A evolução do conceito de alcoolismo, a “mentira

144
Superintendente do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual: Celso Antônio Giglio Diretora do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”: Dra. Maria Angela de Souza Ferreira Coordenador: Carol Sonenreich Redação: Zacaria B. A. Ramadam Editor: Giordano Estevão Conselho de Redação Ari Sokolovski Maria Aleuda A. M. Radesco Sônia Friedrich Carol Sonenreich Maria Lúcia Baltazar William Bassitt Giordano Estevão Marcelo Feijó de Mello Zacaria B. A. Ramadam Conselho de Redação Albina R. Torres (Botucatu-SP) Antônio H. G. Vieira Fº (São Paulo-SP) Antonio W. Zuardi (Rib. preto-SP) Arthur G. Andrade (São Paulo-SP) Beni Lafer (São Paulo-SP) Carmita H. N. Abdo (São Paulo-SP) Cleto B. Pontes (Fortaleza-CE) Dênio Lima (Brasília-DF) Edna Marturan (Brasília-DF) Eurípides C. Miguel Fº (São Paulo-SP) Fábio L. Gastal (Pelotas-RS) Florence Kerr-Corrêa (Botucatu-SP) Francisco B. Assumpção Jr. (São Paulo-SP) Genário A. Barbosa (João Pessoa-PB) Helena M. Calil (São Paulo-SP) Irismar R. de Oliveira (Salvador-BA) Jair de J. Mari (São Paulo-SP) José A. Del Porto (São Paulo-SP) José de S. Fonseca Fº (São Paulo-SP) José Givaldo M. de Medeiros (J. Pessoa-PB) José Manoel Bertolote (Geneve-Suíça) Juarez O. Castro (Belo Horizonte-MG) Luiz Dractu (Londres-UK) Luiz Meira Lessa (Salvador-BA) Marco A. A. Brasil (Rio de Janeiro-RJ) Maria Carmem Viana (Vitéoria-ES) Mário R. Louzã Neto (São Paulo-SP) Miguel R. Jorge (São Paulo-SP) Paulo S. S. Abreu (Porto Alegre-RS) Ronaldo R. Laranjeira (São Paulo-SP) TEMAS TEORIA E PRÁTICA DO PSIQUIATRA Temas São Paulo v. 35 n. 68-69 p.1-134 Jan/Dez 2005 ISSN 0100-2406 miolo.indd I miolo.indd I 07.03.2006 18:05:08 07.03.2006 18:05:08

Transcript of A evolução do conceito de alcoolismo, a “mentira

Superintendente do Instituto de Assistência Médicaao Servidor Público Estadual: Celso Antônio Giglio

Diretora do Hospital do Servidor PúblicoEstadual “FMO”: Dra. Maria Angela de Souza Ferreira

Coordenador: Carol Sonenreich

Redação: Zacaria B. A. Ramadam

Editor: Giordano Estevão

Conselho de Redação

Ari Sokolovski Maria Aleuda A. M. Radesco Sônia FriedrichCarol Sonenreich Maria Lúcia Baltazar William BassittGiordano Estevão Marcelo Feijó de Mello Zacaria B. A. Ramadam

Conselho de Redação

Albina R. Torres (Botucatu-SP)Antônio H. G. Vieira Fº (São Paulo-SP)Antonio W. Zuardi (Rib. preto-SP)Arthur G. Andrade (São Paulo-SP)Beni Lafer (São Paulo-SP)Carmita H. N. Abdo (São Paulo-SP)Cleto B. Pontes (Fortaleza-CE)Dênio Lima (Brasília-DF)Edna Marturan (Brasília-DF)Eurípides C. Miguel Fº (São Paulo-SP)Fábio L. Gastal (Pelotas-RS)Florence Kerr-Corrêa (Botucatu-SP)Francisco B. Assumpção Jr. (São Paulo-SP)Genário A. Barbosa (João Pessoa-PB)Helena M. Calil (São Paulo-SP)

Irismar R. de Oliveira (Salvador-BA)Jair de J. Mari (São Paulo-SP)José A. Del Porto (São Paulo-SP)José de S. Fonseca Fº (São Paulo-SP)José Givaldo M. de Medeiros (J. Pessoa-PB)José Manoel Bertolote (Geneve-Suíça)Juarez O. Castro (Belo Horizonte-MG)Luiz Dractu (Londres-UK)Luiz Meira Lessa (Salvador-BA)Marco A. A. Brasil (Rio de Janeiro-RJ)Maria Carmem Viana (Vitéoria-ES)Mário R. Louzã Neto (São Paulo-SP)Miguel R. Jorge (São Paulo-SP)Paulo S. S. Abreu (Porto Alegre-RS)Ronaldo R. Laranjeira (São Paulo-SP)

TEMASTEORIA E PRÁTICA DO PSIQUIATRA

Temas São Paulo v. 35 n. 68-69 p.1-134 Jan/Dez 2005

ISSN 0100-2406

miolo.indd Imiolo.indd I 07.03.2006 18:05:0807.03.2006 18:05:08

miolo.indd IImiolo.indd II 07.03.2006 18:05:0807.03.2006 18:05:08

SUMÁRIO/CONTENTS

Doença mental e perda de liberdade / Mental illness and lost of freedomCarol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO, Luiz de Moraes Altenfelder SILVA Fo ....................................................................................................1

Por que a Psicopatologia ? / Why Psychopathology?Maria Lúcia BALTAZAR .......................................................................27

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve – um relato de caso / When reality floats and the truth dissolves – a case reportLuciana Lorens BRAGA, Maria Lúcia BALTAZAR .............................42

