A Escola Austríaca NÃO Refutou Marx

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A escola austríaca NÃO refutou Marx! Entenda: 17 de julho de 2015 Arthur Abdala Aos leitores liberais/conservadores: Antes de tirarem conclusões precipitadas, leiam o texto até o final. Caso tenha uma visão simplista sobre o valor trabalho, aproveite o texto para entender melhor. Se não concordar, saiba que a ciência econômica não chegou a um consenso sobre o tema. Entretanto, procure refletir e fazer um distanciamento sobre o texto a seguir. Não o julgue moralmente, apenas compare com as informações que você já tem. Aos leitores de esquerda: Saibam que, como dizia Lênin, não se faz revolução sem ideologia. Vejo muitos leitores preocupados com Jair Bolsonaro, PSDB e cia. Entretanto, não percebem que a esquerda está perdendo a primeira batalha: a ideológica. E, acreditem, esse é o argumento base da nova direita ultra liberal. Muito se fala por aí que a escola austríaca refutou Marx. O argumento é simples, Marx, em O Capital (1863), postulou a sua teoria econômica baseada no valor-trabalho, a mesma de Smith (1776) e Ricardo (1817), só que com algumas diferenças, entre elas está o trabalho social médio e o valor social da mercadoria. Para esses autores, de maneiras diferente, Valor = Trabalho, sendo que, para o marxismo, Valor = Trabalho social médio Já a escola austríaca baseava a sua teoria de valor na utilidade marginal (Menger, 1871). Para entender melhor a teoria dos neoclássicos, imagine que você esteja com muita sede. O primeiro copo d’água que você tomar terá um valor muito alto. O segundo, com a mesma quantidade de trabalho do primeiro, terá um valor inferior. E assim sucessivamente, até chegarmos ao último copo, após toda sua sede ser saciada, que terá valor zero. Estando satisfeito, mesmo que o último copo seja muito barato, quase de graça, você tende a não comprar, afinal ela não lhe serve mais. Traduzindo para um universo mais amplo, independentemente da quantidade de trabalho que tenha uma mercadoria, se ela não tiver utilidade para ninguém, seu valor será igual à zero. Ressaltando que valor é diferente de preço, pois sua conversão depende de outras variáveis. Observando por esse ponto de vista, a teoria usada pela escola austríaca faz muito mais sentido. Ocorre que a dinâmica do capitalismo é muito mais complexa que isso. A partir daí vem a primeira questão que é de ordem econômica e sociológica, de onde vem a utilidade? Para os neoclássicos a utilidade é subjetiva, enquanto para os clássicos (Marx, Smith, Ricardo, entre outros) a noção de útil é objetiva. O texto tratará esse tema adiante. Antes de entrar no mérito da teoria do valor, é preciso percorrer e revisar alguns itens da teoria marxista, pois precedem qualquer entendimento sobre a teoria do valor. As explicações a seguir foram elaboradas para serem mais didáticas possíveis. Materialismo Dialético

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Texto demonstra equívocos dentro do pensamento da escola austríaca a respeito dos conceitos marxistas em economia.

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A escola austríaca NÃO refutou Marx!

Entenda:

17 de julho de 2015 Arthur Abdala

Aos leitores liberais/conservadores: Antes de tirarem conclusões precipitadas, leiam o

texto até o final. Caso tenha uma visão simplista sobre o valor trabalho, aproveite o texto

para entender melhor. Se não concordar, saiba que a ciência econômica não chegou a um

consenso sobre o tema. Entretanto, procure refletir e fazer um distanciamento sobre o

texto a seguir. Não o julgue moralmente, apenas compare com as informações que você

já tem.

Aos leitores de esquerda: Saibam que, como dizia Lênin, não se faz revolução sem

ideologia. Vejo muitos leitores preocupados com Jair Bolsonaro, PSDB e cia. Entretanto,

não percebem que a esquerda está perdendo a primeira batalha: a ideológica. E, acreditem,

esse é o argumento base da nova direita ultra liberal.

