A Estética do Brega: Cultura de Consumo e o Corpo nas Periferias do Recife

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Dissertação de mestrado defendida em 2005, que trata da cultura em torno da música brega no Recife.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

A Esttica do Brega: Cultura de Consumo e o Corpo nas Periferias do Recife

Fernando Israel Fontanella

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre, sob a orientao da Prof. Dr. ngela freire Prysthon.

Recife, Abril de 2005

PROGRAMA DE PS GRADUAO EM COMUNICAO A ESTTICA DO BREGA (CULTURA DE CONSUMO E O CORPO NAS PERIFERIAS DO RECIFE)

Esta dissertao dedicada a Nara, Salete, meus tios Ivone e Jos, meu primo Jean e a Domenico.

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AGRADECIMENTOS Prof Dr ngela Freire Prysthon, pela orientao, confiana, cobrana e seriedade, mas tambm por compartilhar um gosto pelo trash. E, principalmente, pela belssima e divertida amiga que conheci nela.

Ao Prof. Dr. Alfredo Vizeu, pelo enriquecimento intelectual que propiciou atravs das discusses, pela ajuda na aquisio de bibliografias difceis e por todo o non sense tpico de seus dias inspirados.

Ao Prof. Dr. Eduardo Duarte, pelas conversas e debates que em mais de uma vez me foraram a organizar minhas idias.

Aos colegas Tiago Soares, Luis Otvio, Diana Moura, Simone Jubert e a Tita, pela troca de idias , pela ajuda e pela insanidade.

A Paulo, Jlia e aos dois Alfredos, por curtirem o melhor do Brega em pleno Clube Internacional.

A todos aqueles que em algum momento se interessaram pelo meu trabalho, discutiram o tema do Brega e do mercado cultural pernambucano comigo e que de certa forma me prepararam para a sua defesa.

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RESUMOA dissertao busca delinear a esttica do Brega na regio metropolitana do Recife, derivada de um mercado cultural paralelo surgido nas periferias e que agora ganha exposio nos meios de comunicao massivos, no contexto de uma descoberta das camadas de menor poder aquisitivo da populao como novos e importantes segmentos de consumidores. Nesse esforo, o Brega (ou Brega Pop) identificado como uma estratgia de negociao atravs da qual grupos suburbanos tentam uma insero, mesmo que limitada, na cultura de consumo, na qual normalmente so apagados. Trabalhando com os princpios apontados por Mikhail Bakhtin e por Friedrich Nietzsche de oposio entre uma cultura popular e carnavalesca (ou dionisaca), que abre o corpo para o mundo, e um cnone cultural e corporal que o torna fechado, o trabalho identificar uma continuidade relativa dessas relaes nos novos cnones corporais da cultura de consumo e na sensibilidade das populaes urbanas perifricas. Essa oposio, que usada dentro do sistema de valores do capitalismo tardio para promover diferenas geradoras de consumo, tambm gera presses que precisam ser mediada dentro do campo da cultura. Assim, uma sensibilidade hbrida como o Brega, que une as formas propagadas pelas indstrias culturais e a relao carnavalesca com o corpo, deve ser vista como um ponto de convergncia essencial para o entendimento do processo de assimilao da populao suburbana do Recife no mundo do consumo.

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ABSTRACT RESUMOThis dissertation has the objective of delineating the esthetics of the Brega music of the Recife region, which is based upon an informal market and now shows itself in the mass media with the discovering by the marketing planners of the potentials of consumption of the lower classes. In this effort, the Brega (or Brega Pop) is taken as a strategy that negotiates cultural values, by which the subaltern groups try to enter the consumer culture, where they are usually kept apart. Working with the lines pointed by Mikhail Bakhtin and Friedrich Nietzsche, of an opposition between the popular culture (the grotesque or Dionysian), founded on a body that is opened to the world, and a cultural and corporal canon that represents it closed and complete, this work identifies a certain continuity of this relations in the new corporal precepts of the consumer culture and the sensibility if the urban poor populations. This opposition, which works for the benefit of late capitalism system of values, promote social differences which generate consumption. A hybrid sensibility as Brega , that unites the forms spread by cultural industries and the grotesque relation with

the body, must be seen as crucial point to understand the assimilation process of subaltern groups of Recife in the consumer world.

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SUMRIO

1. INTRODUO........................................................................................7

2.

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INTRODUO

Este um trabalho que, aparentemente, trata sobre o brega. importante iniciar com essa afirmao para que a presente pesquisa seja tomada por algo que ela no . Embora seu objeto seja o universo cultural e esttico da msica brega, o que se buscou observar algo que est alm de seus aspectos formais. A msica brega do norte e nordeste brasileiro e o mercado que ela movimenta (programas de rdio e TV, circuitos de bandas, shows, comrcio paralelo de CDs, uma moda singular) so fenmenos bastante presentes no cotidiano das metrpoles dessas regies, e que mobilizam de diversas formas grandes parcelas de suas populaes perifricas. No entanto, isso quase no percebido pela academia e ignorado por grande parte da mdia. H sem dvida uma falta de trabalhos de pesquisa, anlise ou mesmo artigos que tratem do assunto; mas tambm existe uma curiosidade, dentro da academia ou por parte da imprensa, pelo mundo da msica brega. Desde que princpio do processo de pesquisa, houve um interesse freqente nessa dissertao por parte de jornalistas de diversos veculos, que desejavam conhecer o olhar acadmico sobre a msica brega para a realizao de reportagens sobre o assunto, sobre o qual o pesquisador indevidamente

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passou a ser considerado uma espcie de autoridade. Essa situao remete quela descrita pelo antroplogo Hermano Vianna em seu trabalho sobre o Funk carioca (1997). O fato de ser talvez a primeira pessoa a escrever artigos nos jornais locais sobre o fenmeno dos bailes nos subrbios do Rio de Janeiro, alm de seu trabalho de pesquisa em antropologia sobre os bailes funk, tornou-o uma fonte jornalstica e at hoje uma referncia quase obrigatria em trabalhos acadmicos sobre o tema. Era a primeira vez, depois que os jornais fizeram alarde em torno do fenmeno Black Rio, em 1976, que algum escrevia na imprensa sobre essas numerosas e gigantescas festas suburbanas em sua nova fase hip hop. Outros artigos, que se seguiram ao meu, chegaram a se referir ao baile funk da Estcio de S como minha descoberta. Esse termo denuncia a relao que a grande imprensa do Rio mantm com os subrbios, considerados sempre um territrio inexplorado, selvagem, onde um antroplogo pode descobrir tribos desconhecidas, como se estivesse na floresta Amaznica (1997, 11 e 12). Se considerarmos o tratamento normalmente dado pelos discursos hegemnicos s frivolidades cotidianas dos bairros populares das grandes cidades, essa relao com o subrbio continua muito visvel. Em sua maioria , as pesquisas de vrias reas que tratam de fenmenos culturais massivos nas periferias das grandes cidades apresentam vises elitistas ou paternalistas, que se alternam entre uma comiserao por uma populao degenerada que perdeu contato com suas razes em seu processo de assimilao pelo sistema dos meios de comunicao massivos, e uma apologia a fenmenos de resistncia cultural considerados autenticamente populares, onde autntico tudo aquilo que mantm ligaes relativamente puras com a narrativas tradicionais, que se ope a tudo o que urbano. Mas a citao ao trabalho de Vianna oportuna para uma outra comparao: Vianna veio de um background antropolgico, e seu trabalho, tambm realizado como tese de mestrado, tinha objetivos e metodologia distintos. Muitas vezes percebi que h uma demanda intensa de um trabalho com esse carter mais etnogrfico sobre o brega, como se o9

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pesquisador do Brega fosse uma espcie de estudioso sertanista dedicado ao estudo de tribos urbanas, algum que traduza o fenmeno para quem no est dentro dele, que oferea uma categorizaes, um glossrio, que descreva formalmente como acontecem os shows, que organize cronologias histricas, explique quais so as principais bandas, enfim, a quem se possa recorrer quando for necessria uma descrio da esttica estranha das periferias que seja revestida de tonalidades cientficas. Embora em diversos momentos sejam levantados dados sobre o brega e suas configuraes, com um carter exploratrio, o objetivo central desta pesquisa no foi organizar uma descrio extensiva e completa do fenmeno do Brega, ou realizar um levantamento minuciosamente organizado de suas caractersticas, ou mesmo resgatar sua histria e cronologia. O que se busca analisar nas pginas seguintes so as manifestaes de uma

sensibilidade subalterna mediatizada, presente nas diversas maneiras como as pessoas experimentam o brega, principalmente naquilo em que se relaciona com uma hexis corporal, no contexto maior da insero parcial de camadas antes completamente rejeitadas em espaos limitados da sociedade de consumo e dos seus mercados culturais. Nesse contexto, a esttica brega no se d somente atravs da msica, mas na dana, no vestir, no humor, no lazer, em um estilo de vida e de consumo, permeando as vivncias de moradores das periferias da regio metropolitana do Recife e em outras cidades do norte e nordeste do pas. Atravs da anlise de programas televisivos que tratam sobre o brega, portanto, o que desejo analisar a representao miditica dessa esttica, que se concretiza no estilo musical regional do Brega Pop1. Atualmente considera-se como lugar de nascimento dessa nova onda comercial do Brega Pop a cidade de Belm do Par, onde primeiro se adotou o termo para definir o movimento musical e de onde tambm surgem os artistas de maior projeo regional, como a banda Calypso e Wanderley1

O termo Brega Pop ser utilizado durante o trabalho para distinguir mais claramente o universo esttico que gira em torno da msica brega das grandes cidades do Norte e Nordeste, diferenciando-o daquilo que se chama de brega no Sul e Sudeste do pas. A locuo foi retirada e um website paraense, e traduz a hibridizao de elementos da cultura pop massiva com a esttica considerada de mau gosto dos estratos populares.