O psiquiatra do terceiro milênio / The third millenium psychiatristDiva REALE ...........................................................................................53

Philippe Pinel, vida e obra / Philippe Pinel, life and workGuido A. PALOMBA ..............................................................................67

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes / Mortality in schizophrenic and persistent delirious patientsAntônia Elvira TONUS, Marcelo Feijó de MELLO ..............................73

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico / Delusion with hallucinations or anxiety with dissociation: a psychopathological diferencialRodrigo FERNANDEZ, Débora P. BASSIT ..........................................86

Neurosarcoidose e depressão: relato de caso / Neurosarcoidosis and depression: a case reportDécio Gilberto NATRIELLI Fo, Otávio José Figueira VERRESCHI, Giordano ESTEVÃO ..............................................................................97

TEMASTEORIA E PRÁTICA DO PSIQUIATRA

Temas São Paulo v. 35 n. 68-69 p.1-134 Jan/Dez 2005

ISSN 0100-2406

miolo.indd IIImiolo.indd III 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Entrevista com Valentim Gentil Filho / Interview with Valentim Gentil FilhoEntrevista feita por Mônica TEIXEIRA / Interwiewed by Mônica TEIXEIRA ................................................................................103

Comentários em relação à entrevista do Prof. Valentim Gentil Filho /Commentaries related to the interview of Valentim Gentil FilhoCarol SONENREICH ...........................................................................127

miolo.indd IVmiolo.indd IV 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

DOENÇA MENTAL E PERDA DE LIBERDADE

Carol SONENREICH*Giordano ESTEVÃO*

Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO*

RESUMO

“Doença” é o termo que o médico usa para estudar e tratar situações vividas pelo paciente. É um instrumento do saber, um conceito, uma abordagem do “caso” do ponto de vista médico. Podemos traçar a história de tal conceito, separadamente da história dos quadros que ele designa. A história da “esquizofrenia”, conceito criado por Bleuler, é diferente da história das casos de sofrimento aos quais ele aplicou este nome. Em geral o discurso científi co não é idêntico ao objeto que ele trata. As pessoas vivem situações, os médicos as expressam, estudam, classifi cam. Defi nimos o conceito de doença mental como perda da liberdade de escolher e conduzir-se conforme suas escolhas. Consideramos doenças: dependência de drogas, fobias, obsessões-compulsões, delírio, na medida em que se manifestam independentemente da vontade da pessoa. A soma de sintomas não é o melhor critério para fazer o diagnóstico, nem os estudos que associam sintomas a alte-rações de certas regiões encefálicas são o melhor método de estudo psiquiátrico. Precisamos de pesquisas adequadas para este nível de patologia. A defi nição de doença pela qual optamos elabo-ra-se conforme uma visão do ser humano. Implica a idéia de liberdade, da possibilidade de agir e determinar-se pela refl exão autônoma, referência a valores, responsabilidade. Temos consciência das limitações da liberdade pelas condições de vida, ambiente, hereditariedade. Mas achamos que para o estudo psicopatológico, psiquiátrico, convém dar prioridade aos aspectos ligados a liberda-de, mais do que àqueles ligados aos determinismos físicos ou psíquicos.

UNITERMOS: conceito, doença mental, liberdade

A1. Entendemos por “Doença” um construto médico, um instrumento

para estudar e tratar certas situações. As manifestações do paciente, suas queixas (consideradas “sintomas”), na linguagem da medicina constituem “sinais”, que podem ser associados a alterações biológicas, causas, meca-nismos. Para médicos, a “doença” é um conceito, elaborado para sugerir projetos de trabalho, de pesquisa clínica e de laboratório ou um projeto de tratamento. As atividades médicas permitem validar estes conceitos, testar sua legitimidade; quando não servem, precisam ser corrigidos ou substitu-ídos por outros.

*Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “ FMO” – São Paulo - SP

Temas, 2005, 68-69 : 1-26

miolo.indd Sec1:1miolo.indd Sec1:1 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

2

Como todo conceito, o de “doença” é produto da mente, do saber dos pro-fi ssionais. Nasce das observações consideradas a partir de certo ponto de vista, de teorias, de idéias da medicina sobre o homem e suas alterações nas funções e re-lações. Critérios teóricos permitem classifi cações que sistematizam a abordagem dos problemas, com respeito aos quais os médicos são consultados.

As alterações das funções e da estrutura do organismo humano são encaradas pela medicina do ponto de vista científi co, quaisquer que sejam as limitações atribuídas às ciências.

O conceito de doença não se refere às alterações específi cas de cada pessoa, de cada caso. Ele sintetiza o que os casos têm em comum, do ponto de vista médico. Mesmo postulando: “cada pessoa é única”, a “doença” agrupa aquilo que, do ponto de vista da patologia, os respectivos casos têm em comum. O procedimento médico não pode ser renovado para cada caso . O indivíduo único é abordado do ponto de vista da medicina, em relação aos distúrbios considerados como categorias, assim como uma fórmula ma-temática refere-se às características comuns, às relações entre os objetos que representa.

2. As alterações e o sofrimento são do paciente. Como ele os interpreta e os encara, depende de suas crenças, seus conhecimentos, suas convicções. Procurar ajuda médica signifi ca uma opção, um ponto de vista. O médico, por sua vez, propõe tratamento conforme seu saber. Um discurso médico - diferente do religioso, mágico, fi losófi co - é o que constitui a psiquiatria. É sobre este que falamos, quando colocamos a questão do diagnóstico. For-mulamos a situação em termos médicos, usamos a noção de “doença” como instrumento de conhecimento. O cientista cria conceitos para trabalhar com seus objetos. A matemática consiste em tais noções abstratas, que às vezes correspondem a objetos reais ou a conceitos puramente matemáticos. Qual seria a realidade do “zero”, o nada? Radical de um número negativo (√-1) é uma expressão útil e comum na matemática, embora não possa designar algo “real”. As matemáticas são uma linguagem conceitual que fala sobre matemática, diz Hilbert (apud Nagel, 1973).

