A ESCRITA HISTÓRICA E SUAS INTERFACES

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A ESCRITA HISTÓRICA E SUAS MÚLTIPLAS FACES ZÉLIA LOPES DA SILVA KARINA ANHEZINI (Organizadoras) FCL - Assis - UNESP - Publicações

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ZLIA LOPES DA SILVA KARINA ANHEZINI (Organizadoras)

A ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES

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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES

Vice-reitor no exerccio da Reitoria Julio Cezar Durigan Diretor da Faculdade de Cincias e Letras Campus de Assis Dr. Ivan Esperana Rocha Vice-Diretora da Faculdade de Cincias e Letras Campus de Assis Dr. Ana Maria Rodrigues de Carvalho Chefe do Departamento de Histria Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Coordenador da Ps- Graduao em Histria Dr. ureo Busetto COMISSO CIENTFICA Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Dr. ureo Busetto Dr. Karina Anhezini de Arajo Prof. Dr. Tania Regina de Luca Prof. Dr. Zlia Lopes da Silva Reviso Portugus Olga Liane Zanotto Manfio Jaschke Diagramao e normas tcnicas Aline Michelini Menoncello

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A ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES

Assis FCL Assis UNESP Publicaes 2011

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP

E74 A escrita histrica e suas mltiplas faces / Zlia Lopes da Silva, Karina Anhezini (organizadoras).- Assis: FCL-AssisUNESPPublicaes, 2011 989 p. : il. ISBN: 978-85-88463-66-0 1. Cincia poltica. 2. Religio. 3. Cultura. 4. Sociedades. I. Silva, Zlia Lopes da. II. Anhezini, Karina. CDD 200 301.2

SUMRIO

APRESENTAO 11 I PRTICAS RELIGIOSAS E PODER POLTICO 1.1. As experincias religiosas e prticas de poder na Antiguidade Clssica e no medievo Algumas manifestaes religiosas orientais em Roma no Principado: Petrnio e Marcial Amanda Giacon Parra 21 O III Conclio de Toledo (589) e a converso da Hispnia visigoda Pmela Torres Michelette 43 O valor das prticas religiosas como objeto de disputa poltica: consideraes sobre as reformas religiosas de Licurgo e Demtrio de Falero em Atenas no ltimo tero do sculo IV A.C. Rafael Virglio de Carvalho 63 As diferentes interpretaes do texto hagiogrfico: Uma anlise sobre a Vita Desiderii de Sisebuto de Toledo (612-621) Germano Miguel Favaro Esteves 103 Da Quanta Cura (1864) de Pio IX a Rerum Novarum (1891) de Leo XIII: os discursos entre afastamentos e aproximaes com a modernidade Carolina de Almeida Batista 123 Horcio, O Poeta da Festa Cludia Valria Penavel Binato & Mirtes Rocha Rodrigues 141

1.2. Questes religiosas na Amrica Portuguesa e no Brasil. Impresses e apontamentos dos missionrios jesutas quanto aos costumes e etiqueta japonesa Mariana Amabile Boscariol 161 A prtica do judasmo no lar neocristo: heranas da tradio sefaradi na Amrica Portuguesa Helena Ragusa 191 Conservadores x Progressistas: uma representao histrica da Igreja catlica brasileira em anos ditatoriais (1968-1974). Glauco Costa de Souza 193 O Reino de Deus na terra: mudanas teolgicas e participao poltica no pentecostalismo brasileiro Vitor Aparecido Santos de Paula 213 II - CULTURA E REPRESENTAES SEUS SUPORTES: IDENTIDADES E

2.1. Os intelectuais, a imprensa e outros meios de comunicao Construindo um problema: o entusiasmo intelectual nas cartas do Centro Cultural Euclides da Cunha Itamar Cardozo Lopes 245 Construindo uma autoimagem: as memrias de Joel Silveira Danilo Wenseslau FERRARI 281 Joaquim e o Jornal Meio-Dia (1939-1942) Joo Arthur Ciciliato Franzolin 303 Os dilemas do movimento operrio brasileiro: a Revoluo Russa na imprensa dos anarquistas (1917-1922). Leandro Ribeiro Gomes 323 Soluo americana: Argentina e Estados Unidos por meio do jornal A Provncia de So Paulo (1875-1889) Paula da Silva Ramos 347

As escolas de engenharia e a produo do saber Fernanda Ap. Henrique da Silva 371 Portugal livra-se do passado: cobertura jornalstica da revista Veja Revoluo dos Cravos (maio de 1974) Rafael Henrique Antunes 389 Mdia comunitria, democratizao da comunicao e as interferncias polticas Vanessa Zandonade 403 A TV Cultura: uma nova Emissora Associada voltada para So Paulo, 19601967. Eduardo Amando de Barros Filho 417 Os debates e as aes de teleducao durante o regime militar (1964 1985) Wellington Amarante Oliveira 433 Possveis relaes entre agncias de propaganda e a ditadura militar brasileira. David A. Castro Netto 449 A instituio em foco: a criao da ANCINE e o desenvolvimento do cinema nacional William Geraldo Cavalari Barbosa 485 2.2. As festas, prticas educativas e de sociabilidades A experincia pelo relato de quem a fez: uma histria do projeto banda Lokonaboa Guilherme Gonzaga Duarte Providello 503 Carnavais Cariocas: entre a teoria e a prtica Danilo Alves Bezerra 521 Festa: um dia de exceo Priscila Miraz de Freitas Grecco 549 Mulheres Organizadas Jamilly da Cunha Nicacio 563

2.3. Os locais de memria e as polticas culturais do patrimnio Instituies de proteo ao patrimnio cultural: um olhar sobre as prticas polticas do Condephaat no oeste paulista (1969 1999) Rodrigo Modesto Nascimento 587 Arquivos pessoais e acervos literrios: o caso do arquivo pessoal do escritor Joo Antnio (1937-1996) Thais Jeronimo Svicero 605 Resistncia e memria: Santo Dias, histria de uma vida militante, 1962-1988. Carlos Alberto Nogueira Diniz 629 Memrias e gnero no espao urbano: reflexes. Bruno Sanches Mariante da Silva 647

III - DIMENSES DA POLTICA Ideias em movimento. Por uma histria conectada do movimento operrio mexicano e brasileiro no perodo de expanso Comunista. Fbio da Silva Sousa 663 Instituio do policiamento ambiental paulista: condies sociopolticas e econmicas (1930 1949) Adilson Lus Franco Nassaro 681 Os veteranos da FEB: O Conflito ideolgico na Associao de ExCombatentes do Brasil (1945-1950) Carlos Henrique Lopes Pimentel 705 Oposio armada aos governos militares brasileiros (1964-1985): a trajetria do Movimento Comunista Revolucionrio (MCR) Fabricio Trevisan Florentino da Silva 727 Debate: Atenuando a aridez do exlio Rodrigo Pezzonia 761

Industrializao, urbanizao e pensamento jurdico no Brasil entre os anos de 1945 e 1964 Patrcia Graziela Gonalves 791 Ideias e debates na defesa da industrializao de So Paulo na Primeira Repblica (1889-1930) Toms Rafael Cruz Cceres 827 Terrorismo e a agenda/presso poltica dos Estados Unidos: o caso da trplice fronteira Srgio Luiz Cruz Aguilar 853 Aumento da governabilidade, poltica de mercs e concesso de sesmarias: fundamentos prticos da ao metropolitana no processo de ocupao das minas de Cuiab (1721 1728) Luis Henrique Menezes Fernandes 878 IV - HISTRIA, FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS: DEBATES NA ESCRITA DA HISTRIA Genealogia e hermenutica: novas perspectivas nas relaes entre histria e filosofia Lucas de Almeida Pereira 913 Aproximaes entre Thompson e Foucault na historiografia brasileira dos anos 80: alguns apontamentos. Igor Guedes Ramos 931 A semelhana e a mediao do conhecimento na concepo de Walter Benjamin. Victor Martins de Souza 957 Da guerrilha ao socialismo: Florestan Fernandes e a revoluo cubana. Barthon Favatto Suzano Jnior 971

APRESENTAO

O livro Escrita histrica e suas mltiplas faces agrega textos de discentes da Faculdade de Cincias e Letras/UNESP, vinculados ao Programa de PsGraduao em Histria/Assis, que versam sobre as temticas articuladas s linhas de pesquisa desse Programa que tratam de aspectos multifrios da cultura, poltica e religio. Essa produo resultante da participao na XXVII Semana de Histria, ocorrida em novembro de 2010, que incorpora, tambm, contribuies de pesquisadores, professores e alunos, de outras instituies. Portanto, os escritos aqui reunidos foram sistematizados nos tpicos Prticas religiosas e poder poltico; Cultura e seus suportes: identidades e representaes; Dimenses da poltica e Histria, Filosofia e Cincias Sociais: debates na escrita da Histria. O primeiro bloco temtico Prticas religiosas e poder poltico rene textos que objetivam detectar as articulaes do campo religioso com o poltico, em temporalidades e dimenses distintas da Antiguidade grecoromana, do medievo e do sculo XIX, na Europa, na sia e Amrica portuguesa (sculo XVI) e do Brasil do sculo XX, discutidos com base em assuntos diversos. Na primeira parte do tpico inicial, as inquiries dos autores visam detectar as mudanas de prticas religiosas na cidade de Atenas sob o domnio de Licurgo e sua comparao com as formulaes de Demetrio, que usam as reformas religiosas como estratgias de controle poltico e de fortalecimento de certos grupos em detrimento de outros; identificar as religies praticadas na cidade de Roma no decorrer do primeiro sculo e incio do segundo, perodo do Principado, apoiadas nas fontes Satyricon, de Petrnio e os Epigramas, de Marcial; aspectos da religio catlica no perodo medieval e no sculo XIX,

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notadamente as relaes entre o imprio romano e a igreja oficial; o gnero hagiogrfico, valendo-se da produo de obras voltadas para a propaganda de centros de peregrinao e dos santos, gnero que se consolidou na Idade Mdia, com a expanso do cristianismo e a difuso do culto aos santos. Outros aspectos dessas relaes entre poltica e religio podem ser detectados voltando-se o olhar s diretrizes polticas papais, no sculo XIX e as relaes dos visigodos e a maioria dos reinos germnicos em suas conexes com o imprio romano e a igreja oficial. No sculo XIX, verificam-se mudanas e direcionamentos, assumidos pelos discursos dos Pontfices Pio IX (1846-1878) e Leo XIII (1878-1903), analisando suas especificidades no perodo de 1864, com a publicao da encclica Quanta Cura, que condenava os erros da poca (modernidade), a 1891, data da publicao da encclica Rerum Novarum, cuja perspectiva era colocar em evidncia a questo social. J os textos que tratam da experincia religiosa na sia e Amrica portuguesas, no sculo XVI, abordam as questes da cristianizao do Japo pela Companhia de Jesus e a vinda dos judeus Sefarditas para a colnia brasileira, fugindo das perseguies ibricas e do estigma de cristos novos. Esse subitem apresenta, ainda, textos que discutem o conflito interno que ocorreu entre os grupos catlicos (conservadores e progressistas), nas dcadas de 60 e 70 do sculo XX, e a ampliao, na dcada 1980, das Igrejas pentecostais no Brasil que embora presentes no pas, h quase um sculo, somente ganham visibilidade social nesse perodo. Essas alteraes decorrem de mudanas de perspectiva na interpretao doutrinal que se manifestam, entre outros aspectos, na ampliao de seu espao de atuao para fora do campo propriamente religioso. Sob o ttulo Cultura e seus suportes: identidades e representaes, embora variados, os autores trazem um amplo leque de temas enfeixados em