Muito se fala por aí que a escola austríaca refutou Marx. O argumento é simples, Marx,

em O Capital (1863), postulou a sua teoria econômica baseada no valor-trabalho, a mesma

de Smith (1776) e Ricardo (1817), só que com algumas diferenças, entre elas está o

trabalho social médio e o valor social da mercadoria. Para esses autores, de maneiras

diferente, Valor = Trabalho, sendo que, para o marxismo, Valor = Trabalho social médio

Já a escola austríaca baseava a sua teoria de valor na utilidade marginal (Menger, 1871).

Para entender melhor a teoria dos neoclássicos, imagine que você esteja com muita sede.

O primeiro copo d’água que você tomar terá um valor muito alto. O segundo, com a

mesma quantidade de trabalho do primeiro, terá um valor inferior. E assim

sucessivamente, até chegarmos ao último copo, após toda sua sede ser saciada, que terá

valor zero. Estando satisfeito, mesmo que o último copo seja muito barato, quase de

graça, você tende a não comprar, afinal ela não lhe serve mais.

Traduzindo para um universo mais amplo, independentemente da quantidade de trabalho

que tenha uma mercadoria, se ela não tiver utilidade para ninguém, seu valor será igual à

zero. Ressaltando que valor é diferente de preço, pois sua conversão depende de outras

variáveis.

Observando por esse ponto de vista, a teoria usada pela escola austríaca faz muito mais

sentido. Ocorre que a dinâmica do capitalismo é muito mais complexa que isso. A partir

daí vem a primeira questão que é de ordem econômica e sociológica, de onde vem a

utilidade? Para os neoclássicos a utilidade é subjetiva, enquanto para os clássicos (Marx,

Smith, Ricardo, entre outros) a noção de útil é objetiva. O texto tratará esse tema adiante.

Antes de entrar no mérito da teoria do valor, é preciso percorrer e revisar alguns itens da

teoria marxista, pois precedem qualquer entendimento sobre a teoria do valor. As

explicações a seguir foram elaboradas para serem mais didáticas possíveis.

Materialismo Dialético

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Por que materialismo? Para o marxismo, as únicas coisas que podemos afirmar a

existência são a matéria e suas interações, ou seja, a matéria é a única substancia. Isso

descarta qualquer metafísica ou realidade idealizada. Em outras palavras, as coisas são

como elas são.

Após esse entendimento, é preciso entender a noção de natural e artificial. A primeira,

pode parecer óbvio, é aquilo que existe independente da ação humana. Já o artificial é

aquilo que precisa da alteração do homem na natureza. Grãos de areia numa praia, que

surgem através do choque da água do mar sobre as pedras, são naturais. Por sua vez, uma

plantação de feijão só é possível se o homem realizar o trabalho e modificar a natureza,

portanto é artificial.

Surgem então dois outros conceitos: o concreto e o abstrato. Concreto que é aquilo que

existe de fato, enquanto o abstrato existe apenas na nossa mente, ou, é a noção da

realidade. Para que o conceito não fique vago, seguem dois exemplos:

Imagine uma bela música tocando no seu rádio. O que existe de concreto são ondas

sonoras e apenas isso. As noções de melodia, harmonia, enredo, estilo musical existem

apenas nas nossas mentes, portanto abstratas.

Agora, imagine uma bela e suculenta lasanha. O que existe de concreto é um emaranhado

de alimentos provindos do leite, da carne animal e do tomate. As noções de suculência e

sabor só existem nas nossas mentes, portanto abstratas.

Tanto a lasanha, quanto a música requerem a alteração do homem pela natureza, portanto

são artificiais. Essas artificialidades vêm da noção que o humano tem ou cria da realidade.

Portanto, o que impulsiona a alteração do homem pela natureza é a sua abstração.

O homem planta tomates, tira o leite da vaca e faz sucessivos processos, porque entende

que a sua abstração de sabor justifica toda essa alteração da natureza para criar lasanhas,

algo que ele entende como saboroso. O ser humano cria instrumentos, manuseia, porque

entende que a sua abstração musical justifica tais processos.

E por que é dialética? A noção do abstrato, ou seja, a forma como vemos e entendemos a

realidade não surge em si mesma. O homem não nasceu com os conceitos de saboroso,

suculento, harmonia, melodia, bom, mal, ruim ou excelente. Essas noções são

incorporadas ou criadas nas nossas mentes.