“Na verdade, essa onda de matéria, que no jargão físico é denominada “função de onda”, não passa de uma ferramenta matemática, sem realidade física, com a qual é possível se calcular a probabilidade da partícula ser en-contrada em alguma região do espaço” (Davidovich, 1998). “Construímos sobre conceitos que, para começar, têm um caráter puramente funcional” (Feynman, 2000).

“As leis da natureza que formulamos matematicamente não tratam mais das partículas em si, mas de nosso conhecimento sobre as partícu-

miolo.indd Sec1:2miolo.indd Sec1:2 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Doença mental e perda de liberdade

3

las elementares” (...) “O conceito de realidade objetiva vaporizou-se nas equações matemáticas, que não representam mais o comportamento das partículas elementares, mas o saber que temos sobre tal comportamen-to” (Heisenberg, 1962). As sensações nos revelam o mundo, e a física é uma imagem do mundo proposta pelos físicos (Plank, 1931). Claro que os conceitos devem corresponder ao objeto estudado, mas não podemos confundir objeto e conceitos, tratar os conceitos como se fossem o próprio objeto. Dizer que a doença tem uma natureza própria, um modo de se instalar, sinais que nos permitem perceber sua presença, causa defi nida, é uma maneira de conceber a doença conforme o pensamento médico; um conceito formulado nos termos da medicina. Não deixa de ser um concei-to, um modo de pensar a situação do paciente. A psiquiatria é o saber, o discurso médico sobre as alterações mentais. Estabelecer critérios diag-nósticos é parte deste discurso. Mais uma vez, o discurso não é a própria matéria sobre a qual discursamos.

“Em que medida são os distúrbios mentais coisas em si, quer dizer, entidades determinadas por sua natureza íntima? Até que ponto são tais desordens formadas pelos próprios conceitos que os médicos usam para defi ni-las e classifi ca-las?”. (Eisenberg, 1988). Devemos admitir que os da-dos de observação são determinados pelo que o médico acredita; que os distúrbios mentais são construídos culturalmente.

Apesar das advertências - a “doença” do paciente não é a da “me-dicina”... (Leriche, 1949) - é comum falar-se da “doença” como se fosse uma realidade do doente, e não um conceito com o qual o caso é estudado. Mas tal diferença deve ser feita. A história de certo conceito (capítulo da psiquiatria, por exemplo, histeria) é diferente da história das situações dos casos designados pelo respectivo conceito. Ao fazer a história do “conceito de esquizofrenia”, o autor analisa como certas manifestações clínicas, hoje taxadas como esquizofrenia, foram vistas, tratadas e nomeadas ao longo da história da humanidade (Howells, 1991). Estudando a história da clínica psiquiátrica, Berrios (1995) separa a evolução da nomenclatura daquela dos quadros por ela designados. Assim faz com a “Ansiedade, uma história con-ceitual” (1999); com o “Transtorno obsessivo-compulsivo na França duran-te o século XIX” (1989). Isto corresponde à seguinte idéia: “se os elétrons e os ácidos aminados são as mobílias do universo, as bases científi cas sobre elétron e ácidos aminados são o catálogo deles” (Abragam, 1986).

Os conceitos são elaborações dos autores, são elementos de um discurso correspondente à cultura, à época na qual se desenvolve. Para nossas atividades psiquiátricas, instrumentos conceituais adequados são indispensáveis.

miolo.indd Sec1:3miolo.indd Sec1:3 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

4

A “doença mental” é um instrumento usado pela “medicina da psi-que”, a psiquiatria, para estudar as alterações das funções chamadas psíquicas e das relações entre pessoas. A defi nição que consideramos mais adequada e efi ciente para nossos objetivos de estudo e prática psiquiátrica é falar de doença nos casos de “perda da liberdade de escolher e se conduzir conforme suas escolhas”. Adotamos este modo de encarar a questão, principalmente sob a infl uência dos trabalhos de Henry Ey e dos psiquiatras fenomenolo-gistas e existencialistas. O ser vivo distingue-se de um objeto físico por sua autonomia vital, sendo o psiquismo a mais alta expressão desta autonomia. Assim, temos que admitir que a vida psíquica desenrola-se não como uma ca-deia de fenômenos determinados, mas como um desenvolvimento de atos de um sujeito, conforme a dinâmica interna e seu livre arbítrio. A vida psíquica deve ser encarada como o conjunto de fenômenos que constituem a história pessoal do homem. Suas idéias e sua linguagem expressam um sistema de valores que representam seu mundo. A realidade de seu mundo e a realidade de sua liberdade confundem-se. (Ey, 1963, p. 7). A doença seria uma desorga-nização da vida mental, uma perda da efi ciência psíquica e da liberdade, das quais decorre uma forma de existência (Ey, 1955, p. 6).

Não dizemos: “o doente mental perdeu a liberdade de escolher e con-duzir-se conforme suas escolhas”, mas falamos de doença mental nos casos caracterizados pela “perda de liberdade de escolher e conduzir-se conforme suas escolhas”.

