A escola NINA RODRIGUES na antropologia

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A “Escola Nina Rodrigues” na Antropologia Brasileira Muryatan Santana Barbosa 1 Resumo É comum nas obras que tratam da história intelectual brasileira a referência à “Escola Nina Rodrigues”, como uma corrente específica da Antropologia brasileira da primeira metade do século XX (F. de Azevedo, 1955 e 1964; W. Martins, 1978; S. Schawtcman, 1979). Entretanto, poucos são os estudos que procuraram desvendar as origens, continuidades e razões de existência da referida “Escola”. O intento deste ensaio, seguindo de perto a abordagem da antropóloga Mariza Corrêa (1998 [1982]), é contribuir para o melhor esclarecimento de tal temática. Nina Rodrigues Entre os poucos trabalhos que estudaram a chamada “Escola Ni na Rodrigues” encontra-se, sem dúvida, o interessante ensaio de Mariza Corrêa: Ilusões da Liberdade: Nina Rodrigues e a Antropologia Bahiana (1998) 2 . Veja-se como a autora abordou o referido tema em seu livro. Para analisar a origem da “Escola Nina Rodrigues”, Mariza Corrêa busca, primeiramente, enfocar a suposta genealogia teoria e institucional de tal “escola”: o trabalho do conhecido pensador e acadêmico maranhense Nina Rodrigues (1862-1902). 1 Bacharel em História DH/FFLCH/USP, Mestre em Sociologia DS/FFLCH/USP. Professor das Faculdades Integradas Tereza Martin. 2 Tese defendida na FFLCH/USP - Departamento de Ciência Política, 1982.

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A “Escola Nina Rodrigues” na Antropologia Brasileira

Muryatan Santana Barbosa1

Resumo É comum nas obras que tratam da história intelectual brasileira a referência

à “Escola Nina Rodrigues”, como uma corrente específica da Antropologia

brasileira da primeira metade do século XX (F. de Azevedo, 1955 e 1964; W.

Martins, 1978; S. Schawtcman, 1979). Entretanto, poucos são os estudos que

procuraram desvendar as origens, continuidades e razões de existência da

referida “Escola”. O intento deste ensaio, seguindo de perto a abordagem da

antropóloga Mariza Corrêa (1998 [1982]), é contribuir para o melhor

esclarecimento de tal temática.

Nina Rodrigues

Entre os poucos trabalhos que estudaram a chamada “Escola Nina

Rodrigues” encontra-se, sem dúvida, o interessante ensaio de Mariza Corrêa:

Ilusões da Liberdade: Nina Rodrigues e a Antropologia Bahiana (1998)2.

Veja-se como a autora abordou o referido tema em seu livro.

Para analisar a origem da “Escola Nina Rodrigues”, Mariza Corrêa busca,

primeiramente, enfocar a suposta genealogia teoria e institucional de tal “escola”:

o trabalho do conhecido pensador e acadêmico maranhense Nina Rodrigues

(1862-1902).

1Bacharel em História DH/FFLCH/USP, Mestre em Sociologia DS/FFLCH/USP. Professor das Faculdades Integradas Tereza Martin. 2 Tese defendida na FFLCH/USP - Departamento de Ciência Política, 1982.

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Ao analisar o pensamento de Nina Rodrigues, Corrêa procura

contextualizar sua produção teórica sobre relações raciais dentro de uma visão

ampla do autor. Para a autora, os estudos de Nina Rodrigues sobre os “africanos”

no Brasil3 derivariam de sua preocupação de que na Bahia pós-abolição “todas as

classes estão aptas a se tonarem negras”.

É importante saber o que isto significava na época. Para a maioria (senão

todos) os intelectuais brasileiros, no final do século XIX, a raça não era fenômeno

social - como se concebe contemporaneamente - mas fenômeno de ordem

biológica intrinsecamente hierárquico, conforme defendiam as teorias raciais

européias de sua época. Neste sentido, “tornar-se negras”, significava, para tais

pensadores, não implicaria apenas uma degeneração racial advinda da

miscigenação, mas também decadência psico-cultural da raça branca. É dessa

perspectiva, como demonstra Corrêa, que se pode entender a angústia de Nina

Rodrigues, em seu livro clássico “Os africanos no Brasil” (1900 [1932]), acerca dos

contatos dos “brancos”, em especial as senhoras da sociedade, com as religiões

negras.