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trs subdivises que versam sobre os intelectuais, os meios de comunicao e imprensa, as festas, a educao e as diferentes prticas de sociabilidades, e os bens culturais em modalidades distintas que marcam as especificidades do prprio objeto. Isso significa dizer que o eixo das reflexes busca certas dimenses do campo cultural cuja nfase, em alguns desses escritos demarcar os procedimentos tericos e metodolgicos para enfocar as temticas aludidas. As reflexes que abordam os intelectuais indicam que eles so flagrados em situaes e atividades diversas: militando na imprensa, intervindo na poltica como os engenheiros na escola de Minas, no movimento operrio divulgando as ideias comunistas e libertrias valendo-se da imprensa operria no Brasil e no Mxico. Outro conjunto de textos aborda os meios de comunicao em seus diferentes suportes como a instalao dos canais de TV no Brasil, entre tantos outros assuntos cuja preocupao refletir sobre os mecanismos que propiciam o forjamento de certos temas no mbito desse suporte. O tpico As festas, prticas educativas e de sociabilidades agrega textos que tm em comum, a discusso das festas profana e religiosa cujos escritos versam sobre as manifestaes carnavalescas, vistas a partir de suas inflexes tericas e a festa religiosa, com base no ensaio Todos os santos, dia de finados, de Octavio Paz, que trata de questes culturais do Mxico. E, ainda, dois textos que abordam as experincias de sujeitos que, por muito tempo, foram excludos das reflexes historiogrficas como as mulheres (no caso as presbiterianas) e os loucos. O ltimo subitem desse bloco aborda a problemtica da memria e dos bens culturais, com foco no arquivo pessoal do escritor Joo Antnio (19371996) que se encontra depositado na Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho Faculdade de Cincias e Letras de Assis/UNESP e nas

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diretrizes polticas para a preservao e tombamento dos bens culturais no Estado de So Paulo, com base na anlise da atuao do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico, Arqueolgico e Turstico do Estado de So Paulo). E, tambm, na experincia de sujeitos que tm sua memria rastreada a partir de lugares especficos de memria como as ruas, praas e monumentos e, de suas militncias polticas, associadas s lutas sindicais que so ponto de partida para delinear a memria de seus protagonistas. Dimenses da poltica surpreende o leitor com um rol variado de temticas que do conta dos imbricados espaos da poltica nacional e internacional. Com uma abordagem promissora, a histria conectada, a compreenso da circulao das ideias do movimento operrio mexicano e brasileiro na primeira metade do sculo XX ganha destaque. No mbito da Histria Ambiental, outra face da poltica ocupa a primeira cena no artigo dedicado instituio do policiamento ambiental, em So Paulo. A Histria Militar vem ganhando uma ampliao de suas abordagens e questes e se lana ao desafio das anlises dos conflitos e de algumas personagens relegadas ao esquecimento: tema do texto dedicado Associao de Ex-combatentes da Fora Expedicionria Brasileira. Com base na histria do cotidiano da militncia poltica, o jogo existente entre as concepes polticas dos governos militares e as aes e identidades dos integrantes do Movimento Comunista Revolucionrio mapeado por meio da anlise de processos-crime. A militncia durante o regime militar tema, tambm, de outro captulo dedicado ao estudo do grupo DEBATE, e de seu meio de divulgao, a revista Debate: Problemas da Revoluo Brasileira. Importante veculo de informao e troca de ideias, a revista representou um local de confluncia para parte dos exilados brasileiros que se encontravam na Frana na primeira metade da dcada de 1970. O contexto de industrializao e urbanizao do Brasil de meados do sculo XX chave interpretativa do texto dedicado a compreender a

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formao do pensamento jurdico no Brasil nesse perodo. Valendo-se da anlise dos discursos dos juristas, a autora busca mapear as transformaes sociais e polticas que afetaram a conformao do poder judicirio. Destaque dado industrializao, tema de outro captulo que, por meio de diversas fontes (Anais do Parlamento Brasileiro, Relatrios da Associao Industrial e peridicos), trata da industrializao como um movimento de intricados debates durante a Primeira Repblica, em So Paulo. A fronteira foi tematizada nos captulos que encerram essa subdiviso dedicada s dimenses da poltica. Emblemticos para demonstrar a diversidade de abordagens, campos e assuntos que a Histria Poltica renovada comporta, esses captulos levam o leitor do estudo do papel da metrpole no processo de dilatao das fronteiras da capitania de So Paulo e ocupao das minas da Cuiab setecentista anlise das notcias veiculadas na imprensa brasileira logo aps os atentados de 11 de setembro e a presso poltica dos Estados Unidos no caso da trplice fronteira. Fecha o livro as reflexes agrupadas em Histria, Filosofia, e Cincias Sociais: debates na escrita da Histria. Preocupados com questes tericas que cercam o ofcio do historiador, os autores se debruam sobre algumas das problemticas e frutferas relaes entre Histria e Filosofia: a perspectiva genealgica derivada das pesquisas de Michel Foucault e a leitura hermenutica de Paul Ricoeur so colocadas em dilogo na tentativa de mapear as possveis contribuies desses sistemas para os historiadores; na seara da Histria da Historiografia, a produo dos anos 80 posta em mira para averiguar as aproximaes e apropriaes de E. P. Thompson e Michel Foucault realizadas pela historiografia brasileira. Com base na reflexo provocada pelo ensaio As doutrinas da Semelhana (1933) de Walter Benjamin so discutidas as formas de tramitao/mediao do saber. A aproximao da Histria com as Cincias Sociais tematizada por meio do estudo da obra Da Guerrilha ao Socialismo: a Revoluo Cubana, de autoria do socilogo Florestan

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Fernandes, um marco dos estudos a respeito de Cuba, que contribui para a compreenso do cenrio terico e poltico da sua poca de produo. Com esses quatro grandes eixos temticos, o leitor dispe de uma obra com resultados de pesquisas e ensaios que abarcam uma diversidade de temas, perodos e abordagens capazes de evidenciar o vigor da historiografia contempornea em formao.

Zlia Lopes da Silva Karina Anhezini

I PRTICAS RELIGIOSAS E PODER POLTICO

1.1 As experincias religiosas e prticas de poder na Antiguidade Clssica e no medievo

Algumas manifestaes religiosas orientais em Roma no Principado: Petrnio e MarcialAmanda Giacon PARRA*

Introduo

no decorrer do primeiro sculo e incio do segundo, perodo do Principado. O artigo trar comentrios acerca da religio romana no perodo, em seguida um breve resumo sobre cada uma das fontes, a anlise delas e algumas consideraes a respeito do tema. As religies em Roma no primeiro e incio do segundo sculos As religies vividas pelo povo romano tinham caractersticas diferentes das religies mais praticadas nos dias de hoje, por isso, importante elencar alguns conceitos ou princpios, com base nos quais se pode ter uma ideia de como se organizavam as crenas, ou seja, como se dava a experincia religiosa do povo romano no mbito pblico. A maneira de crer dos romanos diferente de qualquer ideal cristo de crena. Para os romanos antigos, explicam Linder e Scheid, crer era*

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nicialmente, destaca-se que este artigo parte de uma pesquisa

desenvolvida, que abrange as fontes Satyricon de Petrnio e Epigramas de

Marcial, e que busca entender as religies praticadas na cidade de Roma

Doutoranda em Histria/UNESP/Assis. Orientadora: Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi.

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fazer. Crer na Roma antiga equivalia a ter uma confiana cega no rito [...] (1993, p.58, minha traduo)1. Ou seja, crer significava acreditar no poder do ritual e buscar sua perfeita execuo. Scheid enumera alguns dos maiores princpios. O primeiro deles que a religio romana uma religio sem revelao, sem livros revelados, sem dogma e sem ortodoxia. O que existe a chamada orthopraxis, a performance correta que descreviam os rituais (SCHEID, 2003, p.18, minha traduo)2. Como destaque entre os conceitos que envolvem a religio dos romanos, poderia-se citar a supervalorizao do rito. Enquanto o povo grego valorizava o mito, os romanos valorizavam o rito (SCARPI, 2004, p.154). Estes acreditavam que quando o ritual era perfeitamente executado, os deuses permitiriam a manuteno do equilbrio da cidade, ou seja, a observncia ao ritual trazia o equilbrio das relaes entre homens e deuses, o que eles chamavam de pax deorum. Um ponto importante a respeito da religio pblica praticada no Imprio que se trata de uma religio social, ligada comunidade. H tantas religies romanas quanto grupos sociais: os cidados, as legies, as vrias unidades das legies, colgios dos servidores pblicos, artesos, famlias, entre outros (SCHEID, 2003, p.19). Destaca-se, ainda, que se tratava de um modelo cvico de religio: [...] respeitava-se a liberdade do cidado e ajudava-o no estabelecimento de relaes com os deuses fundadas especialmente na razo mais do que no medo (SCHEID, 2003, p.21).

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'Croire', dans la Rome ancienne, quivalait faire une confiance aveugle au rite [...] This was a religion without revelation, without revealed books, without dogma and without orthodoxy. The central requirement was, instead, what has been called orthopraxis, the correct performance of prescribed rituals.

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Um conceito importante na religio tradicional romana a ideia de religio. Trata-se da prpria reverncia prestada aos deuses, da prtica religiosa, da crena religiosa; era a cerimnia, o rito, o respeito aos princpios religiosos. A observncia dos atos rituais dos romanos percebida, por exemplo, por meio de um calendrio religioso festivo bastante rigoroso. Havia diversas festas anuais em honra a vrios deuses e a quantidade de deuses cultuada pelos romanos era bastante significativa. A estrutura do calendrio religioso compreendia muitas comemoraes como, por exemplo, a Ceralia, a Vestalia, a Liberalia, entre outras. As divindades cultuadas na religio pblica eram inmeras. Segundo Scarpi (2004, 144-147), a trade arcaica de deuses romanos era baseada nos modelos indo-europeus e constitua-se de trs divindades: Jpiter, Quirino e Marte. Posteriormente, substituiu-se pela trade: Jpiter, Juno e Minerva. Em determinados perodos, Roma contou tambm com o culto imperial. Foi o caso do perodo tratado neste estudo, o Principado. Um dos elementos mais caractersticos da religio romana nos primeiro e segundo sculos foi o fato de se divinizarem alguns imperadores mortos e lhes render culto. Este culto, que ocorria em toda a extenso territorial romana, era feito justamente para garantir o poder de Roma sobre todas essas terras. Era uma forma de legitimao devido grande influncia territorial da cidade. Nele, o princeps de Roma tornava-se divus, divino, e Roma a dea Roma, deusa Roma (SCARPI, 2004, p.175). Para o entendimento da religio romana o conceito de mos maiorum imprescindvel. De forma simplificada, o conceito diz respeito tradio romana, conservao dos costumes dos antepassados (SCARPI, 2004, p.142). Ou seja, os romanos apreciavam a preservao dos costumes tambm no campo religioso.

