A Espiã de Monte Carlo

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A espiã de Monte Carlo Barbara Cartland Título original: “Mission to Monte Cario” Copyright: © Cartland Promotions 1982 Tradução: Maria do Rosário Sobral Copyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural — São Paulo Digitalização: Palas Atenéia Revisão: Sheyla Oliveira 1

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A espiã de Monte Carlo

Barbara Cartland

Título original: “Mission to Monte Cario”Copyright: © Cartland Promotions 1982Tradução: Maria do Rosário SobralCopyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural — São PauloDigitalização: Palas AtenéiaRevisão: Sheyla Oliveira

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CAPÍTULO I

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Um homem alto saiu da carruagem, que parou na frente do Ministério do Exterior.Assim que entrou, e antes que o empregado pudesse falar, um jovem usando

sobrecasaca apareceu apressado.— Sr. Vandervelt?O recém-chegado concordou.— O ministro está aguardando o senhor.— Muito obrigado — respondeu Craig Vandervelt.Foi encaminhado através dos imponentes corredores até a uma sala magnífica.Sentado a uma mesa na frente da janela que dava para o pequeno jardim de trás,

estava o marquês de Lansdowne, um homem bastante atraente, de cabelos grisalhos. Levantou-se assim que Craig Vandervelt foi anunciado, estendendo-lhe a mão.

— Só fiquei sabendo ontem que você estava em Londres, Craig. Estou encantado em vê-lo.

— Obrigado, senhor. Estou a caminho de Monte Carlo — respondeu Craig Vandervelt, como se quisesse avisar o marquês de que estava só de passagem pela Inglaterra.

Percebendo a insinuação, o ministro pediu:— Sente-se. Tenho muito que conversar com você. Craig deu uma risada.— Era disso mesmo que eu tinha medo! Sentou-se em uma poltrona, cruzando as pernas com um ar muito à vontade.O marquês observou-o, pensando que seria difícil encontrar homem mais indicado

para o que queria.O pai de Craig viera do Texas. Era astuto, inteligente e soubera transformar os

Vandervelt em uma das maiores fortunas da América. A mãe, filha do duque de Newcastle, havia sido uma das beldades de sua geração. Era natural que o único filho deles fosse não só bonito e atraente, como também muito inteligente; embora pouca gente soubesse disso.

Como não sentia necessidade de aumentar mais ainda a fortuna da família, Craig tinha se tornado um bon-vivant. Viajava sem parar, divertindo-se nas grandes capitais ou indo para lugares longínquos e desconhecidos, onde um homem vale por aquilo que é e não pela fortuna que tem.

— Estava pensando em você ainda há poucos dias — disse o marquês — e, subitamente, minhas preces foram atendidas. Soube que tinha chegado, e estava tentando descobrir como entrar em contato com você.

— Estou com meu primo, em Park Lane.— Agora já sei, mas passei horas de tormento tentando caçá-lo.— Assim, me faz sentir uma raposa — protestou Craig. — Como já lhe disse, estou

indo para Monte Carlo.— Era o que eu esperava. Disseram-me que a temporada está mais alegre do que

nunca e que as beldades da sociedade e do demi-monde, cobertas de jóias e plumas, estão deslumbrantes!

Craig deu uma gargalhada.— Noto uma certa inveja na sua voz, senhor. Devia me acompanhar até Monte Carlo.

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— Não havia nada que eu desejasse mais. Infelizmente, tenho que ficar aqui. Certamente, você vai encontrar o príncipe de Gales entre os visitantes reais que estarão jogando. Na verdade, se você não estivesse indo para lá, eu ia lhe pedir que cancelasse todos os planos e fosse.

— Fala como se houvesse um assunto urgente para resolver, senhor.— É muito urgente, e acredito que só você pode me ajudar.Craig não respondeu. Sabia que o ministro não lhe falaria assim, a não ser em caso de

um problema internacionalmente importante.Antes de ser nomeado para o Ministério do Exterior, o marquês de Lansdowne tinha

pedido a ajuda de Craig Vandervelt para resolver problemas que teriam aturdido aqueles que pensavam que o milionário americano vivia apenas em busca de prazer.

Foi o marquês quem percebeu que Craig estava ficando enfastiado com a vida que levava, principalmente com as mulheres que se atiravam a ele, como moscas no mel. Nessa ocasião, pedira sua ajuda para uma missão pequena, mas importante, referente à ambição alemã de supremacia na Europa.

Craig havia tido uma atuação tão brilhante que chegara a ser louvado não só pelo primeiro-ministro, mas pela própria rainha.

A partir daí, o marquês continuou pedindo a colaboração do jovem americano freqüentemente.

Craig deliciava-se com esses trabalhos secretos e tão diferentes da sua rotina habitual; embora, às vezes, se tornassem um passatempo muito perigoso. Por duas vezes escapara por um triz de ser baleado; em outra, de levar uma punhalada.

Tornara-se parte de sua vida contracenar com a morte, ele costumava dizer. Gostava daquelas emoções e sabia que, fosse o que fosse que o marquês lhe pedisse, aceitaria.

O marquês, contudo, parecia ter dificuldade em falar na nova missão de Craig:— Desculpe a minha hesitação. Não é que eu queira esconder alguma coisa de você,

mas estou encontrando dificuldades em lhe dizer o pouco que sei sobre o assunto. Não tive tempo de preparar um relatório antes de você chegar.

— A primeira coisa que deve fazer — disse Craig, sorrindo divertido —, é me dizer o nome do inimigo desta vez.

“Isso é muito importante”, pensou.Em outra missão não tinha recebido informações específicas sobre contra quem

estavam trabalhando e somente sua intuição o salvara de cair em uma armadilha fatal.— O problema é que no momento só tenho suspeitas, e não fatos que justifiquem

minha convicção de que você é imprescindível em Monte Carlo.— Então, vamos ouvir suas suspeitas — sugeriu Craig. — Tenho certeza de que, no

devido tempo, elas vão se confirmar através de algo mais mortal do que um arco e flecha.O marquês deu uma risada, sabendo, porém, que o assunto não era para brincadeiras.— A verdade, Craig, é que estou muito apreensivo com o que vou lhe pedir. Nossos

próprios agentes descobriram muito pouco e, para ser franco, os homens que temos agora em Monte Carlo não podem freqüentar as altas rodas, onde acho que estão sendo necessários.

— Até aí, não tenho nenhum problema!Era tão rico que o recebiam de braços abertos, onde quer que entrasse.Aos vinte e nove anos, lamentava não saber se reis e rainhas o acolhiam com tanto

entusiasmo por seu encanto pessoal ou se por causa de seu saldo bancário.— Você tem popularidade onde quer que vá, Craig. E essa é a sua grande vantagem,

no meu ponto de vista profissional — disse o marquês, como se lesse os pensamentos dele.

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Baixando a voz, continuou: — Acredito e espero que ninguém saiba que sua ligação comigo ultrapassa o parentesco que temos pelo lado de sua mãe. E que todos pensem que você anda por lugares estranhos apenas em busca de divertimento.

— Se não fosse assim, não teria durado muito tempo nas situações em que me envolvi.

O marquês franziu a testa.— Talvez eu esteja cometendo um erro pedindo tanto de você; mas não preciso lhe

dizer como tem sido útil e como estamos reconhecidos. Ninguém, ninguém a não ser você teria conseguido as informações que obteve e que nos salvaram de sermos envolvidos em circunstâncias desastrosas, que poriam em risco a paz mundial.

— Obrigado, senhor. E agora, que tal me contar exatamente o que quer?— Também gostaria de saber — respondeu o marquês. — Mas vou tentar dar-lhe as

linhas gerais. Como deve entender, nossa posição na índia parece ameaçada pelo avanço da Rússia na Ásia Central.

Craig concordou com a cabeça e o marquês continuou:— Como a Rússia estende sua soberania através do Afeganistão, aumentamos as

fronteiras da Índia para oeste e noroeste, o que é de conhecimento geral. O Tibete, que este-ve dominado pela China, continua independente e hostil com o exterior, mas estamos preocupados.

— Por quê? — perguntou Craig, inclinando-se para a frente.O marquês baixou ainda mais a voz:— O vice-rei nos mandou uma mensagem em código, dizendo que acredita que a

Rússia e a China assinaram um tratado secreto, dando à primeira direitos especiais sobre o Tibete.

— Isso parece impossível.— Concordo com você, mas lorde Curzon tem certeza de que a Rússia mandou

armas para o Tibete e suspeita que em breve seja deflagrado algum problema na fronteira da Índia com o Tibete.

O marquês ficou em silêncio e Craig comentou:— Pensei que queria que eu fosse para Monte Carlo.— E quero, porque soube que Randall Sare chegou lá há três semanas.— Randall Sare? Não posso acreditar! Nunca pensei que ele voltasse. Quando estive

com ele pela última vez, na Índia, me disse que tinha a intenção de passar o resto da vida no Tibete.

— Você me contou, mas evidentemente ele mudou de idéia. Como chegou a Monte Carlo sem entrar em contato conosco, só posso pensar que está se escondendo porque sabe demais.

— Mas por que Monte Carlo? Por que não voltou diretamente para a Inglaterra?— Não sei. Concordo que é uma atitude estranha, pois nunca soube que Sare

gostasse de jogo.— Não, isso seria impossível — afirmou Craig, recostando-se na cadeira, com a testa

franzida. — Só resta mesmo a hipótese de ele ter uma razão especial para desembarcar em Villefranche, onde o navio em que vinha deve ter parado. Mesmo assim, não entendo como foi até Monte Carlo.

— Não sei lhe dizer — afirmou o marquês. — É por isso que estou lhe pedindo, ou antes, implorando, que vá para Monte Cario o mais depressa que puder para achar Randall Sare...

— Quer dizer que sua gente ainda não entrou em contato com ele?

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— Não. Viram-no na rua, acho, mas o perderam de vista antes que pudessem falar com ele.

— Parece incrível e muito pouco eficiente — murmurou Craig.— Não deve censurar nossos homens precipitadamente. Como me explicou um deles,

foram ensinados a não interpelar alguém tão importante como Randall Sare sem estarem cercados de toda a segurança, nem sem saber primeiro se Sare estaria de acordo com essa aproximação.

— Entendo isso perfeitamente, senhor. Mas se, como suspeita, ele está de posse de informações tão importantes, deve preferir ficar escondido, até despistar alguém que o esteja seguindo.

— Foi o que também pensei. Ainda mais, por ter deixado o navio em que viajava. — O marquês fez uma pausa, antes de acrescentar: — O mar serve às mil maravilhas, quando alguém quer se livrar de uma pessoa.

— Concordo, mas não acredito que Randall Sare ainda continue em Monte Carlo, se está sendo perseguido há três semanas.

— Eu disse que ele chegou há três semanas e que foi visto uma semana depois. Só nessa ocasião um dos meus homens voltou para me contar a novidade e que tinha deixado outros dois tentando encontrá-lo. A esta altura, naturalmente, já devem tê-lo descoberto; mas, se não, só me resta rezar para que você consiga encontrá-lo.

— Desconfio que o senhor está sendo otimista. Conhecendo Sare como conheço, os locais onde pode estar escondido não são aqueles que costumo freqüentar quando vou a Monte Carlo — comentou Craig, cinicamente.

— Sei disso, e aí está a segunda parte desta missão.— E qual é?— O informante que voltou para me contar sobre Sare também disse que está

apreensivo com lorde Neasdon.— Será que eu o conheço?— Ele está há relativamente pouco tempo no Ministério do Exterior. Acho que você

não o conhece e penso que seria um erro muito grande deixá-lo saber que entre nós dois existe algo mais do que um parentesco distante.

— Claro — murmurou Craig.— Ele deve ser uns dez anos mais velho do que você. É um homem atraente e

trabalhou duro no corpo diplomático até conseguir a posição que tem agora. Como o meu antecessor o conhecia há muitos anos e era muito amigo dele, conseguiu que fizesse parte do quadro permanente aqui, enquanto pode servir na Europa.

— Entendo.— Neasdon é solteiro, embora eu não precise dizer que tem vários casos com as

beldades que circulam em Marlborough House.O marquês fez uma pausa que Craig não interrompeu, e depois continuou:— Agora soube que há uma nova mulher na vida dele e, pelo que ouvi dizer, ela pode

ser perigosa.— Quem é?— Chama-se condessa Aloya Zladamir.— Deve ser russa, não?— Acho que sim, embora aparentemente ninguém tenha certeza. Os russos daqui, de

quem mencionei o nome casualmente, nunca ouviram falar nela.— Creio que há mais de dois milhões de condes na Rússia. Deve ser impossível

alguém conhecer todos!

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— Isso só dificulta as coisas, Craig.— Então, terei que procurar Aloya Zladamir, além de Sare?— Exatamente! Estou consciente de que o interesse de Neasdon por ela pode não ter

importância, mas ao mesmo tempo os russos são muito espertos no que diz respeito à espionagem e a conseguir saber o que a gente não quer que eles saibam. Principalmente, em relação ao Tibete.

— Acha que existe alguma ligação entre Sare e a condessa?— Que eu saiba, nenhuma. Mas você é quem tem que descobrir. Não posso lhe dar

nenhuma carta de apresentação para Neasdon, seria muito evidente.— Estou certo de que não terei nenhuma dificuldade em conhecê-lo. — Ele tem muitos amigos em Monte Carlo que, estou certo, são os mesmos que você

tem. Tudo que lhe peço é que tente evitar qualquer indiscrição de Neasdon, se for o caso.Craig levantou as sobrancelhas, espantado.— Está mesmo sugerindo...— Estou simplesmente dando um palpite. Se puder escolher, qualquer mulher vai

preferir um jovem milionário americano a um par do reino inglês, aborrecido e sem muito dinheiro!

Craig desatou a rir.— Desta vez, descobri uma situação melodramática, muito mais apropriada para um

palco do que para o cassino de Monte Carlo!— Não fique tão seguro disso. Para ser franco, estou preocupado.— Por quê?— Só há dois dias descobri que, por um erro de excesso de zelo, um dos meus

subordinados informou Neasdon sobre nossos receios em relação ao Tibete e que temos agentes secretos mantendo-nos informados das atitudes da Rússia nesse pequeno e distante país. Tudo isso pode parecer um simples melodrama à primeira vista, mas, se Randall Sare está sendo seguido pelos russos e se Neasdon inadvertidamente revelar alguma informação importante à condessa, essa conjugação pode ser explosiva e capaz de deitar por água abaixo todo o trabalho de anos. E muitas vidas ficarão em perigo.

— Compreendo, senhor. De qualquer forma, será um prazer conhecer a condessa.— Disseram-me que é muito bonita — comentou o marquês, sorrindo.— Isso torna a missão ainda mais agradável. Era tudo que tinha para me dizer?O marquês levantou-se.— Tenho aqui os nomes dos nossos homens em Monte Carlo, mas como sabe, seria

prejudicial entrar em contato com eles; a não ser que seja estritamente necessário. Não devem ficar sabendo que você tem ligações conosco. Aliás, ninguém em Monte Carlo deve saber.

— Também prefiro assim — disse Craig. — Se há uma coisa de que não gosto é trabalhar com outras pessoas.

— Sei disso. Talvez seja essa a razão do seu sucesso. Mesmo assim, tome cuidado!Com uma expressão intrigada, Craig pegou a folha de papel que o marquês lhe deu.— Não me lembro de o senhor me ter feito essa recomendação antes.— Estou dizendo desta vez. Levo à ameaça russa muito, muito a sério. Acredito que

eles farão qualquer coisa para conseguir seus objetivos.— Quer dizer, a índia!— Claro. Já nos mostraram no Afeganistão como podem ser cruéis, e não há dúvida

de que todo o dinheiro, armas e incentivo às tribos da fronteira noroeste partiram de São Petersburgo.

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— E também não há dúvida de que, desta vez, minha missão é fora do comum e intrigante. Só espero não decepcioná-lo.

— Você nunca me decepcionou. E, por causa da sua posição de destaque na sociedade, não há ninguém melhor para me ajudar nesse caso particular. Se tiver que se comunicar comigo, faça-o pelos caminhos habituais. Estou certo de que o código que usamos antes ainda não foi descoberto.

— Espero que não! — Craig guardou o papel no bolso e estendeu a mão. — Obrigado, senhor. Era mesmo o que eu estava precisando neste momento. Nova York tornou-se monótona e Londres, a mesma coisa.

— O que quer dizer é que seu coração está livre. Felizmente para mim!Craig deu uma risada.— Nem sequer tenho certeza de ter um coração. Estou é aborrecido de ver sempre a

mesma paisagem. Uma mudança será muito bem-vinda.O marquês percebeu imediatamente que ele estava dizendo! que havia acabado

algum romance e ainda não encontrará uma substituta.Tinha ouvido muitas mulheres se queixarem de que Craig Vandervelt era cruel,

impiedoso e sem coração, e que sempre partia dele a iniciativa do rompimento, enquanto elas ficavam chorando e lamentando o fim do caso.

Como Craig só se envolvia com mulheres sofisticadas e casadas, não corria nunca o perigo de ser obrigado por algum pai furioso a levar alguma jovem ao altar, embora de vez em quando tivesse problemas com maridos ciumentos.

Mas com uma habilidade especial, sempre conseguia evitar escândalos.O marquês levou-o até a porta, lamentando sua juventude perdida e também não ter

aproveitado mais a vida, quando era da idade de Craig. Depois disse a si mesmo que, sendo um homem casado, não devia ter tais pensamentos!

Sabendo da importância de manter aquela conversa em segredo, assim que a porta se abriu, Craig falou, em um tom que pudesse ser ouvido do corredor:

— Então, adeus, senhor. Dê meus cumprimentos a sua família e diga que tenho muita pena de não vê-los desta vez. Espero poder voltar quando for para Nova York.

— Venha, sim. Divirta-se em Monte Carlo. Espero que ganhe no jogo.— Duvido — respondeu Craig, sorrindo. — Mas existem outras diversões além das

cartas.A insinuação era óbvia e o bom humor com que falou fez as pessoas que ouviram

sorrirem com cumplicidade.No dia seguinte, Craig Vandervelt partiu no trem para Dover.Viajava com um ajudante, dois criados e um secretário, um vagão inteiro tinha sido

reservado para ele e seu pessoal. Em Dover, tinha duas cabines no barco. E no expresso Calais-Mediterrâneo, ocupou novamente um vagão privativo.

Como de hábito seu secretário comprou todos os jornais e revistas que lhe interessavam e providenciou para que não faltassem bebidas e vários pratos preparados pelo cozinheiro-chefe de seu primo, em Newcastle House.

Craig sentou-se sozinho, pensando em tudo que ouvira do marquês e achando que o trabalho que tinha pela frente era emocionante.

Já estava fazendo quase um ano desde sua última missão e, embora soubesse que seria um erro envolver-se com muita freqüência com o marquês para evitar suspeitas, ansiava por começar a trabalhar de novo.

Cada vez estava mais enfastiado das pessoas que o recebiam de braços abertos em Londres, Paris e Nova York. Sabia que devia todos os convites à fortuna do pai, apesar de

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que por sua educação esmerada, a alta sociedade mundial o recebesse com todo o prazer.Mesmo os mais arrogantes aristocratas franceses lhe ofereciam hospitalidade, talvez

inicialmente por seu avô ter sido duque; mas logo se tornavam seus amigos quando conheciam seu encanto, o perfeito domínio da língua francesa e sua competência nos esportes que preferiam.

Era convidado não só para os bailes e recepções em Paris, freqüentados exclusivamente por franceses, mas também para caçar e velejar com jovens aristocratas que normalmente não aceitavam a presença de estrangeiros em seus passatempos.

Em relação às mulheres, as francesas não diferiam muito das inglesas ou americanas. Depois que o conheciam, não o largavam.

Às vezes, Craig dizia a si mesmo que eram as moedas de ouro que as atraíam, mas seria muita falta de modéstia de sua parte não reconhecer que elas também o achavam fasci-nante e um amante incomparável.

“Je fadore!”, murmuravam, e essa frase era repetida em quase todas as línguas.Era uma coisa que Craig nunca tinha dito a uma mulher. Nem se lembrava mais de

quando tinha jurado a si mesmo que nunca haveria de declarar amor a alguém, a não ser que essas palavras fossem profundamente sinceras.

Sua mãe, uma mulher linda e que ele adorava, lhe havia incutido esses ideais de romantismo e a convicção de que o amor entre um homem e uma mulher, quando profundo, era algo sagrado.

Lady Elizabeth, primogênita do duque de Newcastle, apaixonou-se por Cornelius Vandervelt quando ele foi para a Inglaterra, jovem, ambicioso, um americano típico, determinado a tornar-se milionário.

Pelos padrões europeus, já era rico. Mas, para ele, estava ainda no início da escalada, e ninguém o impediria de chegar ao topo.

Encontrou lady Elizabeth em uma festa em Londres e se apaixonou loucamente. Como em tudo que queria na vida, lutou até conseguir casar-se com ela.

Não foi uma tarefa fácil, porque o duque se opôs violentamente ao casamento. Mas Elizabeth, que sentia por ele um amor igual, insistiu até convencer o pai.

Tiveram um casamento feliz, até que ela morreu, quando o filho tinha apenas dezesseis anos. A essa altura já havia ensinado a Craig seus próprios ideais e seu desejo de perfeição. E ele sabia que, enquanto não encontrasse uma mulher tão bonita, tão doce e com a mesma nobreza de caráter da mãe, nunca se apaixonaria.

Era essa reserva que deixava suas amantes furiosas. Apaixonavam-se assim que o viam e entregavam-lhe o coração antes mesmo de ele se dar conta do que estava acontecendo. Evidentemente, Craig aproveitava tudo que lhe ofereciam, mas ao longo dos anos foi se enfastiando de ouvir sempre as mesmas perguntas:

— O que está errado? Onde foi que eu falhei? O que você quer que eu ainda não lhe tenha dado?

E era impossível explicar, impossível traduzir em palavras o que lhe faltava.Às vezes, quando uma mulher muito bonita lhe estendia os braços, com os olhos

brilhando de emoção, Craig pensava que tinha encontrado o que desejava, mas logo a seguir se desiludia e continuava a busca.

Claro que tudo isso era inconsciente, e chegava a pensar que sua vida era uma peregrinação que só teria fim no dia em que morresse.

Viajando para Monte Carlo, pensava mais em Randall Sare do que na condessa Aloya Zladamir.

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Ninguém melhor do que ele sabia da importância do trabalho que Randall fizera no Tibete para o governo britânico. Filho de um explorador e profundo conhecedor do Oriente, Sare tinha sido criado na Índia e no Nepal, antes de ir estudar na Inglaterra, onde havia se diplomado em Oxford.

Depois de terminar o curso brilhantemente, voltou para a terra onde nascera e que amava, tornando-se de valor inestimável para os ingleses naquilo que era conhecido como “O Grande Jogo”.

Por toda a Índia havia uma organização secreta de espionagem que recrutava e treinava homens, para a proteção do país e a paz do mundo oriental. “O Grande Jogo” era uma rede que se estendia pelo Afeganistão e envolvia não só europeus, mas também um grande número de indianos.

Em um livro secreto do Departamento Indiano de Inspeção, havia uma lista de números que representava a variedade de agentes secretos que os russos e outros inimigos freqüentemente descobriam, quando menos esperavam. Randall Sare tornou-se um desses números, e o brilhantismo com que desempenhava suas tarefas logo o transformou no mais importante da lista.

Para Craig, era inverossímel que Sare tivesse saído do Tibete e ido para Monte Carlo sem comunicar-se com os agentes ingleses de lá, que ele devia saber quem eram.

Tal como o marquês, começou a suspeitar que ele tivesse uma boa razão para manter-se escondido, o que era sinal de estar sendo seguido e ter a vida em perigo.

Como admirava Randall Sare e o estimava, só lhe restava rezar para ter sucesso e encontrá-lo o mais rapidamente possível. Não subestimava o risco que correria e que, eventualmente, poderia pôr em perigo a vida de Sare e a sua própria.

Só depois de analisar bem sua tarefa com relação a um homem que conhecia o Tibete melhor do que qualquer outro e que cujos segredos não teriam preço se caíssem nas mãos dos russos, é que se permitiu pensar na segunda parte da missão; a condessa Aloya Zladamir.

Neste caso, suas suspeitas também coincidiam com as do marquês. Se ela estava atrás de lorde Neasdon, devia ter uma boa razão. Não acreditava que Neasdon fosse tolo a ponto de não saber que, na sua posição, precisava ser muito cauteloso na escolha das companhias.

“Russos! Sempre os russos!”, pensou Craig, embora fosse amigo de alguns em Monte Carlo.

Os arquiduques, sempre fabulosamente ricos e a maioria muito interessante, tinham feito de Monte Carlo um paraíso para onde iam quando se fartavam da pompa de seu próprio país e dos problemas que pareciam aumentar no reinado de todos os czares.

