegativas, irracionais e imaginaries. (Por estes dois ultimos nomes pode--se perceber a r n a vontade secular para considera-Ias. Cardano, entretanto,nunca enunciou explicitamente que uma equacao qualquer do terceiro graude.....ter tres raises e uma do quarto grau quatro raises. lsto foi feitodepois,por BombelIi.) Todos esses progressos eram razoes mais do que suficientespara a publicacao de urn livro sobre 0 assunto. Mas isto.ele estava impedidode fazer emvirtude de seu juramento a Tartaglia.

    .~ I

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    Em 1542, entretanto, Cardano e Ferrari visitaram Bolonha e Ia obtiverampermissao de Della Nave para examinar os manuscritos deixados por Ferro,entre os quais estava a solucao da equacao x3 + px = q. 0 juramento deCardano 0 proibia de publicar a solucao de Tartaglia mas nao a de Ferro,obtida rnuito antes. Par isso, ele se considerou desobrigado de qualquercomprornisso e voltou-se, com energia, it preparacao de seu grande livro"Ars Magna", que foi publicado em 1545. 0 aparecimento dessa notavelobra foi recebido favoravelmente pelos entendidos mas provocou reac;ao berndesfavoravel de Tartaglia.

    Com efeito, no ano seguinte (1546) Tartaglia publica os "Quesiti e Inven-tioni Diverse" , livre ja mencionado acima, no qual ele, alem de apresentarsolucoes para varies problemas que the foram propostos, descreve fates au-tobiograficos e conta a hist6ria de suas relacoes com Cardano, atacando-oasperamente pela quebra de urn solene juramento. Nas situacoes de con-troversia, quase sempre ocorre que cada uma das partes tern razao em algunspontos e nao tern noutros. Vimos acima as razoes de Cardano. As razoes deTartaglia, a Hist6ria comprova. Por muitos seculos, a f6rmula da equacao doterceiro grau foi conhecida como "formula de Cardano" , por ter sido publi-cada pela primeira vez na "Ars Magna" , muito embora Cardano tenha ditoque a formula fora descoberta par Ferro e redescoberta por Tartaglia. Se aformula fosse publicada Dum livre de Tartaglia, a posteridade certamente aconheceria par seu nome. Assim, ele tinha seus motives para zanga.

    A publicacao dos "Quesiti" foi respondida por urn panfteto de Ferrari(1522 + 45= 1557) em defesa do seu mestre, 0que provocou uma replica deTartaglia, iniciando-se urna polemica que durou mais de urn ana (fevereirode 1547 a julho de 1548) e produziu os 12 panfletos (seis de cada autor),conhecidos como "Cartelli di Sfida Mathematica". (Sfida significa disputa.)No final, Tartaglia aceitou 0 desafio para um debate matematico contraFerrari em Milao. (Cardano manteve-se sempre fora da briga, apesar dasprovocacoes de Tartaglia.] 0 resultado do debate nao ficou muito claro masas autoridades universitarias em Brescia, para onde Tartaglia acabara detransferir-se, nao ficaram satisfeitas com seu desempenho e. cortaram seucontrato. Ele regressou a Veneza, onde morreu, humilde e .obscuro, nove.~nos depois.

    Feita esta narracao, vejamos agora como se resolve a equacao do terceirograu.

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    AlgebraA equacao mais geral do terceiro grau e ax3 + bx2 + ex + d = O. Ela eequivalente a

    3 b 2 C dx + -x + -x + - = O .a a aLogo.rbasta considerar equacoes em que 0 coeficiente de x3 e igual a 1.