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A religio era uma marca da identidade romana e ser cidado romano era condio para praticar a religio (SCARPI, 2004, p.140). E essa religio que constitui parte da identidade romana que chamamos de religio pblica estava intrinsecamente relacionada s estruturas do Estado. Os cultos orientais em Roma A ideia de sincretismo aberto, proposta por Chevitarese e Cornelli para tratar as interaes culturais ocorridas no mediterrneo Antigo, se mostra vlida e atual tambm no estudo que aqui se apresenta. Isso ocorre porque, no perodo tratado, Roma se apresentava como uma cidade bastante heterognea. Como afirma Guarinello,[...] o Imprio foi resultado de um lento processo de conquista militar e centralizao poltica, primeiro da cidade de Roma sobre a Itlia, depois da prpria pennsula sobre as demais regies que margeiam o Mediterrneo. [...] Visto em seus prprios termos, o Imprio Romano no circunscrevia uma organizao social homognea e singular, mas agrupava sociedades completamente distintas. (GUARINELLO, 2006, p.14).

Estas vrias sociedades se refletiam, sobretudo, na metrpole Roma. Sabe-se, portanto, que a cidade de Roma sofreu influncias de muitas culturas, absorveu e modificou, segundo os seus parmetros, diversos cultos, entre eles os cultos que compem o objeto desse estudo. J no fim do sculo III a.C., quando a civilizao romana entrou em contato com diversas culturas, tanto a cultura grega quanto as orientais, foi o momento no qual os romanos adotaram e, aos poucos, modificaram vrias experincias religiosas. Os cultos elencados para o estudo nesta pesquisa so, justamente, os cultos advindos de outras localidades, ou seja, que no se constituram, mas foram reinventados, na cidade de Roma. O culto de Priapo e do casal Cibele e

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tis fazem parte de um fenmeno ocorrido no mundo helenstico-romano, trata-se da entrada dos cultos orientais. A definio dada por Sanzi, de tal fenmeno, a seguinte:[...] refere-se a algumas manifestaes religiosas voltadas para divindades especficas originrias do Egito e do Oriente Prximo Antigo disseminadas em momentos diversos e com xito desigual nas diversas regies do Imprio de Roma, de modo especial durante o segundo helenismo; em seu conjunto estas constituem um fenmeno especfico (SANZI, 2006, p.37).

Algumas especificidades desses cultos, segundo Sanzi, podem ser destacadas. Em primeiro lugar, esses cultos no requeriam uma adeso exclusiva da parte dos fiis (BIANCHI apud SANZI, 2006, p.37), alm disso, em contato com a cultura greco-romana adquiriram uma evoluo de seu complexo mitolgico e ritual, tornando-se cultos de mistrios (SANZI, 2006, p.38). Priapo veio da sia Menor, mais exatamente da cidade de Lmpsaco, seu culto surgiu por volta do sculo IV a.C. O deus chegou a ser representado em inmeros espaos diferentes: portos, encostas, praias, espao rural, jardins e atuava tambm no poder procriador da Natureza (OLIVA NETO, 2006, p.18-19). Era representado normalmente sob a forma de um membro viril. s vezes, encontrado na iconografia como um homem com um grande falo ou ainda como um hermafrodita. Como afirma Funari, o membro masculino em ereo era, na Antiguidade Clssica, associado vida, fecundidade, sorte e afastava malefcios, tinha poder de amuleto (FUNARI, 2003, p. 319) e j era cultuado em Roma muito antes da chegada de Priapo. Pois, na Antiguidade, as esferas religiosa e sexual estavam interligadas, no se pode, portanto, pens-las separadamente (FUNARI, 2004, p.319).

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Oliva Neto aponta que Priapo tornou-se popular em Roma. O autor relata:O culto sacro e profano de que Priapo foi objeto em Roma abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente privado. Entretanto, divindade humilde que era, foi religiosamente muito cultuado entre as ordens sociais mais baixas (pequenos agricultores e comerciantes) como patrono da fecundidade de hortas, pomares e, no mbito da casa, patrono at do matrimnio [...]. Nos estratos elevados, Priapo, relacionado que era ao poder catrtico e regenerador do riso, foi apropriado como personagem ridculo da poesia [...]. Mas no se exclui a possibilidade de ter recebido culto religioso ou ter feito parte dele entre as ordens menos baixas ou mesmo elevadas [...] (OLIVA NETO, 2006, p. 2425).

No outro caso, tem-se um casal de deuses oriundos da Frgia, cultuados em Roma no perodo aqui tratado: Cibele e tis. Os cultos em honra a esse casal chegaram a Roma em 204 a.C. Inicialmente, Cibele no teve um templo prprio, ficou hospedada no templo de Vitria. S ter seu prprio templo em 191 a.C. no Palatino. A chegada da deusa em Roma foi contada por alguns autores latinos, tais como Tito Lvio e Ovdio. Na consulta aos livros sibilinos, em 204 a.C., durante as Guerras Pnicas, indicou-se que seria necessrio trazer a deusa Cibele para Roma, a fim de que Anbal abandonasse a Itlia. Alvar esclarece que a introduo de Cibele est relacionada aristocracia romana (1994, p.161):Cibele, introduzida por deciso aristocrtica, apresenta um perfil popular que expressa a concordia ordinum, o consenso dos grupos sociais ante o sacro procedimento para repelir o invasor cartagins. A histria de Cibele em Roma reproduzir a tenso do conflito de classes e a contradio da conduta do grupo dominante entre a

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marginalidade e a integrao do culto.3 (ALVAR, 1994, p.163, minha traduo).

Os sacerdotes do culto de Cibele eram chamados galli e o sumo sacerdote era o archigallus. Todos esses sacerdotes deveriam ser eunucos, castravam-se nos rituais. Sanzi (2006, p.43-44) explica a festa em honra ao casal. De 15 a 27 de maro havia as festividades em honra deusa Cibele. No dia 15 havia a procisso das canforas. Do dia 16 ao 22 fazia-se abstinncia; o chamado castus matris deus, requeria restries alimentares e de prticas sexuais; enfim, ritualmente, todos estavam participando da dor de Cibele pelo fato de ter perdido seu parceiro tis. No dia 22 era realizada a cerimnia do arbor intrat, na qual os participantes portavam ao santurio uma rvore e os instrumentos rituais (siringe, verga, cmbalos, os tmpanos e flauta dupla presa com ramos); dia 24, o dies sanguinis era o dia em que se emasculavam os galli e em que, seguindo o exemplo de tis, os fiis se flagelavam ao som dos instrumentos rituais. A alegria voltava a reinar nas festividades somente no dia 25, quando tis, ritualmente, voltava a viver. O dia 26 era um dia de repouso chamado requietio. E dia 27 acontecia a cerimnia da lavatio. O culto de Cibele foi includo no calendrio oficial das festividades romanas a partir da criao do templo em honra deusa. A esse respeito Alvar assevera: Cibele triunfou em Roma. Seu culto acabou integrado ao calendrio oficial e, sem dvida, as caractersticas de seus ritos impediram,

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Cibeles, introducida por decisin aristocrtica, presenta as un perfil popular que expresa la concordia ordinum, el consenso de los grupos sociales ante el sacro procedimiento para repeler al invasor cartagins. La historia de Cibeles en Roma reproducir la tensin del conflicto de clases y la contradiccin conductual del grupo dominante entre la marginalidad e integracin del culto.

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aparentemente, sua plena incorporao na vida cvica (1994, p.169, minha traduo)4. Scheid acrescenta algumas explicaes para a incorporao dessa deusa no calendrio romano. Sobre a entrada da deusa no calendrio afirma que o culto foi introduzido:[...] sem que [...] fossem moralizados por tantos elementos chocantes para a sensibilidade romana, tais como a autocastrao dos galos de Cibele. Eles foram simplesmente enquadrados pelas prticas, tornados tradicionais, como se as autoridades estivessem precisamente buscado um efeito escandaloso, a fim de que, em certos dias do ano, a exibio das condutas contrrias norma permitissem aos romanos refletir sobre a complexidade de suas relaes com os deuses, com seus deuses, porque Cibele era, de fato, aos olhos romanos, um parente distante5 (SCHEID, 1993, p.56, minha traduo).

O Satyricon de Petrnio e os rituais pripicos As discusses a respeito da datao, autoria e gnero como em vrias fontes da Antiguidade se apresentam, tambm, no Satyricon. A datao foi discutida principalmente no sculo XVII (GONALVES, 1997, p.50). Levando-se em conta vrias referncias encontradas no romance, de maneira geral, constatou-se que haveria um intervalo de trs sculos nos quais a obra poderia ser inserida, a partir dos mais diversos argumentos. No entanto, hoje, a maioria dos estudiosos concorda que a obra foi escrita no sculo I, mais precisamente sob o governo de Nero.Cibeles haba triunfado en Roma. Su culto haba quedado integrado en el calendario oficial y, sin embargo, las caractersticas de sus ritos impidieron, aparentemente, su plena incorporacin en la vida cvica. 5 [...] sans que leurs cultes fussent pures pous autant des lments choquants pour la sensibilit romaine, telle lautocastration des Galles de Cyble. Il furent simplement encadrs par des pratiques tout fait traditionnelles, comme si les autorits avaient prcisement cherch leffet scandaleux, afin que, certains jours delanne, lxhibition de ces conduites contraires aux normes permette aux Romains de rflchir sur la complexit de leurs rapports avec les dieux, avec leurs dieux puisque Cyble tait, en fait, leurs yeux une lointaine parente des Romains.4

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Sobre o autor, a polmica foi tambm muito grande. No entanto, praticamente consenso que seja Petrnio, Arbiter Elegantiae, o mesmo citado por Tcito, que fez parte do crculo de Nero. A esse respeito Ernout (1950, p.VII), um dos maiores estudiosos do romance, afirma o seguinte: A hiptese mais verossmil e frequentemente adotada aquela que o assimila ao personagem cnsul, contemporneo e familiar de Nero (minha traduo) 6. Um dos pontos que se deve destacar a respeito desse livro o fato de que, como relata Ernout, [...] ns estamos longe de possuir a obra inteira de Petrnio (1950, p.XIII). A que se teve acesso foi apenas uma pequena parte de um livro que, provavelmente, deve ter sido bem maior. O romance traz como personagens principais trs jovens: Encolpio, o narrador; Ascilto e Gito. Os trs aparecem em cenas em variados lugares: albergue, prtico, em um banquete, entre outros. No romance de Petrnio, h dois episdios nos quais aparecem rituais e honras ao deus Priapo. No entanto, no apenas uma citao isolada a esse deus, sabe-se que o deus flico, advindo de Lmpsaco, na sia Menor, foi descrito em vrias outras fontes e que h inclusive colees de poemas chamados Priapia Grega e Latina que trazem como assunto central o deus. Priapo foi descrito no apenas na literatura, muitas imagens do deus foram produzidas no Imprio Romano, derivadas no apenas na crena do deus do Helesponto, mas tambm, de todas aquelas divindades antigas de Roma (Tutunus Mutunus, fascinus, etc). O deus no fazia parte, porm, das divindades mais tradicionais de Roma, no estava includo no calendrio proposto pelos dirigentes da religio e poltica da cidade. O deus, antes de chegar a Roma, foi incorporado em6

L'hypothse la plus vraisemblable et la plus gnralement adopte est celle qui l'assimile au personnage consulaire, contemporain et familier de Nron [...].

