A estigmatização do gênero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexão criminológica acerca da...

download A estigmatização do gênero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexão criminológica acerca da violência contra a mulher

of 6

Transcript of A estigmatização do gênero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexão criminológica acerca da...

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    1/6

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    2/6

    Aestigmatizao do gnero feminino em A hora da estrela

    mulhercomo ser oprimido. Depois de perder seu nicoelo com a infncia, uma velha tia que a acolhera apsa morte de seus pais, a personagem viaja para o Riode Janeiro, sem um propsito definido. Na metrpole,aluga um quarto, que divide com outras moas, earrumaumemprego como datilografa,mal sabendo lerou escrever. Em sua luta diria, sem um objetivo claroque a motive continuar vivendo, Macaba reflete oquadro da indiferena com a misria e, principalmente,da inferiorizao da mulher, numa sociedade pautadapelo consumo desenfreado.

    Como a nordestina, h milhares de moas espalhadaspor cortios, vagas de cama num quarto, atrs de balcestrabalhando at a estafa. No notam sequerque so facilmente substituveis e que tanto existiriam comono existiriam. Poucas se queixam e aoque eu saiba nenhuma reclama por no saber a quem. Esse quem ser que existe?3O romance "A Hora da Estrela", segundo JosCastello4, trata do desamparo a que, apesar do consoloda linguagem, todos estamos entregues. Mas o livroalcana seu propsito ao causar no lei tor diferentesreaes a cada ao praticada pela personagem centralou pelos coadjuvantes, cujo carter revela quodesprezvel pode o ser humano se tornar diante dediferentes situaes que a vida proporciona.Macaba transparece a total alienao do ser.Manhosa e sem perspectiva de vida, a personagemprincipal apenas sobrevive. Sem percepo do mun

    do, nem de si mesma, no conseguia captar os acontecimentos que a cercavam. Ainda assim, guardavapara si alguma curiosidade de menina ingnua e seminstruo, para quem as poucas coisas interessantes lheaguavam um sentimento de saber "porqu?"."A palavra realidade no lhe dizia nada."5"Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirandoe expirando."6"Mas vivia em tanta mesmice que de noite no selembrava do que acontecera de manh."7"Domingo elaacordavamais cedo para ficarmais temposem fazer nada."8Em um trecho da obra, no entanto, podemosobservar que, em seu ntimo, toda essa ingenuidade ealienao era, na realidade, sua nica defesa; a nicaformade no perceber que sofria uma grande violnciasocial: a marginalizao da mulher."Se tivesse a tolice de se perguntar 'quem sou eu' cairiaestatelada e em cheio no cho."9"Essa moa no sabia que ela era o que era, assim comoum cachorro no sabe que cachorro. Da no se sentirinfeliz. A nica coisa que queria era viver. No, sabiapara qu, no se indagava."10

    hh:

    23

    Criada pela tia que no lhe tinha muito afeto, sempai nem me, Macaba no tinha quem lhe esclarecesseas dvidas mais inocentes. Sendo assim, perguntavaa si mesma e inventava uma resposta com a qual sec o n t e n t a v a .A personagem apaixona-se pelo conterrneoOlmpico de Jesus, que, nas entrelinhas, representaum grupo social que no consegue desligar-se de suasorigens, mas que, ao mesmo tempo, possui a nsia deconquistar sempre algo a mais, sem qualquer noo demoralidade, pudor ou decoro. Por essa razo, Olmpicotrata Macaba como um animal, at porque dela nopode esperar mais do que uma mera companhia presencial. Seus dilogos so vazios e, por outro lado, naperspiccia de Lispector, ricos em impacto no leitor.O que surpreende nos seres criados pelo imaginriode Lispector que, apesar de terem as mesmas razes,so completamente distintos. Olmpico tinha ambio,almejava se r muito r ico e associava isso poltica, poisacreditava que um cargo pblico lhe traria opulncia.Po r outro lado, Macaba contentava-se to-somentecom o que tinha. Ao perceber esse abismo, Olmpico atroca por outra.