Esclarece Corrêa que, para Nina Rodrigues, o “perigo” maior do problema

racial do país não seria exatamente o “negro puro”, mas a existência de um

grande contingente de mestiços no país. Estes poderiam fazer com que o sangue

negro, geralmente já degenerado pela mestiçagem, pudesse contaminar biológica

e culturalmente a raça superior (branca), tornando-a também degenerada. Daí o

seu interesse em estipular os diversos graus hierárquicos e evolutivos das

diferentes categorias sociais que formariam o “mestiço”: mestiço superior, mestiço

normal, mestiço degenerado4. Tratar-se-ia de uma tentativa de diferenciar os que

serviriam para a civilização e os que já estavam condenados pela degeneração.

3 Nina Rodrigues sobre relações raciais: O animismo fetichista do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935; O problema da raça negra na América Portuguesa, s.ed., 1903; Os africanos no Brasil. São Paulo: Nacional, 1977; As bellas-artes nos colonos pretos do Brasil: a esculptura. In: KOSMOS, Rio de Janeiro, a1., no.8, ago., 1904. 4 Este tipo de divisão do “mestiço” em diversas categorias sociais vai ser retomada por Arthur Ramos na década de 1930 (CORRÊA, 1998).

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Os livros de Nina Rodrigues relativos à discussão penal dos mestiços e

negros colocavam-se neste contexto5. Para o autor, a suposta inferioridade racial

destes grupos necessitaria de um código penal que se adequasse às capacidades

limitadas dos indivíduos negros e mestiços para compreenderem as leis da

civilização superior (branca). O tipo de crime e punição seria, portanto,

determinados pelo grupo racial6.

Assim, a atribuição de normalidade e igualdade dos homens seria

responsabilidade do perito médico-legal, o único capaz de avaliar as

conseqüências degenerativas dos cruzamentos raciais na conduta humana.

Para Corrêa, os estudos de Nina Rodrigues sobre os africanos -

especialmente sobre a religião negra – não seriam portanto, como se costuma

conceber, uma “preocupação” com a “pureza étnica” deste grupo. Seriam estudos

que procuravam averiguar “cientificamente” o grau de primitivismo e degeneração

em que se encontraria essa parcela significativa da população brasileira no

período pós-abolição.

“As passagens de Nina Rodrigues sob as religiões africanas não são

uma louvação da pureza africana, desvio que alguns discipulos vão percorrer em toda sua extensão (principalmente Arthur Ramos), mas o reconhecimento dos elementos certos nos lugares devidos: o negro poderia ser agressivo ou fetichista na África, não no Brasil”7.

Como observa Corrêa (1998), poder-se-ia falar de uma “Escola Nina

Rodrigues” na Bahia ainda durante a vida do próprio Nina. Isso porque, como é

sabido, Nina Rodrigues foi um intelectual de grande reconhecimento nacional e

internacional na década de 1890. Durante este período, seus estudos e trabalhos

“científicos” foram difundidos e reproduzidos por diversos colaboradores e

discípulos, dentro e fora da Faculdade de Medicina da Bahia.

5 Nina Rodrigues sobre mestiçagem e criminalidade: As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Livraria Progresso, 1957; Mestiçagem, degenerescência e crime. s/ed., 1899. 6 Para L. Schwatz (1995), as disputas em torno do código penal diferenciado ou não para os negros e mestiços na década de 1890 eram também disputas de poder institucional e pessoal entre os integrantes da Faculdade de Direito do Recife (como Silvio Romero) e os integrantes da Faculdade de Medicina da Bahia (como Nina Rodrigues). 7 Mariza Corrêa. As Ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 1998, p.146.