Como aves migratórias, mas uma vez por ano, viajavam para Monte Carlo, onde possuíam mansões magníficas; cercavam-se das mais lindas mulheres, que cobriam de esmeraldas e pérolas, e jogavam somas astronômicas nos cassinos, para a felicidade das autoridades.

Não existia outro tipo de homem mais extravagante, ostensivo e ao mesmo tempo atraente.

Craig estava ansioso para rever o grão-duque Bóris e o grão-duque Michael, sempre cercados das mulheres mais sofisticadas da Europa.

Imaginou se a condessa Aloya estaria entre elas, apesar da sua intuição lhe dizer que não era provável.

Assim que o trem partiu para Nice, na manhã seguinte bem cedo, Craig ficou na dúvida se devia desembarcar lá e pegar o iate que tinha mandado vir de Marselha. Seria muito mais agradável seguir por mar até Monte Carlo do que fazer o resto da viagem no

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trem.Depois, pensando melhor, decidiu continuar no expresso, pois demoraria menos

tempo.Seu secretário apareceu, perguntando se precisava de alguma coisa. Mandou comprar

os jornais franceses que folheou até chegar a Monte Carlo.Na estação, uma carruagem aberta esperava por ele. Deixou os empregados tratando

da bagagem e seguiu sozinho, tirando o chapéu para sentir a brisa do mar e o calor do sol.Enquanto os cavalos desciam uma pequena ladeira que ia dar no porto, reparou na

quantidade de iates ancorados. Havia de todos os tipos e tamanhos, com as bandeiras de seus países tremulando ao vento. No meio de vários iates franceses e ingleses, percebeu dois russos, lado a lado, com a águia imperial hasteada.

A primeira coisa que precisaria fazer era descobrir a quem pertenciam.Assim que os cavalos começaram a subir em direção ao cassino, Craig olhou para

trás, como se os barcos russos o atraíssem e contivessem os segredos que estava tentando re-solver.

Como era solteiro, sempre que vinha a Monte Cario preferia hospedar-se no Hotel de Paris, em vez de alugar uma casa, e mandava vir seu iate. Assim, não se sentia preso, po-dendo viajar a qualquer momento ou ficar a sós com alguma sereia atraente, passeando pela costa da Itália por um dia ou dois.

No hotel, foi recebido com todo o respeito pelo próprio gerente, que o levou pessoalmente aos aposentos.

Eram luxuosos. Não só por serem os melhores, mas também porque, como Craig queria tranqüilidade, costumava reservar os apartamentos vizinhos do seu.

A sala estava repleta de flores. Embora não fosse habitual em um homem, ele gostava do perfume e detestava a frieza dos quartos de hotel.

Foi até a janela e viu que seu iate já havia chegado. Não tinha linhas particularmente bonitas, mas era equipado com todo o conforto necessário para viajar no mar. Como sua cabeça não parava nunca de trabalhar, Craig Vandervelt inventara uma série de dispositivos para seu barco, alguns dos quais já tinham sido copiados por outros proprietários de iates.

Satisfeito, pensou que poderia testar suas invenções mais recentes nos próximos dias, embora no momento o mais importante fosse descobrir a pista de Randall Sare.

Uma hora e meia depois, ao vê-lo sair ao sol, ninguém suspeitaria que Craig pudesse estar pensando em outra coisa além de aproveitar as frivolidades do pequeno principado de Mônaco.

Apesar de ainda ser cedo, muitos dos hóspedes importantes já estavam tomando sol, passeando no jardim atrás do cassino ou tomando aperitivos e mexericando no Café de La Paix.

Mal chegou à rua, Craig começou a ser cumprimentado por amigos e conhecidos.— Craig! Tinha certeza de que você estaria aqui! — exclamou uma mulher

encantadora, usando jóias e peles.Gaby Delys, a mais aclamada atriz parisiense, beijou-o no rosto.— Mon cher! Estou encantada em ver você!Craig beijou suas mãos macias e, pelo resto da manhã, foi de mesa em mesa, de

grupo em grupo.Estava habituado àquela acolhida, sempre certo de perceber um convite no olhar das

mulheres e uma provocação nos lábios.Finalmente sentou-se, tomando um aperitivo junto de Zsi-Zsi de La Tour, conhecida

como uma notável mexeriqueira, e perguntou:

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— Diga-me Zsi-Zsi, quem está em Monte Cario?— No que me diz respeito, monbrave, só existe você!— O que o grão-duque vai dizer? — comentou Craig, brincalhão.Ela encolheu os ombros.— Fica com ciúme, o que é ótimo para ele! Craig caiu na risada.— Não tenho nenhum desejo de estragar o tempo feliz que Sua Alteza Imperial está

tendo com você.— O que é uma maneira educada de dizer que você tem outro peixe para pescar.Zsi-Zsi era sempre imprevisível e, apesar de terem tido um caso cinco anos atrás,

continuavam muito amigos. Ele nunca ia a Paris sem visitá-la.Craig deu uma olhada em volta.— Vejo poucos rostos novos e muitos que já estão ficando velhos.— Que falta de amabilidade, Craig! Que diferença das palavras bonitas que você

costumava dizer.— Não estou me referindo a você, querida. Sabe muito bem que será eternamente

jovem e mais bonita a cada ano.— Agora melhorou. Que bom se fosse verdade! Pelo menos, Bóris ainda me acha

irresistível.— Fico satisfeito. Gosto dele e, pelo que vejo, tem-lhe dado lindas jóias.Craig olhava para as esmeraldas que Zsi-Zsi usava no pescoço e outra, enorme, no

dedo.Ela lançou-lhe um olhar provocante, antes de dizer:— Sabe qual é a jóia que mais adoro, de todas que me deram?— Não faço idéia.— O pequeno São Cristóvão que você me deu. Acredite que é verdade; trago-o

sempre na bolsa. Me dá sorte, é ó meu talismã no cassino.— Fico contente. E agora, vamos voltar à minha pergunta. Com quem posso me

divertir por aqui, uma vez que você está comprometida?— Deixe-me pensar. . . Como dizem os ingleses, creio que não quer cozinhar os

legumes na mesma água duas vezes.— Claro que não.— Agora, pensando no assunto, vejo que há mesmo poucas caras novas! — disse ela,

fazendo um muxoxo. — Há uma mas não faço idéia de onde veio.— Quem? — perguntou Craig, indiferente, olhando para as pessoas que passavam.— Ela se intitula condessa Aloya Zladamir, mas Bons diz que nunca ouviu falar nela.

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CAPÍTULO II

Quando Craig voltou para o hotel, dirigiu-se primeiro à recepção, para saber se tinha correspondência.

Enquanto o recepcionista verificava, deu uma olhada rápida no registro, aberto em cima do balcão.

Entre uma lista de celebridades, viu o nome que procurava.Gostou de saber que a condessa estava sob o mesmo teto, e quando o homem voltou

com algumas cartas dos Estados Unidos, Craig disse, casualmente:— Estou muito satisfeito com meus aposentos, mas espero que não tenham colocado

gente barulhenta no mesmo andar, como fizeram há dois anos.— Tenho certeza de que vai encontrar muita tranqüilidade, monsieur Vandervelt.— Espero que tenha razão — Craig comentou, um pouco duvidoso.O recepcionista olhou para o quadro das chaves.— Um dos hóspedes perto do senhor é o duque de Norfolk, que sempre se deita cedo,

e outro é o grão-duque de LichtensteimCraig fez um ar de quem estava mais ou menos satisfeito, e o recepcionista, ansioso

para agradar, acrescentou:— Outra é a condessa Aloya Zladamir, que acabou de chegar.— Acho que não ouvi falar nela — disse Craig, afastando-se com um ar indiferente.Conseguira descobrir o que queria e, fazendo outras perguntas ao garçom que lhe

serviu água no quarto, soube que o apartamento da condessa estava ligado aos seus aposentos. Isso queria dizer que a varanda da sala dela dava para o mesmo lado da dele, com uma vista magnífica do mar e do palácio no alto do promontório.

Craig tinha um convite para almoçar. Quando desceu para encontrar os amigos no bar do restaurante, ficou imaginando se encontraria a condessa e se seria capaz de reconhecê-la.

Conhecia várias russas muito bonitas e sempre achou que possuíam uma atração especial, que convidava ao romance.

O restaurante estava cheio de pessoas conhecidas que o saudaram, mas não viu ninguém que lhe parecesse ser a condessa.

Avistou lorde Neasdon, almoçando com dois cavalheiros, mas sem companhia feminina.

Depois da refeição, Craig teve uma certa dificuldade para desvencilhar-se dos amigos e, dizendo que precisava de um pouco de exercício, saiu a pé em direção ao porto.

Mas não foi para seu iate, e sim a uma pequena igreja, debaixo da ponte da estrada de ferro. Quem o visse, ficaria surpreso, porque era raro um jogador de Monte Carlo freqüentar aquela igreja.

A capela do santo devoto tinha sido construída no sopé de uma ravina; por isso, entrava pouca luz pelas janelas. Lá dentro, a única iluminação era a das velas colocadas em frente a uma imagem.

Craig dirigiu-se ao confessionário. Apesar de não poder vê-lo, o padre pressentiu sua presença e disse em latim:

— In nomine Patris et Filii, et Spiritus Sancti, Amen.Craig ajoelhou-se, encostou o rosto na grade e perguntou, em um sussurro:— É o senhor, padre Augustin? É Craig.Houve um silêncio de surpresa, antes que o outro respondesse:

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— Não sabia que tinha chegado, meu filho.— Cheguei há poucas horas.— É bom saber que voltou para junto de nós.— Estou contente de estar aqui, padre, mas preciso de sua ajuda.— Eu já devia ter adivinhado que havia uma razão atrás dessa visita — disse o padre,

em um tom brincalhão.— Procuro alguém que deve estar em grande perigo.— E pensa que eu o conheço?— Não tenho outra maneira de fazer contato, e o senhor me ajudou no passado,

evitando que um homem fosse morto.— Diga-me o nome do homem que está procurando.— Randall Sare.— Acho que não conheço.— Deve ter ouvido falar nele. O pai, Conrad Sare, era um profundo conhecedor dos

assuntos orientais. Os livros que escreveu foram lidos por todos que se interessavam pelo Oriente. Tenho certeza de que a maioria das bibliotecas dos mosteiros possui seu trabalho sobre o budismo.

— Agora já sei de quem está falando. É o filho dele que está procurando?— Soube que chegou a Monte Carlo há poucas semanas, mas penso que agora está se

escondendo.— De onde ele veio?Craig hesitou um pouco, mas depois, sabendo que podia confiar inteiramente no

padre, contou a verdade:— Do Tibete.Não havia necessidade de mais explicações. O padre Augustin era extremamente

inteligente e bem informado.— Vou fazer o que puder.— É tudo que lhe peço, e obrigado, padre. Tenho certeza de que seus pobres estão

precisando de uns poucos dólares americanos.— Não me agradeça enquanto eu não puder ajudá-lo. Volte aqui amanhã.— Voltarei. Queria que soubesse que o homem que ajudou está vivendo

confortavelmente perto de Nova York, muito satisfeito em ser cidadão americano.— Vou agradecer a Deus pela ajuda que me deu para poder salvá-lo.— Até amanhã, padre. Nem posso lhe dizer como estou grato por sua ajuda.Num tom mais alto, que podia ser ouvido da igreja, o padre disse:— Misereatur vestri omnipoteus Deus, et dimissis peccatis vestris perducat vos ad

vitam aeternam.Quando Craig saiu, havia apenas uma mulher rezando, e não pareceu notá-lo. Para

evitar suspeitas, ele foi até a imagem de Joana d'Arc, acendeu uma vela e deixou algumas moedas na caixa das esmolas.

Depois saiu para o sol, aliviado por ter dividido aquele problema com alguém. Nenhum de seus conhecidos poderia imaginar que fosse amigo de um padre católico; por isso, esperava não ter sido visto.

Não era provável, porque àquela hora todos os visitantes de Monte Carlo ou estavam repousando, ou já tinham começado a jogar na Sala Touzet, no cassino principal, hipnotiza-dos pela roleta. Craig estava satisfeito por não ter que ir até lá.

Assim que chegou ao cais, foi recebido com entusiasmo por seu capitão e pelo primeiro oficial, nitidamente contentes de terem saído para o mar depois de um inverno

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ancorados em Marselha.— Para onde tenciona ir, sr. Vandervelt? — perguntou o capitão, ansioso por zarpar.— Por enquanto ainda não sei; mas gostaria que tudo estivesse pronto para partir a

qualquer momento. Sabe que fico nervoso quando passo muito tempo no mesmo lugar.— Era o que eu esperava ouvir, senhor. As ilhas gregas são lindas nesta época do

ano.— Não me esqueci. Já instalaram todos os novos equipamentos que encomendei?— Sim, senhor. Estou ansioso para que os veja. Craig viu uma de suas invenções funcionando e depois deu uma volta pelo iate. Uma

nova idéia de fixar as mesas durante as tempestades também já estava instalada, além da nova cama de casal que comprara para sua cabine. Voltou para o convés.

— Vejo que há dois iates russos no porto. Será que pode descobrir a quem pertencem?

— Já perguntei, senhor — respondeu o capitão —, mas ninguém soube responder. Mas o iate do duque de Westminster é magnífico e o que está ao lado é do sr. Pierpont Morgan, que chegou na semana passada.

Craig ouvia e reparava que havia um espaço entre o iate do duque de Westminster e o primeiro iate russo.

— Estou muito interessado em saber se os russos estão tão avançados como nós. Acho que seria uma boa idéia sairmos para o mar agora e, na volta, mudarmos para o ancoradouro ao lado do primeiro iate com bandeira russa.

— Tenho certeza de que podemos arranjar isso, senhor. Vou falar com o capitão do porto.

Enquanto o capitão foi à terra, Craig ficou entretido inspecionando o iate.Chamava-se A Sereia, e ele próprio supervisionara toda a construção. Não gostaria

nada se outro daqueles barcos caros e bonitos tivesse uma tecnologia mais avançada ou fosse mais confortável.

O capitão voltou logo em seguida e, pela cara dele, Craig percebeu que o pedido tinha sido recusado.

— Lamento, sr. Vandervelt. Os russos não estão usando aquele ancoradouro no momento, mas o alugaram.

Craig fez um ar espantado, mas não disse nada. O capitão continuou:— Ele me disse que os melhores lugares, os que dão diretamente no cais, estão todos

reservados e que só esta manhã já teve três pedidos para aquela vaga e teve que recusar.“Quem chegar agora, terá que desembarcar primeiro em um bote, o que é

extremamente irritante”, pensou Craig.— Bem, pelo menos, você conseguiu este lugar. Agora, mostre-me a velocidade que

A Sereia pode atingir com o novo motor.Duas horas depois, Craig deixou o iate e voltou a subir a encosta que ia dar no

cassino.Tinha seu próprio carro em Monte Carlo e, embora ainda não o tivesse pedido, sabia

que o motorista estaria ansioso para vê-lo e também para entrar no Concurso de Elegância, que começara a ser promovido dois anos antes e fazia sempre um tremendo sucesso.

Pensando nisso, Craig lembrou-se de que todos os proprietários que iam concorrer deviam estar procurando beldades para se exibirem.

Os automóveis ficavam expostos em um terraço embaixo do cassino, onde eram examinados por um júri. Às três da tarde, saíam em procissão pelos jardins, seguindo até o stand onde os prêmios eram distribuídos. Depois, circulavam novamente pelo jardim e um

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prêmio era dado à senhora mais elegante que estivesse nos carros.Craig tinha ganho o Grande Prêmio de Honra no ano anterior. As regras do concurso

não permitiam segundo e terceiro lugares. Assim, eram atribuídos o Prêmio de Honra, o Grande Prêmio de Honra e o Primeiro Prêmio, sendo também mencionados os nomes das acompanhantes, seus cabeleireiros e suas modistas.

Isso desencadeava uma acirrada competição entre as senhoras e aqueles que as vestiam.

Lembrou-se, divertido, de que a beldade que o acompanhava tinha contado que aquele prêmio lhe rendera um ano de roupas em seu costureiro de Paris, pagando metade do preço ou mesmo de graça.

Como precisava encontrar uma mulher espetacular, foi até o cassino e entrou na Sala Touzet.

Em todas as mesas, havia mulheres lindas e elegantíssimas, com os olhos fixos nas cartas ou na roleta e prestando pouca atenção aos homens com quem estavam e aos que circulavam pela sala, procurando alguém para se distraírem.

O grão-duque Bóris fumava um grande charuto, enquanto Zsi-Zsi colocava uma moeda de ouro naquele que considerava seu número de sorte.

Craig sabia como Zsi-Zsi era supersticiosa. Não havia mais nada de novo por ali, tirando os talismãs que os jogadores usavam para tentar ganhar. Conhecia mulheres que levavam na bolsa a pele de uma cobra venenosa, uma garra de águia, um pé de coelho ou até mesmo a corda de um enforcado. Alguns homens colocavam uma colher de sal no bolso para dar sorte.

Sempre achara tudo isso ridículo. Tudo que um homem precisava era de intuição que o avisasse do perigo ou de problemas. No entanto, não podia fazer esse comentário com o grão-duque Bóris, que, como todos os seus compatriotas, acreditava que o que lhe dava sorte era uma mulher que ainda por cima podia ser cortejada.

— Como vai, Craig? — perguntou o grão-duque.— Satisfeito em vê-lo, senhor. Está se divertindo?— Isto estava um pouco monótono. Mas agora que você chegou, vou organizar uma

festa. Que tal amanhã à noite?— Terei muita honra.— Vou pedir a Zsi-Zsi que convide todos os seus amigos mais chegados, mas

nenhum dos seus inimigos, se é que tem algum.— Espero que poucos. E quanto mais longe estiverem, melhor.— Tem razão. É um homem muito popular, Craig, e como vejo que está sozinho,

teremos que arranjar uma beldade que o mantenha ancorado aqui por algum tempo. — Fez uma pausa, antes de acrescentar: — Vi seu iate no porto. Isso quer dizer que pode partir a qualquer momento?

Craig deu uma risada.— Vou ficar aqui por alguns tempos. Nova York está muito aborrecida e Londres

também não me apetece nesta época do ano.— Deve estar chovendo.— Tenho certeza de que está.Enquanto conversavam, atravessaram a sala e sentaram-se perto de uma janela

aberta.Imediatamente um garçom apareceu, perguntando o que queriam beber. O grão-

duque pediu uma garrafa de champanhe e perguntou a Craig:— Há uma mulher deslumbrante que eu nunca tinha visto antes, mas que parece já

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estar comprometida com um patrício seu; lorde Neasdon. Você deve conhecer, não é?— Creio que não. Como ele é?— Enfatuado. Acho muito estranho alguém tão atraente como a condessa Aloya

Zladamir achá-lo interessante.Craig ficou em silêncio por uns momentos.— Com esse nome, imagino que seja russa, não?— Acho que sim. Nunca conheci nenhum Zladamir, mas isso não quer dizer que não

existam.Craig deu uma risada.— Não se pode esperar que alguém conheça todo mundo em um país do tamanho do

seu!— Ela é muito jovem — continuou o grão-duque —, e ainda não consegui descobrir

se pertence à alta sociedade ou ao demi-monde.— Certamente que não lhe será difícil.— Tenho que admitir que essa mulher me intriga. Fui apresentado a ela e, quer você

acredite ou não, deixou bem claro que não estava interessada em mim!Craig riu do modo infantil do grão-duque falar. Sabia muito bem que conhecer Bóris,

bonito, rico, muito generoso e uma pessoa que dominava a sociedade de Monte Cario, era a ambição de todas as mulheres. Certamente, era a primeira vez que se interessava por uma beldade que não correspondia a seu entusiasmo.

— Pensei que, sendo sua primeira visita a Monte Carlo, ela estivesse desejosa de conhecer pessoas. Mas não! Ou é vista com Neasdon ou sozinha. — Continuou o grão-duque, ressentido.

— A explicação mais lógica é que está apaixonada por ele.— Não acredito. Neasdon pode ser um ótimo diplomata, mas tenho certeza de que

deve ser tão aborrecido na cama como em uma mesa!Craig riu novamente.— O que é muito condenável, especialmente sendo opinião de um perito como o

senhor.O grão-duque também riu.— Na verdade, estou fazendo uma tempestade em um copo d'água, mas realmente

fiquei irritado. Não diga nada a Zsi-Zsi; ela não sabe que tentei me aproximar daquela mulher.

— Sabe muito bem que não costumo fazer comentários.— Bem, vou tentar convidar a condessa para a festa de amanhã à noite. Assim, você

poderá conhecê-la. Mas duvido que ela vá.— Por que não convida Neasdon, sugerindo que ele a leve? — Eu devia saber que você arranjaria um jeito de resolver esse problema! Mas é

evidente! Está aí a solução! Neasdon deve ficar muito lisonjeado. Nunca o convidei antes.— Garanto que ficará encantado, senhor. Não se esqueça de fazer o convite aos dois.— Claro!Ficaram falando do Concurso de Elegância e depois o grão-duque quis conhecer o

Sereia.Ao voltar para o Hotel de Paris, Craig achou que tinha sido um dia proveitoso,

embora não tivesse conseguido fazer contato com as duas pessoas mais importantes.Quando chegou ao corredor de seus aposentos, viu à sua frente uma figura muito

elegante; uma mulher de andar gracioso, extremamente esbelta, que entrou em uma porta no fim do corredor.

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Soube imediatamente que era a condessa Aloya Zladamir.Que feliz coincidência! Os apartamentos eram ligados, o dela ficando junto do que

ele tinha alugado e que estava vazio.“Minha sorte não me abandonou. Não preciso de cobras, cordas de enforcados ou

gatos pretos!”Ficou lendo os jornais até a hora de vestir-se para jantar e depois desceu para juntar-

se aos amigos que encontrara no terraço em frente ao cassino, de manhã, e que o convi-daram.

Havia uma série de pessoas que Craig teria prazer em rever e algumas que queria evitar.

O príncipe e a princesa de Bragança, seus anfitriões naquela noite, eram encantadores e ela, muito bonita. O jantar seria para apenas dez pessoas e ocupavam uma das melhores mesas, junto das janelas que davam para o jardim todo iluminado.

Com as árvores também iluminadas, o céu estrelado e o luar banhando a torre do cassino, o lugar parecia encantado.

Craig imaginava se em qualquer outra parte do mundo se poderia encontrar pessoas mais bonitas e elegantes. Ali estava reunida a nata da sociedade de diferentes países. A conversa discorria-se em várias línguas ao mesmo tempo, interessante e variada. Todos riam e falavam na sala, até que, de repente, pareceu se ouvir uma exclamação coletiva de admiração.

Craig olhou para a porta, intrigado.A mulher mais bonita que jamais tinha visto acabava de entrar. Assim que

reconheceu seu acompanhante, percebeu quem ela era.Um dos homens da mesa murmurou:— Deus do céu! Aí está uma coisa que vale a pena olhar!Como já tinha reparado no corredor, ela era muito esbelta, mais alta do que a maioria

das mulheres e se vestira para causar sensação.Todas as outras damas usavam as cores da moda de primavera: verde, rosa, amarelo.

E a maioria, chiffon branco e tule. A condessa Aloya estava de preto. Um vestido simples e sóbrio, que lhe realçava as curvas suaves e a cintura estreita.

Ao contrário das outras, não usava muitas jóias. Grande conhecedor de mulheres, Craig sabia que ela não precisava. Sua própria pele, branca e macia, já era uma jóia. E os cabelos, tão louros que pareciam prateados, brilhavam tanto que dispensavam a ajuda de diamantes.

Só quando a condessa sentou-se a uma mesa próxima, ele reparou que usava apenas um broche, com um enorme brilhante da cor dos cabelos.

Era realmente linda. Tinha olhos enormes, amendoados, e cílios pretos e muito compridos. Embora não conseguisse ver a cor dos olhos, suspeitou de que deviam ser verdes. A condessa estava sentada de frente para ele e agora dava para reparar na perfeição de seu pequeno nariz e seus lábios.

Sem saber por que, teve a impressão de que sentia-se insegura e preocupada. Disse a si mesmo que estava imaginando coisas e ficou olhando para aquele rosto tão fora do comum, sem encontrar palavras que o definissem.

Por um momento a conversa na mesa morreu. Então, a princesa comentou:— Tenho que admitir que ela é surpreendente. Ontem à noite usava um vestido

branco, e parecia uma deusa grega. A única jóia era um colar de pérolas quase do tamanho de um ovo de pomba.

— A senhora a conhece? — perguntou Craig.