    Composta de pena , desnimo, raiva e esperana,a narrativa banal conduzida no sentido de avivar anecessidade de reflexo sobre os paradigmas adotadospor essa sociedade retratada em "A Hora da Estrela".A prpria autora, nas palavras do narrador fictcioRodrigo S.M., aduz que o romance no deixa de seruma pergunta."O que escrevo mais de que inveno, minhaobrigao contar sobre essa moa entre milhares delas.E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar

    a vida.Porque h o direi to ao grito.Ento eu grito."11A personagem de Lispector representa o quadroda alienao da mulher daquela poca, ainda quede maneira um tanto caricata. Para a sociedade, opensamento feminino no tinha a menor relevncia,muito j se fazendo em aceit-las no mercado detrabalho; mas, para manter seu emprego, era preciso"no pensar".Inmeras vezes isso se reflete no texto, quandoOlmpico, incomodado pelas dvidas de Macaba,e, principalmente por no saber responder muitasdelas, a repreendia por perguntar demais. Aquilo operturbava, no apenas pelo fato de a todo momentoser surpreendido por um novo questionamento, masprincipalmente por perceber que, apesar do pouco eat intil conhecimento que Macaba tinha em si, elaparecia querer "saber mais".

    Direito & Justia, Porto Alegre, v.35, n. 1, p. 22-27, jan./jun. 2009

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    3/6

    24

    A Hora da Estrela talvez tenha sido a fonna quea autora encontrou de abrir os o lh os d a mulh er e dasociedade em geral para o fato de que o ser humanono pode viver uma vida inteira se escondendo de suaprpria identidade, acreditando que irrelevante parao mundo.

    Importa considerar que, poca em que obrafoi escrita, Lispector era corroda por um cncer emestgio terminal. Cogita-se que, percebendo que sua"hora da estrela" aproximava-se, compreendeu quepoderia fazer a diferena antes do fim. A criao donico narrador masculino de sua inteira produo,indica a inteno de oferecer narrativa um tom maisobjetivo, sem parecer sentimental: "porque escritoramulherpode lacrimejarpiegas".12

    A confuso entre a autora e o narrador por elacriado , pois, natural. Seria este o seu "eu"masculino,que em vrios momentos tambm se confunde coma personagem, surgindo um conflito entre criador ecriao."Mas eu, que no chego a ser ela, s into que vivo paranada."13"Ser essa histria um dia o meu cogulo."14"Vejo a nordest ina se olhando ao espelho e - um rufarde tambor - no espelho aparece o meu rosto cansado ebarbudo. Tanto n s n os intertrocamos."15A coletividade retratada de manei ra to srdida,desprovida de uma l inguagem que lhe retire afidedignidade, aviva o tema da violncia contra amulher, questo que assume extraordinria relevncianos dias amais, dada a gradual evoluo da sociedadeno sentido de repensar um ideal adotado ao longo dossculos e que s recentemente comea efetivamente a

    se alterar.Dessa forma,AHora daEstrela revela-se instiganteponto de partida para a investigao cientfica queconcerne ao Direito no ramo da Criminologia, dadaa similitude existente entre as disciplinas que seconfrontam. Veja-se que o pensamento helnicoentendia a Literatura como a arte que imitava pelapalavra. Aristte les pregava que arte l iterria era oprocesso de recr iao da realidade (mimese). Bemassim, tambm o Direito er a tido como uma arte, ou,mais precisamente, como uma tcnica, que t inha porobjeto o bom e o justo.Uma das concepes do Direito precisamenteaquela na qual este ramo do saber constitui objeto deumacincia prpria. pacfico queo amai panoramada Cincia do Direi to imprescinde de uma abordagemque se valha do discurso de outras disciplinas que searticulem de diferentes perspectivas, uma vez que oDireito no um fim em si mesmo. A Literatura surge,Direito & Just ia , Porto Alegre, v. 35 , n. 1, p. 22-27, jan./jun. 2009

    -r - - _ ,

    Masi, CV.;Amato, G.C.