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Andrade. Esse brega do Par, tambm conhecido como Calypso2, ao adotar ritmos mais acelerados e danantes, adequados s apresentaes para grandes pblicos de origem popular e ao ambiente das aparelhagens, ganha gradualmente aceitao nas periferias e comea a ser exportado para outros estados prximos. Esse sucesso passa a impulsionar e influenciar os msicos bregas do Recife, onde a existncia de um maior mercado e uma cadeia de produo musical maior, incluindo rdios, uma programao local da TV significativa, estdios de gravao e casas de show, faz com que o mercado pernambucano rapidamente torne-se referencial para as bandas brega no nordeste. Atualmente, o Brega Pop recifense produz a todo momento novas bandas e movimenta multides em vrios shows realizados por toda a cidade nos fins de semana, dando mostras de um vigor que impressiona aqueles que ignoram o que est se passando na cultura dos subrbios. Dois produtores musicais ligados ao estilo consultados durante a pesquisa afirmaram que, em mdia, uma banda bregueira em evidncia pode realizar 6 ou 7 shows por semana na cidade, e esse nmero pode variar muito durante turns pelo interior. O Brega Pop um estilo nascido nos bairros pobres das grandes cidades, e que por muitos anos sobreviveu exclusivamente nessas periferias, onde se encontravam seus pblicos, seus msicos e os espaos onde ele se expressava. Para manter-se, durante muitos anos dependeu exclusivamente de um sistema paralelo de produo e divulgao: o comrcio de CDs piratas nos vendedores ambulantes, as casas noturnas suburbanas, as aparelhagens. Mesmo quando atinge o sucesso e sai dos subrbios, o brega ainda mantm forte ligao com esse sistema alternativo de produo e consumo cultural. uma msica para ser ouvida nas rdios popularescas, nos programas locais de auditrio, nos shows e bailes de periferia ou animando o consumo de bebidas alcolicas ao fim da tarde nos bares. Essa fruio est intimamente ligada ao corpo: a msica brega no experimentada por sua audincia de maneira distanciada, mas principalmente atravs de uma

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No Par, o termo Calypso foi adotado por algumas bandas sob o pretexto de que a msica paraense no chegou s paradas do sul do pas devido ao preconceito com o termo brega.

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sensibilidade corporal que est na dana. Nos shows de brega, todos os cantores e bandas so acompanhados de grupos de danarinos, que executam coreografias elaboradas, com movimentos exagerados, muitas vezes

dramatizando as letras das msicas. Outra caracterstica interessante a democratizao da condio de artista que o Brega Pop promove. No h a exigncia de um domnio de informaes ou de tcnicas especficas para a produo artstica. Praticamente qualquer pessoa pode ser um astro do brega: cantores no precisam saber cantar, compositores no precisam saber escrever. Muitas vezes as msicas so verses de msicas internacionais que estiveram nas paradas de sucesso nos anos 80 e 90, agora esquecidas, recicladas com letras de temtica brega. Tanto msicos como danarinos no seguem o mesmo padro rgido de beleza corporal que orienta o universo das modelos e atrizes da televiso, mesmo quando assumem papis sensuais nas

encenaes dos palcos. Dezenas de novas bandas surgem a todo momento nas comunidades da periferia, apenas para obterem um sucesso efmero, concretizando a promessa de Warhol de 15 minutos de fama tambm para as camadas subalternas. Como foi visto, o brega dependeu durante anos e depende at hoje dos sistemas de produo, de consumo e dos espaos de divulgao que so acessveis s populaes subalternas das periferias urbanas. Mas tambm sempre manteve uma inteno de dilogo com o sistema simblico das indstrias culturais. O Brega Pop funciona com uma economia simblica paralela do discurso hegemnico. Mas paralela no significa oposta; no se trata de uma contra-cultura. Em nenhum momento o brega tem por objetivo de contestar os cnones culturais da sociedade de consumo, e bom deixar claro que em nenhum momento quero lhe atribuir essa atitude. Pelo contrrio: o que os bregas querem participar desse universo fechado para eles. Sendo assim, podemos entender sua esttica em um contexto de estratgias de representao que oferecem s populaes de periferias das grandes cidades do norte-nordeste diversas entradas e sadas para a cultura de consumo, nos termos de Nestor Garcia Canclini (2003), combinando

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emulao e resistncia em relao aos cnones construdos pelo discurso hegemnico. Quando as populaes pobres urbanas brasileiras so

ignoradas economicamente ou culturalmente, passar a recorrer a sistemas paralelos que possam suprir suas necessidades nesses campos atravs de meios alternativos, que muitas vezes se moldam como pastiches dos sistemas de consumo simblico das classes hegemnicas. Para aqueles que no podem freqentar e aproveitar o comrcio dos shoppings, surgem os grandes cameldromos e feiras de periferia, que vendem imitaes mais baratas dos bens de consumo da elite: CDs, roupas e brinquedos piratas. Quando o sistema de transporte coletivo no atende s suas necessidades, surgem os kombeiros alternativos. E assim poderamos seguir citando casos em que, nas prprias comunidades suburbanas, surgem solues para os seus problemas de consumo particulares. Essas emulaes de consumo subalternas obviamente so limitadas pelas condies de seus participantes, que tornam o resultado final precrio. Mas tambm a influncia dos agentes do discurso hegemnico diminui nesse ambiente alternativo, o que torna possvel a manifestao de formas culturais populares que normalmente so suprimidas dos cnones estticos, mesmo nas situaes em que tentam reproduzir o imaginrio popular. Esses elementos popularescos ou grotescos (SODR, 2002), que sempre tiveram papel importante na viso de mundo dessas pessoas, no s ganham fora como resgatam seu papel central na formao de identificaes individuais e coletivas. Mas so justamente as formas simblicas populares presentes no brega que lhe garantem a rejeio por parte dos grupos culturais hegemnicos, cujos membros lhe dirigem ataques que muitas vezes deixam transparecer preconceitos de raa e classe, que visam naturalizar as circunstncias de desigualdade de acesso aos benefcios do consumo. Percebida como tosca, vulgar e de mau-gosto, a msica brega considerada nesse discurso elitizado como exemplo maior da degradao da cultura

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popular promovida pela mdia, degenerao imposta pela vida precria nos subrbios ou fruto da ignorncia das massas. Dentro do entendimento da cultura como um espao

estratgico de interao simblica e de poder, as elites hegemnicas no s buscam impor papis culturais para as diferentes condies de status dentro de uma sociedade, como tambm se ressentem de qualquer tentativa de romper com esses papis. Existem privilgios de produo e fruio artstica que envolvem o acesso aos meios de divulgao cultural, o direcionamento das aes de incentivo cultura estatais e privadas e a prpria maneira de se consumir os produtos, os ambientes e as atitudes em que se experimenta a cultura. Essa formao de um sistema de distino fundamentado em valores culturais bem apontada por Pierre Bourdieu em seus trabalhos sobre a formao do habitus de classe, principalmente em A Distino (1991). Logo, para se analisar o fenmeno do brega, necessrio partir de uma abordagem que considere o lugar de fala de um estudo acadmico, produzido por agentes que participam dos cdigos do discurso hegemnico e permeados por esse habitus, evitando assumir preconceitos apriorsticos. Essa abordagem foi encontrada no grupo de estudos conhecido como subaltern studies, uma corrente de pensadores, oriundos principalmente de pases perifricos, que dedicou-se a entender atitudes estratgicas para contornar a condio de subalternidade impostas no contexto cultural psmoderno. Tentando evitar uma viso preservacionista das culturas locais ou um darwinismo cultural, autores como Stuart Hall, Homi K. Bhabha, Gayatri C. Spivak, Nestor Garcia Canclini e Jess Martin Barbero nos oferecem vises extremamente teis para a anlise do processo de mestiagem cultural contemporneo, em que culturas perifricas, fundamentadas nas narrativas tradicionais locais e nas formas simblicas populares, assimilam e so assimiladas pela cultura de consumo global e tecnocrata. Quando o projeto de pesquisa sobre a sensibilidade brega foi apresentado, ainda durante o processo de seleo para o Mestrado em Comunicao, a questo corporal era insignificante dentro do corpus terico.14

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Inicialmente, o que era proposto era uma anlise de representaes de subalternidade em programas de TV da regio metropolitana de Recife, e como essas representaes estavam permeadas por um humor popularesco. J havia uma percepo de que essas representaes apresentavam uma sensibilidade distinta do discurso hegemnico: no o contestava diretamente, mas tambm no estava em consonncia completa com ele, constituindo um discurso paralelo. Muito dessa hiptese inicial permanece, sem dvida. Mas medida que me aprofundava nas leituras e na gradual insero na cultura paralela do brega, a necessidade de lidar com o problema do corpo em sua relao com a cultura foi tornando-se cada vez maior. J nos primeiros contatos com o trabalho de Mikhail Bakhtin sobre a cultura popular medieval (2002) as relaes entre o corpo popular e o cnone corporal construram um caminho natural a ser seguido. Talvez se esse livro no tivesse sido um dos primeiros lidos da bibliografia inicialmente apresentada, os resultados seriam diferentes. Mas o fato que a anlise de Bakhtin revelava tanto sobre as estratgias populares em relao a um discurso hegemnico como um discurso sobre o corpo, que tornou-se imperativa uma mudana na abordagem terica inicialmente escolhida. claro que o cnone corporal medieval que Bakhtin contrape s representaes populares do corpo no que ele denomina realismo grotesco do carnavalesco, estava intimamente ligado ideologia dominante na poca, Igreja Catlica e nobreza. Mas podemos dizer que essa oposio entre um corpo popular e um corpo idealizado no discurso hegemnico continuaria vlida para uma anlise de fenmenos contemporneos? Podemos encontrar algumas anlises que indicam que sim. Nietzsche anteriormente j havia apontado, na sua crtica ideologia esttica da Alemanha do sculo XIX, O nascimento da tragdia, que a cano popular preservava a ligao entre as pessoas e com a natureza tpica da sensibilidade dionisaca, enquanto a sensibilidade apolnea das elites intelectuais da poca tentava se afastar dessas molstias populares (1992, 30-31).