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Na virada do século XX, essa influência de Nina Rodrigues se expandiu e

fez-se sentir inclusive na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e nos primeiros

institutos de Medicina Legal de São Paulo. Ali, sob a liderança de Pereira Barreto,

as teorias desenvolvidas a partir do evolucionismo social e do naturalismo tinham

imperado durante a segunda metade do século XIX colocando-se, em grande

parte, contra o determinismo racial de autores como o próprio Nina Rodrigues8.

Entretanto, a partir da década de 1910, a importância nacional de Nina Rodrigues

tornou-se ainda mais determinante, impulsionada pela vinda de discípulos diretos

do autor que fundaram e consolidaram os Departamentos de Medicina Legal nas

Faculdades de Direito de São Paulo (1918) e Rio de Janeiro (1913) e a Faculdade

de Medicina de São Paulo (1912). Nesta primeira geração estavam

predominantemente médicos: Afrânio Peixoto (Rio de Janeiro), Oscar Freire (São

Paulo), Diógenes Sampaio (São Paulo) e outros9.

Tratava-se de uma influência baseada nos seus estudos sobre

criminalidade e loucura do autor maranhense, consideradas áreas de estudo da

Medicina da época. Nesta época, os estudos de Nina Rodrigues sobre as religiões

e os diversos grupos “étnicos” africanos tinham importância secundária. Todavia,

serão definitivamente reabilitados com a expansão crescente dos estudos sobre

relações raciais (geralmente branco-negro) na década de 1930, a partir da

presença de Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Ulysses Pernambuco, Edison

Carneiro e outros.

A “Escola Nina Rodrigues” e o campo dos estudos étnico-raciais na década de 1930.

Como é sabido, a década de 1930 foi palco de uma guinada teórico-política

no campo intelectual, tendo os estudiosos sobre relações étnico-raciais um papel

central na luta pela legitimidade e consagração simbólica do movimento

8 Idem, ibidem, p.217-225. 9 Idem, ibidem, p.199-207.

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modernista e das novas abordagens mais “positivas” sobre a identidade nacional.

Como assinala Renato Ortiz (1994):

“A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre

mudanças profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano. Se o modernismo é considerado por muitos com um ponto de referência, é porque este movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava esparsa na sociedade (...). Com a Revolução de 30 as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro, as teorias raciológicas tornam-se obsoletas, era necessário supera-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de interpretação do Brasil. A meu ver o trabalho de Gilberto Freyre vem atender a esta ‘demanda social’ ”10.

Gilberto Freyre foi, de fato, o grande nome que promoveu o prestígio e

reconhecimento para o campo de estudos sobre relações raciais (brancos e

negros) e antropologia. Este passou a ter importância a partir da década de 1930.

Logo que voltou ao Brasil, em 1926, Gilberto Freyre conseguiu alcançar grande

prestígio nacional e, posteriomente, internacional, com o lançamento de Casa

Grande & Senzala (1933) e a organização do 1º Congresso Regionalista (1926) e

logo depois Afro-brasileiro (1934). Ademais, foi o fundador de várias cátedras de

Sociologia no país, como: na Escola Normal do Recife (1928), na Faculdade de

Direito do Recife (1935) e na Universidade do Distrito Federal, onde também

lecionou Antropologia Social e Pesquisa Social11.

Esse sucesso repentino de Gilberto Freyre o colocou, gradativamente,

como um dos maiores especialistas do país em relações raciais. Talvez só foi

comparável à influência (decadente) de autores até então consagrados como

Oliveira Vianna e Roquette Pinto, ideólogos do chamado “ideal de

branquemaneto”, durante as primeiras décadas do século XX (Skidmore, 1978).

Arthur Ramos foi da mesma geração de Gilberto Freyre. Ambos foram

“companheiros” no início da década de1930, na Universidade do Distrito Federal.

10 Renato Ortiz. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 5 ed. São Paulo: Brasiliense. 1994, p.40. 11 Dados bibliográficos de Gilberto Freyre In Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. 35ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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O primeiro como professor de Psicologia Social; o segundo, Diretor do

Departamento de Ciências Sociais12.