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A princesa sacudiu a cabeça, sorrindo.— Meu marido ainda não sabe bem se devo conhecê-la.Craig riu.— O grão-duque Bóris tem a mesma dúvida. Não me parece um enigma muito

comum em Monte Carlo.— E não é mesmo. Mas garanto-lhe que todos os homens desta cidade estão tentando

descobrir o segredo da esfinge. E todas as mulheres, incluindo eu, têm esperança de que não consigam tão cedo.

Craig riu novamente.A conversa foi voltando ao normal, mas ele não conseguia tirar os olhos daquela

mulher.Reparou que lorde Neasdon falava o tempo todo — um monólogo bem aborrecido,

disso estava certo — e que ela demonstrava prestar muita atenção, embora não tomasse ati-tudes provocantes, como todas as outras mulheres na sala estavam fazendo.

Deu uma olhada e viu La Belle Otero, uma das cortesãs mais famosas de Paris, enfeitiçando os homens em sua mesa. Levantavam os copos sem parar, brindando em sua homenagem, e deviam estar prometendo aumentar a preciosa coleção de jóias que ela possuía.

Na primeira vez que a viu, Craig achou que seria difícil encontrar mulher mais deslumbrante. Não ficou surpreso quando lhe disseram que as cúpulas do novo Carlton Hotel, em Cannes, tinham sido moldadas parecendo os seios de La Belle.

Em outra mesa, estavam La Juniery, cuja cama tinha o formato de uma enorme concha, e Gaby Delys, que normalmente usava uma profusão de pérolas, cada volta mais comprida e valiosa do que a outra.

Mas todas essas mulheres se apagavam diante da beleza da condessa Aloya, e Craig não conseguia descobrir o que a fazia tão diferente.

Depois de observá-la durante um bom tempo, viu que não eram só suas feições perfeitas, ou os olhos exóticos, ou os cabelos penteados para trás e presos com simplicidade.

Era algo mais profundo, qualquer coisa que emanava dela, como se a transcendesse.Achou que ela brilhava como se estivesse envolta em luz.Disse a si mesmo que estava apenas influenciado pelo que o marquês de Lansdowne

lhe havia contado, mas a verdade era que durante todo o jantar não conseguira olhar para outro lado.

Resolveu que precisava conhecê-la. Mal podia esperar pelo dia seguinte, para saber se Neasdon a levaria à casa do grão-duque.

Fez o possível para que alguém o apresentasse a ela quando foram todos para o cassino, mas não conseguiu.

Pensou em dirigir-se pessoalmente a Neasdon e apresentar-se, dizendo que o marquês de Lansdowne lhe tinha dito que deviam se encontrar em Monte Carlo. Mas não queria tomar essa atitude. Ao mesmo tempo, não encontrava outro meio de falar com lorde Neasdon e sua acompanhante. Eles estavam na Sala Touzet, mas nenhum dos dois jogava.

Sentados a uma mesa, conversavam e bebiam champanhe. Embora Neasdon falasse sem parar, ambos pareciam pouco animados.

Craig ia de mesa em mesa, conversando com os amigos, fazendo de conta que prestava atenção nos números que saíam nas roletas ou observava o bacará, mas no íntimo sentia-se frustrado e sem saber o que fazer.

No passado, esse tipo de problema tinha sido fácil de resolver. Na verdade, não se lembrava de alguma vez ter que esperar para conhecer alguém, especialmente uma mulher.

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Embora por várias vezes parasse perto da condessa, ela não lhe prestou a menor atenção. Não levantava os olhos para reparar nele ou em quem quer que fosse. Simplesmente escutava lorde Neasdon, fazendo um comentário ocasional ou gesticulando um pouco com a mão esquerda.

“O que posso fazer?”, perguntava-se Craig, até que, à meia-noite e meia, a condessa levantou-se.

Neasdon fez um ar de quem lhe pedia para ficar mais um pouco, mas ela se dirigiu para a porta, imperturbável, e Craig resolveu segui-la.

A condessa pegou uma capa de veludo verde no vestiário feminino e, colocando-a nos ombros, saiu.

Como um autômato, Craig continuou atrás dela, vendo-a descer a escada e levantar o rosto para admirar o céu e o luar.

Lorde Neasdon teve que correr para alcançá-la e, juntos, entraram no Hotel de Paris.Sem ao menos pensar que devia ter-se despedido dos amigos, Craig foi atrás,

mantendo uma distância prudente.Ao chegar ao corredor de seu andar viu que a condessa estava novamente sozinha,

como de manhã.Fosse qual fosse seu relacionamento com Neasdon, de uma coisa tinha certeza; não

eram amantes. O lorde nem sequer estava hospedado no mesmo hotel, e sim no L'Hermitage, o segundo melhor hotel de Monte Carlo.

Craig ficou uns instantes sentado na sala, pensando. Depois, movido pelo instinto, foi até a varanda. A noite de primavera estava fria e a vista para o porto e o promontório era muito bonita.

As estrelas e o luar refletiam na água tornando-a prateada, o que o fez lembrar-se dos cabelos da condessa.

Nesse momento, ela apareceu na varanda, suspirando. Não percebeu a presença dele. Estava sem casaco e ficou apoiada no parapeito, olhando para o céu, Craig teve a impressão de que estava rezando.

Passado um pouco ele disse, suavemente:— Sempre achei que esta é uma das vistas mais lindas do mundo.Ela endireitou-se, virando o rosto para ele, e desviando-o imediatamente.— Eu. . . eu não sabia.. . que o senhor estava... aí! Ficaram em silêncio por alguns instantes.— Sempre tenho a sensação de que esses iates lá embaixo estão irriquietos no cais,

ansiosos por partir para uma aventura que os espera para além do horizonte.Falou como se contasse uma história de fadas a uma criança, e ela, entrando na

mesma fantasia, respondeu:— Era o que eu adoraria fazer; viajar para longe e. . . nunca mais voltar!— Nunca mais voltar para este mundo ou para Monte Carlo em particular?— Para. . . Monte Carlo.Pelo tom dela, Craig sentiu que tinha respondido em um impulso.Como se estivesse arrependida disso, acrescentou:— Preciso entrar. Disseram-me que as noites aqui podem ser muito traiçoeiras.— É verdade, mas a temperatura hoje tem estado amena e, a não ser que esteja com

frio, não creio que vá lhe fazer mal.— Espero que não!Craig teve a sensação de que ela não falava de si mesma.— Claro que os mais velhos têm que tomar cuidado com o clima, que muda bastante.

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Por causa do vento que sopra dos Alpes, à noite esfria bastante.Ela prendeu a respiração e depois disse, como se falasse sozinha.— Se isso é verdade, quando se vem de um clima quente é preciso tomar ainda mais

cuidado.— Naturalmente. Lembro-me de uma vez que fiquei em Monte Carlo, quando vinha

da Índia, e passei uns dias de cama por culpa minha.— Esteve na índia?— Várias vezes. É um país pelo qual sinto uma grande e profunda afinidade.— Tenho certeza de que, se a gente for lá uma vez, nunca mais esquece — disse a

condessa.— Não, mesmo. Quando estou na índia, penso sempre como somos loucos em não

escutar aquilo que a terra nos diz.Ela virou-se para ele, surpresa.— No Oriente, tudo é muito... diferente. Onde é que esteve na Índia?Craig riu.— Acho que será mais fácil dizer onde não estive. É um país tão belo que seu

encanto nos fascina. A partir do momento em que pisamos o solo indiano, começamos a aprender e não paramos nunca.

— Como sabe e como pode pensar dessa maneira?— Eu poderia fazer a mesma pergunta. E já que a Índia nos apresentou um ao outro,

há muitas coisas mais que eu gostaria de conversar com a senhora.A condessa pareceu entusiasmada, mas, olhando para o Porto, disse, insegura:— Tenho que ir me deitar. Boa noite, senhor. Sem esperar resposta, entrou no apartamento, fechando as janelas.Craig ficou quieto, imaginando o motivo daquela atitude e a razão daquele tremor na

voz. Então, ouviu alguém falar no quarto dela.Por um momento, pensou que fosse um homem. Depois, enquanto tentava entender,

as janelas se abriram e alguém fechou as persianas.Era uma empregada. E parecia falar em russo.

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CAPÍTULO III

Craig decidiu que no dia seguinte tentaria obter mais informações sobre os iates russos que estavam no porto.

O contato com a condessa até tinha sido satisfatório, mas o que o preocupava realmente era Randall Sare.

Desde que o conhecera na índia, aos vinte e um anos, Sare era para ele um herói, alguém que admirava mais do que qualquer outro homem no mundo.

Havia sido o vice-rei quem lhe falara dele primeiro, com respeito e admiração, dizendo que aquele homem tinha qualquer coisa especial.

O cargo de vice-rei da Índia era tão importante quanto o de qualquer outro dirigente. Não havia rei ou imperador que tivesse mais poder, nem governante branco que vivesse com mais pompa e suntuosidade.

Evidentemente, os ingleses levavam os seus jogos para onde iam, e o esporte acima de todos. Os jovens soldados, cheios de bravura e energia, passavam todos os momentos livres praticando os esportes de seu país de origem.

Assim que Craig Vandervelt chegou à Índia, com a aura de fortuna que o envolvia, inevitavelmente, foi levado para assistir às corridas de cavalos em Calcutá.

O dia mais importante do ano na capital era o dia da Taça do Vice-Rei. O hipódromo estava cheio de belas e importantes senhoras da Inglaterra, da América, enfim, de toda a parte do mundo, e para Craig tudo aquilo teve um encanto inesperado.

Uma vez aceito pelos ingleses como sendo um deles, foi levado para caçar, o que na Índia consistia numa matilha de cães de caça ajudados por um terrier que os incitava a perseguir o chacal, alce, javali, lebre, veado, hiena ou o que houvesse para caçar.

Depois de demonstrar que era tão bom caçador como cavalariço, levaram-no para jogar pólo, e logo estava jantando no Palácio do Governo, na mesa dos oficiais do mais importante regimento.

Foi nessa ocasião que ouviu falar pela primeira vez no “Grande Jogo”. Muito pouco, mas o suficiente para lhe despertar a curiosidade.

Como tinha uma excelente memória, além de uma curiosidade insaciável, foi ouvindo daqui e dali, até o assunto começar a fazer sentido.

Só quando o vice-rei falou em Randall Sare, é que Craig fez umas perguntas que foram respondidas com ambigüidade.

Pelo que lhe disseram, Sare era um estranho, extraordinariamente inteligente, mas que preferia misturar-se com os nativos e não com os europeus.

De início, Craig pensou inocentemente que os nativos fossem os rajás e marajás, que recebiam luxuosamente em seus palácios e cuja hospitalidade qualquer inglês gostaria de aceitar. Depois, alguém lhe contou que Randall falava todos os dialetos conhecidos na Índia e que freqüentemente desaparecia meses a fio, sem que ninguém soubesse o porquê e onde estava.

Foi por acaso que o encontrou em Simla e começou a conhecer e admirar aquele homem.

Sare tinha um rosto inesquecível. Habitualmente assumia várias identidades, disfarçando-se sem o auxílio de maquilagem, usando apenas conhecimentos e uma experiência de vida.

Craig ficou impressionado com ele e o procurou na segunda viagem que fez à Índia. Como esperava, não só era a pessoa mais interessante que conhecia, mas também uma mina

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de informações em todos os assuntos, principalmente aqueles que representavam um enigma para o Ocidente, como as castas e as crenças hindus.

Foi nessa ocasião que Craig entendeu como homens como Sare podiam amar um país, do mesmo jeito que um homem ama uma mulher.

A Índia tinha um modo de vida maravilhosamente complexo, que escondia segredos que inspiraram algumas das maiores religiões do mundo.

Aos vinte e quatro anos, Craig estava preparado para tornar-se discípulo de um grande homem que ele considerasse mais do que todos. No pouco tempo em que estiveram juntos, aprendeu com Randall Sare mais do que a maioria das pessoas aprende em uma vida inteira.

Três anos atrás, em sua terceira visita à Índia, Sare lhe dissera que estava indo para o Tibete.

— Para quê? — perguntou Craig.— Estou convencido de que os russos estão anexando, um após o outro, os khans da

Ásia Central e querem controlar toda a fronteira norte da índia.— Não pode ser!— Eles já estão construindo uma estrada de ferro que atravessa a Sibéria até o

Extremo Oriente. Soube que também estão construindo outra no Turquestão e... — Fez uma pausa. — ...Planejando a anexação do Tibete.

— Pensei que não era permitido a ninguém entrar nesse país.— Creio que seria muito difícil impedir o avanço dos russos. Se é isso que eles

querem fazer, farão.— Como poderemos impedir?Randall sorriu, o que lhe deu uma atração toda especial.— É exatamente o que vou descobrir.Quando se despediram, Craig sabia que haveria de se passar muito tempo antes de

voltar a ver o amigo, se é que voltaria.Agora, se a suspeita do marquês era verdade, Sare não só tinha voltado para a

Europa, como desaparecido em Monte Carlo. Parecia inacreditável que ele deixasse a índia sem que o Ministério do Exterior fosse informado e desembarcasse logo em um lugar conhecido como o mais frívolo, extravagante e vicioso de toda a Europa.

Bispos e padres de todos os credos protestavam continuamente contra o vício que dominava a “cidade do jogo”.

Apesar disso, o cassino de Monte Carlo era patrocinado por quase todas as cabeças coroadas e a ameaça do fogo do inferno não surtia resultado.

Só havia uma explicação possível para a presença de Sare ali; não se sentira capaz de chegar à Inglaterra e não tivera outra alternativa.

“Preciso encontrá-lo. Preciso.”Imerso em seus pensamentos, Craig passou todo o almoço distraído, o que provocou

queixas tanto de sua linda anfitriã, como da senhora que estava a seu lado.As reclamações fizeram com que se lembrasse imediatamente de que não estava

desempenhando o papel que esperavam dele.Pediu desculpas, alegando uma ligeira dor de cabeça, e voltou a ser a pessoa

divertida, inconseqüente e alegre de sempre. No fim do almoço, as duas estavam mais apaixonadas do que nunca.

Tinha um convite para ir jogar tênis, mas já havia jogado com um profissional, de manhã cedo.

— Tem que entrar no campeonato, senhor — disse-lhe o profissional.

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Esse campeonato começara três anos atrás e ele já havia pensado era inscrever-se na taça individual masculina, oferecida pelo príncipe de Mônaco. Mas, pensando melhor no assunto, achou que tinha coisas mais interessantes e mais importantes para fazer do que colecionar troféus. Além disso, gostava mais de jogar sem platéia.

Como era muito bom jogador, contratou um profissional para jogar com ele todas as manhãs, enquanto estivesse em Monte Carlo. Assim, teria as tardes livres para cuidar de sua missão. E a primeira providência era ir falar com o padre Augustin.

Como na véspera, foi a pé até a capela. Depois do barulho e da confusão do hotel, sentiu uma paz que parecia transmitida pela fé daquele local.

Dirigiu-se rapidamente ao confessionário, onde sabia que o padre Augustin esperava.Ajoelhou-se e, automaticamente, o padre pronunciou as palavras em latim que

iniciam cada confissão.Quando disse “Amém”, Craig perguntou:— Tem alguma notícia para mim?— Poucas, meu filho, mas você não me deu muito tempo,— Mas já soube de alguma coisa?— Soube que o homem que procurava estava escondido num certo lugar da cidade,

duas semanas atrás.— Não está ferido ou doente?— Não me disseram; apenas que estava se escondendo. O esconderijo é um lugar

normalmente usado pelos procurados pela polícia ou que têm outras razões para não serem vistos.

— Ele ainda está?Percebeu imediatamente que a resposta seria desapontadora.— Pelo que pude descobrir, foi embora.— E disseram para onde?— É o que estou tentando averiguar. Mas, como deve compreender, não é fácil fazer

muitas perguntas nesse tal lugar, onde os homens vão para se esconder e cujas identidades são sempre secretas.

— Compreendo. Mas por favor, padre, tente descobrir mais. É muito importante.— Estou tentando, meu filho, estou tentando. Se eu me mostrar muito curioso,

inevitavelmente as portas que devem ficar abertas, vão se fechar.Craig sabia que era a pura verdade.— Fico profundamente agradecido, padre. Esse homem é de grande importância para

a humanidade e preciso salvá-lo.— Tenho rezado muito a Deus, pedindo Sua ajuda.— Então, por favor, continue. — Fez uma pequena pausa e acrescentou: — Tenho

uma coisa que pode ajudar a soltar a língua dos que sabem a resposta às nossas perguntas. Onde devo deixar?

O padre Augustin ficou em silêncio por um momento.— Há uma coroa de flores em frente da imagem da santa. Não era preciso dizer mais

nada.— Quando devo voltar outra vez?— Amanhã, as confissões serão um pouco mais tarde; só devo estar aqui ao

anoitecer.— Será melhor ainda — disse Craig.Esperou o padre Augustin dar a bênção em latim e levantou-se, fechando a cortina do

confessionário.

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Havia mais gente na igreja agora e, com um sobressalto, viu a condessa Aloya ajoelhada perto dele. Estava de mãos postas e olhava com fervor para o sacrário, totalmente absorta. Pelo menos, parecia estar.

Craig não conseguiu ir embora. Foi sentar-se ao lado dela. Não se ajoelhou; apenas baixou a cabeça, como se rezasse.

Tentava descobrir o que lhe diria, quando, sem se mexer, ela falou, baixinho:— Por favor, não fale comigo. Há alguém me observando.Qualquer outro teria olhado para ela, surpreso, mas Craig tinha sido treinado em uma

escola onde qualquer movimento em falso poderia significar a diferença entre a vida e a morte. Ficou quieto por alguns instantes. Depois, como se acabasse de rezar, levantou-se sem olhar para a condessa, fez uma genuflexão e dirigiu-se lentamente para a imagem da santa à qual a capela era dedicada.

Santa Devota, padroeira de Mônaco, nascera na Córsega em 283 d.C. Os pais eram pagãos, mas seu nome cristão a fez crente da nova fé. Durante as perseguições aos católicos, foi torturada, suportando tudo rezando e sorrindo. Quando morreu, sua alma foi para o céu em forma de pomba.

A mesma pomba apareceu no barco que levou seu corpo para Mônaco, onde foi colocado num rochedo. Nesse mesmo lugar, tinha sido erguida a capela.

Poucas pessoas que vinham jogar em Monte Carlo conheciam o santuário, mas Craig, que gostava de saber das origens de tudo, aprendera a lenda e nunca mais se esquecera.

Ficou parado algum tempo, olhando a imagem de uma jovem com uma pomba na cabeça. Só então reparou na coroa de flores colocada diante da santa. As folhas verdes de videira, os cravos cor-de-rosa e brancos e a fita de cetim eram tão comuns que não chamavam a atenção.

Craig ajoelhou-se e colocou rapidamente um envelope em baixo da coroa. Depois levantou-se e saiu da igreja, sem pressa.

Como já esperava, enquanto estava junto da imagem da santa deixando uma soma considerável para o padre Augustin, a condessa tinha ido embora.

Estava certo de que fizera isso de propósito, para que quem a estivesse observando não o visse; ou, pelo menos, o visse apenas de costas.

Era exatamente o que ele faria em seu lugar, e, pensando no assunto, ficou admirado com a astúcia dela.

Na porta da igreja, Craig demorou de novo, pegando e folheando alguns livros de oração e fingindo ler um folheto que informava o horário das missas.

Só saiu de lá quando teve certeza de que a condessa já não podia estar por perto.Agora, tinha muito em que pensar.Na noite anterior, era óbvio que ela ouvira a empregada russa entrando no quarto.

Essa empregada devia tê-la acompanhado até a igreja, o que era normal; ou então, tinha outro tipo de guarda-costas.

Craig estava tão intrigado que não conseguiu pensar em outra coisa a tarde inteira. Ansiava por vê-la novamente.

Só então se lembrou de que o grão-duque Bóris daria uma festa naquela noite. Será que lorde Neasdon iria? E ela?

Já eram quatro horas e Craig tinha certeza de encontrar o grão-duque no cassino.O lugar estava cheio, como habitualmente antes do jantar. Dirigiu-se diretamente

para a Sala Touzet, onde viu, aliviado, o grão-duque sentado à mesa de bacará, jogando uma fortuna.

Enquanto Craig observava, Bóris perdeu a pilha de moedas de ouro e notas que tinha

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à sua frente, e levantou-se com um ar totalmente imperturbável.Estendeu a mão para Craig.— Venha, meu amigo, vamos tomar uma bebida. Estou precisando.Craig não fez nenhum comentário sobre o jogo, sabendo que os jogadores detestavam

isso, mesmo os parabéns quando ganhavam, porque diziam que dava azar.— Ainda é muito cedo para eu começar a beber. Estou me guardando para sua festa

desta noite, se é que vai mesmo haver.— Claro que vai haver! Zsi-Zsi convidou todos os seus amigos, se bem que acho que

a maioria deles já sabe que você está entre nós.— Pelo seu jeito de falar, parece que, como Lúcifer, eu caí do céu.— Boa analogia — brincou o grão-duque. — Acho que pelo simples fato de você ser

tão rico, Craig, todos que o conhecem ficam endemoniados. Principalmente, as mulheres.— Discordo. Mas não importa, e desde já lhe agradeço pela festa. Conseguiu

convencer Neasdon a aceitar o convite?Não queria parecer muito interessado.— Aceitou como um salmão esfomeado. Nunca o tinha convidado antes e duvido

que o fizesse, a não ser com um bom motivo por trás.— Ele vai levar a condessa?— Disse que sim, o que me pareceu estranho. Afirmou com tanta certeza, que creio

que nem lhe perguntará se ela quer ir ou não.— Evidentemente, Neasdon tem um encanto escondido que nós não conhecemos.— Se tiver, garanto-lhe que sou um péssimo juiz do ser humano, o que nunca

acreditei que fosse. De qualquer modo, esta noite você vai ver a condessa e talvez descobrir por que anda grudada em Neasdon. Pode não acreditar, mas nunca a vi falando com mais ninguém desde que chegou e isso me parece muito esquisito.

Craig concordou, mas, como podia levantar suspeitas interessar-se muito pela condessa, mudou de assunto. Depois, dando uma desculpa, voltou ao hotel.

Em seus aposentos, resistiu ao impulso de ir até a varanda que dava para o apartamento da condessa.

Primeiro, porque não queria que nenhum de seu criados soubesse que a conhecia; segundo, porque se a condessa estivesse no quarto, a empregada russa deveria estar com ela.

Mas por que parecia ter medo da empregada e por que era tão importante que não falasse com ela na capela?

Não conseguia encontrar resposta. Enquanto se vestia para o jantar, teve a sensação de que ia começar uma aventura excitante, tão imprevisível que não podia nem ao menos imaginar o que estava para vir.

Era um pressentimento que não tinha há muito tempo, mas que já sentira no passado, quando estava em perigo ou quando o marquês o incumbia de missões estranhas.

Adorava tudo aquilo, tão diferente da vida irresponsável que levava em Nova York e em Londres.

Sabia agora que, para ter sucesso, precisaria de todo o poder místico para o qual costumava apelar nas horas de emergência.

Interessado em saber mais sobre os iates russos, conversara com o gerente do hotel, antes de subir para seus aposentos.

O gerente do Hotel de Paris era um dos homens mais bem informados de todo o principado. Fazia parte de seu trabalho saber não só todos os antecedentes de cada hóspede, mas também dos clientes habituais do cassino, uma vez que trabalhava em conjunto.

O que as autoridades mais detestavam era um escândalo ou um suicídio, tomavam

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todas as precauções possíveis para evitar qualquer coisa que pudesse manchar a reputação de Monte Carlo. Se fosse de todo impossível impedir, o incidente devia ser abafado, rápida e discretamente.

Monsieur Bleuet era um homem discreto, além de ter uma inteligência viva e brilhante que não deixava escapar nada. Craig estava certo de que para o gerente, ele não passava de um milionário americano em busca de divertimento. Por isso, precisava tomar muito cuidado com o que falava.

— Espero que esteja confortável, monsieur Vandervelt. Posso ajudar em alguma coisa?

— Vim exatamente dizer-lhe que estou muito bem instalado e que foi muita amabilidade sua reservar-me os mesmos aposentos onde fiquei nos últimos dois anos.

Monsieur Bleuet sorriu.— Tentamos sempre fazer com que nossos clientes favoritos sintam-se em casa, e

para isso é importante que ocupem o mesmo apartamento e, se possível, sejam atendidos pelos mesmos empregados.

— É uma preocupação muito agradável. Eu também queria que me dissesse alguma coisa sobre os dois iates russos que estão no porto. — Sorriu e acrescentou: — Pode parecer mera curiosidade, mas estou ansioso para saber se são novos e compará-los com meu próprio iate, que gosto de pensar que é o melhor que existe.