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outras localidades, passando inclusive pela Grcia, onde seu culto pode ter adquirido caractersticas mistricas. Petrnio, por sua vez, descreve em duas cenas do romance os rituais ao deus Priapo. Neste momento, trata-se mais especificamente do episdio de Quartila. Seguindo a diviso de captulos da traduo de Ernout (1950), no captulo XVI, iniciam-se as aventuras do trio com a sacerdotisa do culto pripico, chamada Quartila. O episdio conta com vrios personagens alm da sacerdotisa e dos garotos. Quartila afirma que os jovens cometeram um crime terrvel, por terem possivelmente violado um ritual que estava sendo feito em honra a Priapo. Por isso, teriam que participar de um tipo de iniciao na qual foram torturados e sofreram vrios tipos de violncia. Ao contrrio das prticas mais tradicionais da religio romana, no captulo XX parece iniciar-se um diferente ritual. A escrava Psique e uma moa comearam a excitar os jovens. Havia uma espcie de poo medicamentum (doses de segurelha ou satrio) que foi dada a Encolpio. Participam da cena tambm vrias bichas que molestam os personagens. Alguns atletas entraram e massagearam os jovens com um leo. Depois os protagonistas foram conduzidos a um quarto prximo, onde havia camas e foram servidos com vrios pratos e beberam muito vinho, numa espcie de banquete. Em seguida, todos dormiram, mas foram interrompidos por Quartila a qual advertiu que o culto em honra a Priapo deveria ser feito. No fim do episdio, Quartila resolve que aquela era uma bela ocasio para Paniques, uma menina de sete anos, perder sua virgindade, numa espcie de casamento. Enclpio fica assustado em razo da idade da menina. Quartila discorda e o leito nupcial preparado. A menina vai o para o quarto com Gito. Quartila beija Enclpio e eles passam juntos o restante da noite. O outro episdio traz a sacerdotisa pripica chamada Enotia. Um

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pouco antes do incio desse episdio, o narrador tem um longo dilogo com o seu membro, pois sua virilidade o tinha abandonado quando ele pretendia relacionar-se com Circe. No momento em que Enclpio suplica ao deus Priapo, a velha Proselenos chega e conduz o rapaz ao encontro de outra sacerdotisa de Priapo chamada Enotia. Os captulos a seguir se desenrolam num ambiente o templo da sacerdotisa descrito por Enclpio como sujo, nojento e velho. Nesse lugar, a sacerdotisa utiliza muitos produtos para a prometida cura de Enclpio que ela iria efetuar. Depois de beijar Enclpio, Enotia parece comear uma espcie de ritual. Enotia inicia um sacrifcio que interrompido e a velha sacerdotisa sai em busca de fogo pela vizinhana. Enquanto a sacerdotisa procura o fogo, Enclpio comete um crime terrvel: mata um ganso que estava na porta desse templo. Ao descobrir tal ato, a sacerdotisa fica furiosa com Enclpio, pois aqueles, segundo ela, eram gansos de Priapo. Mas, uma das partes mais surpreendentes do episdio quando Enclpio oferece moedas de ouro pela perda dos gansos e a velha mostra-se bastante satisfeita. A seguir, tem-se um poema no qual h a ideia de que o dinheiro pode inmeras coisas ou quase tudo. E o ritual continua: a sacerdotisa faz uma previso do futuro de Enclpio. Enotia e Proselenos bebem muito vinho puro e as torturas sexuais so iniciadas. A interpretao dos rituais do romance de Petrnio bastante complexa, o distanciamento temporal e de costumes cria, a princpio, a sensao de incapacidade de conhecimento. Como pondera Burkert:O fosso entre a pura observao e a experincia dos envolvidos nos trabalhos efetivos permanece intransponvel. Quem poder

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dizer em que consiste essa experincia, sem ter passado por dias e dias de jejuns, purificaes, esgotamento, apreenso, e agitao? (BURKERT, 1991, p. 100).

Os pesquisadores esto como bisbilhoteiros, ou ainda, estranhos no porto (BURKERT, 1991). Porm, o que se conclui do estudo das prticas religiosas no romance de Petrnio e dos conhecimentos que se tem a respeito da religio tradicionalmente praticada em Roma no perodo que os rituais e as sacerdotisas descritas pelo autor diferem da tradio do mos maiorum. O culto de Priapo representado por Petrnio diverso dos outros cultos do Imprio e se assemelha a outros cultos mistricos, tambm advindos de outras partes do Imprio, principalmente do Oriente, tais como Cibele e tis e sis e Osris, com suas iniciaes e suas formas de crer diferentes da romana tradicional. A representao exagerada de Petrnio pode ser vista num quadro no qual a sociedade romana, e sobretudo as altas ordens, viam-se rodeadas de expresses religiosas diferentes, frutos de diversas culturas trazidas a Roma de vrias partes do imprio, ou mesmo de fora dele, que se instalavam e se modificavam na Urbs, naquele momento. Os Epigramas de Marcial Os mais de um mil e quinhentos epigramas de Marcial foram organizados em 15 livros. Os temas so variados e tratam do cotidiano da vida em Roma. Pouco explorado pela historiografia brasileira, Marcial uma fonte que pode ser utilizada em estudos diversos, desde estudos como este, a respeito da religio, passando pela sociedade e os vrios tipos humanos que a compem.

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Marcial um caleidoscpio vivo da Roma de seu tempo, como destaca Paratore (1983, p.708). Pela tica de um cliens da Roma antiga tem-se uma representao bastante viva e colorida do primeiro sculo e incio do segundo, em Roma. Marco Valrio Marcial nasceu em 39 ou 40 d.C., na regio da Espanha, em Bilbilis, e chegou em Roma por volta do ano 60, pois nesse perodo a cidade atraa muitas pessoas em busca de melhores expectativas de vida. Marcial escrevia sobre inmeros temas. Registrava vrias categorias, tipos humanos e seus comportamentos: beberres, gulosos, avarentos, hipcritas, homossexuais, delatores, mulheres de todos os tipos, adlteros, entre outros. Falava de tudo e de todos (BIAZZOTO, 1993, p. 117). As citaes que o autor faz, por meio das quais pode-se estudar a religio em Roma, so inmeras. A seguir, destaca-se a citao de alguns epigramas, nos quais Marcial cita Priapo ou utiliza-se dos atributos do deus para atingir o objetivo jocoso de seus epigramas. O epigrama seguinte pertence ao livro VI, 73:No me fez a tosca foice de inculto campons, mas do intendente a obra ilustre que aqui vs. Do campo de Cere o mais rico agricultor possui estas colinas, Hlaro, e, alegres, as encostas. V que nem de pau pareo, com o meu rosto bem traado; nem votada ao fogo a arma genital que empunho, mas de cipreste eterno que morrers jamais, tenho um caralho duro, da mo de Fdias digno. Vizinhos, vos aviso, venerai a So Priapo e tratai de respeitar as duas vezes sete jeiras. (MARCIAL, 2000, p.127).

Esse epigrama traz alguns dados importantes. O eu potico o prprio deus que fala sobre seu feitio, afirma ter sido produzido no por um inculto campons mas por um dispensatoris nobile, ou seja, um superintendente ou administrador ilustre, esse seria Hlaro, que segundo Oliva Neto, o

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proprietrio cujo nome significa alegre, feliz. O nome, nesse caso, seria justificado pela riqueza do personagem (2006, p.308). Por meio desse epigrama, Marcial mostra, portanto, que o deus estaria presente nas propriedades de terra dos mais abastados de Roma. O epigrama que se segue o 40, do livro VIII:Priapo, guardio no de um jardim nem de videira fecunda, mas de um bosque ralo, do qual nasceste e podes voltar a nascer afasta, eu te aconselho, as mos rapaces e a madeira para a lareira do senhor reserva: se ela faltar... at tu prprio s lenha. (MARCIAL, 2000, p.74).

Nesse caso, h uma ameaa ao deus para que mantenha as plantaes protegidas. Se isso no ocorresse, o prprio deus serviria de lenha quando esta faltasse. Segundo Oliva Neto, a fala provavelmente do capataz que transmite a ameaa do patro (2006, p.309). Sobre as menes que Marcial faz ao deus Priapo, no apenas nos epigramas transcritos acima, mas levando-se em considerao os vrios epigramas ao longo da obra, pode-se destacar alguns pontos. Um dos significados da citao do deus est relacionado com a proteo dada por Priapo aos jardins e plantaes, ameaa que o deus representa nesses espaos. A representao do deus nos espaos como jardins e plantaes parece ser bastante comum, tanto nas grandes e ricas propriedades como nas pequenas. Quando seu culto dimenso mistrica do deus aparece no epigrama, logo surge a figura feminina, a mulher como aquela que venera o deus. Pode-se afirmar, tambm, que Marcial utiliza o sentido mais corrente do deus na poesia: o carter ridculo est presente nos epigramas, o deus e sua deformidade so vistos como ridculos.

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H epigramas, ainda, que podem esclarecer o estatuto da crena na deusa Cibele e seu parceiro tis, em Roma, no perodo tratado. O epigrama 81, do livro III, trata dos celebrantes dos rituais deusa. Marcial zomba dos possveis participantes desse culto, homens eunucos.Que tens que ver, galo Btico, com sorveidoiros de mulher? Esta lngua deve lamber, a meio, os homens. Por que razo te foi cortado, como um caco de Samos, o membro, Se to agradvel te era, Btico, a rata? O que se te deve castrar a cabea: embora, pelo membro, sejas galo, frustras, no entanto, os ritos de Cbele: s homem pela boca. (MARCIAL, 2000, p. 159).

Cita-se, ainda, o epigrama 2, do livro IX:Pobre embora para os amigos, Lupo, no o s para a amante, e s o teu vergalho de ti se no queixa. Engorda essa pega com pes pachachides, negra farinha come o teu convidado; para a dama se filtram scias de inflamar a neve, bebemos ns turvos copos de corso veneno; compraste uma noite, e no toda, com a fazenda paterna, um camarada desvalido ara um campo que no seu; refulge a rameira, reluzentes de eritreias gemas, preso por dvidas, enquanto fodes, um cliente; uma liteira, levada por oito srios, cachopa dada, um amigo numa padiola ser um peso nu. Anda agora, Cbele, e mutila os maricas desgraados, este sim, este vergalho que merecia as tuas facas7 (MARCIAL, 2001, p.100-101).

