A Espiritualidade na Prática

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Trecho do livro: A Espiritualidade na Prática - Paul stevens

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No TrabalhoA História de Labão

Gênesis 29.14-20; 21.10-13

Ó, Senhor, nosso Pai celestial, por cuja providência as tarefas dos homens são variavelmente ordenadas: concede-nos a nós todos o espírito para trabalhar com sinceridade a fim de fazermos o nosso trabalho em nossas várias estações, no serviço a só um Mestre e procurando por uma única recompensa.Ensina-nos a levar em boa conta quaisquer talentos que tu nos emprestares, e capacita-nos a remirmos nosso tempo com paciência e com zelo; por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.O LivrO COmum de OraçãO

A quem interessa o trabalho? Ao mundo? À igreja? A Deus? Entre os leitores deste livro há empresários, investidores, cons-trutores, políticos, aposentados, professores, comerciantes, médicos, pastores e advogados. Há pessoas cujo trabalho é estudar — uma atividade estranha que você paga para fazer em vez de receber um salário por ela. Alguma dessas atividades importa para Deus? Ou algum trabalho em particular importa mais que outros? Fazemos essas perguntas especialmente porque o trabalho tem mudado radicalmente no mundo.

Jeremy Rifkin, eu seu perturbador estudo sobre as tendências do trabalho no mundo, The End of Work (O Fim do Trabalho), argumenta: “A substituição por atacado de máquinas por

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trabalhadores forçará todas as nações a repensar o papel dos seres humanos no processo social”. Novas tecnologias estão substituindo as pessoas mais rápido que a recolocação dessas pessoas em outros setores, levando a um desemprego maciço — 800 milhões de pessoas estão desempregadas ou subemprega-das. Rifkin afirma que o efeito disso sobre o equilíbrio social e econômico do mundo é devastador. “Bem ali, do lado de fora da nova aldeia global hi-tech, há um grupo crescente de seres humanos destituídos e desesperados, muitos dos quais estão se voltando para a vida do crime e criando uma vasta e nova sub-cultura criminal”.1 Mesmo a indústria de serviços, para a qual milhões de pessoas migraram na sociedade da informação, será amplamente substituída pela tecnologia, incluindo o mundo em desenvolvimento. Essa situação nos força a rever o que significa o trabalho quando a atividade remunerada não está disponível ou quando o trabalho que fazemos não traz realização pessoal.

Através dos anos meu próprio trabalho inclui fazer rebites de aço manualmente, pregar, arquivar documentos, frequentar reuniões de comitês, escutar, construir casas, ensinar, escrever, mudar papéis de lugar ou fazer algum serviço doméstico. Será que alguma dessas atividades é permanente, enquanto o resto não tem importância?

Somente uma vida, que um dia há de ser passado,Somente o que foi feito em Cristo será preservado.

Esse poema tem inspirado gerações no trabalho do evange-lho sob a alegação de que todas as outras obras irão sumir na fumaça no dia da grande conflagração. Mas a Bíblia oferece uma outra perspectiva.

Qual trabalho importa para Deus?

A Bíblia começa com Deus trabalhando duro — separando, projetando, dando forma, comunicando, embelezando,

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capacitando. Adão e Eva receberam como primeira ordem a honra de serem os vice regentes de Deus, cuidando da terra e desenvolvendo o potencial da criação (Gn 1.28; 2.15). O traba-lho é parte de nossa dignidade como criaturas feitas à imagem de Deus. Ele não entrou no mundo por causa do pecado do ho-mem. A ideia grega de que o trabalho é “desprazer” e maldição penetrou fundo na psique de muitas pessoas tementes a Deus, mas ela é errada e perigosamente mal entendida. O povo judeu sempre soube disso e tem enfatizado a dignidade do trabalho até mesmo para os rabinos. Como alguém já disse, “aquele que não ensina seu filho um ofício o ensina a ser um assaltante”.2 Infelizmente as pessoas de fé muitas vezes não possuem uma espiritualidade do trabalho. Elas veem sua atividade diária como prejudicial à santidade e um desvio em relação a Deus.3 Mas as pessoas em uma carreira de serviço cristão podem pensar de modo diferente.