O fato é que Arthur Ramos - apesar de já ter 7 livros publicados em 1930 -

não possuía um interesse especial pela área de relações raciais. Tinha apenas

alguns artigos esparsos sobre a Antropologia do negro13. Sua preocupação era a

psicologia social e, nesta área, segundo Corrêa, foi o período em que seus

trabalhos mais se aproximaram dos de Nina Rodrigues.

Mas no decorrer da década de 1930, Arthur Ramos foi desenvolvendo um

interesse cada vez maior pela Antropologia e os estudos das relações entre

brancos e negros no Brasil. Não era um interesse apenas de Arthur Ramos. Era

também de outros intelectuais baianos que tinham vindo trabalhar no Rio de

Janeiro nas décadas de 1920-30, como Afrânio Peixoto e Edison Carneiro. É a

partir deste momento, que Arthur Ramos procurou afastar-se cada vez mais da

esfera de influência teórica e política de Gilberto Freyre14. Como coloca Corrêa,

tratava-se de legitimar o trabalho de um grupo de intelectuais, sobretudo de Arthur

Ramos, em contraposição ao grupo hegemônico, liderado por Gilberto Freyre.

A “Escola Nina Rodrigues”, em sua forma antropológica, coloca-se neste

contexto:

“Foi só depois de mudar-se para o Rio de Janeiro (1933), quando Afranio Peixoto e Arthur Ramos deram início a re-edição de livros de Nina Rodrigues, e também a partir do momento que Gilbeto Freyre se apresenta no cenário intelectual como pesquisador de relações raciais, que Arthur Ramos passou a redefinir sua atuação dentro do contexto da “escola” (Nina Rodrigues) de maneira explícita e reiterada”15.

A hipótese de Corrêa é que a “refundação” do mito de origem da “Escola

Nina Rodrigues” por Arthur Ramos (1936) deve ser compreendida no contexto da

12 Onde Gilberto Freyre gabava-se de ter aconselhado Arthur Ramos a estudar antropologia e largar o psicanalismo e os seus “excessos marxistas”. Mariza Corrêa, op. cit., p.216. 13 Entre eles o artigo apresentado no 1º Congresso Afro-brasileiro: Os Mythos de Xangô e sua degradação no Brasil In: Gilberto Freyre (org.). Estudos Afro-brasileiros: Trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-brasileiro reunido em Recife 1934. 1º vol. Rio de Janeiro: ARIEL, 1935. 14 Em 1937 Arthur Ramos publica seu primeiro livro na área: As Culturas negras no Novo Mundo. 15 Mariza Corrêa, idem, p.222.

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disputa de poder e reconhecimento intelectual em torno de Arthur Ramos e

Gilberto Freyre na área de estudos sobre relações raciais. Neste caso, retornar a

Nina Rodrigues era uma tentativa de dar identidade e profundidade histórica ao

trabalho do grupo “baiano” de antropologia, principalmente Arthur Ramos,

distinguindo-se da esfera de influência de Gilberto Freyre.

Para Corrêa, esta hipótese tornar-se-ia ainda mais convincente se

observarmos as importantes diferenças teóricas que poderíamos colocar entre

Nina Rodrigues e os seus “discípulos” na década de 1930.

De fato, a autora aponta para uma série de temas e questões que

mostrariam a descontinuidade teórica existente entre a obra de Nina Rodrigues e

Arthur Ramos16. Entre eles: a) o destaque dado por Arthur Ramos à aculturação e

acomodação racial, em contraposição à análise do conflito racial de Nina

Rodrigues; b) a análise de Arthur Ramos do conceito de “afro-luso-brasileiro”, bem

mais próxima de Giberto Freyre do que de Nina Rodrigues; c) a importância da

Psicanálise nas obras de Arthur Ramos entre 1933-37; d) o uso do método

psicanalitico (depois “culturalista” boasiano) de Arthur Ramos, em contraposição

ao método histórico-evolutivo de Nina Rodrigues (Corrêa, 1998).