Nesse epigrama, o epigramatista reclama da poro de terra dada por Lupo a ele. Marcial coloca Lupo na seguinte situao: um desregrado nos7

Pauper amicitiae cum sis, Lupe, non es amicae / et querittur de te mentula sola nihil. / Illa siligineis pinguescit adultera cunnis, / couuiuam pascit nigra farina tuum; / incensura niues dominae Setina liquantur, / nos bibimus Corsi pulla uenena cadi; / empta tibi nox est fundis non tota paternis, / non sua desertus rura sodalis arat; / splendet Erythraeis perlucida moecha lapillis, / ducitur addictus, te futuente, cliens; / octo Syris suffulta datur lectica puellae, / nudum sandapilae pondus amicus erit. / I nunc et miseros, Cybele, praecide cinaedos: / haec erat, haec cultris mentula digna tuis (MARCIAL, 1973, p. 35).

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assuntos referentes ao amor, ou seja, para sua amante, Lupo proporcionava uma vida muito abastada. No entanto, no que se refere s suas obrigaes na vida pblica, Lupo teria deixado a desejar em vrios aspectos: nas comidas e bebidas que servia a seus convidados e nas suas obrigaes em relao aos seus cliens. Marcial deseja, no fim do epigrama, que Cibele castrasse em seus ritos esse homem. Seria vivel, por exemplo, imaginar ento que Marcial define a os emasculados dos ritos de Cibele como pessoas que no tivessem tanto prestgio na vida pblica, pessoas desregradas, que no soubessem cumprir suas obrigaes no mbito pblico e agissem com muitos sentimentos em relao ao amor. A deusa estaria condenada por Marcial, ento, a atender pessoas que no se encaixassem nos parmetros da sociedade romana. O livro escrito durante as Saturnais (XIV) traz o epigrama 204:Cmbalos Estes bronzes que choram o jovem de Celenas amado da Grande Me, Muitas vezes costuma vend-los o Galo esfomeado (MARCIAL, 2004, p.208).

No epigrama acima descrito, mais uma vez Marcial desmerece os sacerdotes do culto de Cibele, lembrando novamente que aqui ele chama tis de jovem de Celenas, retomando sua origem frigia, oriental. O poeta acusa os sacerdotes do culto de vender os instrumentos musicais, os cmbalos, do culto. Atribui aos galli, algo como um falta de carter.

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Algumas consideraes As fontes escolhidas, pensadas em conjunto, traro aos estudos um panorama que se inicia em meados do primeiro sculo, mais especificamente sob o governo de Nero, poca em que Petrnio provavelmente escreveu. Em seguida, Marcial e seus epigramas oferecem uma viso da cidade nas dcadas posteriores, pois, morando desde a dcada de 60 na cidade de Roma, o poeta comea a escrever na dcada de 80 e termina sua produo nos primeiros anos do segundo sculo. Diante disso, o estudo aqui proposto concluir qual o estatuto desses cultos orientais da metade do primeiro sculo at incio do segundo, a partir das fontes escolhidas. Em seguida, a proposta trazer tona quais grupos sociais estavam envolvidos com essas novas formas de religiosidade presentes em Roma. As duas fontes utilizadas permitem imaginar como os cultos orientais estavam sendo relidos pelos romanos ao longo do primeiro sculo. Petrnio em meados do primeiro sculo cria a imagem de um culto pripico com dimenses mistricas, cheio de exageros. Entende-se, a partir da fonte, que esse foi um perodo no qual a sociedade romana estava deixando de lado, de forma mais sistemtica, a ideia surgida no I sculo a.C., ou pelo menos que foi difundida pelos escritores do perodo, de conservar a antiga religio romana. Durante o perodo em que Petrnio escreve, governo de Nero, a sociedade romana j conhecia o culto pripico, mas pode ser que pelo menos a classe de Petrnio no havia aceito o deus em sua dimenso mistrica. A popularidade do deus aumenta em grande medida ao longo do sculo e seus atributos, tambm, na cidade de Roma. Nas dcadas em que Marcial escreve, o deus j se mostra mais popular, estava arraigado em toda a cidade.

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Alm dos atributos mistricos que o deus trouxe, como resultado das suas passagens inclusive pela Grcia, ao longo do primeiro sculo, ficou conhecido na Urbs tambm como amuleto, representado em inmeros espaos, principalmente em jardins e plantaes. Mesmo que no participante oficial daquela religio pblica relacionada ao Estado, Priapo se apresenta como um deus bastante conhecido em seus atributos e, provavelmente, objeto de culto na cidade da metade do primeiro sculo em diante. Nas dcadas de 80, 90 e incio do segundo sculo, a utilizao do deus, por parte de Marcial para criar jocosidade em seus poemas, atesta a popularidade de Priapo. Acredita-se, dessa forma, que a religio romana no perodo tratado corresponde a vrias outras expresses religiosas e no apenas religio pblica oficial, como alguns historiadores costumam associar, ao culto ao imperador e s festas oficiais. No caso do casal frgio, Cibele e tis, entende-se que a representao de Marcial a respeito mostra que os ritos de Cibele ocorriam com frequncia na Urbs, mas mesmo incorporada ao calendrio oficial do Imprio, a deusa tinha ritos que chocavam alguns grupos sociais romanos. Mesmo assim, os atributos dela foram incorporados, tendo em vista as diversas citaes dos celebrantes do culto por Marcial. O culto de Cibele entendido, aqui, tambm como parte da religio romana no perodo tratado. A partir das fontes apresentadas, a religio romana de meados do primeiro sculo ao incio do segundo mostra-se bastante hbrida. No h como afirmar, diante da popularidade de cultos como esses aqui estudados, que a religio romana o mesmo que a religio oficial e o culto ao imperador, ela engloba os vrios cultos, advindos de outras partes, mas que depois de adaptados so aceitos, em maior ou menor grau, e vividos pela populao.

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Em relao aos grupos sociais que participavam desses cultos, a princpio orientais, pouco se pode especificar. Entendida essa hibridizao citada acima, no se pode concluir que apenas um ou outro grupo estava para este ou aquele culto, pois as prprias fontes trazem vrias ordens diferentes relacionadas aos deuses Priapo, e Cibele, desde escravos, como se viu em Petrnio, at pessoas abastadas como relaciona Marcial: vrios grupos esto ligados a essas novas formas de religiosidade, ou seja, elas j eram romanas por excelncia. possvel, portanto, entender os cultos aqui estudados como populares, no no sentido elite versus popular, mas de conhecidos e vivenciados por muitos durante o primeiro sculo. No constituam mais um bloco diferente, mas apenas uma opo religiosa, j que no eram exclusivistas, e traziam aos fiis outras perspectivas religiosas e outras formas rituais. Referncias Fontes: ERNOUT, Alfred: Ptrone. Le Satiricon. 3ed. Paris: Les Belles Lettres, 1950. MARCIAL. Epigramas. v.I. Lisboa: edies 70, 2000. MARCIAL. Epigramas. v.II. Lisboa: edies 70, 2000. MARCIAL. Epigramas. v.III. Lisboa: edies 70, 2001. MARCIAL. Epigramas. v.IV. Lisboa: edies 70, 2004. MARTIALIS, M. V. pigrammes. Tome I (livres I-VII) Texte tabli et traduit par H.J. Izaac. Paris, Belles Lettres, 1930. MARTIALIS, M. V. Epigrammes. Tome II(livres VIII-XII) Texte tabli et traduit par H.J. Izaac. Paris, Belles Lettres, 1973.

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MARTIALIS, M. V. Epigrammes. Tome II(livres XIII-XIV) Texte tabli et traduit par H.J. Izaac. Paris, Belles Lettres, 1973. PETRNIO (Petronius Arbiter). Satyricon (bilngue), traduzido direto do latim por Sandra M. G. Braga Bianchet. Belo Horizonte: Crislida, 2004. PETRNIO. Satricon. Traduo e posfcio: Cludio Aquati. So Paulo: Cosac Naify, 2008. Bibliografia: ALVAR, J. Escenografia para una recepcin divina: la introduccin de Cibeles en Roma. Dialogues dhistoire ancienne, vol. 20, n.1, p. 149-169, 1994. Internet: acessado em 15/09/08 em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_07557256_1994_num_20_1_2151 AQUATI, C. O grotesco no Satricon. Tese (Doutorado em Letras Clssicas). So Paulo: Faculdade de So Paulo- Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 1997. BIAZOTTO. R. L. O viver urbano em Roma: uma leitura de Plnio o Jovem e Marcial. Dissertao (Mestrado em Histria). Assis, Universidade Estadual Paulista- Faculdade de Cincias e Letras, 1993. BURKE, P. Hibridismo cultural. Trad. Leila Souza Mendes. So Leopoldo-RS: Editora Unisinos, 2003. BURKERT, W. Antigos Cultos de Mistrio. So Paulo: EDUSP, 1991. BUSTAMANTE, R. M. da C. Prticas culturais no Imprio Romano: entre a Unidade e a Diversidade. In: SILVA, Gilvan Ventura da e MENDES, N. M. (Org). Repensando o Imprio Romano. Perspectiva socioeconmica, poltica e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitria, ES: EDUFES, 2006. CHEVITARESE, A. L.; CORNELLI, G. Judasmo, cristianismo, helenismo: ensaios sobre interaes culturais no Mediterrneo Antigo. Itu: Ottoni Editora, 2003. DEZOTTI, J. D. O epigrama latino e sua expresso verncula. Dissertao (Mestrado em Letras Clssicas). So Paulo: Universidade de So PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 1990.

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O III Conclio de Toledo (589) e a converso da Hispnia visigodaPmela Torres MICHELETTE*

Oque:

s visigodos, como a maioria dos reinos germnicos, tiveram sua histria poltica vinculada sua histria religiosa bem como s suas relaes com o Imprio Romano. Visto que, uma vez

estabelecidos no interior das fronteiras romanas, conseguiram manter certa independncia poltica e social, muito em virtude de terem se convertido ao arianismo (AGUILERA, 1992, p.15). Este fato possibilitou-lhes a manuteno de certa autonomia, subtraindo mais facilmente a ao unificadora e centralizadora dos imperadores romanos e da Igreja oficial1. Neste sentido,

dialogamos com o medievalista E. A. Thompson, que expressa a opinio de

Los arrianos espaoles hablaban normalmente del catolicismo como la religin romana, mientras que el arrianismo era considerado como la fe catlica. Convertirse a la fe de Nicea significaba, por as decirlo, convertirse en romano, dejar de ser godo. Pero no es posible que considerasen en serio el arrianismo como catlico: ello hubiera estado en contradiccin con el uso del godo como lengua litrgica y con la existencia de un nuevo bautismo para los catlicos convertidos. Resulta difcil imaginar el* Mestranda em Histria/UNESP/Assis/Bolsista: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho. 1 Desta forma, para J. Orlandis, fica claro, inicialmente, que os visigodos no fomentaram a converso ao arianismo da populao hispano-romana, com algumas excees, mais em: ORLANDIS, J. Historia del Reino Visigodo Espaol. Madrid: Rialp, S. A., 1988. p. 297-299.