Em todo o mundo há uma hierarquia de ocupações entre o povo de Deus: missionários e pastores no topo, seguidos por profissionais auxiliares, as atividades comerciais (fisicamente imundas, mas moralmente limpas), negócios (fisicamente lim-pos, porém moralmente questionáveis — ao menos é assim que se pensa) e ocupações marginais como as corretoras de valores. Qual foi a última vez que a igreja orou por corretores de valo-res? Essa escala decrescente trágica, mas bem estabelecida, de importância “espiritual” tem influenciado gerações de jovens a exercer o chamado ministério em tempo integral a fim de que possam fazer um trabalho duradouro no mundo. (Na verdade não há nenhuma atividade “em tempo parcial” disponível para o povo de Deus.) O reformador inglês William Tyndale estava certo quando disse: “Não há um trabalho melhor que outro para agradar a Deus; servir água, lavar pratos, ser sapateiro, ou apóstolo, tudo isso é uma coisa só, em se tratando de realização, para agradar a Deus”.4

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Trabalho quase escravo

Como já mencionamos, Jacó é o primeiro trabalhador na Bíblia — o primeiro a ter o seu trabalho vividamente descrito em suas complexidades e satisfações. Porém, mais importante que isso, essa história mostra o interesse de Deus no trabalho. O trabalho de Jacó (e o nosso) é um caminho para Deus; é abençoado por Deus e torna-se um ministério para ele e para o nosso próximo. Tudo isso é ainda mais extraordinário quando consideramos que o trabalho de Jacó foi um trabalho escravo — exatamente como muitas pessoas descreveriam seu trabalho hoje: rotineiro, monótono, infindável, mal remunerado, exaus-tivo e muito duro.

Jacó chega a Padã-Arã sem um tostão, fugido de seu irmão e em busca de uma esposa dentre seus parentes. Mas seu pai o enviou sem os recursos para pagar o dote. Ele não tem nada a oferecer à bela jovem ao lado do poço a não ser o seu suor. Ele aparentemente se oferece para ser escravo de Labão a fim de ter Raquel — trabalhando sete anos sem pagamento, liberdade nem dignidade. Ele cuida dos animais de seu futuro sogro.

Quando Jacó descreve seu trabalho, usa expressões de um escravo: “O calor me consumia de dia, e o frio de noite, e o sono fugia dos meus olhos” (Gn 31.40). Mais tarde ele diz a Labão: “dez vezes você alterou o meu salário” (v. 41).5 Ele des-creve seu trabalho como “o meu sofrimento e o trabalho das minhas mãos” (v. 42).6

Labão encara o trabalho apenas como um meio de ganho pessoal e acaba por ser possuído por suas posses. Ele é um politeísta (adora “o Deus de Abraão, o Deus de Naor”, v. 53). Ele não tem Deus, nem deuses. H. C. Leupold diz: “Labão... é uma boa ilustração do homem que se afasta do verdadeiro Deus, ainda o conhece, se sente impelido a dar ouvidos à sua Palavra, mas colocou Deus no mesmo nível de entidades pagãs e vive uma vida de renegado”.7

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Trabalho por amor

O reverso surpreendente na história é uma erupção de esperança e de boas novas, a manifestação de uma visão da vida inspirada por Deus. Em Gênesis 29.20 encontramos uma das mais puras declarações de amor humano: “Então Jacó trabalhou sete anos por Raquel, mas lhe pareceram poucos dias, pelo tanto que a amava”. O trabalho escravo pode se tornar um trabalho por amor. O amor transforma todo tipo de trabalho em ministério.