3. Todas as defi nições do conceito de doença, ao longo da história do saber médico, decorrem de certa visão sobre o ser humano, sua existência, suas atividades. Propomos uma visão em que também pensamos a pessoa em desenvolvimento, constituindo-se durante toda sua existência, fazendo opções entre as diversas possibilidades de interagir com seu mundo. Con-dições biológicas, ambientais e culturais limitam, sem dúvida, as possibili-dades de escolha. Entretanto, no relacionamento com os outros, na organi-zação das condutas, aliás, no que constitui o campo das alterações mentais, o essencial não está no que as limitações determinam, mas no que pertence à liberdade de escolhas. Convém postular que a perda da capacidade de escolher indica o que chamamos de “doença mental”.

Vejamos exemplos. 3 A) 0 uso de álcool e de outras substâncias psicoativas, evidentemen-

te, não pode ser qualifi cado como doença, nem como transtorno de conduta. Porém, pode ser o ponto de partida para perturbações no próprio modo de usar a droga (no sentido chamado, em geral, de “abuso” de drogas), para o desenvolvimento de alterações orgânicas e funcionais, além de distúrbios

miolo.indd Sec1:4miolo.indd Sec1:4 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Doença mental e perda de liberdade

5

na conduta e nas relações humanas. Os tóxicos podem alterar as funções de vários órgãos e sistemas orgânicos, incluindo o sistema nervoso central e periférico, sendo seu nome incluído no próprio rótulo das respectivas do-enças, como fator etiológico (por exemplo, pancreatite etílica, ou encefalite etílica). Achamos, porém, que o rótulo “toxicomania” ou “alcoolismo” deve ser aplicado somente quando a pessoa perdeu o controle, a capacidade de consumir a droga conforme suas próprias escolhas e intenções.

Pessoas que bebem ou se drogam com o intuito de divertir-se, de esti-mularem-se e cometer um ato criminoso, ou para fugir de certas vivências, não podem ser consideradas “alcoólicas” ou “toxicômanas”. Elas têm tais hábitos, e mesmo se os efeitos são muitas vezes claramente prejudiciais ou patológicos — desde mal-estar físico até acidentes de trânsito — não cons-tituem toxicomania. O toxicômano não recorre à droga procurando prazer: ele não consegue evitar o mal-estar da carência. Em geral, a toxicomania é caracterizada pelo que se chama de dependência e carência. Consideramos tais manifestações como decorrentes de uma visão do mundo gerada pela repetida mudança das percepções, sob o efeito das drogas, de onde advém uma falta de noção da “verdade” assim como esta é vivida pelos outros (Sonenreich e Silva Fo., 1999).

Alcoolismo e toxicomania podem ser concebidos como um modo patológico de existir, caracterizado pela dependência, elemento central da incapacidade de escolher, de conduzir-se conforme suas próprias decisões. O toxicômano, doente, não tem liberdade de optar se faz ou não uso da droga, já que suas ações são impostas pela doença.

3 B) Os obsessivos, os fóbicos e os compulsivos não escolhem o cur-so dos pensamentos e das condutas, não podem dirigi-los. Eles se queixam da invasão de idéias não desejadas, do medo de cometer atos contrários às suas vontades e interesses; temem situações que, segundo eles mesmos, não seriam perigosas, ameaçadoras. Diante de tais situações, são acometidos por uma angústia que não consideram capazes de suportar.

“Não consigo” seria a fórmula que caracteriza a idéia destas pessoas sobre elas mesmas. “Não consigo” escolher meus pensamentos, meus atos, resistir às compulsões ou à angústia que decorre disso. Tais doentes procla-mam que perderam a liberdade de escolher, decidir, e que são regidos por condições que não dependem deles mesmos, que lhes são impostas.

3 C) Segundo nossa proposta, o delirante perdeu especifi camente a ca-pacidade de comunicação lógica com o interlocutor. Falamos da lógica como uma forma de organização do pensamento. Não é a única possível, entretanto, já que pensamentos mágicos, míticos, religiosos ou pré-lógicos são e sempre foram aceitos por indivíduos ou por coletividades inteiras. A lógica não é es-

miolo.indd Sec1:5miolo.indd Sec1:5 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

6

pontânea: a criança não adquire a forma lógica de pensar antes de 10-12 anos de experiências de vida (Piaget, 1969). A relativa “novidade” do pensamento lógico nos faz pensar que ele é mais frágil, portanto vulnerável, em condições patológicas. Experiências signifi cativas de fracasso no relacionamento com os outros podem levar ao colapso deste modo difícil de organizar a comunica-ção. Não é mais a experiência própria que sustenta o conteúdo do pensamen-to, mas elementos mais primários, lugares comuns, em geral fornecidos pelas mídias. O pensamento delirante refere-se basicamente a infl uências externas: heróis populares, máquinas, forças mágicas. Estes perseguem, determinam, infl uenciam. Interpretações alternativas não são tomadas em consideração, e o doente não pode escolher entre várias versões. Aquela que ele aceita não é a melhor: é a única, para ele.

Nos pacientes desagregados, agitados, deprimidos ou nos cognitiva-mente rebaixados existe perda de domínio sobre a conduta. A inaptidão para escolher como se comportar não é apenas óbvia, mas sobretudo parece ser o melhor critério para defi nir, identifi car a “doença”.

O que entendemos por doença é sempre perda, não unicamente em termos quantitativos, mas também na organização (o que seria mais quali-dade do que quantidade), de modo que o conceito de valor é implicado.