E como acontece isso? Marx definia a relação das forças produtivas e o abstrato como

uma “via de mão dupla”. Para isso, dividiu, de forma analítica, a sociedade em dois níveis.

O primeiro é a infraestrutura, que constitui a base fundamental da economia, com a

relação do proprietário e não-proprietário, e entre o não-proprietário e os meios e objetos

do trabalho. Ou seja, a infraestrutura é a economia em si.

Já o segundo nível é a superestrutura, que consiste na camada político-ideológica, e é

constituído pela estrutura jurídico-política, representada pelo Estado e pelo direito, e a

estrutura ideológica, referente às formas de consciência social, tais como a religião, a

educação, a filosofia, a ciência, a arte e as leis.

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A infraestrutura e a superestrutura, ou o concreto e o abstrato vão se influenciar para

trazer uma ideia de qualidade para a primeira. Ou seja, a ideologia e o estado vão se

moldar para aperfeiçoar as relações econômicas, ou, a noção de realidade é feita para

trazer mais “conforto” para o homem.

Tendo em vista que as forças produtivas têm interesses difusos na economia, elas vão

disputar o controle da noção de realidade, ou, tentar alterar, a seu modo, o controle da

abstração. Um exemplo disso é a taxa de juros, que é apenas um número gerado pelo

Banco Central, em outras palavras, uma abstração da superestrutura. Trabalhadores e

empresários vão desejar uma taxa de juros menor, enquanto banqueiros vão desejar uma

taxa de juros maior. Para isso, vão usar argumentos como inflação e desemprego. Pela

dialética marxista, ao contrário da hegeliana, ganhará essa batalha quem tiver mais força,

seja coercitiva, econômica ou política.

Essas abstrações têm resultados difusos na qualidade da infraestrutura, favorecendo

alguns grupos em detrimento de outros. A partir daí surge a famosa luta de classes. Mas

isso é tema para outro texto.

E por fim, por que é histórico? Porque existe uma noção de novo e velho. Uma novidade

não surge do nada, ela é a superação de algo velho. Visto isso, a noção de realidade se

altera no tempo, já que as relações econômicas se transformam. A comunicação é muito

mais ágil hoje do que nos anos 50. Essa nova dinâmica na forma de se comunicar altera

as relações sociais, o que faz com que os valores se modifiquem. Logo, não dá para

estabelecer a mesma abstração de 60 anos atrás.

Marx VS Austríacos, segundo Lênin

Com toda a ideia do materialismo dialético, surge a primeira, mas não principal,

divergência entre a escola austríaca e Marx. Em seu livro: As Três Fontes e as Três partes

Constitutivas do Marxismo (1913), Lênin afirmava que onde os austríacos viam a relação

entre objetos, Marx via relação entre pessoas.

Partindo do materialismo dialético, onde os austríacos viam relações entre abstrações,

Marx via relação entre o concreto. Ou seja, a utilidade é uma construção abstrata, ela não

existe no plano concreto, conforme explicado acima.

Marx via que a mercadoria só existe, se o homem transformar a natureza. Não existe bem

ou valor sem o trabalho empregado. Não existem mesas, cadeiras, músicas, lasanhas,

carros, celulares, se o homem não dispender força para transforma-las. Já o mesmo não

pode adquirir essas mercadorias sem dinheiro, que é resultado do seu trabalho ou do

capital investido. Esse último só traz resultados, se tiver trabalho de outros. Portanto, sem

trabalho, sem valor.

“Ah, mas uma terra virgem é de enorme valor, e não tem trabalho nenhum”. Veremos a

seguir:

O que é mercadoria para Marx, valor-de-uso e valor-de-

troca

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Existe muita confusão do que de fato é a mercadoria segundo Marx. Muita gente usa

exemplos esdrúxulos como: “Se você achar uma maçã caída de uma árvore, seu valor

será enorme e a quantidade de trabalho será zero” ou “O ar não tem trabalho e é de

enorme valor”.

Para Marx, mercadoria é tudo aquilo que tem trabalho e utilidade – sim, Marx escreveu,

e muito, sobre utilidade – O ar tem utilidade, mas não tem trabalho. Um buraco cavado

no jardim tem trabalho, mas não tem utilidade. Portanto, ar e um buraco inútil não são

mercadorias. Até porque, em sua obra, o autor procurava estabelecer um entendimento

para a dinâmica da economia, que em nenhum momento compreende o ar ou um buraco

inútil na terra.