— Sempre ouvi dizer, monsieur Vandervelt, que o Sereia faz inveja a todos os proprietários que estão no porto, com seu motor excepcional e todos os novos equipamentos que o senhor instalou.

— No ano passado, estive a bordo do iate do duque de Westminster e sei que não se compara com o Sereia. A mesma coisa acontece com o do sr. Pierpont Morgan. Aliás, o iate dele está velho; é mais do que hora de comprar um novo.

Monsieur Bleuet riu.— E pode muito bem comprar outro.— Acho que quando uma pessoa começa a envelhecer se apega às coisas que tem.

Entendo isso muito bem e creio que o senhor também. Mas para mim, no que diz respeito a iates e automóveis, quanto mais novos, melhor.

— Eu diria o mesmo em relação às mulheres, monsieur!— Isso já é outro assunto — disse Craig. — Estávamos falando dos iates russos.— Claro. Lamento dizer que nunca estive a bordo de nenhum deles e não conheço

ninguém que já tenha ido lá.— Então. Os proprietários não recebem?— O proprietário, monsieur.— São do mesmo dono?— Pertencem ao barão Strogoloff. Ele é inválido.— Ah, isso explica tudo!— Não, exatamente. O barão tem qualquer problema nas pernas e usa uma cadeira de

rodas. Passeia pelo tombadilho e também vem ao cassino.— Para jogar?O gerente sacudiu a cabeça.— Não. Disseram-me que ele gosta muito de música; por isso, vem assistir aos

concertos e às óperas.— Então joga?— Monsieur le baron nunca entrou na sala Touzet, o que para nós é um grande

desgosto, como deve compreender. Ele é fabulosamente rico. Assim, quando for embora,

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levará o dinheiro todo com ele!Craig deu uma risada.— Isso é uma tragédia! Mas ele deve ser muito excêntrico para precisar de dois iates.— Monsieur le baron usa um e o outro é para os convidados e para aqueles que o

servem.— Que luxo! E que tal são os convidados dele?— O senhor não vai acreditar, mas ficam a bordo e não saem nunca.— Não é possível!— Nós também achamos e, quando temos reuniões oficiais, passamos a maior parte

do tempo discutindo sobre o barão.— Não duvido. E o que o príncipe Albert pensa de tudo isso?— Ainda não tivemos o privilégio de falar sobre isso com Sua Alteza Real. Mas

agora que tocou no assunto, acho que ele, e somente ele, conseguiria convencer o barão a ser um pouco mais sociável.

— Duvido. Esses russos são sempre imprevisíveis, e o senhor pode agradecer a Deus por termos entre nós esse encantador grão-duque Bóris.

— Concordo plenamente, monsieur Vandervelt. Temos sorte, muita sorte. Como o grão-duque Bóris me dizia ainda ontem, quando ele volta para a Rússia, fica contando os dias até poder voltar para nós. Para o “lar longe do lar”, como chama Monte Carlo.

A deferência do gerente deixou bem claro para Craig quanto o grão-duque contribuía para os altíssimos lucros do cassino todos os anos.

Sabia bem que os acionistas estavam se tornando milionários e os outros lugares do mesmo tipo rangiam os dentes de raiva, pelo sucesso conseguido por Monte Carlo.

Ainda ficaram conversando um pouco, mas, deliberadamente, Craig não fez menção a condessa.

Para agradar o gerente e aumentar seu próprio prestígio, falou como estava satisfeito em encontrar tantos visitantes distintos, como o príncipe Radziwell, que tinha comprado seus pôneis de pólo, o duque de Montrose e a linda duquesa de Marlborough, que era americana.

O gerente tinha algum pormenor interessante a dizer sobre cada um deles, mas Craig, que já sabia o que queria, nem prestou atenção.

Quando chegou ao quarto, ficou algum tempo na janela, olhando para os dois iates russos, lado a lado, no cais.

A mansão do grão-duque era um verdadeiro sonho oriental, uma mistura do gosto russo (com cúpulas e abóbadas e uma profusão de ouro) com todo o conforto ocidental; sofás e poltronas imponentes, cortinados de veludo e quadros que qualquer apreciador de arte daria um braço para possuir.

Cada tapete oriental no chão era uma maravilha, e os ornamentos de ouro que decoravam a mesa de jantar tinham um valor incalculável; não só pela antigüidade, como pelas maravilhosas pedras preciosas que só as minas da Sibéria poderiam dar.

Havia orquídeas por todo lado, mas, como todos os convidados eram muito elegantes, não ficavam apagados pelo luxo que os cercava.

Como sempre, antes de uma festa, o grão-duque dava um jantar para cerca de cinqüenta amigos. Os conhecidos chegavam por volta da meia-noite, só saindo quando amanhecia.

Craig olhou ao longo da mesa, com um serviço de ouro e copos de cristal que brilhavam como diamantes, mas não viu nem a condessa, nem Neasdon.

Era o que esperava. Mesmo assim, ficou desapontado. Queria vê-la, talvez para

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confirmar que era tão linda como parecia na véspera.Parecia incrível que não a tivesse visto o dia inteiro, a não ser rezando na igreja, e

ficou imaginando onde se esconderia quando não estava com Neasdon.Observando bem os presentes, Craig soube finalmente a que categoria o grão-duque

achava que ela pertencia. Todos os homens eram muito importantes, autênticos aristocratas, com exceção dele próprio. E as mulheres, extremamente bem vestidas, sem dúvida nenhuma pertenciam ao demi-monde.

Isso não queria dizer que não fossem companhias deliciosas, tanto em público quanto em particular. Por causa da profissão, tinham maneiras tão elegantes quanto sua aparência e obedeciam sempre a um código de honra de nunca colocar em cheque seus protetores, tentando conhecer a família deles.

Craig sabia por experiências passadas que o comportamento delas numa mesa de jogo era exemplar e que nunca faziam cenas, como às vezes as senhoras da sociedade provocavam.

Como era de esperar, as cocottes usavam jóias valiosas. Os vestidos, dos melhores costureiros de Paris, na maioria desenhados por Frederick Worth, poderiam ser usados em qualquer palácio real.

Mesmo em Monte Carlo, onde as regras sociais eram menos rígidas, as mulheres de vida livre nunca tentavam ultrapassar a linha que as separava da alta sociedade.

Além de Belle Otero e Gaby Delys estavam presentes umas poucas de sangue azul, que, por amor, tinham abdicado da suas posições sociais.

Craig reconheceu uma marquesa que fugira de um marido bêbado e bruto para viver “em pecado” com um duque francês, que já tinha mulher e vários filhos. Também a filha de um conde inglês muito conhecido, que se divorciara duas vezes e continuava suficientemente encantadora e bonita para arriscar o terceiro marido.

Craig já estava mais do que habituado com aquilo tudo e gostava do ambiente, mas teria sido muito melhor se a condessa Aloya Zladamir estivesse lá.

Resolveu então ter paciência até o jantar acabar e os outros convidados do grão-duque chegarem, e esforçou-se para ser agradável com seus vizinhos de mesa.

Assim que entraram no grande salão, onde tinham estado antes do jantar, Craig viu a condessa. Estava em pé junto a uma janela, olhando para o jardim iluminado com milhares de pequenas velas, cujas chamas dançavam ao vento, e lindas lanternas chinesas penduradas nas árvores.

Sentia-se o aroma das mimosas floridas, e Craig, vendo o perfil da condessa recortado contra o céu, pensou que seria impossível existir mulher mais linda.

Achara que, depois da entrada triunfal da véspera no restaurante do Hotel de Paris, vestida de negro, não conseguiria voltar a causar tanta sensação. Mas agora, vendo-a em um vestido prateado como o luar, sentia que estava ainda mais espetacular.

Com o brilho do luar de um lado e a iluminação dos candelabros do outro, parecia envolta em prata líquida, como uma ninfa etérea e irreal.

Ficou olhando para ela, sem aproximar-se. Quando a condessa voltou-se para o grão-duque, que foi cumprimentá-la, reparou que a única jóia que usava era uma magnífica estrela de diamantes no alto da cabeça, que lhe realçava ainda mais o prateado dos cabelos.

Ao vê-la fazer uma reverência ao grão-duque, pensou que não existia ninguém mais graciosa.

Lorde Neasdon, recebido afavelmente pelo anfitrião, estava nitidamente satisfeito.Uma orquestra de vinte violinos tocava no salão ao lado, e na cabeça de Craig tudo

aquilo parecia um sonho.

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Havia também outra sala, com mesas de jogo, onde os convidados podiam perder seu dinheiro sem ter que ir ao cassino. As convidadas, ansiosas, levavam seus companheiros para a roleta ou para o trinta e quarenta, que era um meio mais rápido de perder ou ganhar.

Era praxe o cavalheiro oferecer metade de seus lucros à senhora que o acompanhava e, além disso, daria também o dinheiro necessário para ela jogar, se assim desejasse.

O grão-duque afastou-se de lorde Neasdon para ir cumprimentar outros convidados e a condessa olhou novamente para o jardim, enquanto Neasdon falava com ela.

Craig decidiu que, se queria ser apresentado formalmente, teria que tratar disso imediatamente.

Essa decisão ficou facilitada quando viu Zsi-Zsi, que nessa noite fazia as honras de anfitriã, sozinha por um momento.

Embora todos soubessem que ela vivia com o grão-duque em Monte Carlo, enquanto a mulher ficava na Rússia, Zsi-Zsi era aceita por grande parte da alta sociedade por ter sido casada com um respeitável conde francês. Por isso, mesmo que Bóris recebesse apenas a alta sociedade, Zsi-Zsi estaria presente.

Aproximando-se dela, tomou-lhe o braço, dizendo:— Você me fez ficar curioso com a recém-chegada. Agora, o mínimo que pode fazer

é me apresentar a ela.— Não acho boa idéia. É evidente que ela pertence a lorde Neasdon, e há muitas

mulheres aqui que me imploraram uma oportunidade de estar com você; inclusive a dama que estava sentada à sua direita durante o jantar.

— Continuo querendo conhecer a condessa. Zsi-Zsi encolheu os ombros.— Muito bem, já que insiste. Mas não me culpe se levar um fora como o que o pobre

Bóris recebeu, embora ele tente manter isso escondido de mim!— Vou arriscar. E se a minha moral ficar muito arrasada, sempre posso recorrer a

você para me consolar.— Esteja certo de que terei muito prazer — disse Zsi-Zsi, brincalhona.Enquanto falavam, Craig foi levando-a através do salão para onde estavam a

condessa e lorde Neasdon.Assim que chegaram, a condessa virou a cabeça e olhou para Zsi-Zsi.“Timidamente”, pensou Craig.Depois, achou que era ridículo pensar assim. Devia ser um truque para valorizá-la

aos olhos de uma mulher mais velha e principalmente diante de qualquer homem.— Que bom vê-la, condessa! E, lorde Neasdon, Sua Alteza Real está encantado em

tê-lo conosco esta noite. Há muito tempo que esperava conhecê-lo.— É muito gentil, madame.— Como é a primeira vez que é nosso convidado, insisto em abrir o baile com o

senhor. A orquestra está tocando o Danúbio Azul. Que dança poderia haver mais maravilhosa para começar a nossa amizade?

Zsi-Zsi sorria para lorde Neasdon. Nenhum homem resistiria àquele convite, mas, diplomaticamente, ele hesitou, olhando para a condessa.

— Céus! Esqueci-me! — exclamou Zsi-Zsi. — Madame Ia contesse, deixe-me apresentar-lhe o sr. Craig Vandervelt, que vai cuidar da senhora enquanto danço com o encantador lorde Neasdon. — Fez uma pausa, antes de lhe dizer, teatralmente: — O sr. Vandervelt é americano. Mas, como é também muito rico, nós o desculpamos por viver nessa longínqua parte do mundo.

Falou rindo e sua voz soou como a trinar de um canário alegre. Sem dizer mais nada,

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levou Neasdon pela mão, para o salão de dança.Craig aproximou-se da condessa e ficou olhando para ela.— Esperei tanto por este momento! E, como temos muito para dizer um ao outro e

não quero ser interrompido, podemos ir lá para fora?

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CAPÍTULO IV

Craig teve a impressão de que a condessa iria recusar. Depois, olhando nervosa por cima do ombro, verificou se lorde Neasdon a observava.

Mas ele já tinha desaparecido no outro salão. Subitamente aliviada de qualquer opressão que Craig não podia entender, saiu depressa para o jardim.

Havia pouca gente passeando no gramado. Quando passavam, debaixo de umas árvores, Craig pegou seu braço, levando-a para onde havia menos luz.

Conhecia bem o jardim do grão-duque e sabia onde encontrar bancos confortáveis, com coxins de seda e caramanchões discretos.

Foram andando em silêncio, ele sempre com medo de que a condessa protestasse. Mas percebeu que ela também sentia que ali estariam em segurança.

Sentaram-se e ele olhou em volta para verificar se estavam sozinhos.— Finalmente posso conversar com você, como tanto queria — falou, em um tom

que todas as mulheres achavam irresistível. Mas ela nem o olhou.— Sobre o que quer conversar?— Sobre você — respondeu Craig. — Mas é difícil saber por onde começar.— Acho que não temos nada a dizer um ao outro.— Eu tenho muito para falar. Mas, primeiro, quero saber por que e de quem você tem

medo.Notou que ela ficou tensa, e depois disse, rapidamente:— Por favor, creio que é melhor voltarmos. Tenho certeza de que lorde Neasdon vai

querer dançar comigo.— Ele mal começou a dançar com nossa anfitriã, e não há dúvida de que ela é a

mulher mais deslumbrante da festa, excluindo você. Não acho que ele esteja com pressa de mudar de par.

Enganou-se, pensando que a acalmaria. A condessa parecia mais tensa do que antes, apertando as mãos com força. Craig inclinou-se para ela, dizendo, suavemente:

— Deixe-me ajudá-la. Se tem problemas, prometo que a libertarei desse medo que está sentindo agora.

— Ninguém pode me ajudar — disse, tão baixo que mal se ouviu.— Por que não? — Ela não respondeu. — Sei que há alguma coisa errada, muito

errada. Você é a mulher mais linda de Monte Carlo. Todo mundo está ansioso para conhecê-la, todos os homens querendo ajoelhar-se a seus pés. Mesmo assim, está cheia de medo, e tenho que acabar com isso.

— Por favor, não fale desse jeito comigo! Preciso desesperadamente de ajuda, mas não posso pedir a você. . . nem a ninguém.

— Acredite, sou a única pessoa que pode ajudá-la. — Ela virou o rosto e ele insistiu: — Nós dois estivemos na índia. Sabemos que podem acontecer coisas estranhas que o mundo ocidental desconhece; e que essa certeza possibilita a duas pessoas se conhecerem profundamente, mesmo que estejam a quilômetros de distância uma da outra.

Ela não disse nada, mas estremeceu.— Sei que precisa de mim e que sou a única pessoa que poderia ajudá-la. Acho que

você também sabe disso.Olhou para ele e respondeu, aturdida:— Como pode falar comigo assim? Como é capaz de entender?

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— Sabe muito bem a resposta. Não temos necessidade de perder tempo com explicações um ao outro.

— Mas como pode estar tão seguro? Você é um homem que nunca vi antes.— Mesmo assim, me avisou de que seria perigoso falar com você esta tarde, na

igreja. Por que faria isso, se me considera apenas um estranho?— Eu... eu não. Estou assustada, terrivelmente assustada. Ainda assim, não me atrevo

a confiar em você.Havia um tom de desespero nas palavras dela. De propósito Craig esperou um pouco,

antes de dizer, suavemente:— Não dê ouvidos a sua cabeça, ouça apenas seu instinto; como faria se estivesse na

Índia.Ela respirou fundo e, sentindo uma confiança súbita nele, perguntou baixinho:— E se alguém estiver escutando?— Aqui? Não é nada provável. Mas se alguém a está seguindo, diga-me por quê.— Eu... não posso — respondeu, quase em um soluço. — Eles estão me espreitando,

estão sempre me observando. Embora às vezes não os veja, sei que estão.— Quem são eles? E por quê?Percebeu que ela não ia dizer nada; estava apavorada e não conseguia pensar com

clareza.— Escute, entendo suas dificuldades melhor do que pensa. Só quero que se lembre

de que estou aqui, que posso e quero ajudá-la como ninguém mais poderá fazer.Ela não respondeu e novamente desviou o olhar.— Seu apartamento é ligado ao meu. Assim que voltar ao hotel, vou destrancar a

porta de comunicação do meu lado. Se precisar de mim, a qualquer hora, coloque uma folha de papel debaixo da porta e eu abrirei sem que ninguém fique sabendo. — Vendo que ela prestava atenção continuou: — Ou, se preferir, poderemos falar na varanda. Mas só quando você achar que é seguro.

— Obrigada, não vou me esquecer. Mas, por favor, não vá novamente à igreja à tarde. Eles podem descobrir que os nossos apartamentos são juntos.

— Entendo. Se me dissesse quem são eles, seria mais fácil para mim ajudá-la.— Não, não... eu não posso dizer. Por favor, esqueça que estivemos conversando —

disse, em pânico.— Na verdade, acho que quem falou fui eu. Mas ao menos você sabe que estou aqui,

disposto a ajudá-la. Farei qualquer coisa para afastar as lágrimas de seus olhos.Mesmo na penumbra, viu um sorriso triste nos lábios dela.— Tenho que voltar. A dança deve ter terminado.— Ande devagar e naturalmente. Se, como receia, alguém a estiver observando, vai

pensar que tem alguma coisa para esconder, se correr.Enquanto andavam pelo gramado, ela falou em um tom muito diferente:— Como deve ser maravilhoso ter um jardim como este e saber que está cheio de

flores durante quase todo o ano!Craig sabia que falava assim para disfarçar, no caso de alguém estar escutando.— Na minha opinião, a Cote d'Azur fica mais bonita quando as mimosas estão em

flor e os primeiros hibiscos começam a florir.Iam devagar e só quando se aproximaram mais das luzes foi que ele reparou como

estava pálida. Com o vestido prateado e os cabelos do mesmo tom, parecia irreal.Assim que entraram em casa, Craig viu lorde Neasdon e Zsi-Zsi voltando do outro

salão. Teve a sensação de que a condessa estremeceu ao ver Neasdon, e que se chegou mais

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para junto dele.— Dançamos maravilhosamente — disse Zsi-Zsi. — Sua Senhoria é um ótimo

dançarino.— E isso não é normal em um inglês? — perguntou Craig. — Espero que você nos

apresente, ainda não nos conhecemos.— Oh, que falta imperdoável! Lorde Neasdon, este é Craig Vandervelt; um

americano encantador que nos honra com sua presença todos os anos aqui em Monte Carlo e que faz com que nós todas o esperemos com o coração ansioso.

O outro estendeu a mão.— Como vai? Já tinha ouvido falar no senhor.— Eu também do senhor. Creio que trabalha no Ministério do Exterior com um

parente meu, o marquês de Lansdowne.— Ele é seu parente? — perguntou Neasdon, surpreso.— Primo afastado.— Não fazia idéia!— Vejo-o de vez em quando — disse Craig. — Moro nos Estados Unidos, onde, na

verdade, fico muito poucas vezes.Zsi-Zsi riu.— Craig é um viajante inveterado, vai de um lado a outro do mundo como um

meteoro. Acho que esta é a definição apropriada.— Deve ser interessante — comentou o lorde.Era evidente que não estava nada interessado naquela conversa, não tirando os olhos

da condessa. Ela olhava para ele com uma expressão que Craig não conseguia entender.Parecia querer defender-se dele, mas ao mesmo tempo conquistá-lo.Seguiu-se um silêncio desconfortável, pois ninguém tinha mais nada para dizer e

Craig cumprimentou a condessa.— Espero ter o prazer de dançar com a senhora mais tarde. Foi muito agradável

conhecê-la. — Sem esperar resposta afastou-se, de braço dado com Zsi-Zsi.Quando estavam longe dos ouvidos deles, Zsi-Zsi disse:— Espero que esteja agradecido. Nunca encontrei homem mais aborrecido. Só fala

dele próprio!— Estou muito grato.— Que mulher adorável! O que será que ela vê nele? O homem não diz nada de

interessante, dança como um elefante e é tão convencido que acreditou quando falei que é um bom dançarino.

— E se você dançasse comigo? Assim, poderia esquecer Neasdon.— Vou adorar. Mas primeiro, tenho que ver se Bóris precisa de alguma coisa e

cumprimentar uns convidados que acabam de chegar.Afastou-se, e Craig viu que lorde Neasdon estava levando a condessa para o jardim.Lembrou-se de repente de que, se ela temia que alguém ouvisse a conversa deles, não

havia razão para que ele não fosse ouvir o que os dois diziam.A orquestra estava tocando uma música alegre, que levou para o salão de dança todos

os convidados, menos os que jogavam.Craig foi andando devagar, como se desfrutasse o frescor da noite, e viu lorde

Neasdon e a condessa caminhando pelo atalho fartamente iluminado que ia dar no outro lado do jardim.

Ficou atento, até ver com satisfação que eles haviam ido para um caramanchão iluminado por lanternas chinesas.

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Foi para trás de uns arbustos próximos e ouviu lorde Neasdon dizendo:— Está se divertindo?— Muito. Foi muita gentileza sua me trazer a esta... festa tão agradável.— O grão-duque Bóris dá festas freqüentemente, quando está em Monte Carlo.— Ele é muito distinto.— Acredito que muitas mulheres achem que sim.— É estranho — disse a condessa — que haja tantos ingleses nesta festa. Pensei que

os ingleses não estavam em boas relações com os russos.— Por que diz isso?— Ouvi falar, mas pode ser boato, que Rússia e Inglaterra estão se desentendendo

por causa da Índia.Ficaram em silêncio, como se lorde Neasdon procurasse uma resposta.— Não deve acreditar em tudo que ouve.— Mas não é verdade, que os russos deixaram o governo inglês furioso?— Não sei o que você ouviu, mas há sempre falatório quando acontece um

remanejamento de tropas e alguns tiros são disparados na fronteira. Todos acreditam que é uma batalha.

— Acha que vai haver... guerra entre nossos países? Seria terrível!— Não há perigo disso, minha cara. Garanto-lhe que os ingleses controlam muito

bem a situação.— Quer dizer que não vão permitir que haja uma guerra, mesmo que a Rússia o

deseje?Lorde Neasdon deu uma risada desagradável.— Os ingleses podem muito bem com os russos e, mesmo que haja algumas

escaramuças na fronteira noroeste, eles não vão nos derrotar.— Tem certeza?— Absoluta. A condessa suspirou.— Isso quer dizer que os ingleses têm muitas tropas na índia para impedir qualquer

infiltração russa no Afeganistão.Parecia que só a idéia lhe dava medo.— Vamos, não preocupe essa linda cabeça, Aloya. Prometo a você que não haverá

nenhuma guerra. Mesmo que houvesse, eu cuidaria de você e a protegeria.— Isso seria difícil, se nossos países se tornassem inimigos.— Nunca serei seu inimigo. Vou lhe mostrar como tratarei bem de você.Deve ter tentado abraçá-la, porque a condessa deu um gritinho.— Não, por favor! Não pode fazer isso... aqui! Seria muito... indiscreto.— Ninguém está vendo. E você sabe muito bem que está me enlouquecendo!

Prometeu fazer amor comigo assim que nos conhecêssemos melhor e creio que é tempo de começar a cumprir a promessa.

— Nós nos conhecemos há tão pouco tempo! — disse a condessa, parecendo aterrorizada.

— Tempo suficiente para eu saber que desejo e amo você. Por que está sendo fiel a esse seu marido que permite que ande pelo mundo sozinha, em vez de cuidar de você, como devia?

— Ainda assim, ele é meu marido... e gosto dele.— Se ele gostasse de você, não a deixaria sozinha. Mas eu estou aqui e você disse

que me achava interessante e atraente. Eu a acho adorável e muito, muito desejável. Deixe

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que eu vá ao seu apartamento esta noite, para lhe demonstrar o quanto significa para mim e como poderemos ser felizes juntos.

— Oh, não! Esta noite, não. Ainda é. . . muito cedo. — E acrescentou, em um tom de desespero: — Sabe que gosto de estar com você, conversar com você. Acho que é uma pessoa muito interessante e que pode me ensinar coisas sobre este mundo. . . que conheço tão pouco.

— Um mundo no qual você brilha! Não há em Monte Carlo outra mulher igual, e estou muito orgulhoso. — Continuou, como se quisesse vangloriar-se: — Agora que o grão-duque nos convidou, vamos ter muitos convites mais e penso que poderei apresentá-la a pessoas bastante interessantes.

— Fico muito satisfeita em estar com você — disse a condessa, timidamente. — Você fala de tudo que me interessa.