4. O conceito de “doença mental” é raramente debatido nas publicações psiquiátricas, exceto naquelas dedicadas especifi camente a este assunto. Po-rém, indiretamente, a defi nição deste conceito está sempre posta em questão. Os códigos de classifi cação da Associação Mundial de Saúde e da American Psychiatric Association falam de transtornos, pois não querem rotular como doença os conjuntos de sintomas, síndromes cujas causas e mecanismos não são conhecidos. Portanto, causa, mecanismo e patogenia seriam condições para se defi nir o conceito de doença. Declarar que doença mental não existe, que é um mito, signifi caria pensar que ela não incluiria alterações orgânicas, que não seria causada por agentes físicos, como acontece com as doenças gástricas, pulmonares, cerebrais...

Basaglia (1979, p. 375) declarava que a etiologia da doença mental seria uma complexa interação entre a experiência do paciente e sua coloca-ção social, os métodos do médico e suas convicções, os valores culturais do ambiente e a ideologia dominantes. Para isso, seria necessário um encontro interdisciplinar, no qual os sistemas científi cos pudessem ser reciprocamen-te contestados. A visão positivista da doença mental tornaria impossível o encontro com o doente. Apesar de falar correntemente sobre a doença men-tal, Basaglia decidiu suspender a vontade de saber o que ela é, como defi ni-la. Assumiu a tarefa de abolir o “manicômio”, e a procura de uma defi nição

miolo.indd Sec1:6miolo.indd Sec1:6 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Doença mental e perda de liberdade

7

de doença seria um obstáculo, um desvio do objetivo. Só depois de acabar com a “instituição psiquiátrica”, vai retomar (promete ele) a questão “o que é a loucura?”. Por enquanto, vai “pôr a procura de uma defi nição da doença entre parênteses”. Isto não o impede de usar o termo, de negar a existência da doença mental, de negar que a negou, de afi rmar que a ciência cria tal termo somente para justifi car a prática da exclusão e destruição das pessoas internadas em manicômios.

Muitas vezes a psiquiatria é proibida de existir, mesmo sem uma de-fi nição, coerente ou não, do conceito de doença em geral, no qual os distúr-bios mentais não se encaixariam.

Os médicos sempre elaboraram seus conceitos a partir de uma visão do ser humano proposta pelos fi lósofos. A medicina hipocrática referia-se ao desequilíbrio entre os quatro humores, com predominância da bílis preta, ou do sangue, ou da linfa. A questão da liberdade de escolha não se colocava. As ações humanas, no pensamento helênico, eram dirigidas pelos deuses. A responsabilidade pessoal, portanto, não era o que contava. Os deuses se enfren-tavam, sendo o homem tratado como instrumento. Achamos que a medicina grega propriamente dita não separa o científi co do mítico, da maneira pela qual se afi rma em geral, atualmente. A lista dos sintomas, dos quadros rotulados por Hipócrates, inclui manifestações psíquicas e somáticas, sem separação, sem hierarquia. Os heróis de Homero eram enlouquecidos pela vontade divina. Como em nossos dias, espíritos podem ser invocados por “possuídos”.

Nos “Aforismos” hipocráticos (edição francesa 1934, Bramini, 1998) lemos: “as moléstias da primavera são: mania, melancolia e distúrbios epi-lépticos, sangramentos, amigdalite, coriza, rouquidão, tosse, lepra, derma-tites e erupções cutâneas, que, em geral resultam em ulcerações, nódulos e moléstias artríticas” (Seção III, 20). “O início do outono propicia a ocor-rência de febres quartãs e febres irregulares, intumescimento do baço, hi-dropisia, tuberculose pulmonar, esteangúria, lienteria, disenteria, ciática, amigdalite, cólicas intestinais, epilepsia e distúrbios maníacos e melancó-licos” (Seção III, 22). “Numa mulher acometida de crises histéricas, ou durante um parto laborioso, um espiro é favorável” (Seção V, 35). “Nos melancólicos e nos nefréticos, quando aparecem hemorróidas é bom sinal” (Seção VI, 11). “Varizes e hemorróidas, surgindo nos maníacos, resolvem a mania” (Seção VI, 23). “Nas doenças melancólicas, os deslocamentos são perigosos, visto que anunciam seja apoplexia do corpo, sejam espasmos, seja mania, seja cegueira” (Seção VI, 56).

É claro que Hipócrates não se interessava em separar as manifes-tações somáticas das psíquicas, que na sua medicina não encontramos o dualismo cartesiano.

miolo.indd Sec1:7miolo.indd Sec1:7 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

8

Certos autores contemporâneos atribuem a nosografi a hipócratica ao modelo bioquímico: o desequilíbrio entre humores expressa-se tanto na melancolia, frenites, stupiditas, quanto nos quadros com manifestações pre-dominantemente somáticas.

Segundo Lanteri-Laura (1982), com Sydenham (1624-1689) os qua-dros são caracterizados por grupos de sintomas, como síndromes; e Vir-chow introduz a valorização das alterações microscópicas, histológicas, constituindo lesões. Afecções como asma, enxaqueca ou reações anafi lá-ticas difi cilmente se enquadrariam neste modelo. Surge a separação entre alterações orgânicas e as funcionais. Com as descobertas de Pasteur, o cri-tério diagnóstico baseia-se mais nas “causas” do que nas “lesões”.

Evidentemente, na psiquiatria, causas e localizações são mais difí-ceis de se estabelecer. Falret (1864) insistia: as alterações cerebrais não ex-plicam cientifi camente a diversidade dos fenômenos psíquicos associados.