Outro aspecto da mercadoria é que ela deve ser vista como uma produção em série, ou

seja, um quadro original do Picasso não é uma mercadoria, pois só existe um (original).

Já as suas cópias entram no contexto abordado, pois são produzidas cópias.

Ele também usa um conceito de Barbon (1696), que definiu o duplo caráter da

mercadoria. Valor-de-uso é como uma mercadoria tem valor em suas características

intrínsecas, ou seja, tênis para calçar, água para beber.

Já o valor-de-troca é como a mercadoria não tem valor em si, mas transfere utilidade a

outros, em troca de outros valores-de-uso. Ou seja, um vendedor de tênis não vê utilidade

em seus produtos, entretanto ele pode vende-los para comprar água, comida e outras

coisas que lhe tragam utilidade.

Portanto, uma terra virgem, como visto anteriormente, tem valor-de-troca e só a sua

manipulação pelo homem gerará alimentos. Em outras palavras, a terra só tem valor

porque através dela é possível transformar a natureza, produzir mercadorias e troca-las

por valores de uso.

Mas não é só isso. O valor de uma terra virgem também tem trabalho: na descoberta, em

seu atestado de que ela é produtiva e na sua comercialização. Em outras palavras, a terra

virgem precisa ter valor social.

Fetiche da Mercadoria

A mercadoria tem uma função, o chamado valor-de-uso, ou seja, água para beber, celular

para se comunicar, carro para se locomover. Entretanto, resumir essa relação, entre o

consumidor final e o produto consumido, seria um erro. Nesse contexto, as mercadorias

estabelecem uma relação social.

A sociedade compartilha valores e sensos estéticos. Desse compartilhamento, surgem

uma relação entre o nervo ótico e a mercadoria, que, muitas vezes, é uma idealização ou

uma metafísica.

Vejamos, a água serve para beber, entretanto, quando uma marca de águas engarrafadas

exibe uma fonte natural ou uma garrafa borrifada, simbolizando o produto bem gelado,

causam ou estimulam, no consumidor final, uma sede.

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Além disso, esse estimulo, muitas vezes, subverte a característica substancial do produto.

Um celular, cuja a única função é a de se comunicar, pode conquistar o consumidor pela

forma ou pelo design. No fim das contas, o usuário pode acabar consumindo a imagem

da forma do celular.

Por fim, o automóvel serve para locomover a pessoa de um lugar para outro. Quando o

sujeito compra uma Ferrari, para conquistar o sexo oposto ou ser visto bem visto numa

festa noturna, acaba consumindo um valor-de-troca, ou seja, ele adquire um produto para

troca-lo por um valor social, que no caso seriam a imagem e o status.

Em outras palavras, quando a mercadoria leva em si um caráter fetichista, ela tem valor-

de-troca intrínseco. A água não serve apenas para matar a sede, e começa a corresponder

um estímulo externo. O celular perde a função de se comunicar, e adquire uma tara pelo

design e a tecnologia. O carro perde a a função de se locomover, e adquiri uma busca por

uma imagem pessoal.

Esses valores que as mercadorias adquirem, como visto anteriormente, não são frutos de

uma subjetividade, pois ninguém nasce sabendo disso. Mas sim, são valores objetivados

pelo meio e a cultura que vivemos, e compõe, como Marx mostrava, um hieroglifo social.

Veremos a seguir:

Valor Objetivo VS Valor Subjetivo

Mises (1940), autor da escola austríaca, desenvolveu a chamada praxeologia, ou teoria da

prática. Nela, o autor defende que a ação é um método para se alcançar um desejo, e que

cada indivíduo terá seus desejos e métodos próprios. Portanto, o valor seria subjetivo. A

máxima da escola austríaca, que um sujeito no deserto dá mais valor a um copo d’água

que um diamante é valida, porém é uma constatação, e não um explicação.