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que algn rey godo considerase al arrianismo como f realmente catlica, una posible religin nacional en la que algn da pudieran unirse todos pueblos de Espaa. Se trataba de la religin de los godos y solo de los godos, y eso es lo que pretenda ser (THOMPSON, 1971, p.53-54).

Embora o presente trabalho faa referncia direta ao III Conclio de Toledo, necessrio fazermos meno ao rei visigodo Leovigildo (568-586), pai de Recaredo e ltimo monarca visigodo ariano. Leovigildo empreendeu no reino uma poltica centralizadora, tanto na questo da unificao territorial como religiosa; indo na contramo de seus antecessores, que priorizaram a separao da religio como norma de governo. Entretanto, sua poltica de converso de todo o reino ao arianismo no foi bem sucedida em sua gesto. Outro fator determinante do reinado de Leovigildo consiste nas caractersticas imperiais que ele deu ao trono visigodo, empreendendo uma poltica de imitao de Bizncio (KING, 1981, p.31). Assim, foi o primeiro rei visigodo a aparecer ao pblico em um trono, usando roupas de tradio imperial, fundando cidades, convocando conclios e cunhando moedas com sua imagem. Estes elementos do reinado deste monarca demonstram, no apenas o lado anedtico, mas tambm parte de um processo histrico, no caso, o de incorporao de caractersticas do Imprio, que produziram uma transformao no conceito de realeza visigoda. Assim, a renovao formal da Monarquia, que se deu no reinado de Leovigildo, se tornou uma consequncia direta da forte transformao sofrida pelo trono visigodo em contato permanente com a ideologia e as prticas de governo imperiais precedentes, as quais, segundo Valverde Castro, foram:La evolucin poltica que se oper en el perodo tolosano y que, sintetizando, podemos decir que supuso, por un lado, la ruptura definitiva de los lazos de dependencia que ligaban a los reyes

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visigodos con el Imprio Romano y, por outro, la progresiva acaparacin por parte de esos mismos reyes de las supremas responsabilidades de gobierno, possibilitaron que, tras su asentamiento definitivo en la Pennsula Ibrica, los reyes visigodos pudieran hacer surgir en los nuevos territorios una entidad de poder absolutamente independiente y soberana. Puede afirmarse que toda la obra de Leovigildo se encamin precisamente a consolidar esa estructura de poder autnoma que a monarqua visigoda ya rige y representa. (VALVERDE CASTRO, 2000, p.195).

Entre 579 e 584, Hermenegildo, o primognito de Leovigildo, rebela-se contra o pai, sua revolta foi legitimada pela converso de Hermenegildo ao catolicismo nicesta. Este processo recebeu o apoio de bispos catlicos, como foi o caso de Leandro de Sevilha2. Entretanto, essa ajuda no tornou sua sublevao vitoriosa, nem os francos e nem o Imprio bizantino enviaram guarnies suficientes, conforme o previsto. Desta maneira, Leovigildo conseguiu suplantar a rebelio de seu filho, que foi preso e morto um ano depois de sua priso. Muito em decorrncia do episdio de rebelio de Hermenegildo, o rei visigodo Leovigildo convocou, em 580, um snodo ariano (JUAN DE BICLARO, 1960, p.89), cujo principal propsito era estimular os catlicos a abandonarem suas crenas e se converterem ao arianismo. Alguns historiadores acreditam que esta foi uma medida de aproximao entre os grupos populacionais do reino, como tambm o fato de ter extinguido a lei de proibio de casamentos entre visigodos e romanos. Porm, E. A. Thompson defende a posio de que Leovigildo nunca colocou em prtica uma polticaPertenceu a uma famlia catlica de origem bizantina ou hispano-romana. Como bispo de Sevilha, Leandro foi o instrumento decisivo para conseguir a renncia oficial ao arianismo dentro do reino visigodo, proclamada no III Conclio de Toledo. Leandro foi sucedido por seu irmo Isidoro por volta de 600 e, durante o seu bispado e de seu irmo Isidoro, Sevilha desfrutou de preeminncia como centro intelectual do reino visigodo. LOYN, H. R. Dicionrio da Idade Mdia.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 212-213.2

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de acercamento entre os distintos grupos existentes no territrio peninsular (THOMPSON, 1971, p.75). J a imagem de Leovigildo como perseguidor de catlicos deve-se, fundamentalmente, aos bispos Gregrio de Tours e Isidoro de Sevilha. Ambos tinham motivos para degradar a imagem deste rei. O primeiro deles, em sua Histria dos Francos, cuja estrutura mostrava uma clara contraposio entre reis bons e maus em funo dos interesses que o prprio autor queria destacar. J Isidoro destacou o arianismo militante de Leovigildo, pois o mencionou como contraponto a poltica de converso ao catolicismo, realizada por seu filho Recaredo. O bispo sevilhano se utilizou de certos fatos que caracterizassem a ideia de perseguio para rebaixar a imagem do rei, como foi o caso do exlio do Masona ou do sofrido por Joo de Bclaro, em Barcelona, que em sua crnica no fez referncia. Para Daz y Daz, a poltica de unificao do territrio empreendida pelo rei, tinha em seu interior um foco de dificuldades que foram as tenses contnuas entre visigodos e hispano-romanos, reforadas pelas tenses religiosas entre arianos e catlicos. Desta maneira, para o autor:Justo es decir que, durante mucho tiempo, los monarcas visigodos, salvo pequeas acciones intrascendentes, en parte reflejos condicionados por situaciones exteriores, como la conversin de los suevos, se haban mostrado indulgentes con los catlicos e indiferentes al problema religioso. Los grupos catlicos se sentan vejados, en razn de su poder econmico y social, y por constituir mayora; sin embargo, durante un tiempo, toleraron de mejor o peor grado la dominacin visigoda arriana (DAZ Y DAZ, 1982, p.14).

Com a morte de Leovigildo, em 586, seu filho Recaredo, no mesmo ano, subiu ao trono e exerceu uma poltica de negociaes com alguns de seus inimigos, em vez de dar continuidade aos enfrentamentos abertos, desde que se iniciou a guerra civil. A unidade confessional almejada pelo rei Leovigildo

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realizou-se em torno do catolicismo pelo seu sucessor Recaredo. Este ltimo desejava os mesmos objetivos do fortalecimento do poder rgio de seu pai e preferiu, ao contrrio de Leovigildo, o caminho do acordo com boa parte da aristocracia eclesistica e o apoio legitimador do episcopado (GARCIA MORENO, 1989, p.111). Cabe ressaltar que, para analisarmos algumas das perspectivas que abrangeram o III Conclio de Toledo (589) e a participao e consagrao do rei Recaredo, utilizaremos trs fontes: as Atas do III Conclio de Toledo (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.107145), a Chronicon (JUAN DE BICLARO, 1960, p.94-100) do bispo Joo de Bclaro e a Historia Gothorum (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.261-267) do bispo Isidoro de Sevilha. Aps dez meses de regncia, j em 587, Recaredo anunciou sua converso pessoal ao catolicismo (JUAN DE BICLARO, 1960, p.95). Esta mudana iria acabar com a diviso religiosa existente dentro do reino (COLLINS, 2005, p.64). Inicialmente, foi uma deciso individual, contudo ficaram evidentes com a convocao de um conclio, apenas para bispos arianos, no mesmo ano, que suas intenes abrangeram todo o reino toledano. Esta converso da realeza afetou os setores mais prximos do arianismo, seu clero e bispos, e o controle sobre o patrimnio das igrejas. Essa mudana de religio implicava um risco poltico: a nobreza visigoda apoiava a hierarquia ariana e, em questes numricas, o nmero de catlicos era maior em comparao com o de arianos e, por fim, tanto os bispos arianos quanto os catlicos procediam de famlias importantes e dispunham de uma rede de relaes sociais e polticas, e tinham seus receios de perder influncia e prestgio local, principalmente os arianos que acreditavam ocorrer a transferncia desse poder para os catlicos.

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O informe da converso do monarca, em 587, deu incio a um perodo de negociaes e mudanas polticas, para S. Castellanos foi provvel que Recaredo estava consciente das reaes contrrias que sua deciso poderia acarretar e, mesmo assim, mostrou-se disposto a enfrentar os custos desse posicionamento (CASTELLANOS, 2007, p.151). O rei empreendeu uma poltica de pactos, contudo, os resultados no foram totalmente bem sucedidos. Estes fatores, entre outros, geraram certas oposies e apreenses a uma converso. Foi neste momento que a poltica de pactos de Recaredo atingiu o auge, como foi o caso de sua colaborao com relao ao bispo Masona, relatado nas Vidas dos Santos Padres Emeritenses (1956, p.231). As conjuraes contra Recaredo ocorreram entre os anos de 587 a 590, precisamente entre o anncio de sua converso pessoal e a proclamao do catolicismo como religio oficial do reino3. Houve reaes contrrias, com o intuito de recuperar a perda iminente de posio e poder. A celebrao de um conclio com os bispos arianos deixou claras as futuras intenes do monarca visigodo, pois, segundo Joo de Bclaro, o resultado desta assembleia foi que [...] habindose dirigido a los sacerdotes de la secta en una sabia conversacin, ms por la razn que por la fuerza, hace que se conviertan a la f catlica [...] (JUAN DE BCLARO, 1960, p.95). Apesar da colocao do biclarense, esta converso no foi to unnime, como j mencionamos anteriormente4. No dia 8 de maio de 589 foi realizado o III Conclio de Toledo. A iniciativa da celebrao desta assembleia e a proposta dos principais temas a serem debatidos, contidos no tomus regio, foram decises do monarca Recaredo. Este snodo contou com a participao de vrios bispos,Sobre o desfecho dessas conjuraes e a resposta de Recaredo a elas, veja mais em: CASTELLANOS, S. Op. cit., 2007, p. 153-165. 4 Mais informaes sobre estas revoltas contra a converso do rei Recaredo, ver em: CASTELLANOS 2007, p. 153-165.3

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eclesisticos de outras categorias inferiores, e diversos magnatas e nobres do reino. O conclio foi apresentado como o cenrio em que se convertia todo o reino visigodo, o qual, como foi revelado nos textos conciliares, compreendia literalmente Spania, Gallaecia (o noroeste, a zona do reino suevo5 conquistado quatro anos antes) e a Gallia (fazendo referncia provncia Narbonense). Desta forma que foi projetada, pelo poder rgio, a converso de toda a gens Gothorum (CASTELLANOS, 2007, p.215). Cabe destacar que, para melhor compreenso das caractersticas dos Conclios toledanos, faremos referncia a algumas contribuies do trabalho de G. Martinez Dez (1971, p.119-138) que traou algumas das formulaes ideolgicas que deram origem aos Conclios de Toledo, para tanto, seu enfoque voltou-se para as caractersticas poltico-religiosas que infundiram carter prprio a essas assembleias. O primeiro a ser destacado a natureza convocatria desses conclios, cuja iniciativa era do rei. importante evidenciarmos que esse elemento no foi uma particularidade do reino visigodo, mas uma prtica imperial e perdurou nos recm-formados reinos germnicos. Os conclios bizantinos tambm eram convocados pelo imperador, assim como os snodos de outros reinos romano-germnicos, como foi o caso dos francos e suevos. Os conclios toledanos no inovaram em relao aos Conclios Ecumnicos de Nicia, Constantinopla e Calcednia e os imperadores Constantino, Teodsio e Marciano, respectivamente, realizaram o discurso inaugural e orientaram em certa medida as deliberaes dessas assembleias. ACabe destacar que no foram apenas os visigodos que no III Conclio de Toledo passaram a professar o catolicismo, pois o tomus rgio tambm fazia referncia converso dos suevos. Mais informaes a respeito do reino suevo: SILVA, L. R. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do sculo VI O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niteri/RJ: UFF, 2008.5

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conduta de Recaredo perante o III Conclio de Toledo seguiu os precedentes desses imperadores. Segundo G. Martinez Dez:los pasos de los emperadores bizantinos que no se limitaban a convocar los Concilios ecumnicos o no ecumnicos, sino que les indicaban tambin el tema o temas en orden a los cuales tenia lugar la convocatoria (MARTINEZ DEZ, 1971, p.133).