Griesinger (1865, 1861) postulava: “as doenças do espírito são doenças do cérebro”. Mas não sem comentar: “Quase todas as idéias fi xas são, no seu primeiro início, a expressão de um enfraquecimento dos próprios interesses, do estado de ânimo; isto é porque sua observação isolada, como se fosse a causa principal do ser demente, conduz sempre a uma concepção unilateral e limitada; e sua compreensão como seu combate médico não podem, em cada caso, deixar de basear-se na penetração dos estados e condições psíquicas que são o funda-mento de sua constituição” (p. 73). “O ser demente é um complexo sintomático de diferentes estados cerebrais anormais”. “Os processos elementares nervosos, especialmente se os concebemos — como muitos fazem em nossos dias — como processos essencialmente elétricos, serão sem dúvida necessariamente processos dos mais simples, consistentes em nem mais ou nem menos, e sempre idênti-cos em todas as pessoas. Como a infi nita multiplicidade das representações, dos sentimentos, das direções da vontade, não somente de indivíduos isolados, mas de séculos inteiros, como então esta multiplicidade infi nita poderia ser atribuída somente aos processos elétricos, e imediatamente?” (p. 6).

Apresentamos esta longa citação porque ela mostra o autor em ple-na elaboração de conceitos. Apesar da sua posição notória: “patologista do cérebro”, é óbvia a sua advertência: não simplifi car demais. Em estudo recente, Daker (2001) chama nossa atenção sobre o verdadeiro sentido dos trabalhos de Griesinger. A lesão cerebral não é nem necessária nem sufi -ciente como base para defi nir a doença mental. A noção de alterações fun-cionais é abalada pelas pesquisas recentes, que apontam sempre atividades cerebrais associadas à vida psíquica dos doentes e sadios.

Os afastamentos das normas estatísticas (anormalidades) ou valo-rizadoras (anomalias) não caracterizam a patologia (Canguilhem, 1966).

miolo.indd Sec1:8miolo.indd Sec1:8 07.03.2006 18:05:0907.03.2006 18:05:09

Doença mental e perda de liberdade

9

Manifestações que não correspondem à maioria das pessoas, que colocam o indivíduo nas partes periféricas da curva estatística, encontramos tanto no gênio quanto no defi ciente mental. O modelo “mais glicose no sangue” defi ne o diabete, mas não pode ser aplicado no caso de uma fratura, de uma alergia. Como seria no caso de uma alucinose? Não é, portanto, possí-vel usar a “normalidade estatística” como critério absoluto de doença, nem declarar que certas características seriam ideais, e quem não as possuísse, estaria doente. Tal critério, baseado obviamente em valores, seria diferente em função das culturas, do ambiente respectivo. Foram propostas defi ni-ções em função da organização: a atividade secretória da mucosa gástrica é sadia, enquanto não chega a dirigir-se contra si-mesma, provocando úlcera. Achamos muito pertinente este modo de formular, embora sua generaliza-ção nos pareça impossível. Também temos que nos perguntar onde situar o ponto de partida desta patologia, sabendo que fora dos fatores locais, os confl itos, o desequilíbrio psíquico, estão presentes na patologia digestiva, respiratória, circulatória.

5. Desde 1980, a APA, e a partir de 1992, também a OMS, prescre-vem o diagnóstico baseado na identifi cação de certos sintomas. Multiaxial, o diagnóstico acrescenta à síndrome clínica os transtornos de desenvolvi-mento da personalidade, fatores somáticos e evolutivos. A descrição por soma de sintomas, porém, não chega a defi nir doenças, mas apenas “trans-tornos”. Embora os respectivos códigos não debatam a defi nição de doença, é claro que consideram que esta implica etiologia e patogenia conhecidas, o que seria por enquanto impossível nos “transtornos” mentais. Do ponto de vista prático, os códigos da APA e OMS trouxeram, para muitos, benefícios maiores na pesquisa e na epidemiologia do que na clínica. Ninguém ignora que, teoricamente, suas falhas são marcantes (Kendler, 1990).

A maneira predominante de fazer o diagnóstico é identifi car sintomas considerados defi nitórios para tal ou tal diagnóstico. Por exemplo, no CID-10 o episódio depressivo (F32) é caracterizado pelo humor depressivo, perda de interesse e prazer, energia reduzida, levando a uma fatigabiliade aumentada e atividade diminuída, cansaço marcante após esforços leves. Outros sintomas comuns são: a) concentração e atenção reduzidas; b) auto-estima e autocon-fi ança reduzidas; c) idéia de culpa e inutilidade (mesmo num tipo leve de episódio); d) visões desoladas e pessimistas do futuro; e) idéias ou atos auto-lesivos ou suicídio; f) sono perturbado; g) apetite diminuído.

Este modo de diagnosticar decorre da idéia de que a descrição seria a única maneira de escapar a uma teoria prévia. Tal postulado é rejeitado em si por muitos autores, junto com o próprio diagnóstico por soma de sintomas.

miolo.indd Sec1:9miolo.indd Sec1:9 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

10

Para estes, os processos psíquicos e seus correspondentes neurofi siológicos não podem ser pensados em termos lineares, invariáveis, fi xos. As neurociên-cias não recorrem a modelos tão pobres. O estudo da imagem visual, na men-te e no cérebro, por exemplo, seguiria caminhos muito mais ricos e expressi-vos. O estudo do sistema visual seria profundamente fi losófi co: ele questiona como o cérebro toma conhecimento do mundo exterior (Zeki, 1992). Os estímulos não trazem um código estável de informações. Os comprimentos de onda mudam com as alterações da iluminação, mas o cérebro decide por atribuir-lhes uma cor. Na retina, a imagem de um objeto em movimento não é a mesma de um momento ao outro, mas o cérebro categoriza o objeto. Ele extrai constantes do fl uxo de informações. Não examina, portanto, apenas as imagens na retina. Constrói um mundo visual. Áreas cerebrais distintas rece-bem estímulos específi cos, mas nenhuma das subdivisões e especializações encontradas ao nível neuronal é evidente no processo de percepção.