Primeiro, é importante citar que Marx não descartava o valor subjetivo, como muitos

dizem: “A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia,

não altera nada na coisa.” (Marx, 1863, p. 165). Mas, se pensarmos que o

comportamento humano é movido apenas pelo subjetivo, teríamos que repensar o

conceito de livre arbítrio.

Na filosofia, três conceitos dizem respeito às escolhas do indivíduo, e que são pontos

fundamentais no debate sobre a teoria do valor. O primeiro é a do determinismo, que

entende que toda ação pode ser explicada por fenômenos de casualidades anteriores. Já o

incompatibilismo tenta provar que, por mais que hajam influências, a decisão, em última

análise, é do indivíduo. E há uma visão intermediária, na qual há um entendimento que

fatos passados não determinam, mas sim, condicionam a ação humana. A mais aceita no

pensamento é a visão intermediária de condicionamento.

E o que dizem a maioria dos filósofos? Spinoza (1677) e, até mesmo, Locke (1689)

descartam o livre-arbítrio. Schopenhauer tem uma frase que define bem a abordagem do

texto: “cada um acredita de si mesmo a priori que é perfeitamente livre, mesmo em suas

ações individuais, e pensa que a cada momento pode começar outra maneira de viver

[…]. Mas a posteriori, através da experiência, ele descobre, para seu espanto, que não

é livre, mas sujeito à necessidade, que apesar de todas as suas resoluções e reflexões ele

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não muda sua conduta, e que do início ao fim da sua vida ele deve conduzir o mesmo

caráter o qual ele mesmo condena.” (Schopenhauer, 1839)

A palavra necessidade deve ser frisada, pois ela remete à utilidade. Segundo a teoria

marxista, tanto utilidade, quanto necessidade são frutos da chamada vida social, a não ser

que você viva ilhado, sozinho, sem nenhum tipo de comunicação com o mundo.

Importante ressaltar que a filosofia marxista entende que o homem é um fruto de seu

próprio meio.

Para que haja um melhor entendimento, é preciso responder à uma pergunta: O que vem

primeiro, a oferta ou a demanda?

O filme “O lobo de Wall Street” (Scorcese, 2013), o personagem interpretado por

Leonardo Di Caprio pede aos demais que vendam uma caneta. O primeiro apresenta uma

série de explicações, e não convence. O segundo, mais astuto, pede para que o solicitante

escreva seu nome em um papel, e ele precisará de uma: caneta. É isso que o capitalismo

faz o tempo todo, cria necessidades.

Vamos aos exemplos. O homem sempre se comunicou, seja por carta, pombo correio,

mensageiro, orelhão, etc. Hoje, a moda são os smartphones e seus aplicativos de

mensagem instantânea. O ser humano é um ser social, ele precisa se comunicar com a

família, amigos, colegas de trabalho, clientes, etc. A partir do momento em que não se

usa essas ferramentas, o sujeito é excluído de suas relações sociais.

Mas aí você pode se perguntar, o homem sempre desejou se comunicar mais rápido? A

resposta é não, as relações sociais demandaram um aperfeiçoamento da comunicação.

Um senhor, em 1950, vivia confortável sem os celulares de hoje. Porém, hoje em dia, sem

esse instrumento, sua família fica preocupada se você não atende, e isso tem a ver com a

diminuição da segurança no moderno. Seus amigos se comunicam em um fluxo

semelhante a um turbilhão, e isso tem a ver com a carência do mundo moderno e a falta

de tempo para um contato físico. Seu chefe e seu cliente precisam de informação a todo

momento. Ou seja, nada disso tem a ver com suas escolhas subjetivas, mas com o contexto

social que você vive, e isso é objetivado.

Outro exemplo, o meu preferido, é o padrão estético e os produtos e serviços de beleza.

Imagens de mulheres magras, com pele e cabelos lisos, seios fartos e simétricos, bumbuns

definidos são repetidos exaustivamente pela televisão, revistas, outdoors, filmes, etc. Ou

seja, o padrão estético almejado é informado e não formado. Em outras palavras, não é

algo que as pessoas constroem em si, é algo dado, fornecido e que serve de referencial.

Portanto é objetivo e não subjetivo.