A participao rgia nos conclios girava em torno de outros elementos, como: o discurso inaugural; a participao da Aula Rgia nas deliberaes; a determinao do calendrio conciliar; e a lei que confirmava os conclios. Alm de convocar os conclios, Martinez Dez chama-nos a ateno para o aspecto de que os monarcas indicavam o que deveria ser discutido nos mesmos e em diversas ocasies propunham resolues que deveriam ser tomadas. Em muitos casos, o rei recorria aos conclios para reforar algumas de suas decises, ou seja, a realeza buscava legitimidade fundamentando-se nessas reunies eclesisticas. Martinez Dez explica que esse comportamento por parte da Monarquia dependia da fragilidade do governante, isto , quanto mais ele buscava recorrer s assembleias religiosas mais refletia sua fraqueza. O discurso inaugural era entregue ao Conclio pelo rei, o qual continha uma espcie de agenda ou recomendaes que o monarca apresentava para serem acolhidas pelos membros presentes no snodo. Este escrito, nas fontes, recebeu o nome de tomus (MARTINEZ DEZ, 1971, p.128). Este documento no representava somente a lista de temas a serem abordados pela conveno, mas tambm chegava a propor as decises concretas que deveriam ser adotadas. A prtica do tomus foi inaugurada no III Conclio de Toledo (589) e continuou at o fim do reino visigodo. Nesse discurso inaugural, o rei Recaredo limitou-se a assuntos dogmticos e colocou-se como o intermediador da vontade divina:

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[...] hace muchos aos que la amenazadora hereja no permtia celebrar concilios en la Iglesia catlica, Dios, a quien plugo la citada hereja por nuestro medio, nos amonest a restaurar las instituciones eclesisticas conforme a las antiguas costumbres. (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.107).

Este novo contexto catlico inaugurado por Recaredo estava referendado pela Igreja, de maneira que a divindade aparecia como legitimadora do monarca. O tomus rgio, entregado ao III Conclio de Toledo por Recaredo atestava que Dios omnipotente nos ha encomendado asumir los poderes rgios para garantizar el beneficio de todos los pueblos del reino (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108). Esta postura do rei demonstra, perante a alta aristocracia do reino, que o conclio tinha sido uma vontade de Deus e que a ele era outorgado o poder rgio. Desta forma, o poder do rei estaria acima de qualquer outro, j que possua o respaldo da origem divina. A converso do reino, tambm serviu para criar algumas pontes entre o rei e o papa de Roma6. Aps essa fala inicial da realeza, o rei se retirava da cerimnia7. A nica exceo foi o III Conclio de Toledo, em que a participao de Recaredo foi constante ao longo da solenidade do evento, esta atitude se justifica pelas circunstncias especiais que esta assembleia estava promovendo a abjurao da heresia ariana. Terminado o seu discurso, o rei entregou escritos nos quais continham os problemas trinitrios, ao mesmo tempo em que se fazia afirmaes antiarianas, e confirmava que o Esprito Santo procede do Pai e do Filho eRecaredo enviou uma carta para o papa Gregrio Magno, para informar a converso de seu reino. O contedo desta carta foi editado por Jos Vives em conjunto com as Atas do III Conclio de Toledo. IDEM, ibidem, p. 144-145. 7 Mais informaes sobre o discurso rgio nos conclios de Toledo, ver em: MARTINEZ DIEZ, G. Op. cit., 1971, p. 119-138, p. 128.6

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que o Pai e o Filho so da mesma substncia (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.109). Foi agregado nas Atas que os bispos tinham a obrigao de conservarem unidos os povos dentro da nova f:No slo la conversin de los godos se cuenta entre la serie de favores que hemos recibido; ms an, la muchedumbre infinita del pueblo de los suevos, que con la ayuda del cielo hemos sometido a nuestro reino [...]. (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANOROMANOS..., 1963, p.110).

A abjurao do arianismo foi sancionada pelos bispos, o restante do clero e os principais magnatas visigodos, condenando seus dogmas, regras e ofcios de sua comunho e de seus livros, sendo pronunciadas 23 antemas, contra a heresia do bispo Ario (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANOROMANOS..., 1963, p.118-120). Na sequncia, os visigodos conversos pronunciaram a f dos Conclios de Nicia, de Constantinopla e da Calcednia (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.121122). O rei dirigiu-se, pela segunda vez, conveno, propondo introduzir em todo o reino a prtica oriental de rezar coletivamente o credo de Constantinopla, em voz alta, antes do Pai Nosso, em cada ocasio em que se celebrasse a comunho (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANOROMANOS..., 1963, p.125). Esta segunda parte das Atas conciliares conteve os 23 cnones disciplinares (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANOROMANOS..., 1963, p.124-133). Os bispos catlicos contriburam na maior parte da elaborao da legislao secular, ou seja, regulamentaram sobre matrias que no eram qualificadas apenas como eclesisticas. Suas decises no tinham, por si mesmas, fora de lei, apenas se convertiam em leis quando o rei sancionava essas resolues.

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Os Conclios toledanos tiveram fora de lei em suas decises que na maior parte dos casos estavam em comum acordo com a Monarquia e a Igreja. Recaredo sancionou uma lex in confirmatione concilii, para outorgar fora legal, no mbito civil, s disposies acordadas:Determinamos que todas estas constituciones eclesisticas que hemos resumido breve y sumariamente, gocen de estabilidad, conforme a la relacin ms extensa, contenida en los cnones. Si algn clrigo o laico no quisiere obedecer estas determinaciones, si se trata de un obispo, de un presbtero, de un dicono o de un clrigo, sea excomulgado por todo el concilio. Si se tratare de un seglar y fuere persona de elevada posicin, pierda la mitad de su fortuna en favor del Fisco. Y si fuera un hombre del publo perder sus bienes y ser enviado al exlio. Flavio Recaredo, rey, firme en confirmacin estos acuerdos que establecimos, junto con el santo concilio (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANOROMANOS..., 1963, p.135-136).

Esta interveno do poder civil no mbito religioso, no desvirtuou o carter eclesistico que estes snodos tiveram, mesmo porque os bispos tambm exerceram forte participao nos assuntos seculares. Nos cnones sancionados, encontramos a participao dos bispos em questes referentes administrao civil; como exemplo, o cnone XVIII que ordenava que, uma vez por ano, os Conclios provinciais tinham que reunir-se e que estivessem presentes neles os juzes e sacerdotes do fisco (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.131) e o XVII que autorizava os bispos, em conjunto com os juzes, a investigarem crimes e que sofressem castigos com severidade (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.130). O cnone XVIII do conclio teve uma importncia significativa, extraindo uma das primeiras consequncias poltico-administrativas da recmconquistada unidade religiosa; regulamentando, em nvel, territorial a colaborao entre a Igreja e o poder civil, por meio de conclios provinciais

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que aconteceriam todos os anos. A partir deste momento, eles seriam o rgo principal dessa ao conjunta. Cabe ressaltarmos que E. A Thompson apontam que, nos primeiros anos do reinado de Leovigildo, foram conhecidos apenas dois nomes de bispos visigodos catlicos, o cronista Joo de Bclaro e Masona de Mrida. Entretanto, assinaram nas atas do III Conclio de Toledo alguns bispos arianos conversos com nomes germnicos, mas boa parte dos bispos presentes no tinha sido ariana e alguns deles possuam nomes visigodos8. O reinado de Recaredo proporcionou para a Igreja no s um perodo de consolidao e fortalecimento como organizao eclesistica, mas tambm como proprietria de um patrimnio avultante em terras, gado, servos, etc. (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.127). Entretanto, a incorporao oficial dos prelados vida pblica da Monarquia visigoda deu-se, de modo definitivo, a partir do IV Conclio de Toledo (633), visto que o episcopado permaneceu praticamente integrado ao estamento dirigente do reino. Desta forma, segundo J. Orlandis, este foi o momento em que o episcopado se germanizou consideravelmente, em decorrncia do crescente nmero de prelados de nome e gerao germnica, muitos de descendncia nobre (ORLANDIS, 1988, p.233). Recaredo apareceu perante este snodo como o autor da converso do reino e, tambm, como o monarca catlico de todos os seus sditos, defensor dos interesses da nica Igreja do reino:Aunque el Dios omnipotente nos haya dado el llevar la carga del reino en favor y provecho de los pueblos, y haya encomendado el gobierno de no pocas gentes a nuestro regio cuidado, sin embargo nos acordamos de nuestra condicin de mortales y de de que no poemos merecer de outro modo la felicidad de la futura bienaventuranza sino dedicndonos al culto de la verdadera fe y8

Mais informaes, ver em: THOMPSON, E. A. Op. cit., 1971, p. 51-53.

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agradando a nuestro Criador al menos con la confesion de que es digno. Por lo cual, cuanto ms elevados estamos mediante la gloria real sobre los sditos, tanto ms debemos cuidar de aquellas cosas que pertenecen al Seor, y aumentar nuestra esperanza, y mirar por las gentes que el Seor nos ha confiado (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108-109).