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Mas com o surgimento da sociedade orientada para o consumo e a mudana ocasionada no sistema de valores simblicos, para sustentar uma anlise semelhante so necessrias redefinies importantes. Embora

possamos perceber a permanncias de formas de um corpo popular, necessrio tambm buscar definir qual novo cnone que a cultura de consumo busca representar. Seguindo observaes presentes nas obras de Michel Foucault e Nietzsche e na sociologia de Pierre Bourdieu, Jean Baudrillard e Norbert Elias, um grupo de tericos ligados aos Estudos Culturais ingleses desenvolveu nas ltimas dcadas uma anlise extensiva sobre as relaes que a cultura de consumo estabelece com o universo do corpo, e como um novo sistema de valores culturais corporais se desenvolve, orientados para a gerao constante de consumo e a manuteno de economias de distino, que naturalizam as desigualdades econmicas, polticas e culturais. As anlises apresentadas por esses autores, notadamente Mike Featherstone (2001), Brian Turner (2001, 2002) e a prpria obra de Bourdieu (1991) e Baudrillard (1995, 1996) nos apresentam um contexto em que os indivduos so incentivados a manter formas corporais que constituem simulacros, aparentemente possveis, mas na verdade nunca completamente atingveis, negam tudo o que condio do corpo real (os efeitos degradantes do tempo, as formas naturais, a exposio a enfermidades, as funes e secrees). H com isso a garantia do surgimento contnuo de novas demandas de consumo e novos mercados: cosmticos para combater os sinais do tempo, alimentos dietticos, os diversos gadgets e espaos necessrios para a prtica de exerccios, servios mdicos, etc. Aqueles que se recusam ou que se vem impossibilitados de participar desse esforo pela boa forma, consumidores falhos, so

submetidos a estigmas que reforam para todos um sistema de poder sobre o corpo. Estas anlises esto em consonncia com o novo cnone corporal apontado por Bakhtin (2002: 279 a 281), o que torna possvel manter uma contraposio entre o corpo popular e o simulacro corporal da cultura de consumo. Com isso, podemos contar com uma abordagem e uma metodologia

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rica em possibilidades para a anlise do mundo do brega pernambucano, claramente ligado a um habitus corporal dos grupos subalternos urbanos. Combinando a gerao de novos mercados atravs do uso capital do corpo com um interesse recente dos profissionais de marketing em mercados de consumo at recentemente relativamente ignorados, o das classes populares, o Brega Pop ser analisado a partir de uma perspectiva de hibridizaes principalmente entre em a cultura popular com a no cultura corpo de consumo, referncias

suas

fortes

referncias

completamente distintas, muitas vezes diretamente opostas. Essa mescla aparentemente paradoxal, que para aqueles que esto fora da sensibilidade brega pode parecer absurda, mas que ocorre com surpreendente harmonia para seus participantes. Para estudar esse fenmeno da esttica brega, esta pesquisa utilizou como corpus os programas dirios da TV pernambucana que se fundamentam na cultura brega da cidade do Recife, transmitidos no horrio do meio-dia. Essencialmente, tomei como referncias os programas de auditrio Clube Show (TV Guararapes), Tribuna Show (TV Tribuna) e Muito Mais (TV Jornal); tambm foram considerados secundariamente programas que, apesar de no adotarem o formato do auditrio e no apresentarem performances de bandas, tambm tm uma ligao muito forte com a sensibilidade brega proposta: os policiais Cardinot na Tribuna (TV Tribuna) e Blitz na Cidade (TV Jornal). A opo pelos programas televisivos se deu pela necessidade de um recorte possvel que possibilitasse analisar os diversos elementos envolvidos: a msica, a dana, o humor, a vestimenta, os ideais de consumo, os agentes e os consumidores. Esses programas, como primeiros contatos com a cultura do Brega Pop, foram os principais responsveis pelo interesse que resultou na pesquisa agora apresentada. Seu significado dentro do estilo bregueiro oferece possibilidades suficientes para uma anlise rica e, por que no dizer, extremamente divertida. Alm desses programas televisivos, foram utilizadas como material de pesquisa de apoio s anlises realizadas entrevistas realizadas com

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produtores culturais, visitas a shows de brega, matrias jornalsticas e CDs adquiridos em vendedores ambulantes.

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1. O MERCADO PARALELO DO BREGA

Quando falamos em brega nas regies Norte e Nordeste do Brasil, tanto como o substantivo que denomina um estilo musical ou como o adjetivo associado ao mau-gosto, estamos sempre nos referindo a algo diferente do que um habitante das regies mais ao sul do pas poder interpretar. Mas mesmo para alguns moradores do Recife ou de outras cidades das regies onde acontece o Brega Pop h o risco de uma interpretao confusa sobre o que o estilo, o que o separa, mesmo que de maneira tnue, do brega tradicional ou do kitsch, ou sobre como funcionam os seus sistemas de promoo e circulao de bens culturais. Portanto faz-se necessrio, antes de iniciar a anlise propriamente dita a que se prope este trabalho, realizar uma pequena descrio daquilo que consiste na esttica definida como Brega Pop.

1.1. Histria do Brega Pop Segundo Paulo Csar de Arajo (2002: 18 e 20), o termo brega passou a ser empregado no incio da dcada de 80 para designar uma nova vertente dentro de um grupo de cantores anteriormente conhecidos como

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cafonas3, que haviam ocupado um espao deixado vago pela Jovem Guarda4 no final dos anos 60, apresentando temas romnticos de grande apelo popular. Esses termos, que denotam claramente um juzo negativo de valor, foram atribudos por uma crtica musical que considerava essa produo musical tosca, vulgar, ingnua e atrasada, e que segundo Arajo se ressentia do fato de que aquilo que se convencionou chamar Msica Popular Brasileira, conceito que designava quase sempre msicos engajados contra o regime ditatorial da poca, no conseguia ser to popular quanto cafonas como Amado Batista, Odair Jos, Nelson Ned, Agnaldo Timteo, Waldick Soriano ou Reginaldo Rossi, entre outros. Os cafonas conseguiam mobilizar massas em shows e atingir quantidades enormes de vendas de LP's curtirem o mel combinando influncias musicais formais diversas (vindas do rock, do bolero, do samba ou mesmo da prpria MBP) com os temas do cotidiano da populao, como as desiluses amorosas, traies, injustias e privaes experimentadas no dia a dia, em baladas romnticas como Eu no sou cachorro no, Vou tirar voc desse lugar e Cadeira de rodas ou mesmo o impacto de novas tecnologias na vida dessas pessoas, como no caso da msica Pare de tomar a plula, de Odair Jos. Embora esses msicos tenham constitudo sem dvida alguma um grande fenmeno da comunicao de massas nesse perodo no Brasil, Arajo aponta o desinteresse em se documentar sua parte na histria da msica popular: Sucesso de norte a sul do pas, patrimnio afetivo de grandes contingentes das camadas populares, esta vertente da nossa cano romntica tem sido sistematicamente esquecida pela historiografia da msica popular brasileira. Nas publicaes referentes dcada de 70, de maneira geral so focalizados nomes como os de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento, e discos como Sinal fechado, Falso brilhante e Clube da esquina, todos, sem dvida, representativos, mas que na poca eram consumidos por3

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Segundo Paulo Csar Arajo, cafona uma palavra de origem italiana, cafne (sujeito humilde, vilo, tolo) e divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, definida na Enciclopdia da Msica Brasileira como coisa barata, descuidada e malfeita e a msica mais banal, bvia, direta, sentimental e rotineira possvel, que no foge ao uso sem criatividade de clichs musicais ou literrios (ARAJO, 2002: 20). Muitos cantores cafonas inclusive comearam suas carreiras seguindo estritamente o estilo da Jovem guarda, como Reginaldo Rossi e Paulo Srgio.

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um segmento mais restrito do pblico, localizado na classe mdia. O que a maioria da populao brasileira ouvia eram outras vozes e outros discos (2002: 15). Por volta do final da dcada de 70 e incio da de 80, surge uma nova gerao de msicos que renovam a msica cafona e passam a ocupar as paradas de sucesso: Sidney Magal, Agep, Peninha, Amado Batista, Giliard, Carlos Alexandre. Gradualmente no s esses msicos, mas os antigos cafonas ganham o nome de bregas. Embora tenha experimentado uma fase de grande sucesso at o incio dos anos 90, a msica brega gradualmente sucumbiu s classificaes pejorativas e foi desaparecendo da mdia de massa. Muitos msicos, contando com o sucesso do passado, passaram a viver de shows realizados por cidades do interior do pas. No perodo que se seguiu ao esmaecimento do brega

tradicional, ondas sazonais de ritmos danantes surgidos no nordeste do pas surgiram e experimentaram sucesso por perodos limitados, formando modas como a da lambada e do ax. Essas msicas uniam influncias das mais diversas: a temtica romntica do brega com o humor popularesco do forr de dublo sentido j bastante conhecido nas regies; ritmos danantes caribenhos com arranjos e instrumentos tpicos do rock, como a guitarra e o teclado; e a presena de danarinos com roupas chamativas encenando coreografias sensuais nos palcos. Com o esgotamento do interesse da mdia nacional por esses ciclos de modas danantes, principalmente no caso da lambada, muitos msicos em cidades como Belm do Par e Recife, onde no havia se estruturado uma cadeia de produo e divulgao musical como aconteceu no caso da Bahia e a indstria da ax music, passaram a trabalhar em espaos alternativos populares. Embora a maior parte dos meios de comunicao, das gravadoras e das grandes casas de show ignorassem sua existncia, esses artistas continuaram produzindo, assimilando as influncias novas que chegavam e mantendo um pblico significativo nas periferias.