Fazendo uma analogia com o filme de Scorcese, antes de aparecer a utilidade, é preciso

que surja a necessidade, que é social. Isso não exclui a necessidade natural: beber, comer,

defecar. Mas uma coisa é sentir sede, outra é sentir sede de Coca-Cola.

Mas, afinal, existe indústria do tabaco porque pessoas fumam, ou pessoas fumam porque

existe indústria do tabaco?

Para responder essa pergunta, recorreremos ao senhor James Buchanan Duke. Esse

homem foi o responsável por criar esta máquina:

Page 7: A Escola Austríaca NÃO Refutou Marx

A função dessa engenhoca era produzir 120 mil cigarros perfeitamente simétricos por dia.

É muito cigarro! Mas para que ela pudesse funcionar, era preciso que mais pessoas

começassem a fumar. E elas não fariam isso do nada. Foi aí que Duke teve uma sacada

brilhante: o marketing. O empresário começou a patrocinar corridas de automóveis,

concursos de beleza e tantos outros. A ideia era basicamente associar o hábito de fumar à

elegância, aos ricos, esportistas e estrelas do cinema. Ou seja, atribuir ao cigarro um valor

que ele não tem.

Volte no texto, e releia o fetiche da mercadoria. Melhor! Leiam “O Capital”, em especial

a secção quatro do livro um. Lá, Marx coloca que o fetiche nada mais é do que atribuir

um valor-de-troca intrínseco ao produto. Nesse caso, o valor-de-uso do cigarro é o prazer

cerebral que o produto fornece, e o valor-de-troca é o status ou a sensação social que o

tabaco traz. Ou seja, a ideia era que, ao tragar um cigarro, venha a sensação de estar

consumindo todo um estilo de vida.

A estratégia de Duke foi uma revolução para o marketing e a propaganda. Podemos ver

nas propagandas de cerveja, que geralmente associa o produto a mulheres; propagandas

de relógio, que é ilustrada com esportistas; e propagandas de perfumes, que é associado

com festas chiques.

Outro exemplo é a cultura de grandes marcas. Isso remete muito mais ao caráter fetichista

da mercadoria. Roupas, anéis, relógios, celulares de última geração, tênis da moda, tudo

isso é referente ao padrão de consumo, que é informado através de vídeo clips, filmes,

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novelas, revistas e propagandas. Ou seja, o jovem é informado por esses veículos sobre o

padrão de consumo auferido à felicidade e até de aceitação pelo grupo, e transforma isso

em consumo ou em desejo de consumir.

O consumo é condicionado à cultura, e essa ocorre de cima para baixo, ou seja, não surge

a partir das pessoas, mas sim da superestrutura descrita em Marx. Em outras palavras, os

clipes, novelas, filmes, revistas e propagandas desenham valores para a população, logo,

o valor é objetivado por uma classe superior, detentora dos meios de produção e

comunicação, e é passado para a massa.

E onde entra o trabalho em tudo isso

O dilema da água e do diamante: Segundo os austríacos, o diamante tem mais valor

porque é mais escasso do que a água, e ambos, em graus diferentes, são úteis.

Marx responde esse dilema, propondo que, por ser mais escasso, o diamante precisa de

mais horas de trabalho para ser extraído. Ou seja, se, em uma hora, 10 trabalhadores

extraem 100 mil litros d’água, e, no mesmo tempo, com a mesma quantidade de operários,

extraem 1g de diamante, isso explicaria a diferença astronômica de preço entre as duas

mercadorias.

Antes é preciso explicar. Marx diferencia valor e preço, sendo que o segundo está sujeito

à juros, inflação, crises econômicas, impostos, alteração das condições da demanda (como

o fator limitador da renda) e a taxa de lucro, conhecida no marxismo como Mais-Valia.

Passando da escassez para utilidade, o que faz com que as pessoas deem mais valor ao

diamante do que a água? A resposta é simples, as características intrínsecas do produto.

A demanda pelo diamante preenche todas as formas de valor descritas por Marx. Da pedra

são feitas pulseira, brincos, colares, ou seja, os objetos feitos com o diamante têm valor-

de-uso. Já a pedra pode ser vendida ou assumir o papel de reserva de valor, portanto tem

valor-de-troca. E, por último, o objeto transmite status, portanto tem valor-de-troca

intrínseco, ou seja, caráter fetichista.