    por conseguinte, como forma de visualizao de umarealidade introspectiva, cingida pela viso de um autore restritaa personagensque muitasvezes transcendemmerasfigurasdramticas e alienadasdomundoexterior fico.Referindo-se primordialmente ao sistema jurdicoromano-germnico, tambm conhecido como CivilLaw, Gustav Radbruch prega que o Direito, comoum todo, masculino, condicionado em seu contedopor interessemasculino e modo de sentir masculino.Segundo o jurista alemo, quis-se excluir as mulheresda participao ativa na jurisdio, sobretudo emface da necessidade de uma interpretao e aplicaopuramenteracionais e prticas de disposies genricasduras, diante das quais o indivduo e seu sentimentono contam16.Salvo em populaes isoladas e que no conseguiram disseminar seus pensamentos, a mulher sempre foi, de alguma fonna, mais ou menos evidente,discriminada; segregada da coletividade que, de fato,conduzia os rumos do progresso econmico e poltico.Isso apenas demonstra que sempre vivemos em umasociedade paternalista, isto , baseada na autoridadepaterna do homem.Esse patriarcado caracteriza-se pelo predomniode valores masculinos, fundamentados em relaesde poder exercidas por complexos mecanismos decontrole social que oprimem e marginalizam as mulheres.Tal qual retratado em A Hora da Estrela, a dominao do gnero feminino pelo masculino costumasermarcada pela violncia fsica oupsquica.Amulherse encontra em uma posio mais fraca, desfavorvel .

    "Ela uma vez pediu a Olmpico que lhe telefonasse.Ele disse:- Telefonar para ouvir as tuas bobagens?"17"Ela: - que s sei ser impossvel, no sei ser maisnada. Que que eu fao para conseguir ser possvel?Ele: - Pare de falar porque voc s diz besteira! Diga oque do teu agrado."18"- Eu acho que at sei cantar essa msica. L-l-l-l-l.- Voc parece at uma muda cantando. Voz de canarachada."19"A cara mais importante que o corpo porque a caramostra o que a pessoa est sentindo. Voctem cara deque comeu e no gostou, no aprecio cara triste, v semuda - e disse uma palavra difcil - v se muda de'expresso'".20"Voc, Macaba, um cabelo na sopa. No d vontadede comer.Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero.Voc est ofendida?- No, no, no! Ah por f avor quero ir embora! Porfavor me diga logo adeus!"21

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    4/6

    Aestigmatizao dognero feminino emAhora da estreiaEvidentemente, as condies e a intensidade destarelao variam de acordo com os valores culturaise religiosos e as condies sociais e econmicas decada sociedade em determinado recorte histrico. Narealidade em que se insere Macaba, a mulher, porter uma limitao fsica que a impede de obter umacapacidade produtiva maior do que a masculina, bemcomo por ter uma menor oportunizao de estudo,diante de sua condio voltada ao mbito domstico, enfrenta uma limitao que a distingue e infe-

    rioriza.Portanto, impossvel falar em violncia contraa mulher sem, antes, entender que os motivos dessaviolncia esto fortemente ligados a fatores sociolgicos.Os estudos feministas apontam que a tradiodo legislador sempre foi criar normas jurdicas quediscriminassem a mulher. Na realidade brasileira,pode-se citar conceitos como "ptrio poder" e "mulherhonesta".Francs Olsen22, professora da Universidade daCalifrnia e adepta da Feminist Legal Theory, afirmaque na civilizao ocidental predomina um sistemadualista de pensamento, ou seja, o "racional" se opeao"irracional", o "ativo" ao "passivo", o "abstrato" ao"concreto" e,porbvio, o "masculino" ao"feminino".Nesse sistema dualista, a tendncia atribuir valoresfemininos e masculinos s coisas e s pessoas e astratardiferentemente em funodessevalor atribudo,sendo sempre superior o valor masculino.Assim, aos homens imputa-se a racionalidade,atividade e capacidade de abstrao de pensamento,ao passo que s mulheres relegam-se caractersticas"inferiores", como a irracionalidade, o sentimentalismoe a passividade.Essa forma de organizar o pensamento e,consequentemente, as relaes sociais, garantiria asupremacia masculina, sobremente naseara do Direito,tido como racional, ativo e abstrato. Dadas suascaractersticas interpretadas como masculinas, oDireitoseria valorizado e refletiria uma forma masculina de vero mundo, o que, segundo osmovimentos feministas,representa um resqucio histrico que s pode sersuperado coma pressopor parte dessesgrupos.A anlise feminista do direito afirma que osprincpios constitucionais que legitimam o discursojurdico padecem deeficcia social, j que em todos osnveis de atividade jurdica- quer legislao, doutrinaou aplicao do direito - podem ser identificadoselementos que reproduzem a discriminao damulher,contrariando as promessas de liberdadee igualdade.