    Dada a equacao x3 + ax2 + bx + c = 0, a substituicao x = y - al3 atransformaern

    ou seja:3 a2 2a3 aby + ( b - 3)Y +27 - 3+ c =0,

    que e uma equacao desprovida de termo do segundo grau. Portanto, esuficientemente estudar as equacoes do terceiro grau do tipo

    3 -0X + px+ q - .Para resolver est a equacao, escrevemos x =u+v; Substituindo,obtemos

    isto e :

    Portanto, se conseguirmos achar mimeros u, v tais queuv = -p/3

    entaoz =u+ v sera raiz da equacao x3 + px + q =O .Ora, 0 problema de achar ~3 e v3 conhecendo a sua soma e 0 seu produtoEl,como sabemos, de facil solucao: u3 e v3 sao as raizes da equacao do

    segundo graup3w2+qw- - =O .27

    I.~

    I~,!!fI,!iI

    .

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    Utilizando a formula classica para resolver esta equacao, obtemos

    e

    conseqiientemente,

    Assim, x = u + v, dada pela formula acima, e urna raiz da equacaox3 + px+ q =O .

    Na formula acirna, destaquemos 0 radicando D = q2/4 + p3/27. Mostra-remos na seC;aoseguinte que se D > 0 a equacao tern uma raiz real e duasraizes complexas conjugadas; se D = 0, tem-se tres raizes reais, sendo umarepetida; se D < 0 Emtaoas tres raizes da equacao x3 +px + q =0 sao reaise distintas, Este e um.aspecto paradoxal da formula de Ferro e Tartaglia.Quando D < 0, a formula exprime x = u + v como soma de duas raizescubicas de mimeros complexos. No entanto e este 0caso em que a equacaopossui tres raizes reais distintas. Este e chamado tradicionalmente 0 "casoirredutivel" porque, ao tentar eliminar os radicais, recai-se noutra equacaodo terceiro grau.

    Vejamos alguns exernplos, retiradosdo livre de Algebra de Leonard Eu-ler, escrito em 1770, 0 qual serviu de modelo para as cornpendios utilizadospor sucessivas geracoes de estudantes.

    Exemplo 1. x3 - 6x - 9 = O. Aqui, D = 49/4 = {7/2)2 > O. Logo, aformula nos da araiz x =2+ 1 : : ; = 3. Dividindo x3 - 6x - 9 par x - 3, obtemosx2 + 3x + 3, logo as duas raizes rest antes sao as da equacao x2 + 3x + 3'=0,isto e ,

    3 _ V 3--+t-2 2 e 3 . V 3---t-.2 2Evidentemente, a raiz3 (como toda raiz inteira] poderia ser obtida median-te simples inspecao, examinando-se os divisores do termo independente -9,sem necessidade deusar a formula.

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    Exemplo2. Na equacao x3 - 6x - 40 :::::0,temos D:::::392::::: (14y2)2,logo a formula nos da a raiz

    x = {120 + 14V2 + \/20 - 14V2e, como foi dito acima, as outras duas raizes sao numeros complexos conju-gados. Mas, testando os divisores de 40, vemos que 4 e raiz, Como nao haoutra raiz real, concluimos que

    \/20 + 14Vz + \/20 - 14V2 :::::4,sem duvida uma identidade interessante. Como

    (x 3 - 6x - 40) -;.-(x -4)= x2 + 4x + 10e as raizes deste trinomio sao 3 iy'3l, obtemos as 2 raises [complexes] quefaltavam. Aqui, a formula novamente nao foi necessaria. .

    Exemplo 3. Seja x3 +3:i::+2 =O. Temos D:::: 2, logor = {j-1+ V2+ {j-1- y ' 2 : : : : : \/-1+.j2 - \/1 + v2

    e raiz da equacao, As outras duas rai'ies sao complexasvelas sao obtidasresolvendo a equacao do segundo grau x 2 + ax+b== 0, onde x2 + ax + b :::::(x3+3x+2}-;-(x;. . .r ) . Portanto a=re b :::::r2+3 , isto e,a equacao do segundograu cujas raises (complexas) sao as duas outras raises de x3 + 3 x+ 2 =0 ea equacao x 2 + rx + r2 + 3=0, onde r foi dada acima. Aqui, a formula foiessencial para nos conduzira raiz r.