Trabalhar pelo amor de uma mulher ou de um homem, por um pai ou pelos filhos, por um semelhante, pela terra, pela nação ou por Deus — qualquer um desses amores pode transformar trabalho em ministério. E no último dia Jesus dirá: De fato, “você trocou minhas fraldas, me visitou na prisão, fez um jantar para mim, me recebeu à mesa, colocou um agasa-lho em minhas costas”. Como diz a parábola, “O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mt 25.40). Jesus (sim, Deus) recebe o nosso trabalho, e não apenas atividades religiosas como pregação, cuidado pastoral, implantação de igrejas etc.

Em 1 Tessalonicenses 1.2-3, Paulo fala aos cristãos sobre o seu “esforço motivado pelo amor”. Além disso, no aprofunda-mento daquilo que torna um trabalho cristão, o apóstolo fala sobre “trabalho que resulta da fé” e “perseverança proveniente da esperança”. Fé, esperança e amor são aquilo que fazem o trabalho ser cristão e espiritual. Jacó trabalhou por amor, mas será que trabalhou também com fé?

Trabalho com fé

Depois de quatorze anos, Jacó quer fazer algo para a sua própria família. Ele pagou o dote da noiva; agora ele quer ser tornar um assalariado. Então ele negocia com Labão mais alguns anos de trabalho. Sua conversa é uma obra-prima diplomática. Labão pergunta: “Que você quer que eu lhe dê?” (Gn 30.31), mas na

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verdade ele não quer dar nada ao genro. Jacó conhece trapaça quando vê uma e então diz: “Não me dê coisa alguma”. O plano astuto de Jacó faria com que Labão não lhe desse nada, mas ao mesmo tempo (embora Jacó não diga nada) lhe permitiria conseguir o que precisava para a sua família.

O que acontece é brilhante — empreendedor, porém surpre-endentemente inspirado pela fé. Jacó não havia esquecido o seu destino como pessoa da promessa.8 Os resultados não são garantidos, de forma que Jacó tem de confiar. Mas não se trata de uma confiança cega, de um salto no escuro. Deus lhe dá uma ideia. Filhos do nosso Deus criativo são inspirados pelo Espírito Santo. Eles deveriam ser as pessoas mais criativas da terra — e não estar apenas no trabalho da igreja, mas também no trabalho que forja o mundo.9

O que vem a seguir é astúcia, o tipo de acordo comercial que faria o mais habilidoso negociante admitir que foi muito bem feito e elogiá-lo (Lc 16.8). Ele é também misterioso, talvez até mesmo mágico. O trabalho de Jacó era pastorear e ele notara que as ovelhas eram em sua maioria brancas e os bodes, pretos. Animais multicoloridos eram raros. Ele faz uma oferta que Labão não pode recusar, e se programa para não perder. Hoje, chamarí-amos esse tipo de negociação de “boa para ambos os lados.”

Jacó propõe a Labão que fique com todas as ovelhas brancas e os bodes negros puros, bem como os animais multicoloridos que já existem. Normalmente no Oriente Médio os bodes são pretos (ou marrons escuros) e as ovelhas são brancas. O que Jacó terá de salário serão todos os cordeiros ou filhotes multicolori-dos que nascerem.10 No presente, porém, Jacó separará todos os animais multicoloridos para que Labão os preserve.

Assim como Jacó, Labão sabe reconhecer uma trapaça e, por-tanto, não confia em Jacó para separar os rebanhos. Ele mesmo separa os rebanhos multicoloridos e os leva numa jornada de três dias para bem longe, colocando-os sob os cuidados de seus

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filhos (Gn 20.35-36). Labão tem efetivamente tudo. Todos os animais — os pretos, os brancos e os (atuais) multicoloridos. Tem Jacó para cuidar de alguns de seus rebanhos, com chances mínimas de fazer um “pé-de-meia” para sua família. Ao menos é o que ele pensa. Que negócio da China! “Não me dê coisa alguma” (v. 31) — Jacó explica. Mas ele tem um plano.