— Quero falar de nós dois e, francamente, Aloya, pouco me importa se nossos patrícios se batem na fronteira noroeste ou se tentam invadir o Tibete. Tudo que quero é invadir o seu quarto.

— Talvez seja tão difícil quanto invadir o Tibete!— Sou um homem determinado.— Eu continuo pensando no meu marido.— Então, esqueça-se dele!— Eu tento, mas é difícil. — Para mim não é.A condessa deu uma risadinha, que pareceu forçada. — Será que sou mesmo como o Tibete?— Claro que é. Misteriosa, desconhecida e impenetrável; exceto para mim, é claro!— Isso é muito lisonjeiro, mas talvez as barbeiras que mantêm os russos afastados

sejam igualmente impenetráveis para você.— Isso é o que diz, mas tenho confiança que vou destruir todas as barreiras e

obstáculos. Deixe-me beijá-la agora e verá que essas barreiras desaparecem facilmente.— Não. Aqui, não! Ficaria muito embaraçada se voltasse para o salão descomposta.Lorde Neasdon não respondeu, e Craig teve a impressão de que a condessa se

levantara.— Se ficarmos aqui muito tempo vão fazer comentários, e isso não é bom para a sua

reputação ou para a minha. Afinal, você é um membro importante do Ministério do Exterior inglês.

— Fico contente por você pensar assim e talvez tenha razão. Podemos falar de nós mais tarde, quando voltarmos ao hotel.

— Seria um erro! — disse ela, rapidamente. — Se viesse ao meu quarto a empregada poderia falar, e meu marido é muito ciumento.

— Diabos o levem!Craig ficou no mesmo lugar, enquanto eles se afastavam, e só saiu quando estavam

fora da vista.O marquês tinha razão em pensar que a condessa era uma espiã russa que tentava

obter informações de lorde Neasdon. Tinha sido um erro da parte dele mencionar o Tibete, mas os métodos dela eram tão amadores que saltavam aos olhos de qualquer homem que não fosse um poço de convencimento.

Lorde Neasdon devia perceber o que estava acontecendo, mas Craig tinha o pressentimento de que ele era tão tolo, ou talvez estivesse tão cego pelo desejo, que não via o perigo que corria.

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Entrou em casa com a certeza de que fosse o que fosse que a condessa estivesse fazendo, não era de vontade própria. Parecia evidente que os russos que a estavam obrigando a fazer espionagem, mandaram que se tornasse amante de lorde Neasdon e que ela lutava desesperadamente contra.

Aloya não só estava com medo, como lhe confessara, mas também se debatia como um inseto preso em uma teia para livrar-se da situação em que se encontrava.

Passo a passo, Craig repassou toda a situação. Os russos tinham sido muito espertos, encontrando uma mulher tão espetacular e de uma beleza fora do comum para trabalhar em um lugar onde havia tantas mulheres maravilhosas.

Contudo, era evidente que era a primeira vez que ela fazia semelhante coisa, e Craig gostaria de saber quanto estaria ganhando, embora obrigada a fazer aquele papel.

Precisava descobrir por que sentia tanto medo, que a fazia obedecer e, depois, como poderia ajudá-la, evitando ao mesmo tempo que obtivesse informações de lorde Neasdon.

Achava inacreditável que, na sua posição, Neasdon não pensasse que era impraticável ter uma amante russa naquele momento de crise, quando os problemas na Índia eram tão sérios.

Supunha que o lorde, embora tendo uma grande experiência diplomática, tivesse tido pouco contato com os russos e não estivesse bem a par das aspirações deles no Oriente.

No momento, só poucas pessoas sabiam que a Rússia tencionava invadir o Tibete; preocupação constante das autoridades indianas e dos chefes do Ministério do Exterior em Londres. Mesmo assim, pelo que o marquês lhe havia dito, lorde Neasdon sabia da importância de manter a boca fechada sobre esse assunto.

Craig tinha certeza de que o simples fato de ele ter mencionado o Tibete seria imediatamente repetido pela condessa a quem quer que esperasse pelas informações.

Só então, pressentiu que o barão Strogoloff poderia estar metido naquilo tudo.Não havia dúvida de que era suspeito ter dois iates em Monte Carlo, e seus

convidados, se é que os tinha, nunca saírem do barco e ele próprio só desembarcar para ir ao teatro.

“Uma coisa é evidente; tenho que arranjar um jeito de conhecer o barão.”Sorrindo, Craig foi dançar com Zsi-Zsi.Na manhã seguinte, depois de jogar quatro sets cansativos de tênis e inspecionar seu

último automóvel, que tinha a certeza de ganhar o Concurso de Elegância, Craig foi até ao terraço em baixo do cassino.

Lorde Neasdon e a condessa estavam lá. Pareciam taciturnos, e teve a impressão de que o olhar da condessa se iluminou quando se aproximou.

— Bom dia, madame! Bom dia, Neasdon! Gostaram da festa ontem?— Muito — respondeu Neasdon. — O grão-duque excedeu-se em sua reputação de

bom anfitrião.— Eu saí cedo. Fui a outra festa, que na verdade não estava muito divertida.A verdade era que, depois de dançar com Zsi-Zsi, fora imediatamente para o Hotel de

Paris e esperara no apartamento vazio, caso a condessa precisasse dele.Embora com dificuldade, ela tinha conseguido convencer Neasdon a deixá-la

sozinha, e a única voz que Craig ouviu no outro apartamento havia sido a da empregada russa.

Achava o russo uma língua difícil, mas o pouco que sabia havia sido suficiente para entender que a empregada fazia perguntas sobre a festa, o que Craig tinha considerado uma impertinência. A condessa respondia apenas com monossílabos.

Só quando já devia estar pronta para deitar-se, a criada saiu, desejando boa-noite e

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fechando a porta com força.Nesse momento Craig ficou indeciso se devia bater, avisando a condessa de que

estava ali; mas decidiu que seria um erro. Os russos podiam estar lhe dando uma falsa sen-sação de segurança e, no entanto, continuar mantendo a vigilância sobre ela.

Ainda esperou uma hora, para ver se ela colocava alguma folha de papel por baixo da porta. Como não aconteceu nada, foi deitar-se.

Agora, parado ali junto da mesa, não deixou outra alternativa a lorde Neasdon, senão convidá-lo:

— Sente-se! Gostaria de tomar um aperitivo?— Obrigado, mas não vou demorar. Fiquei de me encontrar aqui com uns amigos

que devem estar chegando.Enquanto Neasdon chamava um garçom para pedir um sherry, Craig virou-se para a

condessa, perguntando casualmente:— Divertiu-se ontem à noite?— Foi uma festa muito agradável e lorde Neasdon foi muito gentil em me levar com

ele.— Você tem sorte de eu conhecer tanta gente em Monte Carlo — comentou o outro,

e virando-se para Craig: — Prometi à condessa levá-la a muitas festas. Como sabe, Vandervelt, todas as noites há pelo menos uma meia dúzia delas.

— É verdade, embora algumas sejam muito aborrecidas.— Também acho, mas sempre se pode escolher.— Claro.— Parece que hoje há mais barcos do que ontem. Já esteve a bordo dos iates russos?

— perguntou Craig à condessa, sem mais nem menos.Pelo olhar dela, percebeu que tinha posto o dedo na ferida certa.— Não, não estive — respondeu, depois de hesitar um pouco; e Craig percebeu que

era mentira.Após almoçar com os amigos e dar um passeio, Craig foi até a capela de Santa

Devota. Entrou cuidadosamente, com receio de que a condessa estivesse lá. Mas não havia sinal dela. Então, dirigiu-se rapidamente para o confessionário.

Padre Augustin esperava por ele e, assim que Craig se ajoelhou, disse:— Tenho novidades para você, meu filho.— Estou ansioso para ouvi-las, padre.— Receio que não sejam aquelas que você gostaria.— Diga!— O homem que procura saiu daquele esconderijo porque estava com medo. Não

consegui descobrir por que e para onde foi. Meu informante pensa que ele foi levado a acre-ditar que o novo esconderijo seria mais seguro ou que caiu em uma armadilha. Seja como for, antes de chegar ao destino, dois homens o agarraram e o levaram para o porto.

Craig ficou tenso; sabia o que ia escutar a seguir.— Ele foi levado para bordo do iate russo, o Tsarevitch, que está ancorado ao lado do

Tsarina.Craig suspirou.— Obrigado, padre. Não tenho palavras para expressar minha gratidão.— Eu é que agradeço, meu filho, pela sua caridade de ontem.— Quando sair, procurarei recompensá-lo ainda melhor.— Obrigado. Se eu puder ajudá-lo novamente, só terá que vir me procurar a esta

mesma hora.

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— O senhor nunca falhou, padre, e agora preciso das suas orações mais do que nunca.

— Sabe que nunca deixei de rezar por você.O padre abençoou Craig, que foi para o hotel sentindo uma proteção divina toda

especial.Ia precisar não só das orações de padre Augustin e da ajuda de Deus, mas do poder

de toda as religiões do mundo, se quisesse salvar Randall Sare dos russos.Eles não se deteriam diante de nada para conseguir as informações que queriam, e

Craig sabia muito bem que todas as histórias aterrorizantes das torturas a que submetiam os prisioneiros não eram exageradas.

Enquanto se vestia para o jantar, não conseguia deixar de pensar que era muito estranho que, uma vez de posse do prisioneiro, ainda não tivessem zarpado para a Rússia. A única explicação plausível era que esperavam obter mais informações de Neasdon sobre o Tibete.

Não imaginavam que o lorde sabia muito pouco, mas até esse pouco, somado ao que Randall Sare podia lhes dizer, lhes daria uma grande vantagem.

— Tenho tão pouco tempo — disse Craig em voz alta, esquecendo-se da presença de seu criado de quarto.

— O senhor não está atrasado. De qualquer forma, as pessoas não são muito pontuais em Monte Carlo.

— Vá descobrir o que haverá no teatro esta noite!O criado saiu correndo do quarto e voltou dizendo que seria a ópera Fausto e que

Bellini cantaria.Como era um cantor muito popular, Craig teve certeza de que o barão estaria

presente.Mandou o criado comprar um camarote e informar-se discretamente sobre quem

estaria nos camarotes ao lado do seu.O homem demorou tanto que Craig estava quase desistindo de esperar.— Estão muito ocupados lá em baixo, senhor, mas consegui descobrir o que queria

saber.Deu ao patrão uma folha de papel com os nomes de pessoas muito importantes,

encabeçadas pelo príncipe Albert. Craig sorriu, ao ler o nome que queria.— Obrigado — disse, saindo do quarto.O interior do teatro de Monte Carlo era em estilo pseudo-gótico, cheio de frisos,

afrescos, conchas, deusas e escravos núbios segurando candelabros, tudo dourado. Dizia-se que quando Marie Blanc, esposa do homem que construiu o cassino de Monte Carlo, tinha visto o teatro, comentara, sarcástica:

— Todo esse desperdício vulgar de ofuscação dourada só vai servir para lembrar às pessoas o quanto perderam nas mesas de jogo.

Apesar disso, o teatro era um sucesso desde a inauguração em 1879, com um recital de Sarah Bernhardt.

A ópera foi brilhantemente interpretada, mas Craig estava interessado apenas em observar o homem sozinho no camarote ao lado.

Ninguém precisou lhe dizer quem era. Por causa da cadeira de rodas estrategicamente colocada para que pudesse assistir a tudo confortavelmente, só podia ser o barão Strogoloff.

Tinha a aparência de um enorme gnomo, e Craig pensou nele sentado junto da condessa. Seria um exemplo perfeito da Bela e da Fera.

Se fosse para o palco, o barão não precisaria de maquilagem de disfarce nenhum para

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aterrorizar todo mundo. As mãos pareciam garras, a boca era virada para baixo, com um contorno cruel, e tinha olhos negros e duros, que nunca se desviavam do palco.

Bellini devia ter cantado maravilhosamente, mas Craig não ouviu uma nota sequer. Todo seu poder de concentração estava no barão.

No intervalo, quando seus amigos saíram para cumprimentar os conhecidos, Craig dirigiu-se para o camarote do russo, abrindo a porta.

Imediatamente, um homem sentado do outro lado, que estava fora de vista durante a ópera, barrou-lhe a entrada; mas Craig desvencilhou-se rapidamente e aproximou-se do barão.

— Posso me apresentar? Sou Craig Vandervelt e meu iate, Sereia, está ancorado perto do seu Tsarina. Como todos os homens que amam o mar, estou querendo muito conversar com o senhor.

Percebeu que o barão ficou um pouco surpreso, mas depois respondeu, em um inglês razoável:

— Reparei no seu iate, sr. Vandervelt. Ouvi dizer que é novo.— Novo em folha. E como inventei um novo tipo de motor e um sistema de

iluminação especial, que acredito nunca tenha sido instalado em qualquer barco antes, estou curioso para saber se o seu está igualmente bem equipado.

Falava com um sotaque exageradamente americano, demonstrando também uma bazófia que sabia que não passaria despercebida ao barão.

— Que outras idéias novas incorporou ao seu iate? Craig relacionou um número de itens que sabia interessar e intrigar qualquer

navegador, terminando por dizer:— Espero que a Marinha americana acabe por adotar essas invenções.— Tudo isso parece muito interessante, sr. Vandervelt.— O que eu gostaria de pedir, senhor, embora possa parecer um certo descaramento

da minha parte, é que o senhor fosse a bordo do Sereia e depois me mostrasse o Tsarina. Para dizer a verdade, nunca estive a bordo de um iate russo.

— Vai achá-lo muito antiquado — respondeu o barão, secamente. — Os russos não são muito receptivos a idéias novas.

— Não é a reputação que têm atualmente, senhor. Nós, na América, fomos informados de que a Rússia está despontando à frente de todos os países no que se refere a navios e armamentos, e está na hora de termos cuidado com a nossa reputação! Afinal, fomos nós que inventamos o Clipper!

— Isso é verdade. Muito bem, sr. Vandervelt, terei muito prazer em recebê-lo a bordo do Tsarina, amanhã.

— Sugiro, barão, que almoce comigo no Sereia e depois me mostre o Tsarina.— Tenho muito prazer em aceitar seu convite. Creio que não se incomodará se levar

dois de meus amigos.— É claro que não. Será um prazer. Era óbvio que os dois homens que o barão levaria seriam dois técnicos para copiar o

que lhe interessasse.A orquestra voltava ao lugar e o maestro fazia sua entrada na sala, aplaudido pelo

público.— Então está combinado, senhor — disse Craig, levantando-se e estendendo-lhe a

mão. — Espero-o por volta de uma hora. Foi um prazer conhecê-lo.Cumprimentou o barão e voltou para seu camarote.Mais uma vez, sua boa sorte não o abandonara. Quando sentiu a mão do barão

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apertando a dele, entendeu muito bem porque a condessa tinha medo.

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CAPÍTULO V

Craig saiu do teatro com os amigos e, como era inevitável, foram todos para o cassino, entrando na Sala Touzet, onde ele esperava encontrar a condessa.

Ela estava espetacular, em um vestido azul-pavão, cor que realçava ainda mais a sua pele e os cabelos. Como sempre, usava apenas uma jóia, uma grande água-marinha presa em uma corrente.

O efeito era sensacional, e mesmo naquela sala cheia de mulheres bonitas, ela se sobressaía como uma luz no céu escuro.

Estava sentada com lorde Neasdon, que, como de hábito, falava sem parar.Para não dar muito na vista aproximando-se dela logo à entrada, Craig foi primeiro

até a roleta que ficava perto da mesa deles, fingindo observar os jogadores e apostando às vezes.

Continuava intrigado com o medo dela; mas se estava sob as ordens do barão, como suspeitava, não era de admirar.

Tão frágil e etérea, seria difícil imaginá-la colaborando com um animal como Strogoloff, mas não havia dúvida de que Aloya espionava para os russos.

Se Randall Sare havia sido preso por ordem do barão, então era evidente que todo o problema em Monte Carlo se resumia nele.

“Tal como uma grande aranha”, pensou Craig.Strogoloff estendia sua teia à volta daqueles que capturava, para devorá-los como

moscas.Estava tão absorto em seus pensamentos que nem reparou que o dinheiro que tinha

apostado no número nove já havia duplicado; e agora o crupiê olhava para ele, para saber se queria recolher as fichas ou deixá-las no mesmo número pela terceira vez.

Como pedindo que a sorte se manifestasse para saber se ganharia ou perderia num jogo muito mais complicado, Craig fez sinal para que as fichas continuassem no nove.

— Mesdames et Monsieurs. Rien ne va plus! A roleta parou e o crupiê anunciou:— Nove, negro!E Craig teve certeza de que a sua missão seria um sucesso.Diante dos olhares invejosos, pegou o que tinha ganho e foi trocar as fichas. Depois,

displicentemente, dirigiu-se para a mesa da condessa, perguntando a si mesmo se deveria falar com ela e, nesse caso, o que iria dizer.

Parou do outro lado da roleta onde estivera jogando e reparou que lorde Neasdon estava debruçado sobre Aloya, falando calorosamente.

Uma das coisas que aprendera em trabalhos anteriores era ler lábios. Assim, entendeu o que Neasdon dizia.

— Pare de fazer esse jogo comigo, Aloya! Minha paciência está no fim e não quero mais ficar ouvindo promessas de um amanhã que nunca chega.

Os lábios da condessa se moveram em um sussurro; a certeza de que lorde Neasdon mal a ouvira dizer:

— Não sei o que falar. Por favor, você não gostaria de ir ao meu apartamento para conversarmos?

— Conversar? E quem está querendo conversar? Quero você, Aloya, e está me enlouquecendo! Você mesma disse que fomos feitos um para o outro! Portanto, tem que ser minha.

— Eu... eu esperava que você fosse gentil comigo.

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— Gentil? Claro que quero ser gentil, mas sou um homem e você já brincou comigo o tempo suficiente. Ou faz amor comigo esta noite, ou terei certeza de que estou fazendo papel de bobo e irei embora de Monte Carlo amanhã.

A condessa protestou, e Craig sabia que era por medo:— Oh, não! Não pode fazer isso! Quero que você fique. Tem que ficar!Lorde Neasdon sorriu.— Então, por que estamos discutindo tanto, minha querida? Vou fazer você muito

feliz e amanhã iremos ao Cartier, pois quero lhe comprar um presente lindo, para comemorar o começo de uma relação longa e excitante.

Sua maneira de falar, a expressão dos olhos e o sorriso fizeram com que Craig sentisse uma fúria súbita. Precisou de muito autocontrole para não esmurrar Neasdon. Surpreso com a violência daqueles sentimentos, Craig percebeu que estava apaixonado, como nunca na vida! Era tão espantoso que não quis acreditar. Sabia que queria proteger a condessa, não só de lorde Neasdon, mas tudo que a amedrontava e lhe causava problemas.

Em sua longa experiência com mulheres, que andavam sempre atrás dele e de quem tinha sido um amante fervoroso, nunca sentira o que estava sentindo agora.

O mais inverossímel era ter-se apaixonado por uma mulher que devia ser espiã russa e que representava um perigo para tudo aquilo em que ele acreditava. “Eu te amo!”, disse a si mesmo, extasiado. Não podia fazer nada, até que aquela situação toda se esclarecesse; mas, antes de salvá-la de um bruto como o barão, precisava impedir lorde Neasdon de fazer o que pretendia naquela noite.

Foi até a mesa deles e disse, despreocupado:— Achei que iria encontrá-los aqui, mas gostaria que estivessem comigo na roleta há

poucos minutos, quando meu número de sorte saiu três vezes seguidas.Falou sorrindo e percebeu que a condessa olhava para ele com uma expressão de

alívio, enquanto Neasdon tentava não demonstrar o quanto estava irritado com aquela intromissão.

Craig continuou:— Acho que devo celebrar minha vitória da maneira tradicional. Acompanham-me

em uma taça de champanhe?— Nós já bebemos — respondeu o lorde, de modo quase desagradável.— Ah, já? Então, talvez seja melhor eu convidar nosso anfitrião de ontem à noite.— Creio que é uma boa idéia — disse Neasdon.Craig fez de conta que ia afastar-se, mas depois voltou.— A propósito, condessa, espero que não seja muito incomodada esta noite.— Incomodada? — perguntou ela, hesitante.— Ouvi dizer que o rajá de Pudakota vai dar uma festa em seus aposentos, no Hotel

de Paris. Não sei em que andar a senhora está, mas as festas do rajá são sempre muito ba-rulhentas.

— Eu estou no. . . terceiro andar.— Eu já imaginava, embora desejasse estar enganado. É o mesmo andar do rajá. —

Passado um instante, continuou, fingindo-se zangado: — Não entendo por que as pessoas dão festas no hotel onde estão hospedadas. Se alguém me incomodar, amanhã vou protestar veementemente à direção. Espero que faça o mesmo, condessa.

— Sim, é o que farei, se alguém me perturbar.— Creio que não haverá orquestra — continuou Craig —, mas, sem dúvida

nenhuma, deve haver gente andando pelos corredores a noite inteira e falando alto.— Parece que vai ser um aborrecimento — titubeou a condessa.

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— Vai, mesmo. E o pior é que não podemos fazer nada antes.— Não, claro que não.— Tem sorte em estar no L'Hermitage, Neasdon. Na próxima vez que vier para

Monte Carlo, acho que irei para lá. O problema do Hotel de Paris é ser muito famoso.Sem esperar pela resposta do lorde, sorriu para a condessa, dizendo:— Boa noite, embora eu ache que hoje é um voto um pouco otimista.Rindo da própria piada afastou-se, indo ter com o grão-duque, que fumava um

charuto e conversava com Zsi-Zsi. Só lhe restava rezar para que, depois de tudo que havia dito, lorde Neasdon ficasse nervoso demais para forçar a entrada no quarto da condessa. Assim, pelo menos por aquela noite, ela estaria tranqüila.

Ficou conversando com o grão-duque e com Zsi-Zsi durante algum tempo. Propositalmente, sentara-se de costas para os outros dois.

Depois, sentindo vontade de pegar um pouco de ar fresco, foi até a varanda. Ficou olhando para o porto, vendo as luzes dos dois iates russos e também do Sereia, um pouco mais além.

O luar batia no promontório, iluminando o palácio e o mar, e a paisagem estava romântica como seu próprio coração.

Sentia-se um aroma de mimosas no ar e as estrelas brilhavam como os olhos da condessa.

A beleza dela era como os sentimentos de Craig; imprevisível e inacreditável.Embora não quisesse admitir, sabia que o que sentia era amor.Uma emoção tão poderosa e verdadeira como o poder e a força, para os quais sempre

apelava em uma hora de emergência, e que o guiavam desde que se apercebera deles há muito tempo, na Índia.

Era o mesmo poder em que Randall Sare acreditava. Inconscientemente, Craig mandou essas vibrações para o homem que agora sabia estar prisioneiro em um daqueles iates lá embaixo.

Como havia dito à condessa, todos os indianos acreditavam na transmissão de pensamentos, que desenvolviam com a ajuda dos gurus.

Agora, sabia onde estava Sare, sabia que poderia chegar até ele, ajudá-lo, dar-lhe esperança e, se houvesse um milagre, salvá-lo.

“Ajude-me. Você está nesse jogo há mais tempo do que eu. Diga-me o que preciso fazer.”

Passado um pouco, soube a resposta. Surgiu em sua mente, como se alguém lhe dissesse o que fazer.

Por segundos, Craig sentiu o ar à sua volta cheio de bons fluidos. Logo essa sensação desapareceu, mas o plano de ação estava delineado em sua mente, e isso era o que im-portava.

Tinha tido aquela mesma sensação antes, uma vez em que estivera bem próximo da destruição, mas não tão intensamente como agora.

Ficou muito tempo na varanda, pensando, até que estremeceu de frio e voltou para a sala de jogo.

A mesa da condessa estava vazia, e Craig ficou ansioso novamente, com medo de que Neasdon a tivesse obrigado a fazer o que não queria.

Não conseguiu ficar no cassino. Sem pressa, foi parando de mesa em mesa para ser visto conversando com várias pessoas, e saiu disfarçadamente.

Foi direto para seus aposentos. No corredor não havia ninguém, e só desejava que a condessa não tivesse permitido que Neasdon a acompanhasse até o apartamento e descobris-

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se que não havia festa nenhuma.Mudou de roupa e sentou-se em uma poltrona lendo The Menton and Monte Cario

News, um jornal publicado desde 1897. De umas modestas quatro páginas, tinha passado para quase trinta e era a melhor fonte de informações sociais, esportes e diversões do principado. Também publicava a lista das pessoas importantes que chegavam aos hotéis e mansões.

— Hoje chegaram vários hóspedes importantes, senhor — disse o criado de quarto.— Já há gente demais. Acho que seria mais confortável e mais tranqüilo a bordo do

Sereia. Amanhã de manhã, coloque minhas roupas nas malas, para o caso de eu decidir descer a costa por um dia ou dois. Se eu mudar de idéia, torna-se a desfazer as malas.