    Argumenta-se que, mesmo a diviso entre asesferas pblica e privada, foi construdacombase em

    25

    uma distino hierrquica dos gneros23. O espaode atuao da mulher sempre foi prioritariamenteo privado. As mulheres tinham acesso limitado instruo, sofriam restries ao direito de administrarseu prprio patrimnio e, no mbito do casamento,eram subordinadas ao homem.Emrazo disso, uma das proposies domovimentofeminista a utilizao do termo "gnero" ao invsdo termo "sexo" para indicarque as diferenas entreos sexos vo alm das meramente biolgicas. Issorepresenta a quebra de um discurso naturalista quecoloca as diferenas entre homens e mulheres comoeternas e necessrias.Nada obstante, a mudana de paradigma quegradualmente seopera nasociedade deriva de diversosfatores. Dentre eles, a expressiva incluso da mulhernomercado de trabalho possibilitou ummovimento dealterao legislativa nas reas do direito constitucional,direito de famlia, direito do trabalho e direito penal,visando a estabelecer a igualdade entre os gneros.Para o Estado Brasileiro, a igualdade de direitos eobrigaes entre homens e mulheres consolidou-secomo garantia fundamental.Muitas dessas reformas receberam influncias deorganismos internacionais como a ONU e a OEA,que editaram tratados e convenes, vinculando seuspases-membros a elaborar polticas pblicas voltadas melhoria da situao das mulheres. Esse fenmenode emprstimo jurdico culminou no Brasil com aelaborao da Lei Maria da Penha (Lei n 11.340/06),que tambm reflete um fenmeno criminolgicocontemporneo de seletividade do direito penal.Em muitos pases, at o incio do sc. XX, asmulheres eram proibidas de exercer quaisquerprofissesliberais. Pesquisas indicam, em contrapartida, queatualmente a maior parte das profisses jurdicasj ocupada por mulheres. De um modo geral, oslevantamentos apontam que, a despeito da crescentefeminizao, no ocorreu alterao significativa noexerccio dessas ocupaes. Segundo Eliane BotelhoJunqueira, as mulheres teriam conquistado o mundojurdico, sem mud-lo, isto , sendo obrigadas aadotarpadres de comportamento masculinos24.A violncia domstica, em suas vrias formas deconcepo, nada mais do que um reflexo da culturapatriarcal. Naprtica, apesar das tentativas de soluoe da criao de normas e instituies especficas paracombat-la, a vida familiarpermanece fora do alcanceefetivo das normas jurdicas.O maior obstculo que hoje se apresenta aoreconhecimento do problemadaviolnciadomsticao argumento da preservao da privacidade. ParaAnaLcia Sabadell,

    Direito &Justia,PortoAlegre, v.35,n.1,p.22-27, jan./jun.2009

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    5/6

    26"A melhor forma para combater a violncia contra amulher ensinar a todos, e sobretudo aos que estoem formao, que homens e mulheres merecem igualrespeito e considerao. S a mudana de mentalidade,isto , o distanciamento da cultura patriarcal, permitirerradica a violncia contra as mulheres."25AprotagonistadeAHoradaEstrela nosexemplificanegativamente como o instinto inicial de revoltafeminina foi capaz de promover uma revoluo nospadres sociais. A mulher moderna afasta-se cada vezmais da Macaba idealizada por Clarice Lispector. Nasociedade contempornea, intensifica-se o nivelamentoentre o gnero masculino por detrs de Olmpico deJesus e a ingenuidade que fez a datilografa nordestinamigrar para a cidade grande, onde mudaria suaconcepo do mundo.As conquistas do gnero feminino cada vez mais

    tomam fora e ganham o universo que desde semprefora to masculino. O marco histrico dessas conquistasdeu-se a partir da Revoluo Industrial, perpassou omovimento feminista da dcada de 1980, mas teve seupice, noBrasil,coma promulgaoda Cartade 1988,a qual legitimou a igualdade entre os gneros. Assim,d e a cor do com Sarlet :