Tal contraposição teórica entre Nina Rodrigues e seus discípulos na década

de 1930, fica ainda mais evidente, se comparar-se a obra de Nina Rodrigues

(ligada a relações raciais) com os trabalhos de outros membros da chamada

“Escola Nina Rodrigues”. Edison Carneiro, por exemplo, em seu artigo no 1º

Congresso Afro-brasileiro (1934) faz uma análise tipicamente marxista

(“tradicional”) da situação do negro no Brasil, que vale a pena ser citada:

“O processo histórico de transformação da sociedade semifeudal do Brasil em sociedade capitalista, que se traduziu, primeiro na demagogia abolicionista, depois na consciência, por parte dos senhores de escravos, da necessidade do trabalho assalariado, que produz a mais-valia absoluta, e

16 Principais obras de Arthur Ramos sobre relações raciais: A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Ed. Comp. Nacional, 1942; As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Civilização Brasileira, 1937, 1º ed. até 4º ed. Ed. Nac. 1979; O folclore negro no Brasil. 2ed. Livraria Casa do Estudante do Brasil, 1954; O negro brasileiro: etnografia religiosa. São Paulo: Ed. Comp. Nacional, 1940; O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1956; Guerra e relações de raça. Rio de Janeiro: Gráfica Perfecta, 1943; Introdução à antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Dep. Cultural, 1943.

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onde a exploração do trabalhador pode ser levada ao extremo, - veiu mudar sómente a fórma de exploração e de domínio”17.

Esta era uma posição, aliás, bastante louvável para a época, mas que não

tinha a haver com o determinismo racial de Nina Rodrigues. O próprio Edison

Carneiro referia-se, posteriormente, com certo desdém à chamada “Escola Nina

Rodrigues”, afirmando ser ela uma “invenção” de Arthur Ramos18.

Evidentemente, a posição teórica de Edison Carneiro mais importante e

interessante não se encontra nestes primeiros escritos, mas na sua produção

posterior, nas décadas de 1950-6019. Entretanto, este artigo é aqui relevante

porque mostra o grau de incompatibilidades teóricas entre Edison Carneiro e Nina

Rodrigues, na década da suposta formação da “Escola Nina Rodrigues” (1930)

Por outro lado, as razões mundanas da disputa entre Gilberto Freyre e

“grupo baiano” eram evidentes também em Edison Carneiro. Em 1940, Edison

Carneiro escreveu um interessante artigo: O Congresso Afro-brasileiro da Bahia,

em que o autor relata com regojizo como as previsões pessimistas de Gilberto

Freyre em relação ao congresso (2º Congresso Afro-brasileiro- Bahia, 1940) não

se teriam concretizado. Alias, o contrário. Para completar, ressalta o seguinte:

“O Congresso prestou a homenagem que devia a Nina Rodrigues (escrita pelo próprio Edison Carneiro) – inexplicavelmente negligenciada pelo Congresso de Recife, - proclamando-o o pioneiro incontestável dos estudos sobre o negro no Brasil”20.

17 Edison Carneiro. Situação do negro no Brasil, p.237-41. In Gilberto Freyre (org.). Estudos Afro-brasileiros: Trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-brasileiro reunido em Recife 1934. 1º vol. Rio de Janeiro: ARIEL, 1935. 18 Edison Carneiro. APUD Mariza Corrêa. op. cit., p. 408 (Nota 92). 19 Entre outros, destacamos: Folguedos tradicionais. 2 ed., Rio de Janeiro: Funart/INF, 1982; O Negro em Minas Gerais. Rio de Janeiro: MEC, s.d.; O Quilombo dos Palmares. 2ed. rev. São Paulo: Ed. Comp. Nacional, 1958; Os mitos africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Comp. Nacional, 1937; Samba de umbigada. Rio de Janeiro: MEC/CDFB, 1961; Religiões negras e negros Bantos. 2 ed., Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1981; Candomblés da Bahia. 2 ed. Rio de Janeiro: ANDES, 1954; A guerra dos palmares. México: Fondo de Cultura Econômica, 1946; Antologia do negro brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1950. Ladinos e crioulos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964; Ursa maior. Salvador: UFBA/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1980; O Negro brasileiro. Rio de Janeiro: Cadernos Brasileiros, 1968. 20 Segundo Correa, Gilberto Freyre dizia que os iniciadores da antropologia no Brasil eram: Roquette Pinto, João Baptista Lacerda, Fróes da Fonseca, Ulysses Pernambuco, etc.