Não se cogita mais, como no século XIX, que certa área realiza a associação das experiências primárias mapeadas em vários campos retinia-nos. Confi rma-se que uma área registra movimen cesso de entender; nem o conhecimento visual da percepção, da consciência.

Os estímulos olfativos são captados pelos neurônios receptores do nariz, de certa maneira especializados para um tipo de odor. As células ex-citadas mandam potenciais, pelo axônio, ao bulbo olfativo. O número de receptores indica a intensidade, a localização, a natureza do estímulo. No córtex entorrinal se realiza o encontro com outros sistemas sensoriais. Re-sulta uma percepção carregada de signifi cados, uma estrutura única para cada indivíduo (Freeman, 1991). A atividade não é determinada somente pelo estímulo. O funcionamento bulbar é auto-organizado, controlado por fatores internos, incluindo a sensitividade diante dos estímulos externos. Suas células calculam a força das correntes refl etida nas mudanças de vol-tagem nas membranas, acrescenta correntes excitatórias, subtrai correntes inibitórias. Se a soma é maior que o limiar do nível de excitação, o neurô-nio dispara. Em cada grupo de ondas registradas podemos identifi car uma forma comum, uma “onda portadora”. Mas não é essa que revela a natureza do cheiro. Ela muda cada vez que o animal inala, mesmo tratando-se do mesmo cheiro. A identidade de um odorante é discernível, somente no pa-drão especial global do bulbo. O bulbo participa da atribuição de sentido dos estímulos.

Os neurônios bulbares e do córtex olfativo são ligados com muitos outros. A atividade e o treino fazem com que haja respostas olfativas aos estímulos correspondentes. Quando duas ou mais áreas cerebrais são ex-citadas, surge um estado caótico. Tal situação é uma propriedade capital,

miolo.indd Sec1:10miolo.indd Sec1:10 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Doença mental e perda de liberdade

11

que torna o cérebro diferente de qualquer máquina de inteligência artifi cial. Diante do caos, o cérebro produz sempre novos padrões de atividade, que permitem procurar informações para identifi car o estímulo, e gerar, pelas tentativas e erros, procedimentos para resolver os problemas.

Esta linguagem dos neurocientistas sugere a idéia de “escolha”, im-posta pela complexidade dos processos, pelas infl uências do contexto. Evi-dentemente, “escolha” em termos neurofuncionais, não psicológicos.

A integração dos estímulos, sejam visuais ou olfativos, pode ser explicada como conseqüência de uma atividade de testar hipóteses. A análise da percepção supõe ondas de ida e volta entre os estímulos, ex-pectativas geradas no centro, confi rmações e informações. Os ciclos periferia-centro e as hipóteses testadas levam à identifi cação, reco-nhecimento, inclusão dos estímulos em categorias (Dennett, 1991). O interesse e as expectativas criam hipóteses, que o sistema perceptual confi rma ou infi rma. O produto fi nal é a reprodução de “um modelo do mundo daquele que percebe”. (Neisser, 1967). Os acontecimentos têm propriedades temporais, mas não determinam a ordem subjetiva das percepções. Não existe uma corrente defi nitiva da consciência, e sim um fl uxo paralelo de conteúdos revistos. As representações seqüenciais na consciência são produtos de um processo cerebral de interpretação. Não se trata de um refl exo direto dos eventos, nem de um lugar que centrali-za as modalidades sensoriais. Os processos dependem de interesses, de experiências individuais.

As estruturas cerebrais podem ser abordadas ao nível das moléculas do cérebro, do organismo, do indivíduo global, das comunicações transor-gânicas. A psicologia estuda o comportamento, os processos mentais; inter-preta os símbolos abstratos, defi nidos conforme regras que constituem uma sintaxe. Pelo comportamento, certas conexões são seletivamente reforçadas ou enfraquecidas, por processos bioquímicos específi cos, sinápticos. Ao re-pertorio genético primário, acrescenta-se um repertório secundário, adap-tativo. Nenhum neurônio é ligado unicamente a outro neurônio. Nenhum neurônio isolado tem as propriedades que adquire nos circuitos nos quais entra. A experiência nasce das correlações estabelecidas por uma memória conceitual. O pensamento é encarnado, não transcendental. Sua signifi ca-ção é criada em relação às necessidades e as funções corporais. Valores da realidade se elaboram em função da história pessoal (Edelman, 1992).

Citamos estas idéias para mostrar que a idéia de escolha, opção, se-leção, está presente entre neurocientistas, e que não estamos num mundo epistemologicamente rompido do mundo deles, quando postulamos a perda da liberdade de escolha como critério para delimitar a doença mental.

miolo.indd Sec1:11miolo.indd Sec1:11 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

12

Procuramos defi nir a doença mental em função da organização do psi-quismo, da estruturação de um modo de comportamento e relacionamento com os outros. Isso implica capacidade de escolha e de ação coerente com a escolha. Chamamos de doença o que decorre da perda da liberdade de escolher.

6. Novas formas de atendimento a pessoas com distúrbios de con-duta e relacionamento associam-se à necessidade de termos, conceitos que lhes correspondam. “Saúde mental” e “recuperação” designam programas, instituições, sistemas de serviços oferecidos. Os autores não escondem que tais noções não são bem defi nidas e que seu uso é “confuso” (Jacobson e Greenley, 2001). Na tentativa de elaborar defi nições satisfatórias, forçosa-mente os autores precisam delimitar, situar o conceito de saúde em relação ao de “doença”.