Na sociedade do século XIX (quando Marx escreveu sua obra), estes itens se

apresentavam como úteis através de festas, encontros burgueses e da aristocracia. Hoje,

eles se apresentam através de vídeo-clips, revistas, filmes, séries e nos mesmos eventos

da elite econômica, como festas milionárias da Dolce & Gabana. O diamante é ressaltado

nas imagens de propaganda ou de festas chiques, pela sua forma, tanto que os tipos da

pedra variam conforme o brilho.

Para atingir o valor intrínseco é preciso extrair o diamante – que, se for escasso,

demandará mais força de trabalho -, lapida-lo e passar por longos processos até

transforma-lo em mercadoria. Sem contar que para objetivar o valor do diamante foi

preciso gastar dinheiro com filmes, séries, revistas, eventos promocionais, jantares, festas

e tudo mais. E isso tudo só é feito através do trabalho humano. Ou seja, para que o

diamante tenha valor intrínseco, e que essas características tenham valor social, nos dois

casos é preciso trabalho.

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Apenas incrementando os exemplos de valor intrínseco, imagine um serviço de banda

larga. O que tem velocidade de 2Gb é melhor que o de 2Mb. E essa escolha é relacionada

às características da mercadoria, e não por uma preferência subjetiva.

Agora, imaginem dois computadores, a marca “A” é básica com memória lenta e funções

limitadas, e a marca “B” é completa com memória rápida e amplas funções. Antes de

tudo, se o fabricante “B” não apresentar a sociedade o porquê da necessidade de seu

produto, em outras palavras, se o computador “A” cumprir todas as funções necessárias,

o empresário do “B” estará cometendo um erro. Devem haver funções que o “B” cumpra,

e que tenham valor social, como rodar jogos ou aplicativos pesados. Esses programas

precisam que haja uma cultura de uso desses softwares.

Para isso, precisa que trabalhadores especializados, com conhecimento de informática,

que construam complexos microchips, com pesquisa científica, extração de materiais,

montagem de peças, escolha de designs, etc. Ou seja, a diferença entre computador “A”

e “B” são suas características intrínsecas (função, memória, etc), que só é conseguida

através de trabalho.

E o último exemplo, é o das camisas dos times. Imagine duas, uma do Corinthians e outra

do Santos. Muitos adeptos da teoria do valor utilidade dirão que para um torcedor santista,

a camisa do rival terá valor zero, e o mesmo vale para relação do corintiano com o

uniforme de seu adversário.

Não é bem assim. Todos sabem que há mais corintianos do que santistas. Por que

subjetivamente mais pessoas torcer para o Corinthians? Não. Vou me abster de contar a

história das equipes, mas para que o time tenha tamanha popularidade foi preciso, ao

longo do tempo, muita exposição nos jornais e na TV. Nos dias de hoje, a história

continua, pois na Globo só passa jogo do Corinthians. Ou seja, o time da capital só tem

mais torcida por conta de sua exposição na imprensa, portanto sua popularidade é

objetiva.

E para que tudo isso se concretize é preciso trabalho dos operadores de câmeras de TV,

dos jornalistas, dos fotógrafos, dos jogadores, gandulas. Na época que o Santos contava

com Neymar, o valor da marca do time foi elevado, ou seja, o interesse aumentou

objetivamente por conta do trabalho do jogador.

As camisas de Santos e Corinthians podem ter o mesmo preço no mercado, mas o valor

objetivado do time corintiano é diluído em venda de mais camisas, ou seja, não ganha no

preço, mas ganha no volume. É análogo à um custo fixo diluído na quantidade ofertada.

O mito do sorvete na testa e o trabalho em Marx

Alguns liberais afirmam, ao rebater a teoria marxista, que o trabalho de se colocar um

sorvete na boca é semelhante ao de colocar na testa. A tentativa é de atribuir ao autor

certa desconsideração quanto a eficiência do trabalho. Para responde essa falácia, segue

trecho do próprio Capital:

“Se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho despendido

durante a sua produção, poderia parecer que quanto mais preguiçoso ou inábil seja um

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homem, tanto maior o valor de sua mercadoria, pois mais tempo ele necessita para

terminá-la. ” (Marx, 1863, p. 168)

Vale aqui uma consideração. Na época que foi escrito O Capital, a medida do trabalho

social era o tempo, ou seja, quanto maior a quantidade de horas trabalhadas, maior o valor.