    [...] o direito geral de igualdade (princpio isonmico)encontra-se diretamente ancorado na dignidade dapessoa humana, no sendo por outro motivo que aDeclarao Universal da ONU consagrou que todosos seres humanos so iguais em dignidade e direitos.26A Constituio Federal consagrou o direito dea mulher dirigir sua prpria vida, como forma dereconhecer sua dignidade enquanto ser individual. Osefeitos irradiados pelo poder da norma fundamentalpuderam ser percebidos com mais intensidade nadcada seguinte com a consolidao da categor ia"gnero", representando a relao social entre homens

    e mulheres27.Entretanto, isso tudo apenas foi possvel atravsde uma coletiva conscientizao feminina, pois,anter iormente, a prpr ia mulher se vitimizava e

    autodiscriminava, colocando-se em situao desfavorvel em relao ao homem, algo que bastanteevidente na personagem de Lispector, por vez queMacaba era submissa ao mundo.O que se pretende afirmar que, conforme asseveraLoche, para quem "obomoumau desempenho de uminterferepositiva ou negativamente no desempenho dooutro ",28 a mulher s se torna vtima de agresso fsicaou emocional se ela se deixa colocar em tal posio. Asociloga sustenta ainda que:Direito& Justia, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 22-27 , jan./jun. 2009

    '

    Masi, CV.;Amato, G.C.

    Ao falardas agressespraticadas contra as mulheres,amaior parte dos estudos ressalta que o comportamentoviolento dos homens sustenta-se sobre a condio desubaltemidade das mulheres dentro da sociedade. Assim,todas as anlises sempre apresentavamcomo eixo centrala relaode dominao-submisso nos relacionamentosentre homens e mulheres.29Trata-se,portanto,de umaquesto comportamentalquecriadeterminadaculturae estabeleceo sensosocialde "certo" e "errado", dando lei apenas o encargo dereconhecer como legtimo o costume j consagrado.Outras vezes , porm, necessrio que a lei intervenhana vida privada para assegurar a dignidade de cadaum. o que severifica, por exemplo, no corpo daLeiMaria da Penha, criada com o intuito de proteger amulher das conseqncias de uma cultura milenar quea enxergacomoserhipossuficienteem relacionamentos

    afetivos.Resta a concluso de que o enredo ficcional deLispector se demora fundamentalmente na histria doSer20, justamente para chamar a ateno das mulheresparaumproblema social, que, nocontexto deelaboraoda obra, era ainda mais grave, possivelmente pelo fatode ter a autora percebido que uma mudana s seriapossvel conscientizando o grupo oprimido de quehavia algo errado e que, a partir desse passo inicial,seria necessrio um movimento de unificao e protestoem prol de direitos equiparativos.

    Nesse rumo, cada conquista do territrio femininodeve-se mobilizao coletiva em busca de seusinteresses, porque a mulher compreendeu que, agrupando esforos, alcanaria seus propsitos. Ademais,pouco a pouco estes ideais vo sendo disseminados,atingindo um espao cada vez mais abrangente.A luta d a s f em in is ta s r es u lt ou em uma vasta diferena em mbito pblico. Agora almeja-se alcanaruma transformaomais significativa tambm na vidaprivada, o que, ao lado de leis e de um sentimento geralde igualdade e justia, muito em breve pode tornar-seplena realidade.Eis um tema que, evidenciado em A Flora daEstrela, vincula a literatura ao problema da eficcia dasnormas sociais, merecendo, portanto, toda a atenoda Sociologia Jurdica e da Criminologia, num esforoconstante de interdisciplinaridade.

    REFERNCIASFAVARETTO, Telma S. Ferreira. A Mulher e o abandono do recem-nascido: uma anlise transdisciplinar. In: Adriana Mendes Oliveirade Cast ro et ai. Pessoa, gnero efamlia: uma viso integrada dodireito. PortoAlegre: Livraria doAdvogado, 2002.pp. 121-162.JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Mulheres Advogadas: espaosocupados. In:BRUSCHINI, Cristina; PINTO, Cli Regina (Orgs.).