A presena da nobreza laica nesta conveno, que foi a participao na Aula Rgia, no representou nenhuma questo controversa singular, suas assinaturas nas atas se restringiram condenao da heresia ariana. Alm desta atuao, outra funo dos leigos dentro destas assembleias era a de aprenderem. Apesar desta assistncia secular nas assembleias, os Conclios toledanos no perderam seu carter predominantemente religioso e eclesistico e os bispos sempre foram o principal elemento dessas conferncias. Segundo o relato do bispo Joo de Bclaro, Recaredo aparece como um novo Constantino e um novo Marciano, os imperadores que haviam reunido os conclios ecumnicos de Nicia e Calcednia. Caractersticas da influncia bizantina, em decorrncia de sua estadia nesta regio. O cronista visigodo fez um balano do ciclo histrico da heresia, que vai se encerrar no III Conclio de Toledo. Esse ciclo foi aberto com o Conclio de Nicia, em 3259, no vigsimo ano de Constantino, e se extinguiu no oitavo ano do imperador Maurcio, que correspondeu ao quarto ano do reinado de Recaredo (JUAN DE BICLARO, 1960, p.97-99). O bispo biclarense refora o paralelismo aplicando a Recaredo o ttulo de princeps, reservado apenas aos imperadores romanos, e qualificando christianissimus a Marciano e Recaredo, indicaes que assimilam o rei visigodo aos imperadores, tanto no mbito poltico como no religioso (JUAN DE BICLARO, 1960, p.97-99).

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Recaredo, nas atas conciliares, utilizou o nome Flavio, que era empregado desde o sculo I por vrios imperadores e, em particular, pela casa de Constantino no sculo IV. No foi casualidade, Constantino10 havia sido o primeiro imperador romano convertido ao cristianismo, e Recaredo era o primeiro rei visigodo convertido ao catolicismo. A Igreja visualizava o Recaredo como um novo Constantino. Em sua condio de imperador, Constantino era o pontifex maximus, que significava a mais alta instncia institucional em assuntos religiosos, um dos cargos mais antigos do mundo romano, que desde o comeo do sistema imperial assumiam os imperadores, costume que permaneceu at a segunda metade do sculo IV (SILVA, 2006, p.241-266). Constantino converteu-se ao cristianismo, porm no se batizou. Oficialmente, o Imprio no era ainda cristo, o que ocorreria mais tarde, mas indiscutvel que a partir desse imperador, produzindo-se desde ento a converso do mundo romano, uma transformao ocorreu paulatinamente e adquiriu fora no sculo IV. Na qualidade de chefe religioso, Constantino tentou resolver os problemas mediante a convocao de conclios, e essa prtica foi fortemente utilizada por seus sucessores para resolverem os assuntos poltico-religiosos (CASTELLANOS, 2007, p.38). Desta forma, Recaredo comporta-se como um autntico imperador romano-cristo. A convocatria do conclio, a entrega do tomus e a lex in confirmatione concilii foram competncias que os imperadores exerceram no mbito eclesistico e foram as mesmas funes desempenhadas pelo monarca visigodo (VALVERDE CASTRO, 2000, p.199). Outro mtodo por meio do qual os monarcas visigodos exerceram sua funo legislativa consistiu emMais informaes sobre o Conclio de Nicia (325): CASTELLANOS, S. Op,cit., 2007, p. 38-39. 10 Mais informaes sobre a vida do imperador Constantino: PALANQUE, J.-R. Constantino. Rio de Janeiro: Atlntica, 1945.9

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converter as decises conciliares em normas legais aplicveis em tribunais de justia do reino (VALVERDE CASTRO, 2000, p.228). Ao longo de toda a solenidade do snodo toledano no foi mencionado o nome do prncipe rebelde Hermenegildo, no sendo feita nenhuma referncia sua converso e nem sua morte herica pela f. O conclio foi encerrado pela Homilia do bispo Leandro de Sevilha que juntamente com o Eutrpio de Valncia foram os principais bispos da assembleia. O discurso de Leandro tratou de assuntos espirituais, no fazendo meno ao rei, talvez tenha sido em decorrncia de seu direto envolvimento com relao converso e sublevao de Hermenegildo (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p. 139-144.). Recaredo realizou uma autntica exibio do poder poltico que imitava a tradio imperial, na qual a legislao religiosa e a poltica eram conceitos difceis de discernir, tanto no perodo do Imprio pago como no cristo, posteriormente. Aps o III Conclio de Toledo, Recaredo tornou-se a cabea do novo reino catlico dos visigodos, com carga terica sagrada, em funo da sano poltica divina que foi revestida a autoridade real. A aliana estabelecida entre a Monarquia e a Igreja proporcionou um amplo elenco de disposies em torno desta perspectiva central da realeza crist, embasada na ratificao de Deus. Este iderio foi atribudo ao rei Recaredo, mas foram seus sucessores que desenvolveram a frmula que unia a figura do rei e a interveno da Igreja, tendo os conclios e as leis como importante referencial. A monarquia visigoda transformou-se em catlica e a Igreja lhe proporcionou uma slida base conceitual em que se fundamentou sua autoridade. Os prelados foram quem monopolizaram a cultura e elaboraram a teoria poltico-religiosa que serviu de base e legitimou a autoridade real, adquirindo os reis, desta forma, um substrato teocrtico e ideolgico. A partir de ento, o monarca visigodo que j era responsvel pelo poder temporal

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assume o compromisso dos assuntos espirituais, em virtude dele ter como dever supremo a direo da sociedade crist. Desta forma, a figura de Recaredo tornou-se o paradigma do bom prncipe que serviu de exemplo de conduta para a criao de um modelo ideal de monarca cristo para a posteridade. Presumia-se, com base no abandono do arianismo, a formao de uma societas fidelium Christi (KING, 1981), com Recaredo sendo chamado de sanctissimus (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963), mencionado como o seguidor de Cristo Senhor (VITAS SANCTORUM PATRUM EMERETENSIUM..., 1956), ou ainda, como um novo Constantino (JUAN DE BICLARO, 1960). Procurava-se ler a converso como uma atitude primordial, tentando atribuir-lhe um papel herico (ANDRADE FILHO, 2002). Na obra Histria dos Godos (624), Isidoro de Sevilha fez meno participao do rei Recaredo no III Conclio de Toledo:[...] A este concilio asisti el prprio religiossimo prncipe, y con su presencia y su suscripcin confirm sus actas. Con todos los suyos abdico de la perfdia que, hasta entonces, haba aprendido el pueblo de los godos de ls enseanzas de Arrio, profesando que en Dios hay unidad de trs personas [...]. (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.263).

O bispo sevilhano tambm fez uma descrio direta das qualidades do monarca:[...] Fue apacible, delicado, de notable bondad, y reflej en su rosto tanta benevolencia y tuvo en su alma tanta benignidad, que influa en el espritu de todos e, incluso, se ganaba el afecto y el cario de los malos; [...] restituy a sus legtimos dueos los bienes de los particulares y las propiedades de las iglesias, [...]. Fue tan clemente, que muchas veces exonero al pueblo de los tributos [...]. Enriqueci a muchos con bienes [...], guardando sus riquezas en los mseros y sus tesoros en los necesitados, sabedor de que el reino le haba sido encomendado para disfrutar de l con miras a la salvacin, alcanzando con buenos princpios un buen fin; y as, la fe de la

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verdadera gloria, que recibi al principio de su reino, la acrecent, hace muy poo tiempo con la profesin pblica de arrependimiento. (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.267).

O precedente de Recaredo tinha valor exemplar, mas a imagem do rei catlico foi se perfilando e enriquecendo ao longo do sculo VII, por influncia, sobretudo, de Isidoro de Sevilha e dos demais padres da Igreja isidoriana. Toda uma teoria acerca da realeza e do poder real, com um denso contedo moral, foi elaborando-se no decorrer dos acontecimentos histricos por obra dos conclios e das doutrinas poltico-crists (ORLANDIS, 1993, p.57) O preceito do bom monarca e do bom governo encontram-se, especialmente, nas obras Etimologias (ISIDORO DE SERVILHA, 1982) (612625?) e Sentenas (ISIDORO DE SERVILHA, 1971, p.226-227) (633?), do bispo sevilhano. Outro ponto importante sobre a realeza visigoda foi o carter de elegido de Deus que se atribuiu ao monarca (ORLANDIS, 1993, p.57). Como ministro de Deus, o rei visigodo tinha uma interveno primordial nas questes relacionadas vida interna da Igreja. No reino visigodo a deciso sobre a reunio do conclio geral era competncia do rei catlico, em virtude de ser a nica autoridade que estendia seu poder sobre todas as provncias do reino (ORLANDIS; LISSON, 1986, p.182-184). A renncia do arianismo gerou consequncias em todas as ordens. A unidade religiosa colaborou para a consolidao da unificao poltica dos territrios submetidos pela soberania visigoda. O abandono oficial do arianismo favoreceu a integrao populacional das comunidades visigoda e hispano-romana, como foi no campo militar. Com a categoria geral de sditos, sancionada no que o III Conclio de Toledo sancionou, os hispano-romanos puderam, desta forma, fazer parte do exrcito. Tal fato repercutiu tanto em benefcios do domnio do territrio como em aspectos de segurana do reino. Assim, todos os habitantes submetidos autoridade do rei visigodo passaram

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a formar parte de uma mesma ordem poltico-religiosa (VALVERDE CASTRO, 2000, p.170-171). Concluso No caso do III Conclio de Toledo (589), temos que ter em mente que foi um acontecimento previsto e programado com a finalidade de anunciar a converso dos visigodos ao catolicismo. A noo crist de realeza no reino visigodo alcanou sua plena maturidade no sculo VII, tanto em virtude das definies da doutrina poltica isidoriana como da obra legislativa levada a trmino pelos grandes conclios gerais de Toledo (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963). Como apontamos anteriormente, todo esse processo se iniciou com o III Conclio de Toledo (589) uma iniciativa do rei Recaredo (568-601) e da Igreja , episdio de fundamental importncia, pois esse snodo marcou a oficializao do catolicismo nicesta como religio do reino visigodo. Alm disso, percebemos que essa converso conferiu um novo carter Monarquia, contudo, esta ainda no alcanou uma consolidao e estabilidade total no reino. Com a converso, a monarquia passou a ter forte atuao nos Conclios gerais toledanos, pois a frequncia desses snodos construiu a imagem do que fora o catolicismo visigodo na Hispnia: uma prtica religiosa fortemente amparada em uma tradio jurdico-cannica. Realizadas com o objetivo de discutir questes pertinentes ao mbito da f e do poltico, as atividades conciliares acabaram apresentando-se como o espao de produo ideolgica decorrente da interao entre interesses monrquicos e eclesisticos. Para P. D. King, a homogeneidade em uma nica religio entre visigodos e hispanoromanos se converteu em uma poderosa fora, que atuou em favor da unidade do direito. O que mais contribuiu para fomentar a ideia de um direito

ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES

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territorial teve incio com o III de Toledo, em que a Igreja conseguiu sua expresso institucional (KING, 1981, p.35).

Referncias: AGUILERA, A. B. La sociedad visigoda y su entorno histrico. Madrid: XXI siglo veintiuno de Espaa, 1992. CASTELLANOS, S. Los godos y la cruz Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. bilnge (latim-espanhol) de J. Vives. Barcelona-Madrid: CSIC, 1963, III Toledo. COLLINS, R. La Espaa visigoda, 409-711. Barcelona: Crtica, 2005. DAZ y DAZ, M. Introduccin general. In: ISIDORO DE SEVILLA.