    Exemplo 4. x3 - 3 x - 2 =O. Neste caso, D = 0 e. a formula nos daa raiz x ::;:;:2. Como (x3 - 3 x - 2) -;.-(x -2) = x2+ 2x + 1= (x + 1)~,as outras rafzes sao -1 e -1, ou seja, uma raiz dupla. Novamente nesteexemplo, chegariamos as raizes simplesrnente examinandoosdivisoresde 2,pois a equacao nao tern raises irracionais.

    Exemplo 5. A equacao x3 - 6x - 4 nos da D :::::4 < O. Portanto eladeve ter3 raises reaisdistintas. A f6rrnulafornece uma delas: x = ~2 + 2 i+~2 - 2i. Istoparece urn mimero complexo mas, pelo quedernonstraremosna secao seguinte, tern que ser urn rnimeroreal. Ora, testando os divisoresde -4, terrno independente de x, vemos que -2 e raiz da equacao proposta. i

    ~: . 1,

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    A13outras duas sao as raizes de x2 - 2 x - 2 = porque x2 - 2 x - 2 =(x3 - 6x - 4) + - (x + 2). Logo as tres raizes da equacao proposta sao -2,1+J3, 1-V 3 . Este e urn exemplo do caso irredutivel: tres raizes reais mas aformula nos daum radical complexo. Aqui surge uma questao interessante.Uma dessas tres raizes deve ser igual a {j2 + 2i + {j2 - 2i. Qual del as?

    A questao pode ser interessante mas a pergunta nao esta muito bernformulada. Quando z e urn mimero complexo, 0 sirnbolo . i f Z significa qual-quer mimero cujo cubo seja igual a z. Excetuando-se z =0, ha sempre tresmimeros complexos cujo cubo e z. Por exernplo, tomando z = 1, vemos queas tres numeros

    1 , a= (-1 + iV3)/2 etern todos cuba igual a 1. Estas sao as raises cubicas da unidade, Dadoqualquer rnimero complexo z , se w e uma raiz cubica de z , as outras duassao aw e a2w, onde a=(-1+ iV3)/2.Na formula x = .ij2 + 2i + .ij2 - 2i, que da uma raiz da equacao x3 -

    6x - 4 =0, cada radical tern portanto 3 valores. Olhando assim, parece queobteremos ao todo 9 raizes para a equacao dada. Claro que nao. Temosx = u+ v, com uv = -p/3 = 2, logo v = 2/. Isto rnostra que, quandoescolhemos urn valor para u (entre os 3 valores possiveis de .ij2 + 2i) , 0valor correspondente de v fica determinado. Assim, temos somente 3 raizes.Ainda bern.Mas, como se faz para calcular ij2 + 2i e {/2 - 2i?Usando a notacao e iJP =cos ip + isenip, temos

    2 + 2i =V8 (V2 +iJ2) =VB(cos ~ + isen~) =VB e ' 1 r / 4 .2 2 4 4

    Portanto urn dos tres valores de ij2 + 2i e

    o valor correspondente de v e:

    Logo uma das raises da equaciio er: . J2+V6Xl = ttl + til = Zv , cos 15 = 2 V 2 . = 1 + V 3 ,4 .

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    que e urna das tres raizes que conheciamos. Ela foi obtida porque escolhemose i1 r/1 2 como valor da raiz cubica de ei1 r/4. Se tivessemos escolhido e i31 f/4 =cos 135 + isen135 obteriamos a raiz X2 = -2 e, se tomassemos e-71 f/1 2 =cos 105 - isen105 como raiz cubica de t-, obterfamos X3= 1 - V 3 .Na seC;aoseguinte, mostraremos como fatos elementares de calculo po-dem ser usados para explicar a natureza das raizes da equacao x3+px+q =a partir do sinal -do discriminante D= q2/ 4+ p3 /27.CalculoVamos examinar 0 grafico da funcao I :R -- R, dada por f ( x ) = x 3 +px + q _ Cada ponto que 0 graftco tjver em comum com 0 eixo das abcissascorrespondera a uma raiz real da equacao x3 + px + q =0_