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Mas se em Edison Carneiro ainda pode-se encontrar algumas posições

(mas corporativas do que teóricas) que nós levariam a classificá-lo na “Escola

Nina Rodrigues”, em outro autor bastante citado, Manuel Querino, tal classificação

é totalmente improcedente.

Manuel Querino (1851-1923) foi contemporâneo e “auxiliar” de pesquisas

de Nina Rodrigues (1862-1906). Ele era “negro” (moreno escuro) e autodidata. Foi

recruta na Guerra do Paraguai, pintor, escritor, decorador e desenhista -

diplomado pela Liceu de Artes e Ofícios. Posteriormente, interessou-se pela

política, foi republicano e abolicionista da Sociedade Libertadora (Bahia). Chegou

a ser membro da Câmara Municipal, mas foi preterido em todas as demais

promoções ou cargos de governo21. Escreveu diversas obras sobre o negro no

Brasil22.

Só depois de sua morte seus trabalhos ganharam certa notoriedade na

Bahia. Foi então louvado como grande pesquisador do negro. No dizer de Arthur

Ramos, sob o aspecto documental, foi mais valioso do que seu mestre: Nina

Rodrigues23.

Sua obra é, sem dúvida - além de importante fonte de dados - bastante

“progressista” para sua época (basta compará-la com os trabalhos de época de

Oliveira Vianna). Como se pode observar na Introdução à Raça Africana e seu

Costumes (1916):

“Incontestavelmente, o feiticismo africano exerceu notória influência em nossos costumes; e nos daremos por bem pagos si o reduzido material que reunimos puder contribuir para o estudo da psicose nacional no indivíduo e na sociedade. E, aproveitando o ensejo, deixamos aqui consignado o nosso protesto contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade congênita e não simples condição circunstancial”24.

21 Pinto Aguiar. Manuel Querino e sua obra. In: Manuel Querino. Raça Africana e seus Costumes. Salvador: Editora Progresso. 1995 22 Escreveu: Artistas Baianos (1906), As Artes na Bahia. Salvador: Livraria Progresso. 1909; A Raça Africana e os seus costumes na Bahia. Salvador: Progresso, 1956; O Colono preto como fator da civilização brasileira. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1918; Candomblé do caboclo (1919), Homens de cor preta na história (1923), A Arte culinária na Bahia (1928), Costumes africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938; A Bahia de outrora. 2 ed., Salvador: Progresso, 1955. 23 Aguiar de Pinto, op. cit., p.8. 24 Manuel Querino. Raça Africana e seus Costumes. Salvador: Editora Progresso. 1995, p. 22-23.

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Em verdade, a única razão plausível para se colocar Manuel Querino como

pertencente ou percursor da “Escola Nina Rodrigues” (de antropologia) é o fato de

ele ter nascido na Bahia (Santo Amaro) e ter estudado o negro no Brasil. Aliás,

com uma competência que deve ser reverenciada e citada mais freqüentemente.

Considerações finais

Desde o ensaio aqui realizado, apoiado no clássico de Mariza Corrêa,

pode-se supor que a formação da “Escola Nina Rodrigues” deva ser

compreendida, historicamente, a partir das lutas pelo capital simbólico no campo

de estudos étnico-raciais na década de 1930. Neste caso, de fato, a realidade

parece dar razão a Pierre Bourdieu e seus discípulos da sociologia dos campos

culturais. Fica, todavia, uma questão não respondida: não existe uma conexão de

conteúdo entre Nina Rodrigues e seus herdeiros, que se mantenha para além das

descontinuidades já apontadas neste ensaio?