— Muito bem, senhor — respondeu o criado, não muito animado.Craig esperou ficar sozinho, largou o jornal e foi até o apartamento vazio. Ao abrir a

porta de comunicação que dava para o apartamento da condessa, sentiu o coração aos saltos, receando ouvir a voz de lorde Neasdon.

Irritou-se. No passado, nunca sentira ciúme de uma mulher e ria dos homens ciumentos. Agora sabia que, se ouvisse Neasdon com a condessa, fossem quais fossem as conseqüências, iria tirá-lo de lá.

Mas estava tudo em silêncio.Olhou para o chão e, sentindo um aperto no peito, viu uma folha de papel.“Por favor, preciso falar com você.”Ao ler essas palavras, ficou feliz e aliviado. Bateu de leve na porta, que foi aberta

imediatamente, como se ela estivesse esperando do outro lado.Havia apenas uma luz acesa no apartamento da condessa, que apareceu recortada na

penumbra, como uma visão. Craig sentiu o coração bater mais forte.Com os cabelos soltos, caindo como o luar nos ombros, usava um conjunto de

lingerie branco que a tornava ainda mais linda.Por um momento, ficaram olhando um para o outro, como se não se vissem há muito

tempo. De repente, estavam abraçados e ela escondia o rosto em seu ombro.Ao senti-la tremer, Craig soube que finalmente encontrara aquela por quem sempre

tinha procurado. Não havia necessidade de palavras; só precisavam ficar juntos.Passados alguns instantes Aloya disse, em um sussurro:— Ajude-me! Por favor, ajude-me! Não sei o que fazer. Estou apavorada!Craig apertou-a nos braços para dar-lhe confiança, dizendo:— Estou aqui, não precisa mais ter medo. — Ela respirou fundo e ele continuou: —

Acho que você ficará melhor e mais tranqüila para me dizer o que quer se vier para o meu apartamento.

Ela olhou para a porta que dava para o corredor, e Craig achou que nunca tinha visto tanto pavor no rosto de uma mulher. Mesmo que lhe custasse a vida, haveria de salvá-la.

Levando-a suavemente fechou a porta, atravessou o apartamento vazio e foram para a sala dele, iluminada e cheia de flores, o que dava uma sensação de conforto e segurança.

Sentaram-se bem juntinhos no sofá.— Eu disse que você podia confiar em mim, e agora existe uma boa razão para fazer

isso. — Sem esperar resposta, acrescentou: — Eu te amo! Tive consciência desse amor quando percebi o que estava acontecendo no cassino. E como te amo, juro que vou salvá-la e que nunca mais ficará apavorada como está agora.

Os olhos dela se encheram de lágrimas. Craig inclinou-se e beijou-a, cheio de carinho.

Não conseguiu evitar. Ao mesmo tempo, não era desejo o que sentia. Era algo mais

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profundo, mais espiritual, como se ela fizesse parte daquelas vibrações que sentira na varanda do cassino.

Os lábios de Aloya eram inocentes, inexperientes e doces. Beijou-a mais apaixonadamente, apertando-a contra o corpo.

Não conseguia explicar suas emoções; só sabia que ela havia tomado conta de seu coração, e a partir daquele momento lhe pertencia.

Quando Craig levantou a cabeça, sentindo que uma aura de encantamento os envolvia, ela murmurou, tão baixo que mal pôde ouvir:

— Eu... te amo! Não sabia que amava, mas desde que o conheci... só penso em você.— Pensa em mim? De que maneira?— Eu sabia que era a única pessoa em quem podia confiar, quando tudo à minha

volta era horrível.— E agora percebeu que estava apaixonada.— Eu te amo e não devia envolvê-lo nessa situação tão perigosa, mas não tenho mais

ninguém a quem pedir ajuda.— Precisa me contar tudo, minha querida. Mas, primeiro, quero beijá-la de novo.

Vamos encontrar uma solução para o seu problema, tenho certeza!Beijou-a até perceber que o medo tinha desaparecido e que agora ela estava

confiante. Perguntou, então:— Antes de mais nada, preciso saber uma coisa; você é mesmo casada?— Não, não sou. Tudo fazia parte do disfarce. Craig teve a impressão de que a sala se iluminava de repente, tal o alívio que sentiu.— E nunca beijaram você?— Você foi o... primeiro.— Minha querida! Tive certeza disso, quando senti seus lábios, e agora entendo por

que não podia permitir que Neasdon a tocasse.A condessa deu um gritinho de susto.— Você me salvou hoje à noite. Ele teve medo de subir, depois de você ter dito que

haveria uma festa neste andar. Mas eles vão ficar furiosos, porque me mandaram...Parou de falar, como se tivesse medo de continuar, e escondeu o rosto no ombro de

Craig.— O que foi que eles mandaram? Já entendi que você está falando dos russos!O tremor que percorreu o corpo dela confirmou as palavras de Craig.— Se eu não me tornar amante de lorde Neasdon eles vão levar papai para a Rússia,

nunca mais o verei.Todos os músculos de Craig se enrijeceram.— Seu pai? Então, é filha de Randal Sare?! Tinha sido muito idiota em não

desconfiar antes.— Você... conhece papai?— Claro que conheço. E só agora fiquei sabendo que ele desapareceu porque os

russos o levaram para o iate do barão.Ela o olhou, surpresa.— Como sabe disso? Como pode estar a par da situação, se ninguém em Monte

Carlo sabe? Craig abraçou-a.— Há muito que explicar, mas primeiro quero que me conte tudo que lhe aconteceu.

Depois eu explico por que estou aqui.— É por causa de. . . papai?

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— É.— Agora entendo por que eu tinha tanta certeza de que você podia me ajudar. Senti

que era diferente de todos os outros! Papai sempre me ensinou a confiar na minha intuição, e tinha razão.

— Claro que ele tinha razão. Foi por isso mesmo que logo percebi que você não era quem fingia ser. Não imagina como estou feliz por você não ser a condessa Aloya Zladamir.

— Foi o nome que me deram, dizendo que impressionava. Eles pensaram que seria mais fácil lorde Neasdon passar o tempo com uma mulher casada, em vez de uma moça livre, porque como solteira eu precisaria de uma dama de companhia.

— Entendo perfeitamente e suponho que deve ter sido o barão quem arquitetou tudo isso.

— Foi mesmo o barão. Ele é diabólico!— Quando você e seu pai foram capturados pelos russos? Aloya encostou a cabeça no ombro de Craig, antes de começar a contar toda a

história. Ele lhe deu um beijo na testa, dizendo;— Comece do princípio. Eu não fazia idéia, nem ninguém na Inglaterra, de que

Randall Sare fosse casado.— Papai manteve segredo, temendo que deixassem de confiar nele se soubessem que

tinha uma esposa russa. Mamãe nasceu na Geórgia, e meu avô, o príncipe Volvershi, era muito importante lá, antes do país ser anexado pelos russos.

Como Craig sabia muito bem o que tinha acontecido, não interrompeu, e Aloya continuou:

— Mamãe se apaixonou por papai quando ele foi para a Geórgia, a caminho do Afeganistão, para descobrir quem estava provocando a insurreição das tribos contra os ingleses. Eles se apaixonaram assim que se viram e souberam que, a partir daquele momento, ninguém mais teria importância.

— É o mesmo que sinto por você.— E eu também. Sempre rezei para encontrar um homem assim; tal como mamãe

que, quando conheceu papai, sabia que ele tinha estado sempre presente em seus sonhos.Craig beijou-a novamente na testa, e Aloya continuou: — Por causa da oposição de meu avô, eles se casaram em segredo. E também

porque, como já expliquei, o Ministério do Exterior poderia não entender que a nacionalidade da esposa não iria interferir no trabalho dele. Ninguém que nasceu na Geórgia se considera russo, embora não se atreva a dizer.

— Eu sei.— Como mamãe não queria estragar a vida do homem que amava, e que era tão útil

para seu país ela nunca interferiu. Depois do meu nascimento, na Geórgia, nós nos reu-níamos sempre que era possível. Às vezes, nos lugares mais estranhos; nas planícies da Índia, nos contrafortes do Himalaia, ou em casas onde passávamos dias e mesmo semanas, sem ver absolutamente ninguém.

Agora Craig entendia onde estava Randall Sare, nas muitas vezes em que costumava desaparecer e ninguém sabia de seu paradeiro.

— Então, papai precisava fazer outro trabalho, ou recebia uma mensagem das autoridades e normalmente nos mandava para casa. Às vezes, íamos para cidades grandes como Bombaim ou Calcutá, para que ninguém prestasse atenção em nós.

— Uma vida muito estranha!— Felizmente, tínhamos muito dinheiro e papai sempre fez questão de que eu

estudasse com os melhores professores. Quando ele estava em casa, me ensinava a acreditar

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naquilo em que acreditava; e essa é a única razão de eu não estar mais apavorada. Mas o tempo está se esgotando.

— O que quer dizer com isso?— Acho que só você poderia entender. Quando fomos capturados pelos russos, aqui

em Monte Carlo...— Espere um minuto! Você está indo depressa demais. Antes de mais nada, por que

ele estava voltando para Inglaterra? Disse-me que nunca mais voltaria.— Ah, sim, claro... Esqueci de contar. Mamãe... morreu! Ela já não estava bem há

algum tempo, mas tive dificuldade para fazer contato com papai, e ele só chegou a tempo de lhe dizer adeus. — A voz dela tremeu de emoção! — Mamãe sabia que ele viria, e lutou para viver até sua chegada.

Virou o rosto para Craig, chorando.— Ela só teve tempo de dizer a papai o quanto o amava e como tinha sido feliz. Logo

a seguir, seu espírito partiu... restando apenas o corpo.Craig estreitou Aloya nos braços, dizendo:— Entendo, mas ela deve estar junto de você, dizendo-lhe para confiar em mim.— Claro que está. E perto de papai também. Embora ele não se importe com a morte,

não quero perdê-lo.— Seria uma grande perda para o mundo todo. Mas agora diga-me porque ele ia

voltar para a Inglaterra.— Porque não podia me deixar sozinha na Índia. Apesar de eu lhe pedir para ficar,

resolveu me levar para casa da irmã dele, com quem sempre manteve contato. Achou que, além de cuidar de mim, ela poderia me apresentar à sociedade inglesa. Papai resolveu partir de uma hora para outra, ao perceber que os russos estavam decididos a prendê-lo ou assassiná-lo, quando voltou do Tibete.

— Você não estava no Tibete com ele?— Nós só chegamos a ir até Gyangtse, no interior do país. Tínhamos uma casa lá, e

foi onde mamãe morreu. Depois disso papai não teve outro remédio, senão voltar.— Era a decisão mais acertada, por sua causa.— Não acho. Mas sempre faço o que papai quer.— O que não consigo entender é por que vocês deixaram o navio em Nice e vieram

para cá.— Embarcamos disfarçados. Papai fingia ser um turco, e ninguém desconfiou nem

por um momento de que não fosse.— E você?— Eu era a mulher dele! Usava um yashmak e um burnous, que me cobriam toda.

Com aquilo, tanto faz ser gorda, magra, feia ou bonita. Não dá para perceber.— Uma boa idéia, porque você é linda demais, minha querida.— Quero que você pense sempre assim.— Quando tudo isso acabar, eu lhe direi exatamente o que penso. Por que saíram do

navio, no sul da França?— Tínhamos certeza de que ninguém a bordo desconfiava de nós, mas quando

chegamos a Nápoles, entraram novos passageiros e papai reconheceu dois deles e achou que também o reconheceram. — Sua voz se encheu de medo: — Contudo, só em Nice papai teve certeza de que eles queriam matá-lo. Desembarcamos assim que o navio atracou, deixando praticamente toda a bagagem no navio, para não levantar suspeitas. Papai não sabia onde poderíamos ficar em segurança em Nice, mas conhecia um lugar aqui; por isso, viemos para cá. Era miserável e desconfortável. Eu saía para comprar comida e, apesar de

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nunca ter visto ninguém suspeito, o instinto de papai lhe dizia para não se arriscar. Craig sabia que era o tal lugar onde o padre Augustin tinha investigado.— Por que foram embora de lá?— Por muita falta de sorte, papai reconheceu um homem que também estava

escondido lá e que seria capaz de delatá-lo a quem pagasse mais. Era muito perigoso continuarmos lá.

— Então, mudaram, o que foi desastroso.— O que aconteceu foi que saímos de lá e papai me mandou andar pelo outro lado da

rua. Ao dobrar uma esquina, dois homens o agarraram.— E o que você fez?— O que poderia fazer? Corri para ficar com ele. Acontecesse o que acontecesse,

nunca o abandonaria.— E então, levaram vocês dois ao barão.— Foi... terrível. Começaram a interrogar papai e, enquanto ele se recusou a falar,

disseram que iam levá-lo para a Rússia e torturá-lo até que contasse o que queriam saber. Então ele prometeu falar, se me libertassem. Foi um grande erro. O barão olhou para mim pela primeira vez, e pela expressão dele percebi que estava pensando que eu também poderia ser útil.

— E arquitetou o plano de você seduzir lorde Neasdon, para que ele revelasse o que sabia a respeito do Tibete.

— O barão me disse que ele era muito importante no Ministério do Exterior e que devia saber os planos de defesa britânicos, no caso de uma invasão russa.

— Nessa altura, resolveram vestir você de uma maneira espetacular!— Disseram-me exatamente o que teria que fazer.— E as roupas?— Um estilista francês, sobre o qual eles tinham qualquer tipo de domínio, foi levado

ao iate para desenhar vestidos tão espetaculares que lorde Neasdon não poderia deixar de me notar.

— Mas ele não falaria com você sem conhecê-la.— Oh, não! Eles programaram tudo. São muito mais espertos do que se possa pensar.

A mãe de lorde Neasdon ia para a América um dia antes de ele chegar aqui, e não sei como os russos conseguiram obter uma carta dela. Acho que era para uma amiga, aqui de Monte Carlo. Falsificaram a letra, escrevendo uma carta para lorde Neasdon, apresentando-me como filha de uma grande amiga dela e pedindo para ser amável comigo. Ele foi me procurar, logo que chegou.

— E, evidentemente, ficou deslumbrado com sua beleza! — comentou Craig, cinicamente.

— Eu tinha que fingir que estava muito impressionada e que o achava um homem maravilhoso. Durante todo o tempo em que falei com ele sabia que minha empregada, que é espiã deles, estava ouvindo tudo para ver se eu não dizia nada que pudesse levantar suspeitas. Eu nunca me atreveria a fazer isso, porque sabia que matariam papai depois de obrigá-lo a falar.

— Ele já falou? — perguntou Craig, ansioso.— Não. Papai foi muito esperto. Ficou ganhando tempo, enquanto tratavam das

minhas roupas e das jóias. Depois, quando começaram a interrogá-lo, entrou em transe.— Em transe?— Aprendeu na Índia. Conseguia ficar completamente inconsciente, e é impossível

acordá-lo. Mas é evidente que isso dura apenas certo tempo.

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— Quanto?— A não ser que morra de fome e de sede — respondeu Aloya, com a voz tremendo

— deve voltar à consciência... amanhã!Craig entendeu que precisava agir rapidamente. Receava não só por Aloya, mas

principalmente por Randall Sare.— Os russos não sabem disso. Então, por que queriam que você se tornasse amante

de lorde Neasdon esta noite?— Estão esperando que papai recobre a consciência e que eu apresente resultados.

Depois, tencionam levar-nos embora e se eu não lhes der nenhuma informação acho que... vão me torturar na frente de papai, para obrigá-lo a falar.

Craig sabia que isso era muito provável.— Juro, meu amor, que nada vai lhe acontecer enquanto eu estiver vivo.— Você... pode nos salvar?— Juro que o farei e sei que você vai acreditar quando eu lhe disser que esta noite,

quando estava na varanda do cassino, seu pai ou outra força qualquer me disse o que preciso fazer.

Como não havia mais nada a dizer, seus lábios procuraram os dela, e Craig beijou-a apaixonadamente, como se beija uma mulher a quem se queira mais do que tudo no mundo.

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CAPÍTULO VI

Craig acordou sentindo tamanha felicidade que por um momento até se esqueceu da difícil e perigosa tarefa que tinha pela frente.

Tudo em que conseguia pensar era no seu amor por Aloya, na sensação de tê-la nos braços e na certeza que ela era tudo de que precisava para sentir-se realizado, completo e o homem mais feliz do mundo.

Depois de viajar por tantas terras e fazer coisas tão estranhas na vida, sabia que ela era única; não só na beleza, mas na inteligência, rapidez de pensamentos e, acima de tudo, tinha a mesma intuição e percepção que ele.

Tamanha beleza vinha da mistura de raças que resultava nos cabelos louros e nos místicos olhos russos.

Tal como Aloya e o pai, acreditava que quando duas pessoas se amam muito e têm uma grande afinidade espiritual, seus filhos possuem uma beleza que só o amor pode criar.

Melhor do que ninguém, podia entender as dificuldades que Randall Sare devia ter enfrentado ao ser forçado a manter seu casamento em segredo, por causa do trabalho.

Craig estava certo de que não só as autoridades teriam ficado chocadas por ele casar-se com uma russa, mas também os inimigos poderiam usar sua mulher e filha como armas contra ele, como estava acontecendo agora.

Ainda era difícil conceber Aloya e a mãe viajando através do desfiladeiro frio, traiçoeiro e extremamente perigoso que ligava a índia ao Tibete.

Gyangtse, a primeira cidade dentro do território proibido, era um centro comercial; por isso elas não deviam ter despertado tanto interesse ou hostilidade quanto despertariam no interior do país.

O dia amanhecia, com os primeiros raios de sol despontando no céu, e Craig pensava que só Randall Sare seria capaz de deixar a esposa e a filha em semelhante lugar e partir para o desconhecido, tão bem disfarçado que ninguém deveria ter sonhado que era um espião ou um inimigo.

Isso seria fácil na índia ou em outros países do Oriente; mas o povo do Tibete tinha uma percepção toda especial. Alguns dos velhos monges dos grandes mosteiros podiam usar o que os leigos chamariam de clarividência ou mágica, mas que na realidade era um poder sobrenatural para encontrar a verdade.

Craig entendia muito bem por que Sare, depois de ter perdido a esposa que amava profundamente, achara que a única coisa sensata a fazer seria levar a filha para a segurança da Inglaterra.

Mas, afinal, por causa da reputação que tinha e porque para os russos era um homem marcado, agora estavam os dois naquela perigosa situação, onde um só passo em falso seria a destruição.

A idéia de perder Aloya era tão insuportável como se lhe cravassem milhares de punhais no coração, e Craig sentia claramente que, se ela morresse, morreria também.

“Eu teria apostado toda a minha fortuna que nenhuma mulher me faria sentir o que sinto neste momento. Agora reconheço que todas as palavras que os poetas escreveram sobre o amor eram verdadeiras.”

Tentou não se deixar levar pelos sentimentos e manter a calma e o sangue frio para poder concentrar-se no que tinha a fazer.

Na véspera, ao levar Aloya para os aposentos dela, havia dito:— A partir deste momento, deixe tudo em minha mãos. Confie em mim, reze e envie

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vibrações para seu pai. Nós dois sabemos que ele as receberá.— Você também... fará isso?— Sabe que farei. Continuarei lhe dizendo para estar preparado, e sei que ele vai

entender.Era a única mulher no mundo com quem poderia falar assim.Depois, beijou-a loucamente, até os dois ficarem quase sem fôlego, os corações

batendo freneticamente.— Eu te amo, e o amor sempre vence.— Tem certeza... de que me ama?— Olhe para mim!Quando Aloya obedeceu, Craig achou que nenhuma mulher poderia ser mais linda e

que precisavam um do outro como do ar que respiravam.Mas no olhar dela ainda havia medo, embora a preocupação e a ansiedade tivessem

sido substituídas por um amor que fazia vibrar todo o corpo de Craig.Beijou-a novamente e, fechando as portas, voltou para seu quarto.Agora, tinha que planejar passo a passo o que precisava fazer, antecipando-se e

preparando-se para tudo que pudesse acontecer, analisando detalhe por detalhe, obedecendo sempre à regra sagrada de jamais correr riscos desnecessários.

Mais tarde, passeando pelo hotel até a quadra de tênis, ninguém imaginaria que ia pensando em outra coisa além do jogo.

O profissional já estava, esperando e, como de costume, Craig conseguiu ganhar no último set, combinando outro jogo para o dia seguinte.

Na volta, dirigiu-se para o Hermitage.— Lorde Neasdon já desceu? Gostaria de falar com ele.— Bom dia, sr. Vandervelt — respondeu, sorrindo, o recepcionista. — Sua Senhoria

está na sala, tomando o café da manhã. Quer que mande avisar que o senhor está aqui?— Eu mesmo vou até lá.Foi até o restaurante, pensando que era uma atitude tipicamente inglesa tomar o café

lá embaixo, em vez de mandar levá-lo ao quarto.Havia poucas pessoas na sala, e lorde Neasdon estava sentado junto a uma janela,

lendo o jornal.— Bom dia, Vandervelt — disse, em um tom não muito amável. — Você acorda

cedo.— Desculpe incomodá-lo, mas gostaria muito que almoçasse comigo hoje, a bordo

do Sereia. Vou dar um almoço no iate e estou ansioso para que você e a condessa o conheçam.

Teve a impressão de que Neasdon tentava encontrar uma desculpa para não ir, mas, antes que ele pudesse falar, Craig continuou:

— Já mandei um recado para a condessa e terei muito prazer em levar os dois no meu carro, que estará esperando na entrada do Hotel de Paris à uma hora.

Lorde Neasdon não podia fazer nada, além de aceitar.— Esplêndido! — exclamou Craig. — Até logo, então. Talvez possamos dar um

passeio pela costa se o tempo estiver tão bom como agora.Afastou-se e, com um sorriso de satisfação, voltou para o hotel.Como não queria deixar de fazer tudo que fazia habitualmente, passou as duas horas

seguintes na sua sala, escrevendo cartas, enquanto o seu secretário pagava contas. Pouco antes do meio-dia, foi ao terraço.

Cumprimentou os amigos e encontrou o grão-duque e Zsi-Zsi com várias pessoas.

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Foi ter com eles, recebendo uma série de convites, que aceitou, até que ao meio-dia pegou o carro e foi para o porto.

O secretário já tinha levado as instruções para o iate, e, assim que entrou, o capitão lhe disse:

— Está tudo preparado, senhor. Espero que esteja do seu agrado. O chefe reclamou que teria pouco tempo, mas não creio que o senhor fique desapontado com o cardápio.

— Com certeza que não. E agora, capitão, vamos até o salão; preciso de falar com o senhor.

O salão, pintado de verde-claro, com os tecidos de chintz estampado combinando, era muito bonito e uma novidade no mundo dos iates, tradicionalmente decorados com couro e paredes em mogno envernizado.

Fechando a porta o capitão ficou aguardando as ordens, que Craig transmitiu devagar e claramente, para ter certeza de ser bem entendido.

Assim que acabou de falar o capitão comentou, atônito:— Parece inacreditável, senhor!— Concordo com você, mas quando o contratei mandei investigar seus antecedentes

e sei que também teve várias experiências traumatizantes, que sempre obedeceu às ordens com um heroísmo que deveria ser louvado.

O homem ficou embaraçado, mas contente.— É muita amabilidade sua, senhor.— Depois de tudo que lhe disse vai entender a razão de eu ter contratado um

comandante inglês, embora eu seja americano.— É um grande elogio, senhor.— Então, vá apressar seus homens e cuide para que não cometam nenhum engano. O

que vai acontecer tem que ser praticamente cronometrado.— Compreendo, senhor. Fez um cumprimento elegante, e Craig teve certeza de que no olhar dele havia uma

admiração que não existia antes.Divertido, pensou que no passado o capitão comandava o iate e obedecia à risca as

ordens que recebia, mas no fundo sempre lamentara o fato de ele ser americano.Isso já lhe acontecera antes. Sempre que estava em missão sob o comando de

ingleses aturava a arrogância deles, por pensarem que era menos inteligente e de certa forma inferior por ser de outra nacionalidade.

Mas no momento não tinha tempo para recordações. Foi até a sala de jantar, também decorada em tons de verde. A mesa estava enfeitada com camélias. No centro havia um galeão de prata feito em Veneza, no século XVI, e o resto da prataria era da época georgiana. Craig ficou imaginando se os convidados gostariam do Sereia.

Tudo ali era de ótimo gosto e qualidade, principalmente os quadros a óleo. Bastava olhar para eles para saber que nenhum outro iate navegava com tantas preciosidades.

Nos porta-garrafas de prata estavam champanhes e vinhos das melhores vinhas francesas. Enquanto Craig passava uma revista em tudo, o mordomo aproximou-se, elegantemente uniformizado.