Jacó podia não conhecer os princípios genéticos, que genes recessivos podem surgir por meio de cruzamento. Mas suas observações como pastor o fizeram acreditar que poderia muito bem gerar animais fortes e multicoloridos, por meio de uma criação cuidadosamente seletiva. E poderia fazer isso com todos os animais, brancos e pretos (uma vez que Labão já havia separa-do para si a primeira leva de multicoloridos e Jacó ainda estava cuidando dos animais pretos e brancos do sogro). Algumas pesquisas indicam que os animais fortes são híbridos, “cujos genes recessivos de cor surgem quando são criados juntos”, e que “Jacó pôde distinguir os animais mais fortes de gene recessivo por meio de seu cruzamento, que se dá anteriormente ao dos animais mais fracos, que não possuem aquele gene”.11

É aqui que a história se torna misteriosa e perspicaz. O desfecho é claro. Jacó consegue criar ovelhas e bodes multi-coloridos a partir de um rebanho preto e branco e assegura que as ovelhas e os bodes mais fortes sejam os multicoloridos — em outras palavras, os seus! Ele consegue esse resultado por meio de algo que pode parecer mágica primitiva, colocando um poste multicolorido na frente dos animais enquanto eles estão copulando, na suposição de que aquilo que eles veem durante a relação sexual determina suas cores (Gn 30.37-40). Assim como Raquel usou de “mágica” com as mandrágoras (a fim de se tornar fértil), Jacó usa de mágica descascando álamo, amendoeira e plátano — todas árvores consideradas tóxicas e usadas como remédio no mundo antigo. Elas possivelmente

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aceleravam o processo de aquecimento, fazendo com que os animais ficassem prontos para cruzar.12

A ironia dramática na narrativa é reforçada pelo fato de que o nome Labão significa “branco”.13 O “Branco” é enganado por galhos brancos — magia branca — assim como, muito antes, o “Vermelho” (Esaú) havia sido levado a abrir mão de seu direito de primogenitura por um prato de guisado vermelho.14 Então Jacó seleciona os animais mais fortes, garantindo os melhores para si e deixando os mais fracos para Labão (Gn 30.38-42). O narrador conclui: “Assim o homem ficou extremamente rico, tornando-se dono de grandes rebanhos e de servos e servas, camelos e jumentos” (v. 43). Não é de se surpreender que a raposa imbatível mude sua atitude para com Jacó (31.1-2). E agora é tempo de Jacó ir embora.

O plano de Jacó é brilhantemente empreendedor. Mas onde está Deus nisso? Seria a estratégia uma mera ambição pessoal incontrolável, uma obra da carne (Gl 5.20)?

Seis anos depois, Jacó, assim como José, se lembra de um sonho que recebeu de Deus. Ao sentar, de modo sensível e di-plomático, com suas esposas para discutir em secreto seu desejo de deixar Arã e retornar a Canaã, ele usa uma estratégia multi-facetada. Percebe que a atitude de Labão mudou. Lembra-se de que trabalhou duro e de como o pai delas o enganou, embora cuidadosamente não faça menção ao maior dos enganos — a troca de Lia por Raquel. Então ele apela à divina providência: “Deus tirou os rebanhos de seu pai e os deu a mim” (Gn 31.9).15 Por fim, ele conta aquilo que até então não sabíamos — Deus lhe dera um sonho no qual revelara todo o sucesso que ele teria com os rebanhos.16 Deus lhe mostrara que os animais fortes eram listrados, salpicados e malhados.

Jacó havia trabalhado por fé e santa ambição. Ele havia feito a obra do Senhor na fazenda de seu sogro. Ele tem amor e fé. Mas e a esperança?