Depois de enfatizar as descontinuidades teóricas que marcariam a obra de

Arthur Ramos em relação à de Nina Rodrigues, Corrêa conclui sua tese

justamente explorando certos traços de continuidade entre ambos, que estariam

mais no terreno político do que teórico. Esta é a idéia inserida no título: Ilusões da

Liberdade...

Para a autora, além das divergências teóricas entre Nina Rodrigues e

Arthur Ramos existia, em última instância, uma fundamentação básica (racial em

Nina, psico-cultural [inconsciente] em Ramos) que teria por objetivo comum a

restrição da liberdade dos indivíduos, em particular do negro. Assim diz Corrêa:

“Ironicamente também, a perspectiva ‘racista’ de Nina Rodrigues, explicitamente condenada por seus discípulos, parecia ser mais reveladora dos conflitos sociais que eles negarão em nome de uma harmonia racial e social, do que as noções de ‘sincretismo’ ou ‘aculturação’ utilizadas por eles para nomear esta harmonia ao substituir a noção de raça pela de cultura. Para Arthur Ramos, principal agente desta substituição, a liberdade era tão ilusória como para Nina Rodrigues, mas por outras razões – ‘agimos como se fôssemos livres’, dizia ele,

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ao utilizar uma versão modernizada do atavismo já combatido por seu mestre, a teoria da mentalidade pré-lógica de Levy-Bruhl. A ‘raça’ ou o ‘inconsciente’ serviriam, ambos, em momentos diferentes para comprovar a incapacidade do ser humano em dirigir-se (...) A circunscrição cuidadosa dos limites da liberdade de cada um parece ter sido afinal o objetivo comum a todos os membros da Escola Nina Rodrigues”25.

Esta posição de Arthur Ramos fica ainda mais evidente quando tomamos

os seus ataques (1952)26 à participação particular do negro na vida política do

país; defendendo a aculturação, assimilação, etc, em oposição às reações “contra-

aculturativas” que estariam fadadas ao fracasso.

Para Corrêa, a ruptura com esse “paradigma determinista” só iria acontecer

a partir da década de 1950. Está claro que Correa coloca Gilberto Freyre nesta

interpretação27. Uma perspectiva de análise que vai ser retomada por Ricardo

Benzaquem (1995)28 e explorado mais amplamente por Lourdes Martinez-

Echazábal (1995)29, ao analisar a “racialização da cultura” nas obras de Gilberto

Freyre, Jorge Amado e outros autores latino-americanos da mesma geração.

Neste particular, portanto, Arthur Ramos, principal expoente da “Escola

Nina Rodrigues” segue a tendência dominante de época, reproduzindo uma visão

racializada da cultura. Resta saber, por fim, se tal tendência também era comum

aos escritos dos demais “membros” comumente citados como pertencentes a tal

escola: Manuel Querino e Edison Carneiro. Esse trabalho, entretanto, ficará para

um próximo ensaio sobre o tema.

25Mariza Corrêa. op. cit., p.311-12. 26 Arthur Ramos. La Métissage au Brasil, coleção dirigida por Josué de Castro, Hermann et Cie éditeurs, Paris APUD Mariza Corrêa op. cit., p. 27 Mariza Corrêa é enfática: “No Brasil, Gilberto Freyre e Arthur Ramos, ambos dizendo-se discípulos criados à sombra de “Nina Rodrigues”, retomariam a distinção proposta por Boas entre raça e cultura numa trajetória que no entanto não avançou muito em relação à situação estabelecida por Nina Rodrigues para o tema das relações raciais”. (Mariza Corrêa, op. cit., p.214.) 28 Ricardo Benzaquem de Araujo. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. 29 Lourdes Martinez-Echazábal. O Culturalismo dos anos 30 No Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual?. In: Marcos Chor Maio & Ricardo Ventura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade”. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1995.

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