Hoje, o trabalho social médio é medido por novos índices de produtividade.

Por que o consumo não é uniforme?

O texto parece ser bem óbvio, mas já sei que algumas perguntas virão: “Se o valor é

objetivo, por que as pessoas não consomem a mesma coisa? ”

Primeiro, porque não é descartado o valor subjetivo, como mostrado no texto. Segundo,

porque há conflitos de interesse entre o próprio capital. Terceiro, porque a cultura é

distinta no tempo e no espaço. Quarto, porque a teoria do valor trabalho não assume que

o consumo seja determinado, mas sim, condicionado. E, por fim, porque o cérebro

humano é muito complexo.

O que a teoria do valor trabalho de Marx tenta mostrar é que a mercadoria tem um valor

social, que é objetivada pela superestrutura, e que se manifesta em suas características

intrínsecas, que, por sua vez, só podem ser obtidas com trabalho.

“Ah, mas porque empresas fazem pesquisa de mercado? ”

O fato de empresas quererem detectar preferencias individuais, não significa que elas

sejam absolutas. Vamos aos fatos. Antes de lançar um produto, existem valores existentes

(objetivados também) na sociedade. Um novo produto lançado dificilmente vai mudar

uma cultura de hábitos do dia para noite, portanto, deve se adaptar. Lembro-me certa vez

de uma conversa com um marqueteiro sobre um produto de uma empresa que eu

trabalhava. Indaguei-o: “Mas a cultura do brasileiro não comporta isso? ”, e ele me

responde: “Nossa intenção é mudar esse hábito! ”

“Se o valor é objetivo, por que as empresas erram? ”

Simples, porque criar valor social para um produto, principalmente no estágio avançado

do conhecimento científico, é muito difícil. Tanto que o estudo do marketing já avançou

para o neuromarketing.

Para que serve o entendimento na teoria do valor

trabalho?

Entender a teoria do valor trabalho em Marx, no ponto de vista desse blogueiro, é mais

do que entender a dinâmica do capitalismo, é ter uma noção de como nós nos

relacionamos em sociedade.

Mas, numa época em que a escalada direitista ganha força, com um argumento deturpador

e ignorante sobre essa teoria, entender o Livro 1 de Marx é uma vacina e tanto.

Page 11: A Escola Austríaca NÃO Refutou Marx

Querem nos empurrar uma visão que o capitalismo se resume a trocas voluntárias, onde

o estado é um mero atrapalhador, o que não é verdade. Capitalismo é uma relação de

poder e influencias complexas, que envolve criação e determinação de valores sociais.

Nessa relação, quem tem mais dinheiro, tem mais poder, e controla, EM PARTES, os

parâmetros, até inconscientes, de estética, aceitação pelo grupo, autoafirmação e

felicidade. Ou seja, no capitalismo a liberdade de ser, MUITAS VEZES, é falsa.

No fim das contas, Mises só refutou Marx na cabeça de quem não entendeu o marxismo

e a complexidade do capitalismo.

Referências

Barbon, N. (1696). A Discourse on Coining the New Money Lighter. In Answer to Mr.

Locke’s Consideration etc.

Conder, L. (1985). O que é dialética.

Hegel, G. W. (1635). Curso de Estética – O Belo na Arte.

Lênin, V. (1913). As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo.

Locke, J. (1689). Ensaio acerca do Entendimento Humano.

Marx, K. (1863). O Capital (Vol. O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO CAPITAL).

Menger, C. (1871). Princípios de Economia Política.

Mises, L. V. (1949). A Ação Humana.

Ricardo, D. (1817). Princípios de Economia Política e Tributação.

Schopenhauer, A. (1839). O Livre Arbítrio.

Slater, D. (2001). Consumo e Cultura.

Smith, A. (1776). A Riqueza das Nações (Vol. Investigação sobre sua Natureza e suas

Causas).

Spinoza, B. (1677). Ética demonstrada em ordem geométrica (Vol. 3).

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