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Trabalho com esperançaPara Jacó, o trabalho estava relacionado à promessa. Jacó é parte de um plano santo, está engajado em um projeto divino, alistado na obra de Deus. Ele viu a promessa de ampliação da família cumprida em seus onze filhos e filhas (a primeira parte da promessa). Mas a terra permanece desocupada. Como nota Wenham, “é exatamente a terra, chamada por Jacó de ‘minha terra’, que dá dinâmica à história”.17

Vários fatores levam Jacó de volta à sua terra de origem. Primeiro, quando sua amada e estéril Raquel dá à luz José, ele agora tem uma família completa e pode retornar à terra com seus frutos: “Deixe-me voltar para a minha terra natal” (Gn 30.25). Deus age de maneira graciosa e inesperada, trans-formando aquilo que é estéril em fértil. Jacó e Raquel sabem que essa criança é de Deus. J. P. Fokkelman observa que “Raquel desiste da única coisa que mostra sua precedência, o acesso a Jacó [por meio do incidente das mandrágoras com Lia], e depois disso Deus demonstra misericórdia”.18 Waltke acrescenta que sua esterilidade era parcialmente um símbolo de sua vontade própria, sua inveja e sua opressão a Lia. Assim que ela desiste da política arbitrária de Jacó e está preparada para ceder, Deus lhe concede seus filhos”.19

Segundo, Jacó tem um sonho (aproximadamente na mesma hora) no qual Deus diz: “Saia agora desta terra e volte para a sua terra natal” (Gn 31.13). E Deus lhe mostra como ser bem-sucedido em sua estratégia de criação.

Cada um dos dois fatores é um empuxo de volta à terra natal. Então ocorre o empurrão: “Jacó, porém, ouviu falar que os filhos de Labão estavam dizendo: Jacó tomou tudo que o nosso pai tinha e juntou toda a sua riqueza à custa do nosso pai” (Gn 31.1).

Deus prometeu estar com Jacó em Betel (Gn 28.15). Agora mais uma vez Deus promete estar com ele, mas desta vez com

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a condição de que ele volte para casa (31.13). Esse é um padrão na espiritualidade bíblica. A promessa de Deus requer obediência e resposta. Mas, por meio da obediência, vêm a graça e a necessi-dade de novas respostas — uma agradável espiral de bênção.20

Jacó está fazendo o trabalho de Deus, no caminho de Deus, recebendo a bênção de Deus.

O trabalho ontem, hoje e para sempre

O trabalho é fundamental para a nossa identidade como criatu-ras feitas à imagem de Deus. Nesta vida, devemos trabalhar até morrer. Isso não significa a exclusão, é claro, da aposentadoria formal de um trabalho remunerado. Mas significa que os idosos (ou pessoas de meia-idade que colheram dividendos de algum investimento) não devem passar o resto de suas vidas apenas desfrutando daquilo que amealharam.

Mas que tipo de trabalho devemos fazer? Devemos deixar a área comercial e, agora que temos nossa renda devidamente garantida, “ir para o ministério”? (Na verdade muitos tentam fazer isso, mas acabam descobrindo que ainda são as mesmas pessoas que eram no seu negócio!) Tendo dedicado a primeira metade de nossas vidas a sermos bem-sucedidos, agora devería-mos doar-nos a algo realmente importante? E a primeira metade de nossas vidas — não há importância no trabalho “comum”?

O que torna o trabalho abençoado por Deus não é o fato de que a Palavra e o nome de Deus sejam anunciados a plenos pulmões, mas que o trabalho seja feito com fé, esperança e amor. Com essas virtudes (que não são conquistas humanas, mas encorajamentos divinos), até mesmo o trabalho escravo pode tornar-se trabalho santo. A vida de trabalho de Jacó, portanto, é uma indicação, no Antigo Testamento, do conselho de Paulo: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens, 24 sabendo que receberão do

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Senhor a recompensa da herança. É a Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo” (Cl 3.23-24).