Craig transmitiu-lhe as ordens, tal como fizera com o capitão, claras e precisas, para não haver nenhum mal-entendido. Depois, voltou ao salão.

Exatamente na hora prevista, o barão Strogoloff foi levado para bordo na sua cadeira de rodas e recebido pelo secretário de Craig, sr. Cavendish. Estava acompanhado por dois russos musculosos e de feições duras, mas impecavelmente vestidos, que pareciam pouco à vontade e deslocados.

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Bastou olhar para eles, antes de cumprimentar o barão, para Craig ter certeza de que eram os tais técnicos que deveriam tomar nota de tudo que vissem e depois transmitir as informações à Marinha russa.

Sorrindo, estendeu a mão ao barão.— É um prazer vê-lo, senhor. Tenho muito que lhe mostrar depois do almoço.Depois dos cumprimentos, apareceram imediatamente os empregados, servindo

vodca.Os russos beberam de um só trago e os copos foram logo enchidos novamente,

enquanto Craig sentava-se perto do barão, perguntando, com um ar de garoto ansioso:— O que acha da decoração de meu tio?— Certamente, fora do comum, sr. Vandervelt.— Já sabia que ia achar isso. Não imagina como os construtores discutiram comigo,

tentando me convencer a seguir as linhas tradicionais.— Vejo que tem alguns quadros ótimos.— É verdade, e seria um desastre se naufragássemos; mas não creio que isso possa

acontecer.— O mar é sempre um risco — comentou o barão, pomposamente.Craig riu.— Tal como muitas outras coisas na vida. Seu secretário entrou no salão.— A condessa Aloya Zladamir e lorde Neasdon, senhor! Craig levantou-se.— Que prazer em vê-la, condessa! Está mais encantadora do que a própria

primavera. Tenho uma surpresa para a senhora. Como me disse que ainda não conhecia seu compatriota, barão Strogoloff, convidei-o para este almoço também.

Quando segurou a mão de Aloya, percebeu que estava assustada. Mas, representando bem seu papel, ela respondeu:

— Não, não conheço o barão, mas já estive admirando o lindo iate que ele possui.Atravessou o salão para ir cumprimentá-lo e Craig voltou-se para lorde Neasdon.— Bem-vindo a bordo!Aloya estava junto do barão e Craig percebeu que, animada pela confiança que tinha

nele, não parecia mais apavorada, como seria normal.Assim que se aproximou, ela comentou:— Que cabine encantadora! Completamente diferente do que eu esperava!— Que bom ouvir isso. O barão também elogiou os meus quadros.— São lindos, maravilhosos! Espero poder ver o iate todo antes de ir embora.— Mas é claro, condessa. Os quartos são fora do comum; pelo menos, é o que as

revistas americanas acham. As fotografias do meu iate já apareceram em todas.— Estou ansiosa para ver tudo.Aloya estava tão linda que Craig tinha que fazer um esforço enorme para não deixar

transparecer seu amor e sua admiração. Seria um grande erro subestimar o barão. Como se houvesse uma transmissão de pensamentos, Aloya foi para junto de lorde Neasdon, dando-lhe o braço.

— O que você acha?! Olhou para ele provocantemente, o que fez com que Craig tivesse vontade de agarrar

seus braços e proibi-la de comportar-se daquela maneira com outro homem. Mas sabia que estava apenas seguindo suas instruções.

— Imagino que esses quadros sejam originais — comentou Neasdon.

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— Está me insultando! — respondeu Craig, brincalhão.— Tenho certeza de que não há nada no sr. Vandervelt que não seja... autêntico —

comentou Aloya, recusando um copo de vodca e preferindo champanhe. Neasdon ficou indeciso entre as duas bebidas.

— Acho que nunca bebi vodca.— Deve experimentar — disse Craig. — É a bebida tradicional russa, que se bebe

com caviar. Como o barão deve confirmar, estimula todo o organismo.— Bem, creio que devo arriscar — decidiu o lorde, em um tom que demonstrava

bem que era a última coisa que lhe apetecia.Pegou um copo e ia experimentar, quando Aloya exclamou:— Não, não! Não é assim que se bebe vodca. Deve tomar de um trago só. Não é

barão?— Tem toda a razão, senhora.Craig tinha o pressentimento de que o russo estava um pouco desconcertado por

encontrá-la ali e não sabia bem o que fazer.Os copos de vodca se encheram e esvaziaram várias vezes, antes de o almoço ser

servido.Nesse momento a cadeira de rodas foi levada para a sala de jantar, onde o barão ficou

à esquerda de Craig, Aloya à direita e lorde Neasdon ao lado dela.Os dois russos ocuparam os lugares ao lado e em frente do patrão.O capitão tinha razão ao dizer que o chefe havia caprichado, a comida estava

deliciosa. Mas Craig teve que se esforçar para comer e Aloya também, sentindo um aperto na garganta.

Lorde Neasdon, perfeitamente à vontade, comeu .sem parar.Craig sabia que o outro não só não gostava dele como tinha inveja de tudo que

possuía, e fazia o possível para ser simpático, enquanto Aloya elogiava tudo, até as camélias e o centro de mesa.

— Faço coleção de navios — explicou Craig. — Como gosto muito do mar, tenho vários modelos antigos em prata e ouro e alguns com pedras preciosas.

— Que maravilha! Adoraria ver sua coleção.— Espero um dia poder ter o prazer de lhe mostrar, condessa.Falou com naturalidade, mas dentro do coração sentia a ansiedade não só de lhe

mostrar o que possuía, como também de compartilhar com ela.Entretanto, para não levantar nenhuma suspeita no barão, conversou animadamente,

mexericando sobre Monte Carlo e contando histórias sobre suas viagens pelo mundo.Falava de maneira tão divertida que ninguém podia deixar de rir, e notou que o barão

estava mais relaxado à medida que ia bebendo. Até suas mãos se pareciam menos com garras.

Querendo se gabar, lorde Neasdon contou uma longa e aborrecida história de seu encontro com ladrões, em um desfiladeiro na Suíça. Quando acabou, Craig aproveitou a deixa, contando outra história sobre uma perseguição que tinha sofrido de uns piratas, na costa da Malásia.

— Tive muita sorte por meu iate ser mais rápido que o barco deles. Senão, não estaria aqui agora.

— Deve ter sido aterrorizante! — disse Aloya.— Quando se está em perigo, muitas vezes a gente sente uma excitação toda

especial.— Por quê?

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— Porque o cérebro e o corpo são exigidos acima dos limites normais, e, se as forças forem iguais, é um desafio para nós mesmos.

— E. . . se as forças não forem iguais? — perguntou em voz baixa, e Craig sabia bem no que ela estava pensando.

— Temos que confiar no imprevisto ou talvez em um poder maior do que nós, que está sempre à nossa disposição se soubermos usá-lo.

Viu que a expressão dela mudou. Entendera o que ele queria dizer e, continuando a seguir suas instruções, voltou-se para lorde Neasdon, perguntando:

— Já sentiu isso alguma vez?— Sempre confiei em mim e na minha cabeça. Por isso os ingleses têm sempre saído

vitoriosos, nos campos mais diversos.— É verdade — comentou Craig. — Mas parece que agora não estão se saindo muito

bem contra os bôers. — Vendo que o lorde havia ficado tenso e não querendo provocá-lo, apressou-se em dizer: — Mas não vamos falar em política. Hoje é dia de festa; vocês são meus primeiros convidados a bordo de Sereia e quero que façam um brinde, desejando sucesso ao iate e um porto seguro por onde quer que navegue.

— Claro que vamos brindar! — disse Aloya, batendo palmas.Os empregados entraram com copos e vinho.— Este é o vinho mais famoso com que se brinda na Europa. Chama-se Tokay; todos

vocês sabem que vem da Hungria e é muito apreciado pelos austríacos, como tenho certeza de que o barão pode confirmar.

— É verdade, mas nunca experimentei.— Então, será a primeira vez para o senhor; o primeiro almoço a bordo do Sereia e a

primeira vez em que tenho uma convidada tão linda como a condessa.Aloya ficou envergonhada e corou.Não querendo ficar para trás, lorde Neasdon disse:— Proponho um brinde! Ao Sereia, a seu proprietário e, é claro, a alguém que é mais

linda e mais deslumbrante do que qualquer sereia que possa ser encontrada no mar!Olhando para Aloya, levantou o copo e acrescentou:— Não vale deixar nada no copo!Com prazer, os russos obedeceram e beberam o Tokay na mesma velocidade que a

vodca.— Foi um brinde muito amável — disse Aloya, que apenas experimentou um pouco.— Obrigado. Sabia que iria agradá-la.Falou de modo tão íntimo, que Craig teve que cerrar os dentes para não se trair.

Virou-se para Strogoloff.— Estou curioso por saber, barão, por que o senhor trouxe dois iates para Monte

Carlo.O outro hesitou, tentando encontrar uma boa explicação, mas nesse momento ouviu-

se um baque na mesa, quando um dos russos caiu, batendo com a cabeça na xícara de café, que se derramou na toalha branca.

Furioso, o barão falou em russo para o homem que estava a seu lado e Craig conseguiu entender que censurava aquele exemplo triste de bebedeira.

Mas, enquanto falava, o outro russo também perdeu os sentidos. Como estava com o corpo virado para ouvir o patrão, caiu para baixo da mesa.

O barão parecia fora de si de tanta raiva. Ia começar a dizer alguma coisa, mas Craig o interrompeu, tranqüilamente:

— Não os censure, senhor. O Tokay que beberam continha um soporífero. Vão

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dormir pelas próximas três horas e depois terão apenas uma desagradável dor de cabeça.Strogoloff cerrou os punhos, endireitando-se na cadeira.— Já que os seus “amigos”, como o senhor os chamou, não vão poder desfrutar do

resto da visita ao iate — continuou Craig —, sugiro que outro convidado seu tome o lugar deles. O sr. Randall Sare.

— Eu não admito! Não admitirei nunca!— Muito bem. Se não mandar trazê-lo, darei ordens para o Sereia partir e,

infelizmente, vai haver um acidente muito desagradável, do qual seus guarda-costas não serão capazes de contar muita coisa. — Fez uma pausa, antes de acrescentar: — Uma cadeira de rodas pode cair facilmente no mar.

Depois de um longo silêncio, o barão vociferou:— Muito bem. Vou mandar chamar Randall Sare. Mas, no estado em que está, não

lhe adiantará nada.— Isso é problema meu — respondeu Craig.Tocou uma campainha e imediatamente apareceu um empregado com um bloco com

o monograma do iate, tinta e caneta.— O senhor vai escrever — mandou Craig —, dizendo a quem estiver no comando

do Tsarevitch para trazer Randall Sare para cá, para o meu carro, que está esperando na rampa do seu cais.

Os músculos do rosto do barão estavam contraídos de tanta raiva, mas escreveu tudo no papel, assinando em seguida.

Craig pegou a folha e entregou-a a Aloya.— Veja se o barão escreveu exatamente aquilo que mandei e se não está enviando

alguma instrução disfarçada.Ela leu tudo cuidadosamente.— Acho que está certo.Craig pegou o bilhete e, voltando-se para o russo, disse:— Se por acaso o senhor deixou instruções para matarem Randall Sare, ou para o

tirarem da prisão onde está, deixe-me esclarecer uma coisa; se ele não chegar aqui vivo, sua vida responderá pela dele.

— Você não se atreveria!— Eu não apostaria nisso — respondeu Craig, calmamente. Olhando para ele, Aloya teve a sensação de que irradiava uma força que amedrontava

o russo.O olhar dos dois homens se encontrou em desafio, e foi o barão quem afastou os

olhos primeiro, dizendo rudemente:— Sare virá. Porém, mais cedo ou mais tarde, nós o apanharemos, Vandervelt. E a

você também!— Acho que é uma possibilidade muito remota — respondeu Craig, despreocupado. Chamou um empregado ao qual entregou a folha de papel. O homem colocou-a

dentro do envelope e saiu sem ter que ouvir nenhuma instrução.— Sugiro irmos todos até o salão, barão. É muito triste ficarmos aqui sentados com

os seus compatriotas inconscientes. Lá é mais confortável, e tenho certeza de que vai apreciar um copo de conhaque para terminar a refeição e, talvez, tirar o gosto do Tokay.

Assim que Aloya se levantou, lorde Neasdon não se conteve mais.— Exijo que me explique por que não fui informado de que esse tipo de coisa iria

acontecer!— A única explicação que tenho para lhe dar estará no relatório que vou enviar ao

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seu superior no Ministério do Exterior. E, para o seu bem, espero que ele seja compreensivo.O aviso fez lorde Neasdon empalidecer. Quando entraram no salão, sentou-se em

uma poltrona com um ar petulante, sem olhar para Craig ou Aloya. Pegou um jornal e, só depois de fingir que estava lendo havia vários minutos, reparou que o jornal estava de cabeça para baixo.

O barão permanecia em silêncio, provavelmente procurando desesperado uma saída para aquela reviravolta inesperada.

Craig só se preocupava com Aloya. Como se percebesse o que ele sentia, ela andou pelo salão, vendo e discutindo quadro por quadro, observando os livros de uma grande estante, em um canto.

Passado pouco tempo, mas que para todos foi uma eternidade, o secretário de Craig abriu a porta, dizendo:

— O carro chegou, sr. Vandervelt. Sem dizer uma palavra Craig saiu, a tempo de ver Randall Sare descendo do carro.Com ele estavam dois russos; um o ajudava a andar e outro vinha atrás. Craig sabia

que não o acompanhavam apenas para ajudar, mas para impedir que fugisse.Na plataforma de entrada, só havia espaço para uma pessoa entrar de cada vez. Os

russos subiam a escada com Randall Sare no meio dos dois.Assim que o primeiro entrou a bordo, um dos marinheiros passou-lhe o braço em

volta do pescoço puxando-o para trás, ao mesmo tempo em que Craig, com uma perícia de anos de prática, agarrou Sare, afastando-o do outro.

O russo tentou tirar o revólver do bolso, mas era tarde demais. Já estava sob a mira das armas de dois marinheiros, que levaram os russos enquanto Craig conduzia Randall Sare para o salão.

Ao colocar o braço em volta dos ombros dele, sentiu como estava esquelético. Por sua expressão, percebeu que ainda não voltara totalmente à consciência.

Assim que entraram no salão, alguém fechou imediatamente a porta e Aloya deu um grito de alegria:

— Papai!Atirou-se ao pescoço do pai, que sorriu, saindo do transe.— Você está bem, minha querida? — A voz de Randall estava fraca e rouca.— Eu é que devo perguntar, papai — disse Aloya, com as lágrimas correndo pelo

rosto.— Estou bem, mas ainda um pouco confuso. Craig ajudou-o a sentar-se.— Vou lhe trazer uma taça de champanhe, mas o mais importante é que coma

alguma coisa.— Sim, você deve estar com muita fome, papai. Nesse momento, entrou um empregado trazendo uma sopa em uma bandeja de prata,

que colocou ao lado dele.— Leve e nutritiva — disse Craig, brincalhão. — Nunca me esqueci de que você me

disse isso, há muito tempo atrás.— Tem boa memória, Craig. Recebi sua mensagem, ontem à noite.— Eu sabia que a receberia.O olhar dos dois se encontrou, e eles se sentiram muito ligados um ao outro.Aloya ajoelhou-se ao lado do pai, que lentamente começou a tomar a sopa.Craig foi até o barão.— Embora seja uma pena nossa amizade terminar tão depressa, acho que tenho que

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mandá-lo de volta ao seu iate. Meu carro está lá fora esperando para levá-lo, e seus amigos estão prontos para acompanhá-lo. Os outros dois cavalheiros que continuam adormecidos serão deixados no cais. Ou os seus homens os levam, ou a polícia.

Viu a fúria no rosto de Strogoloff e acrescentou:— Seus guarda-costas terão que deixar aqui algumas armas perigosas, que permita-

me dizer, os cavalheiros normalmente não levam quando são convidados para almoçar.O barão tremia de raiva, apertando as mãos com tanta força que cravava as unhas nas

palmas.Craig tocou uma campainha e, quando seu secretário entrou, disse-lhe:— Mande levar o barão para o meu carro. Só quando ele estiver lá dentro pode deixar

os últimos dois russos desembarcarem. — Virou-se para o velho na cadeira de rodas. — Estamos de partida; mas, se o senhor tiver a infeliz idéia de mandar seguir o Sereia, fique desde já avisado que não valerá a pena. Meu iate tem o dobro de velocidade dos seus. Por isso, é melhor ser sensato e desistir já da idéia.

Ainda em um tom provocador, continuou:— Vá embora, antes que eu me arrependa de não ter acabado com o senhor enquanto

tive oportunidade.Sem poder mais conter-se, o barão praguejou em russo.Aloya, entendendo, murmurou um protesto qualquer e a um sinal de Craig o

secretário levou o homem para fora do salão, fechando a porta.Ouviu-se o barulho dos motores em funcionamento e, assim que os cinco russos

foram desembarcados, a escada foi levantada e o Sereia partiu.Só então lorde Neasdon, que estava irritado demais para conseguir falar, perguntou:— Para onde estamos indo? Aonde vai nos levar?— Primeiro, para Nice — disse Craig. — Como não queremos estragar suas férias,

será desembarcado lá.Vendo que o lorde parecia preocupado, tranqüilizou-o:— Não precisa ter medo. Os russos não têm mais necessidade de você, e estou certo

de que, quando voltar, os dois iates já não estarão mais no porto de Monte Carlo.— Eles não vão... nos seguir? — perguntou Aloya, nervosa.— Não há a menor possibilidade. Aquelas duas velharias são lentas demais, e já

estaremos a quilômetros da costa.— Acho que é desnecessário perguntar para onde estamos indo — disse Randall

Sare.— Estou levando você para um lugar seguro, que foi a primeira coisa que me

pediram. A segunda, foi livrar lorde Neasdon da astúcia de uma espiã russa.Aloya deu uma risada e o lorde exclamou, furioso:— Isso é uma mentira!— Acho que é mesmo — respondeu a moça. — Eu devia obter informações suas,

mas não fui muito... eficiente.— Não posso acreditar! Quer dizer que estava apenas tentando me envolver, para

arrancar informações, quando dizia todas aquelas coisas?Pela primeira vez, Craig teve pena dele.— Neasdon, sugiro que deixemos Randall Sare e a filha a sós e vamos para o convés

certificar-nos de que os russos não têm nenhum equipamento fantástico que lhes permita seguir-nos ou afundar-nos.

Falou brincando, sabia que Aloya não ia ficar nem um pouco preocupada. Mas lorde Neasdon levantou-se, com ar preocupado. Como não podia dizer nem fazer mais nada,

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acompanhou Craig.Assim que chegaram ao convés, o lorde murmurou:— Não posso acreditar! É incrível! Pensei que ela gostasse de mim.— Foi obrigada pelos russos. Quando chegar a ter a experiência que tenho, você vai

aprender que nunca se pode correr riscos.— Como eu ia adivinhar? Como poderia supor que ela estava tentando me tirar

informações e que o que dizia era tudo mentira?— Ela estava tentando salvar o pai. Disse-me como se sentia mal, tendo que enganar

você. Mas a vida de Sare estava em jogo.— Acredita que eles o teriam matado?— Sim, depois de o torturarem.— Eu não sabia que essas coisas ainda aconteciam hoje em dia!— Na sua nova posição no Ministério do Exterior, vai descobrir que o mundo pode

ser muito diferente da experiência que teve nas confortáveis embaixadas na Europa.— Como sabe tudo isso? Afinal de contas, é americano.— Até os americanos são úteis de vez em quando. A propósito, nós nunca fazemos

perguntas aos outros; nem revelamos o que estamos fazendo, ou já fizemos, ou de quem recebemos instruções.

Falou como um professor a um aluno, e Neasdon pareceu encabulado. A seguir, Craig foi até a cabine de comando e pediu ao capitão:

— Mostre a lorde Neasdon os nossos últimos equipamentos. Tenho certeza de que ele vai gostar.

Deixou o inglês com o capitão e voltou para o salão.— Você foi maravilhoso, realmente maravilhoso, salvando-nos de maneira tão

inteligente! Papai e eu não sabemos como agradecer — disse Aloya.— De uma maneira muito simples.Os dois olharam para Craig, que disse a Randall Sare:— Acho que compreende que, quanto mais depressa Aloya e eu nos casarmos, mais

depressa ela estará em segurança!

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CAPÍTULO VII

Craig observava a partida de lorde Neasdon, que estava sendo levado para o cais em um barco.

Um pouco antes de o barco chegar para buscá-lo, Craig lhe havia dito:— Quando fizer seu relatório para o Ministério do Exterior, se disser que sabia desde

o princípio que a condessa Aloya Zladamir não era quem fingia ser e que estava tentando certificar-se das intenções dos russos, não vou contradizê-lo.

Neasdon, até então muito deprimido, pareceu criar alma nova.— O que quer dizer com isso?— Primeiro, que entendo perfeitamente o que sentiu pela condessa; e apenas que não

quero ser eu a prejudicar uma carreira que, tenho certeza, será brilhante.— É muito generoso, Vandervelt. — Não havia tempo para mais. Os marinheiros já

desciam a escada de corda para ele desembarcar. — Obrigado.Assim que o barco se afastou, Craig disse para o imediato:— Mande o capitão partir em grande velocidade!Foi ter com Randall Sare e Aloya na cabine, e quando repetiu que para a segurança

da moça era melhor se casarem rapidamente, os olhos de Sare se iluminaram. Mas, antes que pudesse falar, sua cabeça tombou e só conseguiu murmurar:

— Eu... estou... muito cansado.Craig sabia que o amigo tinha feito um esforço sobre-humano, desde que saíra do

transe, e que agora a exaustão havia chegado ao limite máximo. Pegou-o nos braços, como se fosse uma criança e saiu do salão, seguido por Aloya.

Um dos empregados aproximou-se correndo e Craig ordenou:— Quero que dispa o sr. Sare e o coloque na cama o mais rápido possível. Não o

perturbe, ele está dormindo.A cabeça de Randall estava encostada no ombro de Craig, em um sono profundo, do

qual levaria muito tempo para acordar.Deixando-o com o empregado, pegou o braço de Aloya e levou-a para fora do quarto.— Papai... está bem?— Está sim, não se preocupe. Deve dormir umas vinte e quatro horas, mas já comeu

alguma coisa e isso é que era importante.— E você... o salvou!Levou-a até sua sala particular, onde costumava refugiar-se quando tinha convidados

no salão.Havia uma escrivaninha, um sofá, duas poltronas confortáveis e um quadro

magnífico, representando uma batalha naval entre os ingleses e um galeão espanhol.Mas Aloya só tinha olhos para o homem a seu lado. Ainda emocionada, falou:— Como posso lhe agradecer por nos salvar? Não tenho palavras para lhe dizer o que

significa para mim ver papai livre das mãos daqueles homens diabólicos.— Eu lhe mostro como quero que me agradeça. — Levou-a até o sofá e beijou-a

apaixonadamente, como se tivesse medo de perdê-la.Para Aloya, era como estivesse sendo tirada do inferno e levada ao céu. Mal podia

acreditar que não havia mais razão de ter medo; que o pai não seria torturado e morto e que ela não ficaria à mercê de seus assassinos.

Mas naquele momento era difícil pensar em outra coisa que não fosse em Craig e nas sensações que ele lhe despertava.

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Só quando pararam de se beijar e ele viu em seu rosto uma nova beleza, despertando da felicidade, a moça conseguiu dizer:

— Amo você e quero me ajoelhar a seus pés para agradecer por ter sido tão maravilhoso.

— Seus lábios dizem tudo isso melhor em um beijo — respondeu Craig, com uma voz profunda e excitada.

Nunca antes na vida atribulada que levara, cheia de casos de amor, sentira o que sentia agora. Não só desejava ardentemente Aloya como mulher, mas sabia também que entre os dois havia uma ligação espiritual muito forte, como se fossem uma só pessoa.

— Está mesmo resolvido, como disse a papai, a casar comigo? — perguntou, corando de timidez.

— Claro que quero casar. Mas só se você quiser, minha querida.— Que pergunta... absurda! Não posso imaginar nada mais maravilhoso do que estar

casada com você, se me ama de verdade.— Eu te amo como nunca amei ninguém na vida. Embora você talvez não acredite, é

verdade. Aloya, nunca disse que amava mulher alguma.— Verdade?— Juro. Nunca encontrei alguém tão perfeita, e você sabia tanto quanto eu que havia

uma ligação espiritual entre nós, mesmo antes de descobrirmos que nos amávamos. — Beijou-lhe os cabelos, antes de acrescentar: — Como pude ter tanta sorte de encontrar você, quando menos esperava?