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Em Pernambuco, muitos cafonas como Reginaldo Rossi e Adilson Ramos no s continuavam populares, como faziam escola em uma nova gerao de bandas que surgia, como a banda Labaredas e S Brega. Nos dois casos, medida que se desenvolvia esse circuito musical alternativo nas periferias das duas regies metropolitanas, o termo pejorativo brega foi sendo gradualmente assumido como um estilo musical por msicos e fs, sendo incorporado ao nome das bandas e formando o movimento bregueiro. A partir do final da dcada de 90, com o ressurgimento de um interesse pela msica considerada de mau gosto de dcadas passadas, surgido com o culto ao lixo tpico do estilo trash, o brega nacionalmente ganha nova visibilidade, apesar de deslocada, e cantores como Reginaldo Rossi e Sidney Magal passam a ser cult. No haviam mais tantos motivos para se ter vergonha de ser brega. Em Belm, desde os anos 80, esses msicos abandonados pelas rdios contaram com dois espaos principais para fazer circular a sua msica. O primeiro foi o circuito de shows e bailes, composto pelas grandes casas noturnas que promoviam os breges e com as estruturas alternativas das aparelhagens, grandes e potentes sistemas de som profissional utilizados a realizao de enormes festas populares, em que milhares de pessoas danavam ao som de msicos locais que tocavam dos ritmos da moda ao carimbo (THIGAN, 2005). O segundo foram os camels e vendedores ambulantes, que at hoje so os principais distribuidores de CDs de brega em um esquema de pirataria consentida pelas bandas. Gradualmente o ambiente construdo nesses espaos, de trocas entre msicos e de adaptaes de diversos ritmos pop ao gosto popular, geraram as condies para a unificao das bandas em um estilo que passou a ser conhecido como o Brega, em que a palavra antes pejorativa foi assumida como uma afirmao bem humorada de um gosto marginal.

1.2. O estilo bregueiro Com o passar do tempo, o Brega paraense cresceu, e suas bandas passaram a ganhar uma maior projeo e uma maior estrutura para a22

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produo musical e uma maior insero na mdia local. medida que se deu uma profissionalizao desses msicos e produtores, e que contavam com um maior apoio logstico para montar sistemas de som e iluminao mais impressionantes para os shows espetaculares, criaram-se as condies para a conquista de novos mercados fora das divisas do estado do Par (NEVES, 2005). O gosto musical popular que culminou no estilo Brega j existia em diversas outras cidades do Norte e Nordeste, mas no havia em nenhuma outra cidade a estrutura necessria para a criao de um mercado consistente. Cidades como o Recife j possuam sistemas de comunicao desenvolvidos, formados por redes de rdios, TVs e jornais, mas de certa forma os espaos cedidos para a msica brega era muito pequeno. Nesse sentido, o impacto da chegada dos shows de bandas paraenses foi crucial para a formao do estilo no Recife. Esses shows representavam a chegada de uma estrutura espetacular nas periferias, tratando de temas e usando formas que estavam de acordo com as experincias do pblico popular, mas tambm usando os mesmos recursos de palco, iluminao e figurinos chamativos dos shows pop. a democratizao, mesmo que em um circuito underground subalterno, do espetculo miditico. Nas suas formas, o Brega Pop diferem da msica cafona tradicional de diversas maneiras. Em primeiro lugar, est o papel central da dana, essencialmente para ser executada por casais, em que ele se aproxima mais das modas efmeras como a lambada. Para criar o efeito desejado de uma msica danante e sensual, os msicos brega abusam em seus arranjos de formas provenientes de ritmos caribenhos e do forr, mas utilizam batidas mais aceleradas e da guitarra, influenciados principalmente por referncias do rock internacional (NEVES, 2005). As letras das msicas continuam com uma forte carga romntica, direcionada imposio de efeitos tpica do Kitsch (ECO, 1993: 6976). Mas freqentemente essa ausncia de medidas se desvia para temas erticos explcitos, em que o sexo tratado sem idealizaes, como um meio de obteno de prazer imediato e intenso. Nesse sentido, importante23

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ressaltar o papel dos danarinos, executando coreografias que reforam o contedo sexual das letras. Para criar a ambincia necessria para encenar essa libertao do corpo, as bandas bregas nordestinas se utilizam inmeros recursos de palco, sempre exagerados maneira kitsch. Os casais de danarinos que acompanham a banda executam coreografias de movimentos amplos e intensos, freqentemente com clara conotao sexual, e que so destacados pelo uso de roupas especialmente preparadas para destacar partes

significativas do corpo. Nesse sentido, a indumentria tem um importante papel para o reforo dos significados de libertao de que o corpo investido. As diferentes referencias culturais do Brega Pop, assim como a sua relao com uma viso sensualista pode ser percebida nos nomes das bandas. Algumas exemplos de maior expresso so: Swing do Amor, Banda Metade, Vcio Louco, Pank Brega, Bregastar, S Brega, Talib, Tecnokit, Kitara, Brega.Com e Mega Star. interessante notar tambm um aumento do nmero de celebridades do Brega Pop, artistas que seguem carreira solo ou vocalistas de bandas que so tratados como verdadeiros dolos de subrbio, com direito a f clubes e demonstraes de histeria coletiva durante suas aparies. Na maioria dos casos, possvel fazer paralelos entre os principais artistas solo bregas e cones da cultura massiva. Michelle Mello, ex-vocalista da Banda Metade, recentemente lanou-se em carreira solo, seguindo um modelo de divas da msica Pop como Madonna ou Whitney Houston. J o cantor Andr Vianna, que na abertura de seu show anuncia que saiu de Paudalho5 para o Mundo, investe em msicas romnticas e em uma postura de gal sedutor, seguindo a linha de artistas sertanejos como Daniel ou Leonardo. J Kelvis Duran, autor de Chama a Patricinha, utiliza figurinos, coreografias e uma presena de palco que parecem misturam Michael Jackson com Ricky Martin. medida que algumas bandas passam a disputar um maior acesso mdia massiva, faz-se necessria uma depurao desses elementos tpicos de uma cultura que depende do mercado paralelo. Um movimento que

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j pode ser percebido nos grupos paraenses de maior expresso, o da depurao de elementos populares como meio de acessar a um mercado mais amplo das grandes redes de comunicao. Exemplos dessa mudana esto prpria inteno de adotar a denominao de Calypso, ou na amenizao dos temas sexuais explcitos das letras. A banda recifense Brega.Com

recentemente mudou seu nome para Banda.Com, com o objetivo de escapar do rtulo de banda brega, visto pelos produtores como negativo para os esforos de promoo. Em sua negociao com a cultura de consumo, os artistas do Brega tendem a ser foradas a abandonar algumas caractersticas que, apesar de populares, so mais agressivas esttica pasteurizada dos mass media. Em troca, as instncias legitimadoras das indstrias culturais passam a reconhecer, mesmo que com ressalvas, um valor artstico e de mercado nos produtos do estilo brega. Considerando que essa uma negociao desigual, no difcil visualizar que a maior aceitao das bandas Brega pelas instncias de um mercado cultural mais amplo, inclusive das emissoras do sul do pas, tambm significa uma descaracterizao cada vez maior das formas originalmente popularescas do Brega Pop.

1.3. Circuitos alternativos Como acontece com qualquer bem cultural, muitas das formas adotadas pelo Brega Pop so influenciadas diretamente pelos agentes responsveis por sua promoo e circulao. O fato de seu uma cultura que durante anos ficou restrita a bailes e shows de periferia e distribuio atravs do comrcio informal certamente determinou de muitas maneiras o estilo, e esta influncia permanece mesmo quando as bandas bregas passam contar com espaos privilegiados no meio de televiso ou com estruturas de produo artstica mais profissionais. Na cadeia de produo do Brega Pop, ocorre uma pirataria consentida em que grande parte dos msicos e DJs gravam de maneira5

Cidade da Zona da Mata de Pernambuco, localizada a cerca de 50km do recife.

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relativamente informal seus CDs e distribuem eles mesmos para o comrcio informal. Como conseqncia, a principal fonte de lucros da grande maioria das bandas no est na venda de CDs, que quando so lanados oficialmente so vendidos em quantidade muito menores do que suas verses piratas. O grande medidor do sucesso de uma banda so as coletneas de DJs de periferia, lanadas em sries (algumas j contando com mais de 10 volumes), e que juntam as msicas de mais ouvidas no momento. Os encartes desses compactos se limitam a citar o nome da msica e o da banda, raramente mencionando crditos dos autores ou msicos que participaram as gravao; e a maior prova do consentimento das bandas o fato de que cada so acrescentadas s msicas, alm dos efeitos sonoros mixados que o

identificam, mensagens das prprias bandas expressando sua admirao pelo DJ. Entre os alguns DJs mais presentes nos camels recifenses esto o DJ Maycon Som (O Moreno Apaixonado), DJ Val (O Caador de Sucessos) e DJ Nego (A Sensao de Peixinhos). Podemos perceber a uma certa tendncia para a

desvalorizao do papel do artista, que embora seja amenizada recentemente pelo surgimento de estruturas mais organizadas de empresariamento de algumas bandas, ainda pode ser observada em grande escala na velocidade em que surgem e desaparecem novas bandas. A relao prxima da msica brega com os camels no est restrita venda de CDs. A maioria dos bens culturais ligados esttica do brega so consumidos principalmente atravs desse tipo de comrcio. Como coloca Hermano Vianna, falando sobre o caso paraense: Uma festa de aparelhagem de Belm do Par mostra a vitalidade de uma economia paralela brasileira e mundial, que no aparece mais nas estatsticas do Ministrio da Fazenda ou do Trabalho nem pode ser domesticada nos acordos cada vez mais precrios da Organizao Mundial do Comrcio. At as roupas que os danarinos usam so compradas em camels que se abastecem em feiras nordestinas, em circuitos totalmente off-ICMS, off-notas fiscais e off-carteira assinada (2004).

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Como observa bem Vianna, ao invs de obterem lucro pela venda de CDs ou atravs da propriedade intelectual de suas composies, a principal fonte de recursos para as bandas brega est nas apresentaes ao vivo. Dois produtores culturais ouvidos durante o processo da pesquisa afirmaram que as bandas em evidncia realizam em mdia seis ou sete shows por semana, reservando espao sempre para comparecer a apresentaes ao vivo em um dos trs principais programas televisivos direcionados ao Brega como forma de promover suas apresentaes. Assim, existe uma inverso de relaes, em que as bandas que emplacam mais sucessos nas coletneas vendidas nos camels aumentam a demanda por seu show.