    Preliminarmente, observemos queI(x) =x3(1 + ~ + q3) '

    X X

    Para valores de x que tenham valor absoluto muito grande, p/x2 e q/x3sao insignificantes, logo, para tais valores, na soma dentro dos parentesesprevalece 0 sinal de 1, que e positivo. Entao Q sinal de f ( x ) , quando avalor absoluto.de xe muito grande, eo mesmo sinal de x3, isto e , de x. Emparticular, 0polinomio ! (x) e negativo para valores muito grandee negativosde x e e positive se x e urn numero positive muito grande. Segue-se daique! (x) , por passar continuamente de negativo a positivo, deve anular-se emalgum ponto. Toda esta conversa serve para coneluir que toda equacao doteceiro grau tern pelo menos uma raiz real. Ou seja: 0 grafico de f ( x ) =x3 + px + q corta 0 eixo das abcissas em pelo menos urn ponto. -Quando p > 0, a derivada J'(x) = 3x 2 + p e sempre positiva, logo! euma funcao erescente, que corta 0 eixo x num unico ponto. Logo, quandop > 0, a equacao x3 + px+ q = 0 tern uma unica raiz real, a qual pode serpositiva, negativa ou nula, e duas raizes complex a conjugadas (Fig. 1).

    Quando p =0, a equacao reduz-se a x3 =-q, -iogotemuma raiz real eduas complex as quando q i- e uma raiz real tripla (igual a zero) se q =0.as graficos correspondentes s,ao dados abaixo, (FIg. 2).

    Consideremos agora 0 easo mais interessante, em que p 0, A funcao setorna !(x) =x3 - 3a2x+ q,e sua derivada e I ' (x) =3x2 - 3a2, que se anula nos pontos x =a. Como aderivada segunda f" (x) = 6x e negativa no ponto x = -a, este e urn pontode maximo~Por motive analogo, a func;ao tern urn minimo I_lO ponto x =a.

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    o grafico de f apresenta uma das formas ilustradas na Fig. 3, conforme aequacao x3 + px --j- q = 0 tenha uma raiz real e duas complexas, uma raizreal simples e uma dupla, ou tres raises reais distintas.

    Uma raiz real,negativa. Uma raiz real,nul a Figura

    Grafico de y=x3+q ,q O.

    Figura 2

    Umo raiz real,posifiva.

    Grafico de v = x3.

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    Uma raiz rea',duas t:omplexas.

    -a a

    Umaraiz rea'simples, uma duplo.

    Figura 3

    Tris raizes reaisdistintos.

    Estes tres casos correspond em, respectivarnente, a f(a) . f( -a) > 0,f(a) . f( -a) =0 e f(a) . f( -a) < O . Ternos:

    (Lernbrernos que p = -3a2). Portanto, 0 sinal de f(a) f( -a) eo rnesrno dodiscrirninante D.

    Conclusaos A equacao do terceiro grau x3 + px + q = 0 tern urna, duasou tres raizes' reais distintas conforrne D= q2 /4 +p3/27 seja positivo, nulo,ou negativo, respectivarnente.Observaqao: Alerndos livros de Aaboe, Libri e Boyer rnencionados

    no texto, referencias especificas sobre esse terna podern ser encontradas nasfontes da lista seguinte.

    Referencias[1] ORE, 0.: Cardano, the Gambling Scholar, Princeton University Press, 1953.[2]. VAN DER WAERDEN, B. L.: A History of Algebra, Springer Verlag, 198"5., I

    ~ I.1

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    ".

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    1 3 1 Dictionary of Scientific Biography, Scribner's Publ., 1970.! 4 1 TARTAGLIA, N. Quesiti et lnventioni Diverse [publicacao comemorativa doIV centenario da morte de NiccoloTartaglia), Brescia, 1959.

    Instituto de Matematica Pura e Aplicada - CNPqEstada Dona Castorina 110- Jardim Botanico

    22.460 Rio de Janeiro, RJ