Ela deu uma risadinha e perguntou:— Como se apaixonou por mim, pensando que eu era uma espiã russa?— Meu instinto me disse que você não estava fazendo aquilo de livre e espontânea

vontade. Mesmo que estivesse, ainda assim eu teria amado você e seria incapaz de me libertar.

Aloya olhou para ele e, subitamente, a felicidade que transparecia em seu rosto transformou-se em medo.

— E se... o barão... levar avante a ameaça de matar você e papai?— Ele não fará isso.— Como pode ter certeza?— Depois eu digo. Agora, quero conversar com você, dizer-lhe o quanto a amo e

ouvir que fui o único homem que amou.— Isso é fácil, porque nunca conheci o amor antes de conhecer você e descobrir que

esteve sempre nos meus sonhos.— E você, nos meus.Voltou a beijá-la sem parar, até sentirem-se voando pelo firmamento, rodeados de

uma felicidade que transcendia o corpo, a alma e os lábios.Um século depois, pelo menos foi o que acharam, bateram na porta e Craig foi abrir.Percebendo que o empregado queria falar com ele, Craig foi para o corredor,

fechando a porta da sala.— O sr. Sare está bem?— Ainda está dormindo, senhor. Deitei-o confortavelmente, mas aqueles demônios o

cortaram com uma faca e o queimaram com pontas de cigarro!Craig apertou os lábios. Já esperava isso. Os russos usaram tal expediente para saber

se o transe era real ou fingimento.Felizmente seus empregados tinham experiência de primeiros socorros. Perguntou se

haviam tratado dos ferimentos.

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— Fiz tudo que podia no momento, senhor. Agora, o melhor para ele é dormir. Sempre que acordar eu lhe darei alguma coisa para comer.

— Quero que fique sempre alguém de plantão ao lado dele.— Sim, senhor — respondeu o empregado, meio ofendido por achar que Craig

poderia pensar que já não tivesse tomado essa providência.— Obrigado. Você deve entender que, a não ser que seja estritamente necessário, não

quero chamar um médico. Teria que dar explicações que prefiro não dar.— Pode deixar comigo, senhor. E diga à moça que não precisa ficar preocupada com

o pai.— Vou tentar.Não queria que Aloya soubesse que Randall tinha sido torturado. Mas, quando voltou

para a sala, mais uma vez parece que tinha havido uma transmissão de pensamento.— Papai está bem? Os russos não... lhe fizeram mal?— Ele vai ficar bem. Meus empregados sabem tratar de doentes e às vezes são mais

eficientes do que muitos médicos.— Isso quer dizer que já trataram de você quando foi ferido em alguma missão,

como papai?— Nunca chegarei a fazer as coisas maravilhosas que seu pai tem feito. Sou apenas

um humilde aprendiz que tenta seguir os passos dele.— Sei que é muito mais do que isso, pela maneira como papai falou de você. E se

não nos salvasse, tenho certeza de que nos levariam para a Rússia e nenhum de nós... voltaria a ser livre novamente.

Estava quase chorando e Craig abraçou-a, dizendo:— Sendo filha de seu pai, você deveria saber tão bem quanto eu que, assim que uma

missão tem sucesso, é melhor nunca mais falar nela outra vez. Menos ainda, ficar com medo do que poderia ter acontecido. Quero que se esqueça de tudo e que se lembre apenas de mim.

— Muito fácil, porque amo você, tanto, tanto... que não existe mais nada neste mundo...

Craig não resistiu e beijou-a, até que para os dois só houvesse o bater dos corações apaixonados um do outro.

Aloya estava feliz e aquele amor a tornava ainda mais linda.Craig teria que passar várias horas escrevendo um relatório confidencial que iria para

os arquivos secretos do Ministério do Exterior, e ao qual só um ou dois ministros teriam acesso. Apenas os que estavam encarregados de tratar do problema da anexação do Tibete pela Rússia.

Mais tarde, quando o sol desapareceu, depois de terem tomado chá no salão, Aloya disse:

— Imagino que você deve se lembrar de que não tenho absolutamente nada para vestir além da roupa do corpo. Só espero que um de seus empregados possa me arranjar uma escova de dentes.

Craig sorriu.— Venha ver sua cabine. Acho que quando a decorei, já estava pensando em você.

Assim que nos casarmos você virá para a minha, que é maior, mas precisa de um toque feminino.

Ela corou, envergonhada, e Craig achou que ficava ainda mais bonita. Dando-lhe a mão, foram ver a cabine que ficava na frente da sala.

Era azul Nilo, com a colcha em tons coral; cores que os egípcios usavam muito em

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seus templos.— Que lindo!Sem dizer nada, Craig abriu uma das portas do armário embutido e ela viu,

espantada, todos os vestidos que os russos haviam mandado fazer para atrair lorde Neasdon.Olhou-o, como se pedisse uma explicação.— Você menospreza minha capacidade de organização! Achei que seria uma

injustiça desperdiçar um enxoval tão caro e bonito. Vai usá-lo, até que eu possa, como desejo, comprar-lhe os vestidos mais lindos que uma mulher já teve.

— Mas... como conseguiu trazê-los?— Antes de deixar o hotel, mandei meus dois empregados ao seu quarto colocar tudo

nas malas.— Mas... Olga, minha criada russa, não tentou impedir? Craig deu uma risada.— Acho que tentou qualquer coisa, mas meus homens resolveram o assunto.Viu o horror estampado no rosto de Aloya e apressou-se a explicar:— Eles não a machucaram. Só a amarraram e amordaçaram, e ela teve que ficar

vendo guardarem todas as suas coisas! Mandei deixar as jóias do barão amarradas no pes-coço dela, para que não houvesse possibilidade de mais tarde meus homens serem acusados de roubo.

Falou tão divertido, que Aloya deu uma gargalhada.— Mal posso acreditar! Olga era uma mulher assustadora.— Imagino que as camareiras do hotel ainda levaram um certo tempo para descobri-

la no quarto. Provavelmente, só agora devem ter dado com ela.Aloya deu outra risada, passando os braços em volta do pescoço dele.— Como é que consegue pensar em tudo? Vou estar sempre com medo de você me

achar incompetente como esposa e, principalmente, como dona de casa.— Você é tudo que sonhei, e é isso que importa. Beijou-a de novo, até que um movimento do navio os desequilibrou um pouco.— Quero que vá se arrumar muito linda para mim, querida. Embora ache difícil ficar

mais bonita do que está agora. Mas, daqui a meia hora, verei se estou enganado!Aloya riu, e Craig não conseguiu deixar de lhe dar outro beijo. Depois, ela o

empurrou gentilmente e entrou na cabine, fechando a porta.Ele também foi para a cabine, pensando que nunca se sentira tão feliz na vida.Quando Aloya apareceu no salão, a noite já tinha caído e as estrelas começavam a

aparecer no céu.O mar estava calmo e as luzes do iate refletiam-se nas águas, enquanto a iluminação

ao longo da costa tornava a paisagem tão linda que Craig sentiu que nunca mais se esque-ceria daquele momento.

Ao ver Aloya, convenceu-se de que realmente nunca tinha visto nada mais bonito. Era mais linda do que os picos do Himalaia, o sol se pondo no deserto ou o luar no Taj Mahal.

Usava um vestido parecido com um sari, drapeado sobre um ombro e preso na cintura.

Como se o estilista tivesse tentado captar a misteriosa profundidade do olhar dela, o tecido era cor de malva, bordado a prata e pedras cor de ametista.

Era lindo, mas Craig só tinha olhos para a pele translúcida de Aloya, o prateado de seus cabelos e o brilho dos olhos, que lhe diziam mais do que palavras o quanto ela o amava.

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Ficaram um momento olhando um para o outro, até que ela correu para os braços dele, à procura de segurança e carinho.

— Está linda, minha querida. — Era o que eu queria ouvir.Tinham tanto para dizer um ao outro, que ficaram na mesa ainda muito tempo depois

de os empregados acabarem de servir o jantar. Depois foram para o convés, olhar as estrelas.

— Como pude ser tão idiota e duvidar que Deus e a força em que acreditamos fossem capazes de salvar papai e a mim? Agora sinto vergonha de ter tido tanto medo... Mas, até você aparecer, parecia que não tínhamos salvação.

— Precisamos ter fé. O mundo precisa ter fé, acreditar que nunca estamos sozinhos e que essa força estará sempre presente se a escolhermos como arma.

— Você compreende! E eu pensei que não havia mais homens no mundo que pensassem como papai.

— Temos tanto que aprender. . . E será muito mais excitante, minha querida, porque vamos fazer isso juntos. Vai ser melhor do que nunca explorar o desconhecido e descobrir os segredos do universo, que muito poucos conseguem.

— E você é um deles — murmurou Aloya.— Amanhã estaremos em Marselha. Agora, quero que vá dormir e não se preocupe

com coisa alguma — disse Craig, levando-a para baixo.Aloya olhou para ele, que percebeu que ela tinha vontade de lhe perguntar alguma

coisa. Mas ficou calada, respeitando a vontade de Craig de manter seus planos em segredo.— Tenho que ir dizer boa-noite a papai.— Claro.Abriu a porta da cabine onde Randall dormia, e o empregado que estava de serviço

saiu para deixá-los a sós.Apesar da fraca iluminação, Randall Sare parecia pálido e fraco, embora dormisse

com uma expressão tranqüila.Aloya ficou um pouco olhando para o pai, depois, ajoelhou-se ao lado dele e disse,

suavemente:— Estamos salvos, papai. E agradeço a Deus e a Craig por nos ter salvo. Estou feliz,

muito feliz, porque agora não precisamos mais ter medo.Era uma cena emocionante. Craig esperou que ela se levantasse, e ao vê-la teve a

sensação de que estava com a mesma expressão de alegria e felicidade espiritual que a Santa Devota devia ter tido quando sua alma foi para o céu na forma de uma pomba.

Ao lembrar-se da santa fez uma pequena prece, agradecendo a ajuda do padre Augustin.

A grande quantia em dinheiro que mandara seu secretário lhe dar antes de partir para o iate seria de um valor inestimável, não só para os pobres de Monte Carlo, mas para todos aqueles que por alguma razão precisavam esconder-se, como acontecera com Randall Sare.

Levou Aloya para a cabine dela, dando-lhe um beijo de boa-noite. Ao fechar a porta, sentiu o corpo tremendo de excitação que ela lhe provocava.

Ao contrário de todas as outras mulheres, das quais se fartava, ela o tornava cada vez mais sequioso de sua presença. Tinham uma ligação espiritual tão intensa que transcenderia a compreensão das pessoas comuns, que não fariam a menor idéia daquilo que realmente interessava na vida e que os dois tinham conseguido.

“Encontrei o que muitos homens procuram e jamais acham”, pensou Craig, antes de adormecer.

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Na manhã seguinte, Aloya acordou depois de um sono profundo, e sonhos maravilhosos. Era a primeira vez em muito tempo que adormecia sem medo, e sentia-se perfeitamente bem.

Deviam estar em algum porto, porque não ouvia o barulho dos motores.Levantou-se e foi abrir a cortina. Pela vigia, viu o cais e percebeu que deviam ter

chegado a Marselha.Vestiu-se correndo, ansiosa para ver Craig, sem saber bem que horas eram.Quando viu que era quase meio-dia, ficou admirada; tinha dormido catorze horas!“Craig sabia que era o que eu estava precisando. Ele pensa em tudo! Será que existe

homem mais maravilhoso?”Tocou a campainha e um dos empregados apareceu.— Como está meu pai esta manhã?— Passou a noite muito bem, senhorita. Acordou duas vezes e dei-lhe sopa quente.

Ele tomava e adormecia de novo.— Está dormindo agora?— Como um nenê. Não se preocupe com ele. Vou pegar seu café.O empregado foi embora antes que ela pudesse perguntar por Craig. Enquanto

esperava o café, ficou imaginando se ele estaria tão ansioso quanto ela para se encontrarem.Quando o empregado voltou, perguntou:— O sr. Vandervelt sabe que já acordei?— O patrão não está a bordo, senhorita, mas não vai demorar. Pediu-me para lhe

dizer, se perguntasse por ele, que daqui a pouco voltaria.Aloya colocou um dos mais lindos vestidos que o costureiro francês tinha desenhado

para ela, dizendo que seria a sensação de Monte Carlo.Como tinha odiado aquela gente toda olhando-a e a vergonha e humilhação de ser

obrigada a tentar seduzir um homem, para arrancar informações para os russos!— Se não conseguir que ele lhe diga o que queremos saber — ameaçara o barão —,

levaremos seu pai e você nunca mais o verá.Aloya deu um grito de horror, e ele acrescentou:— A decisão é sua. Faça desse homem seu amante. Uma mulher consegue saber tudo

que quer de um homem, na cama.— Como pode querer... que eu faça uma coisa tão desprezível?O barão olhou para ela como se fosse uma simples escrava nua no mercado.Sabia muito bem que, quando torturassem seu pai para obter informações, ela não

poderia fazer nada para salvá-lo. A única esperança era ganhar tempo e rezar para que acon-tecesse algum milagre que os livrasse dos russos, antes que os levassem embora de Monte Carlo.

Tinha que continuar atraindo lorde Neasdon, como mandaram, estimulando a vaidade dele, dizendo que o achava atraente, mas sempre apavorada com a idéia de que, em questão de dias, teria que tornar-se sua amante.

Cada palavra que pronunciava quando estava com ele fazia com que se sentisse em uma sarjeta cheia de imundície; mas não tinha outro remédio, se queria ajudar o pai.

Quando Craig apareceu, teve a sensação de que era o próprio São Miguel Arcanjo que descia à Terra, e seu instinto lhe disse que podia confiar inteiramente nele.

— Uma palavra a alguém, um pedido de ajuda, e seu pai morrerá! — avisara o barão.Mas sua intuição lhe garantia que Craig poderia salvá-la. Naqueles primeiros minutos

em que falou com ele na varanda, percebeu que era diferente de qualquer outro homem que conhecia. Havia qualquer coisa que os atraía, qualquer vibração que a ligava a ele, como

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acontecia com seu pai.Ao mesmo tempo em que rezava para que pudesse salvá-la, sua mente a avisava de

que um passo em falso, uma palavra indiscreta, e estaria assinando a sentença de morte do pai.

À noite, quando tentava dormir, pensava no poder em que seu pai sempre falava, tentando acreditar também.

Ao mesmo tempo, ficava apavorada, com medo de fazer alguma coisa errada por falta de experiência.

Então, o milagre aconteceu e Craig desafiou o barão e os brutamontes que guardavam seu pai noite e dia. Tinha sido tão esperto que mesmo agora era difícil acreditar que tudo estava resolvido, sem derramamento de sangue e sem ninguém se machucar.

“Eu o amo! Por favor, meu Deus, faça com que ele me ame também!”Sabia que devia ter havido muitas mulheres na vida de Craig. Era bonito e atraente, e

lorde Neasdon lhe havia contado, cheio de inveja, que era tremendamente rico. Mas alguma coisa dentro dela dizia que nada disso importava, porque o que os unia era algo tão precioso, tão sagrado, que nada mais tinha significado.

Foi para o convés, esperar. Quando viu o carro de Craig parando no cais e ele subindo a rampa para o iate, teve que fazer um esforço sobre-humano para não correr para seus braços.

Assim que Craig chegou junto dela, ficaram olhando um para o outro. Não havia necessidade de palavras. Estavam tão próximos como se estivessem se beijando.

Craig não disse nada. Pegou a mão de Aloya e levou-a para o salão.Ficou olhando para ela com um sorriso maroto nos lábios, até que a moça falou, de

modo quase infantil:— Eu... eu estava esperando por você.— Achei que ia estar, mesmo. Mas nosso casamento demorou um pouco mais do que

eu imaginava, minha querida.Aloya encarou-o, incrédula.— De acordo com a lei da França, nós nos casamos pelo juiz de paz de Marselha e o

capitão foi seu procurador.— Eu... eu estou... casada com você?— Estamos casados! Mas como sabia que isso a deixaria feliz, passei na igreja

ortodoxa russa para marcar o casamento religioso para mais tarde.Aloya soluçou de alegria, as lágrimas correndo pelo rosto.— Era o que eu mais queria! Você é maravilhoso! Craig abraçou-a.— O poder em que acreditamos, minha querida, não depende de nenhum credo. Por

outro lado, quero ver você de noiva e sei que se sentirá mais abençoada se nosso casamento for celebrado no ritual de sua igreja.

— Eu gostaria muito.Craig beijou-a sem reservas, apaixonadamente. Só depois do almoço, Aloya se

atreveu a perguntar:— Pode parecer uma pergunta boba, mas o que quer que eu vista?Craig deu uma gargalhada.— Já sabia que, mais cedo ou mais tarde, sua vaidade feminina iria obrigá-la a fazer

essa pergunta! Como estarão apenas duas testemunhas presentes à cerimônia, sugiro que celebremos o dia do nosso casamento de modo a ter sempre uma recordação que fará também a delícia dos nossos filhos.

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Viu que ela tinha corado e esperou um pouco para dizer, rindo:— Um francês sempre se casa de fraque, que é o que vou usar. Mas você, querida, eu

gostaria que usasse aquele vestido prateado que usou na festa do grâo-duque. Parecia o pró-prio luar. — Estreitou-a mais ainda, e continuou: — Pode ser que me engane, mas foi naquela noite que sentiu que podia confiar em mim e que me tornei para você um homem diferente dos outros.

— Agora sei que amei você desde aquele momento. Mas era um sentimento tão diferente, que não entendi. Achei que você tinha descido do céu para me ajudar, como uma luz iluminando meu caminho escuro.

— Foi o que nós dois descobrimos juntos; uma luz que nunca vai nos abandonar, que será nossa para a eternidade.

Quando se ajoelharam lado a lado, na pequena igreja russa, com as lâmpadas de prata acesas e as paredes cobertas com ícones sagrados, Craig teve a sensação de que a bênção do padre vinha em forma de luz.

A cerimônia foi comovente, e voltaram para o iate em silêncio, Aloya pensando que, como esposa de Craig, teria uma segurança que nunca tivera na vida.

Assim que entraram no salão, viram que os empregados o haviam decorado com lírios brancos e colocado um enorme bolo de casamento em cima da mesa. Aloya riu.

— Estamos casados! Estamos mesmo casados!— Vou fazer você ter certeza absoluta, minha querida — disse, Craig, baixinho.Beberam champanhe com os oficiais que lhes fizeram um brinde, desejando-lhes

felicidades, e depois de darem uma dose generosa de rum à tripulação partiram o bolo, distribuindo-o com todos.

Craig tinha encomendado um buquê e uma grinalda de pequenos lírios, para Aloya usar prendendo o véu bordado.

Logo que os oficiais saíram, eles ainda ficaram um pouco sentados no salão. Depois, sem terem necessidade de dizer nada, desceram, no momento em que o Sereia se fazia nova-mente ao mar.

— Para onde estamos indo? — perguntou ela.— Não quero ficar no porto, sentindo que há pessoas à nossa volta. Perto daqui,

existe uma pequena baía, onde ficaremos ancorados durante a noite. Então, estaremos tranqüilos, ouvindo só o suave bater do mar no iate e vendo as estrelas.

— Parece muito romântico.. .— Vai ser mesmo, minha querida.Aloya abriu muito os olhos, mas não disse nada, e Craig continuou:— Assim que ele se fortalecer, vou fazer com que escreva sua história, para ser

publicada mais tarde. Será de grande valor para a humanidade e também o manterá entretido, até que, como costuma dizer, possa voltar ao trabalho.

Ela suspirou de felicidade.— Você pensa em tudo.— Pressinto que seu pai vai concordar comigo.— E se eu discordar? — perguntou, provocante.— Terei que beijar você, meu amor, até fazê-la mudar de idéia.Os olhos de Craig estavam presos nos lábios de Aloya, que estremecia de prazer,

vendo o desejo do marido.Achava que nunca seriam capazes de olhar um para o outro sem sentir aquelas

vibrações percorrendo o corpo dos dois.Nunca tinha sonhado que o amor fosse tão maravilhoso e excitante, e ao mesmo

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tempo tão divino. Tudo que faziam era santificado e uma parte do próprio Deus.— Amo você! — Então, estremecendo, perguntou: — Disse que papai tem que viajar

secretamente. Por quê? Acha que os russos podem ir atrás dele?Craig voltou a ver o medo estampado no rosto dela.— Eu sabia que você ia fazer essa pergunta, mais cedo ou mais tarde. Como não

quero que tenha medo, preciso lhe explicar uma coisa.— O quê?Craig foi pegar um dos jornais que seu secretário tinha colocado ao lado da cadeira

de Aloya.Por instantes, ela ficou apreensiva e viu as letras dançando diante de seus olhos.Depois leu:TRAGÉDIA EM MONTE CARLO“Na quarta-feira, à tarde, o fogo tomou conta do iate russo Tsarina, que estava

ancorado ao lado de outro iate russo, o Tsarevitch, no porto de Monte Carlo.“Os bombeiros levaram meia hora, antes de conseguir chegar ao navio e, a essa

altura, o incêndio já tinha assumido grandes proporções e a maior parte do Tsarina foi duramente atingida.

“Estabeleceu-se o pânico e o proprietário, barão Strogoloff, infelizmente não conseguiu ser retirado das chamas. Quando a situação se normalizou, seu corpo foi encontrado no salão, onde deve ter caído da cadeira de rodas.

“É com grande pesar que anunciamos a morte do barão, um distinto nobre russo. Era sua primeira visita a Monte Carlo. O barão era um amante da música e do teatro.

“Vários membros de sua tripulação sofreram ferimentos e dois dos convidados russos foram levados para o hospital, onde estão fora de perigo.”

— O barão está morto! — murmurou Aloya.— O velório não será muito concorrido — respondeu Craig, tranqüilamente.Aloya olhou para ele, com severidade.— Foi você o responsável por isto?— Eu não queria que você continuasse aflita, pensando que o barão manteria a

ameaça que fez a seu pai e a mim. Seja lá o que for que ele tencionava relatar sobre Randall Sare, deve ter sido queimado junto com ele. — Em tom de sarcasmo, continuou: — Se não estou enganado, o barão gostaria de ter tido toda a glória de capturar uma pessoa tão importante, e a polícia secreta deles ficará sabendo muito pouco do que aconteceu.

— Verdade?— Tenho certeza. Conheço a maneira como trabalham. Quando o barão foi obrigado

a entregar seu pai, soube que a consternação a bordo do Tsarina seria total e que não iam tomar cuidado com a segurança. Mandei um dos meus homens lá e eles nem deram por isso.

— Como foi que conseguiu?Craig sorriu.— Os russos são faladores inveterados. Falam de tudo. Apostei no fato de que,

quando o barão mandasse buscar seu pai, eles ficariam falando no assunto o tempo todo e não se preocupariam mais com a segurança.

— Enquanto isso, seu homem entrou a bordo!— Ele é um ótimo eletricista e um excelente mergulhador. Dei-lhe noventa segundos

para provocar o incêndio e conseguiu fazer isso em sessenta segundos. Depois voltou para bordo do Sereia e ninguém percebeu nada.

Aloya estendeu os braços.— Você é tão inteligente que me assusta.

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Page 69: A Espiã de Monte Carlo

— Agora, não precisa ter medo de mais ninguém. Podemos fazer o que quisermos.— O que você quiser. Como posso discordar de alguém tão brilhante?Craig beijou-lhe a mão.— Tenho o pressentimento de que vamos discutir muitas vezes, assim estimulamos

nossas mentes. Mas acabará sempre da mesma maneira...— Eu desistindo? — perguntou Aloya, sorrindo.— Não. Com os dois querendo a mesma coisa. Esta manhã, não quero saber de mais

nada, a não ser fazer amor com você. Vou levar a vida toda, minha querida, para lhe dizer o quanto amo você! — Levantou-se, puxando-a para junto dele. — Vou descer para me vestir, mas quero que venha comigo. Temos que fazer uma coisa primeiro.

Aloya olhou para ele com adoração e desceram juntos. Quando entraram na cabine, Craig tomou-a nos braços.

— As últimas nuvens já foram afastadas. Se ficar com medo novamente, vou me zangar!

— Como poderei ter medo de alguma coisa, agora que você e papai estão em segurança? Ah, meu querido, meu adorado! Promete que, seja lá o que for que papai queira fazer no futuro, você ficará comigo? Depois de tudo que passamos, acho que, se souber que você está em perigo, vou... morrer.

Craig não respondeu. Abraçou-a com mais força e beijou-a.Ao sentir os lábios dele, uma excitação percorreu todo o corpo de Aloya, e foram

para a cama.Um fogo percorria seu corpo, enquanto Craig a beijava cheio de paixão. Juntos,

queimaram nas chamas daquele amor perfeito que os levava a um êxtase total!

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