1.4. O brega na TV A razo principal de se haver escolhido como corpus para referenciar uma pesquisa sobre o universo esttico do Brega Pop o grupo de programas televisivos selecionados a de que, atravs deles, possvel obter uma amostragem suficientemente ampla e recortada do gosto tpico bregueiro. Nos programas de auditrio tenta-se reproduzir as

apresentaes ao vivo das bandas, inclusive pelo recurso da presena de uma platia ativa. Nos seus palcos podemos observar, alm das msicas, as coreografias, os figurinos e as atitudes tpicas dos artistas do Brega Pop, podendo desenvolver um entendimento de suas estratgias de comunicao com seus pblicos. Hoje em dia programas como o Muito Mais, Clube Show e Tribuna Show6 so essenciais nas estratgias promocionais dos grupos musicais, que tendem a comparecer em alguns casos semanalmente em um mesmo canal. Entre as emissoras locais, a faixa em que se encaixam esses programas, em torno do meio dia, lugar de uma disputa ferrenha por audincias, e que envolve disputas por exclusividade na presena de bandas importantes ou a briga pelo passe de apresentadores. Estes ltimos inclusive tm se tornado os principais empresrios agenciadores de bandas, e6

Transmitidos, respectivamente, pela TV Jornal, TV Guararapes e TV Tribuna.

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tambm garotos-propaganda requisitados por empresas que desejam atingir os pblicos de classe C,D e E do grande Recife. Denny Oliveira, apresentador do Muito Mais, realiza periodicamente campanhas para o plano de sade Santa Clara, e Beto Caf, do Clube Show, est presente em campanhas da loteria popular Pernambuco da Sorte. J nos programas com foco policial, tomados apenas

secundariamente, o aspecto observado o do humor grotesco popular, que est ligado diretamente sensibilidade que origina o Brega Pop. Originalmente direcionados para a espetacularizao do problema da violncia urbana, gradualmente os programas dessa categoria tm dado mais espao a uma viso escrachada de situaes cotidianas das periferias, como os conflitos entre vizinhos, as brigas de famlia, e a personagens tpicos desse ambiente, como pais que no querem assumir seus filhos, maridos trados, evanglicos, travestis, prostitutas ou os bbados de bairro. Um exemplo claro desta tendncia o programa apresentado pelo radialista Joslei Cardinot, o Cardinot na Tribuna7. Todos os dias, diversas pessoas vm ao seu estdio em busca da soluo de seus problemas, seja atravs da via legal, atravs de um advogado, ou pela via espiritual, com a presena freqente de um pai-de-santo. O preo a submisso a um interrogatrio feito por Cardinot, que se detm nos aspectos escatolgicos e bizarros das situaes vividas: detalhes de relaes sexuais, traies, a situao do marido trado. Fica sempre clara a inteno de expor os sujeitos das narrativas ao ridculo. Os movimentos de cmera (que costumam focar as partes baixas das pessoas em momentos propcios) e a sonoplastia completam a ambientao humorstica. Seu principal concorrente, Blitz na Cidade8, apresentado por Ciro Bezerra no fica para trs e apresenta um quadro chamado Barraco, em que se pode testemunhar lavagens de roupa suja entre vizinhos em conflito; recentemente o programa tambm promoveu o Concurso do Papudinho, uma espcie de gincana aberta somente para os alcolatras conhecidos de cada bairro, com o objetivo de escolher o mais engraado entre eles.

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Transmitido pela TV Tribuna.

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Atravs da observao sistemtica desses programas, durante os quase dois anos de realizao da pesquisa que resultou na presente dissertao, foi possvel montar um panorama do imaginrio que envolve o Brega Pop. A partir da anlise desse material, tornou-se possvel identificar as ligaes estticas ente o estilo bregueiro e os dois universos culturais com que ele negocia: a sensibilidade popular das periferias do Recife e a cultura de consumo das indstrias culturais.

8 Transmitido pela TV Jornal, anteriormente apresentado por Jota Ferreira, que se desvinculou do programa para poder concorrer ao cargo de vice-prefeito de Jaboato dos Guararapes.

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2. A MEDIAO DO BREGA

O Brega Pop no um fenmeno que se possa chamar de novo; durante cerca de duas dcadas ele se desenvolveu nas periferias das grandes cidades do Norte e Nordeste, nos bailes populares dos bairros pobres e nas aparelhagens9. Tambm devemos considerar que desde o princpio houve entre seus agentes, msicos e produtores, o objetivo de que o estilo brega ganhasse projeo na mdia, regional e nacionalmente. Muitas vezes, quando se referem ao assunto, esses agentes citam outros ritmos nordestinos que fizeram sucesso nacional no passado, como a lambada e a ax music baiana10. Trata-se de uma esttica popularesca11, direcionada para as sensibilidades tpicas da populao de baixa renda e capaz de expressar de diversas formas valores, anseios e desejos desse pblico. Ao mesmo tempo, freqentemente identificado com pura expresso do mau gosto por aqueles que no participam dessas sensibilidades: brega a palavra pejorativa que

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As aparelhagens so potentes sistemas de som utilizados nas festas de periferia de Belm do Par, mas tambm denominam as empresas organizadoras das principais festas. 10 Vide textos anexados retirados do site Brega Pop (www.bregapop.com.br). 11 Popularesco ser muitas vezes utilizado neste trabalho para se referir especificamente a aspectos da cultura massiva orientados para o gosto das classes populares urbanas, evitando assim uma possvel confuso com popular, termo mais abrangente. O vocbulo definido no dicionrio Houaiss como 1. que pretende ter carter popular (adaptado ao nvel cultural das massas) e 2. que tenta imitar o que popular (feito pelas pessoas simples)

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durante dcadas foi utilizada para se referir falta de sofisticao de artistas populares, mas que agora encarada como um estilo. Pela lgica de mercado que tradicionalmente rege a televiso comercial brasileira, que se viabiliza financeiramente atravs da venda de anncios e que privilegia a programao de maior audincia, seria de se esperar que um estilo musical de grande apelo popular tivesse sido descoberto antes e promovido de maneira a gerar pontos de audincia bruta. Mas as bandas brega enfrentaram resistncias ao tentar se projetar, mesmo nas mdias locais de suas cidades. Apesar de seu sucesso absoluto nas periferias, somente na ltima dcada as emissoras locais do Recife comearam a dar um espao crescente para programas direcionados ao pblico do Brega Pop, que hoje so intensamente promovidos para os anunciantes devido s suas audincias significativas. O programa local de auditrio Tribuna Show, da Rede Tribuna, atualmente ocupa a liderana no segmento e com freqncia supera a tradicional lder de audincia na TV brasileira, a Rede Globo, que no mesmo horrio apresenta o noticirio local. Por outro lado, essa presena atual na programao televisiva no acontece sem causar um certo desconforto para determinados pblicos que consideram o Brega Pop uma radical expresso de mau gosto, percebendo que de alguma forma ele est fora de seu lugar ao ganhar essa evidncia atual. interessante notar que raro ver em qualquer programa regional da Globo Nordeste referncias ao Brega Pop, o que d a entender que a emissora no se rendeu ao fenmeno. necessrio algum cuidado quando se fala na relao que a TV brasileira tem com os grupos que se encontram nas periferias no s no sentido espacial urbano, mas que so perifricos por estarem margem do consumo. Embora seja inegvel a penetrao do meio em todas as camadas da populao, e principalmente naquelas de baixa renda, grande parte da programao televisiva no prioritariamente planejada esteticamente ou comercialmente para as classes com menor poder aquisitivo. Pelo contrrio: um termo tradicional para definir a linha editorial da Rede Globo, lder absoluta e detentora da maior parte das verbas de publicidade televisiva, o Padro

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Globo de Qualidade, que expressa um certo cuidado da emissora em evitar programas de mau gosto ou apelativos. Esse padro esttico

freqentemente apresentado como uma garantia aos anunciantes de que seus comerciais sero inseridos em um contexto de nvel elevado, beneficiando

assim o trabalho de persuaso das fatias mais interessantes do mercado consumidor: os grupos com maior capacidade de consumo e portanto que apresentam maiores potenciais de rentabilidade. A questo que mau gosto e apelativo so termos que geralmente se referem programao televisiva dirigida s classes mais baixas e que se fundamentam essencialmente em formas da sensibilidade popular e na expresso de sua corporeidade, onde televiso se trai e permite ver um feio povo que em outros espaos tenta-se ocultar de diversas formas, mas que insiste em aparecer mostrando sua face sem maquiagens.

2.1. Mediaes hegemnicas O enquadramento negativo das expresses de gosto tpicas das classes mais baixas um instrumento crucial no processo de construo e manuteno de um poder que, com base nos escritos de Antnio Gramsci, identificamos como hegemnico (PORTELLI, 1977: 65-66). A perspectiva gramsciana, ao repensar as relaes entre estrutura e superestrutura, introduz na crtica marxista possibilidades de entendimento de lgicas de construo de poder que vo alm da questo do capital, percebendo o campo at ento subestimado da cultura como instrumento essencial na construo da hegemonia poltico. Esse novo caminho foi de encontro no s a questes no trabalhadas pelo marxismo mais ortodoxo, mas tambm a novos problemas surgidos com o

desenvolvimento do capitalismo tardio e sua relao estrutural com uma cultura de massas. O caminho que levou as cincias sociais crticas a interessaremse pela cultura, e particularmente pela cultura popular, passa em boa parte por Gramsci. Das releituras, s quais os anos 1960 foram to dados, houve32

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poucas to justamente reclamadas pelo momento que se estava vivendo, e to decisivas como a de Gramsci. Porm, mais do que uma releitura, neste caso trata-se de uma descoberta, inclusive para no poucos marxistas, de um filo de pensamento que complexas circunstncias histricas tinham mantido quase cego, e que outra conjectura desnudava, trazia luz. (MARTNBARBERO, 2001: 116). Segundo Hugues Portelli (1997: 15), Gramsci identifica a integrao orgnica entre, de um lado, a maneira como as classes se relacionam com as foras produtivas e, por outro, as disposies ideolgicas e polticas. O autor italiano entendeu que, embora no se deva subestimar os aspectos coercitivos dos novos grupos detentores do poder, era importante sublinhar a importncia da direo cultural na estruturao de um poder com capacidade de perdurar e de se reproduzir nas diferentes dimenses do social. Quando a burguesia se torna central no jogo do poder, seu principal instrumento para consolidar-se no foi a fora (como acontecia com as classes dirigentes no antigo regime), mas a estruturao de um sistema social integrado que permitisse a cooptao de diferentes grupos, com diferentes projetos polticos, em uma espcie de aliana poltica circunstancial denominada na terminologia gramsciana de bloco histrico. Na abordagem de Gramsci, esse bloco forma uma hegemonia cuja funo anular as tentativas de chegada ao poder daqueles que representem uma ameaa s classes dirigentes. Para isso, estas ltimas necessitam organizar em um mesmo sistema de representaes que vincule organicamente os campos econmico, ideolgico e poltico, e que estabelea as posies dois grandes grupos, alm dos seus prprios: as classes auxiliares que servem de base social hegemonia e aquelas populaes excludas do sistema hegemnico, ou as classes subalternas (PORTELLI, 1997: 67 e 80). Na anlise original de Gramsci, subalterno era um sinnimo para as classes proletrias; mas o termo mostrou sua fecundidade ao oferecer possibilidades que foram de encontro a novas demandas da crtica de esquerda, principalmente de origem marxista. Por um lado, as mudanas ocorridas no universo do trabalho e da produo com o surgimento do