Através de sua história, a igreja tem elaborado várias listas de ocupações proibidas: militares, se estiverem envolvidos com mortes, gladiadores, estilistas (da lista dos puritanos), monges (da lista de Lutero) e prostitutas. Significativamente, não há listas assim na Bíblia, com exceção da feitiçaria no Antigo Tes-tamento e, no Novo, da prostituição e da extorsão (1Co 6.9-10). Quando soldados vieram ter com João Batista e perguntaram: “E nós, o que devemos fazer?”, ele não disse que deveriam deixar o exército, mas que não deveriam acusar pessoas falsa-mente e que se contentassem com seus salários (Lc 3.14). Mas nem todos os trabalhos servem ao nosso semelhante direta ou indiretamente nem glorificam a Deus. Alguns são realmente destrutivos, e não deveríamos realizá-los. A lista é pequena. São necessários todos os tipos de trabalho para “manter estável a estrutura deste mundo” — uma frase do livro de Eclesiástico (Gn 38.25-34).

O que faz com que o trabalho seja duradouro não é o seu caráter religioso (que a Palavra de Deus seja proclamada e as almas sejam salvas), mas o fato de que ele é feito para Cristo (1Co 3.10-15). A visão bíblica do fim deste mundo não é a aniquilação (a destruição de todas as coisas) e a criação de um mundo novo. O fim é transfiguração. O corpo ressuscitado de Jesus é um protótipo disso, dos primeiros frutos do sepulcro. De algum modo, além do que podemos imaginar, o trabalho de nossas mãos, corações e mentes passará pelo fogo purificador e, limpo do pecado, terá o seu lugar no novo céu e na nova terra. O trabalho pode ser separar ovelhas ou cozinhar carolinas, vender ou comprar, processar informação ou alimento, criar um ambiente acolhedor ou construir casas, ensinar ou fazer contabilidade. Todo trabalho bem feito pode ser trabalho de

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Deus e permanecerá para além deste mundo, não por causa de seu caráter religioso, mas porque está ligado ao reino de Deus, aos propósitos de Deus e ao próprio Deus.

Somente uma vida, que um dia há de ser passado,Somente o que foi feito em Cristo será preservado.

Ironicamente, esse poema contém uma maravilhosa espe-rança, possivelmente desconhecida do poeta original.

Quando morrermos e formos ressuscitados, trabalharemos no novo céu e na nova terra. Rudyard Kipling expressa isso com muita beleza em seu poema When Earth’s Last Picture Is Painted (Quando o Último Quadro da Terra For Pintado):

Quando o último quadro da terra for pintado e os tubos estiverem retorcidos e secos,Quando as cores mais velhas tiverem se apagado, e o mais jovem crítico tiver morrido,Descansaremos, e de fé precisaremos — deitar por um éon ou dois,Até que o Mestre de Todos os Bons Trabalhadores nos coloque no trabalho novamente.21

Uma boa pergunta a ser feita é: que tipo de trabalho você acha que fará no céu?

Jacó está fazendo um trabalho que permanecerá, preparando o caminho para a vinda plena do reino de Deus à terra. Em Cristo todas as promessas de Deus encontram o seu “sim” (2Co 1.20). O que “estar na terra”, “ter uma família” e “aben-çoar as nações” queria dizer para os patriarcas está representado nas ordenanças e nas bênçãos de se estar “em Cristo”. Trabalhar no reino de Cristo inclui todas as três — mordomia da criação, cidadania e bênção do mundo. Nosso trabalho neste mundo é produzir debaixo da liderança do Rei, para o Rei e fazer crescer o reino — o domínio de Deus sobre toda a vida e a criação. Isso diz respeito não somente ao chamado trabalho cristão, mas a

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todo bom trabalho. Nosso trabalho, quer seja remunerado, quer não, torna-se a oração:

Venha o teu reino,Seja feita a tua vontade assim na terraComo no céu.