  • 7/28/2019 A estigmatizao do gnero feminino em A Hora da Estrela: uma reflexo criminolgica acerca da violncia contra

    6/6

    Aestigmatizao do gnero feminino em A hora da estrela

    Tempos e lugaresde gnero. So Paulo: Ed. 34 e Fundao CarlosChagas, 2001a. pp. 187-216.LANDES, Joan (Org.). Feminism, thepifblic andprivate. Oxford:OxfordUniversityPress, 1998.520 p.LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco,1998,87.LOCHE,Adrianaetai. Sociologia Jurdica - estudos desociologia.Porto Alegre: Sntese, 1999. 270 p.MONTENEGRO,Joo Alfredo de Sousa.Histriae ontologiaemA hora da estrela, de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 2001. 219 p.

    NOTAS1 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Riode Janeiro: Rocco, 1998,p. 15.2 Ibid. ,p . 17.3 LISPECTOR, op. cit ., p. 14.4 Jornalista, escritore MestreemComunicao pelaUFRJ.5 LISPECTOR, op. cit., p. 34.6 Ibid., p. 23.7 Ibid.,p.33.8 Ibid., p. 35.9 LISPECTOR, op. cit., p. 15.10 Ibid., p. 27.11 LISPECTOR, op. cit., p. 13.12 Ibid., p. 14.13 LISPECTOR, op.cit., p. 32.14 Ibid.,p. 12.15 Ibid.,p. 22.16 RADBRUCH, Gustav. Introduo cincia do direito. So Paulo:MartinsFontes, 1999,232p.17 LISPECTOR, op. cit, p. 46-47.18 Ibid., p. 48-49.19 Ibid., p.51.20 Ibid.,p. 52.

    27

    OLSEN, Francis. The sex of Law. In: KAIRYS, David (Ed.).The politics of law. New York: Pantheon Books, 1990.pp. 453-467.RADBRUCH, Gustav. Introduo cincia do direito. So Paulo:Martins Fontes, 1999. 232 p.SABADELL,AnaLcia.Manualdesociologiajurdica:introduoa uma leitura externa do direito. 4. ed. rev.atual. ampl. So Paulo:Rev. dos Tribunais, 2008. 316 p.SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade dapessoa humanae direitosfundamentais na Constituio Federal de 1988. Porto Alegre:Livraria doAdvogado, 2001. 158 p.

    21 LISPECTOR,op. cit., p. 60.22 OLSEN, Francis.ThesexofLaw. In:KAIRYS, David (ed.). Thepoliticsoflaw.NewYork: PantheonBooks, 1990,p. 453-467.23 LANDES, Joan(org.). Feminism, thepublic andprivate. Oxford: OxfordUniversity Press, 1998.24 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Mulheres Advogadas: espaos ocupados.In: BRUSCHINI, Cristina; PINTO, Cli Regina (orgs.). Tempos elugares degnero. SoPaulo:Ed.34 e Fundao CarlosChagas,2001a,p. 187-216.

    25 SABADELL, Ana Lcia. Manual de sociologia jurdica: introduo auma leituraexternado direito.4. ed. rev. atual.ampl. SoPaulo:Rev.dosTribunais,2008. p. 237.26 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e DireitosFundamentais naConstituio Federal de 1988. PortoAlegre: Livrariado Advogado, 2001, p. 87.27 FAVARETTO, Telma S. Ferreira. A Mulher e o ab andono do recm-nascido: uma anlise transdisciplinar. In: Adriana Mendes Oliveira deCastro etai.Pessoa, gnero efamlia: uma viso integrada do direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.126.28 LOCHE,Adriana etai.Sociologia Jurdica - estudos desociologia. PortoAlegre: Sntese, 1999,p. 128.29 Ibid., p. 128.30 MONTENEGRO, JooAlfredodeSousa.Histria eontologia emAhoradaestrela, deClarice Lispector. RiodeJaneiro: Tempo Brasileiro, 2001,P- 13.

    Direito& Justia, PortoAlegre,v.35, n. 1, p. 22-27,jan./jun. 2009