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capitalismo tardio e da sociedade de consumo exigiam uma abordagem mais flexvel, que fosse capaz de cobrir relaes muito mais dinmicas. Por outro, surge o debate sobre a subalternidade uma soluo terica para a

compreenso de relaes de explorao que, embora no abandonem a discusso do capital, tambm no se limitam a ele, como a questo racial ou a feminista. Principalmente a partir de releituras de Gramsci, a cultura passou a ser vista, mais do que como um espao de distino, como parte da luta pela hegemonia (CANCLINI, 2003: 274), em que, segundo Stuart Hall, a luta cultural pode assumir diversas estratgias circunstanciais: incorporao, distoro, resistncia, negociao, recuperao (2003: 259). Jess Martin-Barbero observa que o conceito gramsciano de hegemonia no pensa o processo de dominao social como imposio de um exterior, mas em um processo que hegemoniza, na medida em que representa interesses que tambm reconhecem, de alguma maneira, como seus as classes subalternas (2001: 116). De fato, h um aparente esforo dos meios de comunicao em representar os grupos subalternos, inclusive freqentemente sob a justificativa de dar-lhes ouvidos. Por outro lado, diversos autores apontam como elementos culturais das camadas excludas da sociedade por vezes escapam da cultura de coalizo dominante e se fazem mostrar de maneira contrastante com os cnones culturais hegemnicos (MICELI apud SODR, 2002: 122). No processo de enquadramento das classes subalternas no discurso hegemnico necessrio ao mesmo tempo inclu-las nas

representaes sociais coletiva e exclu-las daquilo que associado s classes superiores, de modo a velar sua condio de subalternidade. Basicamente essa articulao se torna possvel atravs dos esteretipos que so associados s classes populares e aos grupos sociais excludos, e que possam ser reconhecidos e aceitos por todos os indivduos dentro de uma cultura, inclusive muitas vezes pelos prprios subalternos que nele se vem parcialmente refletidos. Como observa Slavoj iek: Para funcionar, la ideologa dominante tiene que incorporar una serie de rasgos en los cuales la mayoria explotada pueda reconocer sua autnticos anhelos. En34

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otras palabras, cada universalidad hegemnica tiene que incorporar por lo menos dos contenidos particulares: el contenido popular autntico y la distorcin creada por las relaciones de dominacin y explotacin12 (1998: 139140). Mas se essa assimilao parcial de suas cultura refora a alienao das classes subalternas, ela tambm faz surgir uma brecha que revela aquilo que em outros contextos se tenta esconder. E justamente nesse limitado espao que se torna possvel uma agncia cultural das populaes perifricas,. e que pode vir a subverter de maneira surpreendente uma lgica hegemnica de excluso, como ocorre no caso do Brega Pop.

2.2. Cultura popular e subalternidade O modelo gramsciano refletiu-se na teoria social de algumas correntes dos chamados Estudos Culturais que buscam metodologias que permitam observar a histria e a cultura desde a perspectiva das populaes perifricas, principalmente em contextos ps-coloniais, onde pases que at recentemente eram colnias da Europa tiveram que repensar suas culturas locais e sua insero no mundo globalizado. Nesse contexto, por exemplo, aparecem nos anos 80 o grupo de intelectuais indianos de esquerda agrupados em torno dos Subaltern Studies, liderados por Ranajit Guha, que buscam reescrever a histria da ndia do ponto de vista dos grupos subalternos locais. Logo a experincia indiana ir influenciar no surgimento de grupos de estudos do subalterno em outros contextos perifricos, como acontece no caso Grupo latino-americano de estudos subalternos (PRYSTHON, 2002: 145). Mas a tentativa de produzir uma proposta crtica subalterna que, no entanto, acaba por depender do campo acadmico, que tem suas bases nas formas produzidas pela hegemonia, acaba por despertar uma crtica dentro da prpria teoria esquerdista ps-colonial. Gayatri Spivak, buscando ao mesmo tempo incentivar e questionar criticamente os estudos do subalterno

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Para funcionar, a ideologia dominante tem que incorporar uma srie de traos nos quais a maioria explorada possa reconhecer suas nsias autnticas Em outras palavras, cada

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indianos, escreve seu artigo perguntando Can the Subaltern Speak? (1988), onde aponta o problema do desenvolvimento de uma suposta perspectiva subalterna a partir dos discursos produzidos por uma elite intelectual. Homi Bhabha fala de entre-lugares surgidos da articulao de diferenas culturais e que produzem figuras complexas de diferena e identidade, passado e presente, interior e exterior, incluso e excluso (1998: 19-20); estar no entre-lugar ao mesmo tempo estar em mais de um lugar, mas no estar em nenhum, impossibilitado de encaixar-se nas identidades produzidas pelas narrativas hegemnicas. Spivak leva essa idia adiante e coloca a questo da subalternidade intimamente ligada a uma provvel impossibilidade de voz dos grupos excludos da representao: se o discurso hegemnico busca na sua prpria formatao limitar a expresso dos subalternos, a definio de subalternidade subentende a dificuldade desses indivduos de agirem com liberdade nos espaos de circulao de bens culturais, de se fazerem representar, ou mesmo de terem conscincia de sua prpria condio subalterna. Para a autora indiana, o verdadeiro subalterno no teria voz prpria, estando fadado a sempre escapar da representao (BEVERLEY, 1999: 102). Isso nos leva a uma observao pertinente de Nestor Garca Canclini, ao analisar as aplicaes da teoria de base gramsciana ao estudo da cultura popular: se ela refundamenta a noo marxista desgastada das classes sociais proletrias e permite repensar o popular como subalterno, por outro lado ela tende a reservar a iniciativa s classes dirigentes. As culturas populares no so um efeito passivo ou mecnico da reproduo controlada pelos dominadores; tambm se constituem retomando suas tradies e experincias prprias no conflito com os que exercem, mais que a dominao, a hegemonia. Quer dizer, com a classe que, ainda que dirija poltica e ideologicamente a reproduo, tem que tolerar espaos onde os grupos subalternos desenvolvem prticas independentes e nem sempre funcionais para o sistema (2003: 273).

universalidade hegemnica tem que incorporar pelo menos dois contedos particulares: o contedo popular autntico e a distoro criada pelas relaes de dominao e explorao.

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Canclini assume uma postura crtica ao acusar na postura de tericos neogramscianos a utilizao de modelos de anlise que, na inteno de destacar a iniciativa de resistncia e oposio de setores subalternos, procuram estabelecer uma oposio ingnua, em que tudo o que no hegemnico subalterno e vice-versa. Omitem-se, ento, nas descries, processos ambguos de interpenetrao e mescla, que nos movimentos simblicos de diversas classes geram outros processos que no se deixam organizar sob classificaes de hegemnico e subalterno, de moderno e tradicional (2003: 275). O autor observa que a anlise das culturas populares urbanas desmonta as categorias tradicionais e exige novos instrumentos conceituais que no se resumam s oposies convencionais (2003: 283); Essa viso compartilhada com Jess Martn-Barbero, que afirma somente ser possvel ver a separao do massivo em relao ao popular, que costuma desenhar o primeiro como um parasita do segundo, a partir de duas posies: ou dos folcloristas, que em sua misso de preservar o autntico tradicional vem toda mudana como desagregao; ou da concepo de dominao social que se limita a ver a produo cultural popular como uma reao s indues das classes dominantes" (2001: 321). Canclini prefere abordar o problema da convivncia entre as culturas popular, erudita e massiva partir das negociaes que se instauram no ambiente dos meios de comunicao, s quais ele se refere como hibridao, em que prticas culturais que antes existiam separadas se combinam para gerar novas estruturas (2003: XIX) Nesse processo, possvel que elementos tradicionais perdurem medida que novos produtos culturais so elaborados. Trata-se de uma viso no se limita a pensar a agncia cultural das camadas populares somente nos movimentos de resistncia estruturados que combatem a hegemonia cultural, mas que considera tambm a penetrao do popular, subalterno e perifrico nos espaos da cultura massiva.

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J Martn-Barbero d mais ateno em sua anlise aos meios massivos em seu papel de mediao de diferentes presses culturais. Segundo o autor, as indstrias culturais reorganizam a hegemonia ao se converterem em lugares de condensao e entrecruzamento das mltiplas redes de produo do social (2001: 111). Assim, retornamos a uma conceituao da luta social no campo da cultura. Como bem coloca Renato Ortiz: A cultura popular de massa produto da sociedade moderna, mas a lgica da indstria cultural tambm um processo de hegemonia. Com isso entendemos que a anlise da problemtica cultural deve levar em conta o movimento mais amplo da sociedade, e, ao mesmo tempo, perceber a cultura como um espao de luta e de distino social. (2001: 147). A partir desse ponto de vista, uma crtica social que tenha por objetivo identificar a resistncia do popular deve-se perguntar a partir de quais posies os subalternos urbanos negociam culturalmente, e quais so as suas estratgias para contornar as barreiras colocadas pela hegemonia. Quando se constituem em mercados, os estratos mais abaixo na hierarquia social aumentam seu poder de presso, e conseguem ver representadas em um maior nmero de espaos as suas sensibilidades singulares. Portanto, as formas populares passam a ser promovidas pelas indstrias culturais medida que se traduzem em consumo.

2.3. Sensibilidade e mediao Essa convergncia, faz com que a cultura massiva receba demandas de grupos diferenciados, mas ao mesmo tempo leva as grandes redes nacionais e globais de comunicao a direcionarem-se estrategicamente para um pblico indiferenciado, uma audincia mdia, amenizando tenses. Mas obviamente a fora exercida pelos diferentes grupos se d de maneira desigual. As classes dirigentes e as elites econmicas e intelectuais controlam as instituies de promoo cultural, influenciam programas estatais38

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de incentivo produo artstica e so a mo de obra das indstrias culturais. Alm disso, como consumidores com maior potencial de compra, para essas camadas que os anunciantes se direcionam, o que num sistema de comunicao massiva sustentado por um modelo comercial de venda de espao publicitrio, inevitavelmente acaba por influenciar os contedos de modo a agradar mais freqentemente as demandas desse pblico privilegiado. Por isso, embora seja crucial destacar a agncia das camadas populares, a noo de que exista uma fora hegemnica no ambiente cultural agora reorganizado com o desenvolvimento dos meios de comunicao se mantm. No caso brasileiro, onde durante dcadas as elites mantiveram o controle da produo em determinados veculos e pautaram a discusso esttica da cultura massiva, assumindo de um ponto de vista que ignorava a subjetividade do popular, essa relao foi intensificada; importante perceber como ainda hoje existe um desconforto tardio com uma degradao cultural, em um momento em que a cultura popular irrompe em espaos que antes lhe eram completamente negados. nesse ambiente que Muniz Sodr identifica uma atitude elitista que atribui a mediocrizao gerada pela cultura massiva presena cada vez maior de manifestaes culturais de origem popular no meio televisivo (1999: 133). O debate sobre o desenvolvimento do mercado cultural em pases desenvolvidos pautado por uma separao entre a cultura erudita e a cultura massiva. Pierre Bourdieu afirma que com o desenvolvimento do campo intelectual na Europa, principalmente a partir da segunda metade do sculo XIX e das primeiras dcadas do sculo XX, ocorre uma progressiva autonomizao do sistema de produo, circulao e consumo de bens

simblicos; autonomia essa em relao a todos aqueles campos que possuam pretenses de legislar sobre a esfera cultural: o econmico, o poltico e o religioso (2003: 99). Paralelamente, com o surgimento dos meios de comunicao massivos, que pem em circulao uma grande quantidade de bens simblicos para uma grande audincia, constitui-se um sistema de produo cultural crescente orientada para o mercado, que hoje a partir de releituras das teorias frankfurtianas chamamos de as indstrias culturais.

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A postura adotada por muitos produtores de bens culturais, que ao reafirmarem constantemente a autonomia do campo intelectual no s atravs de sua produo, mas tambm dos juzos estticos emitidos e dos sistemas de valores que assim gradualmente vo se consolidando, faz com que cada se configure cada vez mais crculos pautados pelo esforo de diferenciao em relao cultura massiva produzida para o gosto mdio. Essa ruptura tem como conseqncia a oposio entre o campo de produo erudita, constitudo como sistema de produo que produz objetivamente apenas para produtores cada vez mais especializados, e o campo das indstrias culturais, especialmente organizado com vistas produo de bens culturais a no-produtores de bens culturais (BOURDIEU, 2003: 105). O campo cultural autnomo defende a sua autonomia combatendo a penetrao da racionalidade industrial no campo da cultura, buscando atravs de suas estratgias de diferenciao a afirmao constante de sua liberdade. Ocorre que a relao de oposio entre os dois campos no deixa de se constituir em um conflito. A postura dos crculos eruditos ao defender autonomia do campo das artes freqentemente elitista,

desprezando a cultura de massa por aquilo que classifica como vulgaridade ou mediocridade. Mas no caso brasileiro essa oposio no to ntida como no caso europeu, e Renato Ortiz (2001: 25-26) observa que o capitalismo frgil e pouco competitivo que perdurou no pas at tempos recentes no permitiu o desenvolvimento pleno de um mercado de bens simblicos, limitando o processo de diviso do trabalho intelectual e deixando menos marcadas as separaes entre as diferentes reas culturais. Nesse contexto, grupos voltados para uma produo intelectual e artstica erudita se direcionam para os meios massivos como uma maneira de encontrar pblicos. Esta caracterstica da situao brasileira, um trnsito entre as esferas regidas por lgicas diferentes, possui a meu ver uma dupla conseqncia. Uma , sem duvidam positiva: ela abre um espao de criao que em alguns perodos ser aproveitado por determinados grupos culturais. Outra, de carter mais restritivo, pois os intelectuais passam a atuar dentro da dependncia da lgica comercial, e por fazer parte do sistema40

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empresarial, tm dificuldade em construir uma viso crtica em relao ao tipo de cultura que produzem. (ORTIZ, 2001: 29) Alm disso, Ortiz (2001:14), citando Florestan Fernandes, aponta como uma das causas o fato de que no pas o capitalismo se introduz antes de uma ordem social competitiva, o que teria favorecido o

desenvolvimento de uma burguesia que, diferente da europia, no era imbuda de um papel civilizador: possua apenas um moderado esprito modernizador, adepta de uma democracia restrita e que na verdade faz da expanso capitalista um instrumento de seus prprios interesses elementares. Ou seja, aqueles que seriam os responsveis pelo desenvolvimento de uma economia de mercado no Brasil na verdade mantinham somente um verniz modernizante, mas na prtica faziam concesses modernizadoras muito mais limitadas, em muitos aspectos mantendo processos sociais mais

conservadores que visavam manter privilgios e hierarquias sociais estticas. O desenvolvimento das indstrias culturais em cada pas tem um papel integrador da cultura nacional, causado tanto pela necessidade de expanso dos mercados, favorecida pela constituio de pblicos

relativamente homogneos, como em muitos casos dentro de uma soluo visualizada pelas elites dirigentes para problemas de conflitos identitrios que dificultavam a constituio de uma hegemonia nacional. No caso brasileiro, o projeto elitista de uma identidade nacional sempre esbarrou na existncia das camadas subalternas que tinham

dificuldades de se encaixar nas idealizaes hegemnicas. Num ambiente em que convivem temporalidades distintas como o brasileiro, a elite busca impor um modelo externo ditado pela viso moderna; mas as contradies aparecem quando a incapacidade de modernizao dos setores populares, arraigados s tradies que so desprezadas pelo discurso da modernidade, precisam ser conciliada de alguma forma nessas representaes hegemnicas. Muniz Sodr aponta que o povo real e as contradies sociais no apareciam nas projees identitrias nacionais produzidas pelas elites e que acabaram tendo peso hegemnico no imaginrio social brasileiro (1999:41

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94). Mas quando inevitavelmente aparecem, os desajustes tero um papel importante como estratgia de legitimizao: como bem coloca Canclini, eles algumas vezes servem para que as minorias dirigentes simplesmente no precisarem justificar, para serem simplesmente classes dominantes (2003: 69).

2.4. Atentados contra as fronteiras estticas Como foi colocado, no momento em que a cultura popular passa a irromper em cada vez mais espaos, surgem um desconforto das elites brasileiras em relao a uma esttica invasora, que em sua percepo est fora do lugar; essa reao pode ser entendida a partir da constatao da penetrao do campo erudito na cultura massiva brasileira. Fredric Jameson j aponta como uma caracterstica da psmodernidade o apagamento da fronteira entre a alta cultura e a cultura popular, de massa ou comercial, e o conseqente aparecimento de textos que mesclam elementos das duas categorias (2002: 28). Mas no caso brasileiro, durante dcadas esse processo aconteceu s custas de um apagamento tambm da presena das camadas populares como agentes culturais. Quando, por imperativos mercadolgicos, surgem empresas anunciantes que objetivam as camadas populares e que passam a estimular o desenvolvimento de mercados culturais direcionados para esse pblico, disputando muitas vezes os mesmos espaos de divulgao. o que acontece com a televiso: Predominam hoje dois padres de programao: o de

qualidade, ou seja, esteticamente clean, bem comportado em termos morais e visuais e sempre fingindo jogar do lado da cultura, e o do grotesco, em que se desenvolvem as estratgias mais agressivas pela hegemonia de audincia (SODR, 2002: 130). Se no contexto brasileiro os veculos de comunicao de maior audincia eram dirigidos pelo gosto de uma elite intelectual e artstica, quando42

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esse controle comea a se esfacelar natural que esses grupos resistam perda de espaos de representao. No caso, como se trata de uma invaso de uma reserva esttica, essa reao tende a se colocar como uma desqualificao do gosto popularesco, classificado como mau gosto. Atualmente observamos esse processo acontecendo com

msica, onde cenas culturais perifricas como a do Funk carioca ou do Brega Pop resgatam nos meios massivos sensibilidades populares, com suas letras extremamente erotizadas, o uso do humor de duplo sentido e o investimento no aspecto corporal atravs da dana, ganham crescente exposio e se colocam dentro de uma categoria que por tanto tempo foi protegido pelas elites: a msica popular brasileira. No entanto, significativo que esses estilos ainda tenham penetrao limitada no canal de maior audincia mdia e justamente aquele que considerado o bastio do bom gosto na TV, a Rede Globo, e suas emissoras regionais. Para entender como acontece essa desclassificao da esttica popularesca do Brega Pop, convm fazer uma anlise comparativa que considere a oposio entre o cnone cultural da elite e as formas populares emergentes. Com esse objetivo, resgataremos agora aquelas que so talvez os dois mais influentes esforos tericos em estabelecer essa oposio: as obras de Friedrich Nietzsche e de Mikhail Bakhtin.

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3. O CORPO SUBALTERNO: GROTESCO E DIONISACO

Da percepo de que o jogo do poder se estende para o campo da cultura deriva a idia de que as foras sociais estabelecem, negociam ou resistem em determinadas posies atravs da manipulao de formas e valores culturais. Com isso, gradualmente ganha visibilidade no campo das cincias sociais uma discusso crtica da economia simblica, estabelecendo as ligaes entre estticas especficas com condies sociais economicamente determinadas, alm de pensar o papel dos agentes sociais e culturais nesse sistema, como o caso da obra de Bourdieu (1991). Dentro da proposta deste trabalho, necessrio discutir o Brega Pop em seus vnculos com uma sensibilidade perifrica e subalterna. Apesar de buscar referncias nos mais diversos estilos da cultura pop internacional, muitas formas manifestadas na esttica bregueira so

claramente enraizadas em uma cultura da populao suburbana da regio metropolitana do Recife que ainda guarda laos com formas residuais, e que ainda enfrenta enormes dificuldades para o pleno acesso a benefcios mais elementares da modernizao: sistemas de educao e sade, saneamento bsico, habitao, transporte urbano, tecnologias de comunicao, instituies polticas ou mesmo ao prprio consumo, como pensado dentro a ideologia do capitalismo tardio. Alm disso, essa vinculao torna-se ainda mais importante para entender o Brega Pop se for considerado o fato de que ele enfrenta44

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resistncias dentro da cultura massiva justamente por aquilo que ele tem de mais popular: os gostos tpico da cultura de praa pblica, que estabelecem uma relao no-idealizada com o corpo e que privilegiam representaes de suas aberturas para o mundo e do baixo corporal. Esse carter grotesco do Brega Pop, no sentido do termo usado por Mikhail Bakhtin (2002), compartilhada com outras diversas manifestaes da cultura popular profundamente focadas no corporal, como por exemplo outros estilos musicais surgidos nas periferias urbanas brasileiras (como o funk e o samba), caracterizados pelo humor escatolgico popular e pelas festas de corpos pulsantes. A partir dessa constatao, no h dvida que para pensar a cultura popular, naquilo que ela tem de realmente popular, necessrio considerar como ela expressa uma corporeidade singular; e certamente por isso as obras de Friedrich Nietzsche e do prprio Bakhtin,

respectivamente tratando sobre os impulsos muito prximos do dionisaco e do grotesco, tornaram-se uma referncia para diversos autores que recentemente se preocuparam em discutir o popular massivo. Sendo assim, o presente captulo tem por objetivo

identificar a presena no Brega Pop de uma sensibilidade popular referenciada nas dinmicas corporais, em sua abertura para o mundo, que se contrape historicamente s estticas idealizadoras das classes dirigentes

3.1. A esttica corporal e a hegemonia Os valores culturais nunca so inocentes. Como afirma Steven Connor, o a sua necessidade est na orientao irredutvel para o melhor e a repulsa ao pior que oferece (1994: 12). Assim, a insistncia de grupos dirigentes de controlar as mais diversas instncias valorativas, legitimadoras, divulgadoras ou preservadoras de valores se justifica pelo poder estrutural

que so capazes de exercer. No caso dos valores que so resultado da apreenso do corpo na cultura, o valor sempre presente nos cnones estabelecidos em relao beleza corporal aquele que tende a beneficiar determinados grupos mais aptos a se enquadrarem na norma. Assim, o45

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imaginrio do belo sempre pensado pelas instituies da hegemonia dentro de uma legitimao da aparncia fsica e das prticas corporais dos grupos dominantes. No faltam exemplos de como os discursos sobre o belo corporal funcionam em funo da consolidao de uma hegemonia poltica. Na Alemanha nazista, a idealizao de um conjunto de caractersticas fsicas arianas era uma das maneiras de tangibilizar para o cidado comum a idia de sua prpria superioridade, e tornar aceitvel a perseguio de raas desenhadas como sendo biologicamente inferiores. Na propaganda do Reich, os ideais polticos e esttico-corporais vinculavam-se intensamente nas imagens dos alvos e fortes soldados alemes, sempre em postura altiva, em contraposio aos judeus retratados com traos faciais ridiculamente

exagerados, corpos debilitados e trejeitos tmidos. Embora a propaganda nazista seja um exemplo extremo, nela podemos observar claramente uma estratgia utilizada largamente em praticamente todas as sociedades humanas, em maior ou menos grau, na qual as representaes cannicas do corpo reforam valores que, por se ligarem a caractersticas e procedimentos corporais exclusivos de um grupo, acabam por gerar valores sociais inacessveis queles que no participam dele. Est assim naturalizada de certa forma a hierarquia social, e legitimada a excluso dos grupos subalternos. A esttica nasceu como um discurso sobre o corpo escreve Terry Eagleton (1993: 17). O objetivo de Alexander Baumgarten13 ao propor sua fundao, resgatando o conceito grego de aisthesis, era fazer com que a filosofia passasse a dar conta de todo um campo das percepes e sensaes humanas, at ento deixado em segundo plano. A esttica seria uma irm da lgica, mediadora entre as generalidades objetivas da razo e as

particularidades subjetivas dos sentidos atravs dos quais o mundo nos atinge.

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O filsofo alemo Alexander Baumgarten considerado o fundador da esttica moderna por ter proposto suas bases em seu livro Aesthetica (1750).

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A cincia, escreve Baumgarten, no deve ser empurrada para a regio mais baixa da sensibilidade, mas o sensvel deve ser elevado dignidade do conhecimento. O domnio sobre todos os poderes inferiores, segundo ele, responsabilidade da razo; mas esse domnio no deve degenerar em tirania. Ele deve assumir a forma do que agora, a partir de Gramsci, podemos chamar de hegemonia (EAGLETON, 1993: 20) Essa hegemonia na esfera da cultura esttica seria construda atravs das universalidades conceituais que poderiam ser encontradas em seu campo: o sublime, a beleza, na imediatez de nossa resposta a uma bela pintura ou excelente sinfonia (1993: 59). Discpulo do racionalismo de Christian von Wollf, para Baumgarten essa beleza consistia em uma perfeio prxima da razo. A formao de uma teoria do belo tem um papel fundamental na formao de uma coeso social necessria a uma sociedade que comea a livrar-se do absolutismo, que mantinha a ordem atravs de uma poltica de estruturas opressivas. Em um momento de ascenso dos ideais mais centrados no indivduo da sociedade burguesa, atravs da experincia das coisas belas os homens poderiam ver sua humanidade compartilhada, criando uma existncia coletiva verdadeiramente corporativa. Assim, com a mediao da esttica, estava a partir de ento aberta a possibilidade no s de que a filosofia ordenasse um entendimento do campo do sensvel, mas tambm que a nova organizao social desenvolvesse um discurso

hegemnico sobre as percepes humanas. A partir de sua formulao por Baumgarten a esttica assume um papel central no pensamento moderno europeu. Anteriormente uma definio objetiva da beleza, relacionada ao prazer proporcionado por coisas belas, estava presente desde a definio de Aristteles na Metafsica, dando como principais formas da beleza a ordem, a simetria e a definio clara. Este alinhamento mantido pela filosofia medieval14, tida como um dos conceitos transcendentais como o Bom e o Verdadeiro que se harmonizavam como todos os gneros.

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Segundo Toms de Aquino (seguindo basicamente os princpios de Aristteles) as trs condies da beleza so a integritas (perfeio), consonantia (harmonia de propores) e claritas (claridade ou brilho).

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J para Kant, falando de dentro da nova ordem burguesa, o sensvel, sendo parte do campo do subjetivo, deveria ser claramente distinguido do entendimento. O belo ir converter-se em valor apenas esttico, designando um objeto de prazer universal (segundo a racionalidade do entendimento) e desinteressado (sem a mediao do conceito) (SODR, 2002: 18). Com isso, deixa de ser pura objetividade, pois passa a depender da percepo subjetiva. Apesar da insistncia kantiana no desinteresse, a concepo poltica (e, portanto, interessada) da beleza pode ser percebida claramente em alguns movimentos modernos, como a cultura barroca, que est voltada para a uma ao prtica e operativa. (SODR, 2002: 19) Sendo assim, os usos ideolgicos do belo para a construo da hegemonia passam a mascarar-se, do belo virtuoso, que vm de dentro de cada indivduo, e no necessita da mediao do conceito. As formulaes do establishment sobre o assunto continuam convenientemente contaminadas com os mesmos juzos: o belo tradicionalmente identificado com o bom, e o feio com o mau. Se antes essa ligao era feita s claras, agora ela busca se legitimar em um valor universal, descentrando o poder valorativo, mas por isso mesmo incrustando-o em cada indivduo participante do sistema. A elaborao da hegemonia atravs das imagens

representativas da beleza clara no campo das representaes do corpo. Determinando o que correto e o que errado nas questes de esttica corporal, estabelecida a regra que separa aqueles que so admirados e

desejados daqueles que devem ser excludos do ideal de mundo a ser representado aos quais resta um papel de exemplo negativo, servindo de reforo para os que permanecem no sistema15, ou que sero apagados da representao por no se encaixarem nos padres mnimos. Parece fcil chegar concluso de que a sensibilidade das classes subalternas em relao corporeidade nesse contexto desvalorizada como vulgar. No entanto, preciso descobrir aquilo que, presente em todas

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as estticas populares, utilizado para identific-la e justificar a sua excluso, ou seja, em que ela se ope aos padres da cultura hegemnica; mais do que isso, preciso descobrir que foras mantm viva essa resistncia apesar dos constantes esforos para disciplin-la.

3.2. Os impulsos apolneos e dionisacos J foi simples nomear o corpo, dizem Nzia Villaa e Fred Ges (1998:11). De fato, se considerarmos os desenvolvimentos recentes de teorias que problematizam a corporeidade no campo das cincias sociais, antropologia, da psicologia e da prpria filosofia, veremos que pensar o corpo tornou-se complexo para o homem ps-moderno. A partir dessas abordagens sobre os diversos discursos sobre o corporal, no podemos mais ser inocentes quanto ao seu papel nas dinmicas sociais, principalmente naquilo que se reflete na cultura. Entre esses desenvolvimentos, talvez o mais seminal tenha sido a obra O Nascimento da Tragdia, de Friedrich Nietzsche, que traz ao debate esttico a questo corporal ao realizar uma crtica complexa idia de arte desenvolvida pela burguesia alem da segunda metade do sculo XIX, que ao inspirar-se na arte do perodo clssico grego formulava uma arte que se distanciava da vida, do mundo material e de suas vicissitudes. Para

Nietzsche, a experincia esttica estava mais prxima do xtase sexual, do arrebatamento religioso ou do frenesi da dana primitiva do que com a contemplao silenciosa e individualista de uma obra de arte. Assim, o autor trata de resgatar, na prpria cultura grega i