Registrando que poucas tentativas foram feitas para construir o con-ceito de saúde, Almeida Filho (2001), em excelente ensaio, tenta explorar suas dimensões sociológicas, antropológicas e epistemológicas, em opo-sição ao conceito de doença. Na literatura de língua inglesa encontramos vários termos: disease, que corresponderia a patologia; illness, a enfermi-dade; malady, a moléstia; sickness, a doença; disorder, a transtorno. Con-forme as doutrinas que os respectivos autores adotam, as palavras citadas não têm os mesmos sentidos. Disease aparece como condição do corpo in-teiro ou de certa parte dele. Illness seria o estado subjetivo que corresponde à alteração orgânica ou funcional, designada como disease. Disease explica e prediz illness. Seria esta última e não disease, a referência para os fenô-menos de saúde. Para certos autores (Pörn, 1984), saúde não seria o oposto nem de sickness, nem de disease, mas de illness. Saúde não seria ausência de patologia (disease), mas a não-existência de enfermidade (illness), como adaptação do organismo a um ambiente biológico e social. O potencial fun-cional, não afetado pela disease, seria defi nido pela illness. Mas a tal illness ou non-health, poderia ser subjetiva ou objetiva (Nordenfeld, 1987, 1993).

Sickness (doença) seria a soma de disease mais illness (Good e Good, 1982). Seria um processo de socialização da disease-patologia e illness-en-fermidade (Young, 1982).

Não há concordância entre os vários autores citados, e suas posições são apenas elementos a serem tomados em consideração para a elaboração de uma teoria da saúde (Almeida Filho, 2001).

Não achamos conveniente atribuir aos vários termos (disease, ill-ness, sickness, malady, disorder traduzidos como patologia, enfermidade, doença, moléstia, transtorno) sentidos tão categóricos e indiscutíveis. Em primeiro lugar, temos que observar que os dicionários não os defi nem da

miolo.indd Sec1:12miolo.indd Sec1:12 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Doença mental e perda de liberdade

13

mesma maneira. Por exemplo, no Webster (1999) o sinônimo de disease é sickness (p. 149). Como sinônimo de illness, também sickness (p. 257). Ma-lady é “a disease or disorder of body or mind”. Ao termo ill são atribuídos sentidos que o ligam a “má-saúde”, mas também a “hostil, inamistoso”, o que justifi caria o caráter “subjetivo” que lhe é atribuído por certos autores (p. 257). Sickness é defi nida como “ill health, specifi c disease”, mas tam-bém como náusea (p. 48), sugerindo o caráter subjetivo de desgosto. Sick é “sem boa saúde, nauseado, desgostado, macabro, sádico” (p. 483).

The New Michaelis (1976) traduz disease como “doença, enfermi-dade, moléstia” (p. 302). Illness é doença, enfermidade, indisposição (p. 513). Malady é enfermidade, doença, especialmente quando crônica ou ar-raigada, distúrbio mental (p. 598). Sickness: doença, enfermidade, náusea, vômito (p. 860).

Um dicionário médico, Blakeston’s New Gould (Hoerr e Osol,1956) defi ne disease (palavra composta de dis indicando separação, e ease indican-do bem-estar, sossego, conforto, alívio) como falha dos mecanismos adap-tativos de um organismo na resposta adequada aos estímulos ou estresse aos quais é submetido, tendo como resultado distúrbios na função ou estrutura de qualquer parte do organismo ou sistema do corpo. Uma reação à agressão. Sinônimos: sickness ou illness (p. 354). Illness: o estado de estar ill ou sick. Uma moléstia é sickness, disease, disorder (p. 587). Malady é sinônimo de disease ou illness (p. 694). Sickness, sinônimo de disease, illness (p. 1094). Evidentemente, os autores deste dicionário especifi camente médico, não fa-zem nenhuma diferença entre os termos aos quais os outros autores atribuem signifi cados específi cos.

No dicionário Aurélio (1999), enfermidade é defi nida como: 1) de-bilidade, doença ou outra causa que produza fraqueza; 2) qualquer vício ou mania; 3) ferida de mau caráter (p. 756). Doença é denominação genérica de qualquer desvio do estado normal. Na medicina, é um conjunto de sinais e/ou sintomas que tem uma só causa. Sinônimo: moléstia (p. 701). Molés-tia: 1) incômodo ou sofrimento físico; 2) doença; 3) incômodo ou sofrimen-to moral, aborrecimento, inquietação. Sinônimos: achaque, mal. (p. 1355). Patologia (termo proposto para Almeida Filho para traduzir disease) é o ramo da medicina que se ocupa da natureza e das modifi cações estruturais e/ou funcionais produzidas por doença no organismo.

Na base da terminologia analisada (Almeida Filho) não se chega a uma defi nição aceitável para saúde e doença. Autores citados no mesmo ensaio salientam: trata-se de construtos abstratos, de conceitos que não po-dem ser confundidos com as coisas concretas às quais se referem (Enge-lhardt, 1975). Tanto disease quanto illness são construtos sociais, fazem

miolo.indd Sec1:13miolo.indd Sec1:13 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

14

parte de um sistema cultural (Kleinman, 1992). Saúde é, em primeiro lugar, um construto conceitual que desenvolvemos para designar uma série de diferentes classes de fenômenos (Levine, 1995).

As várias teorias propostas não permitem uma defi nição consistente para o conceito de saúde, nem para seu oposto - doença - que constitui o tema deste artigo.

Enfermidade (traduzindo: illness) representaria um mal-estar subjeti-vo, sem consciência da situação subjacente? Um paciente se declara abatido, esgotado, desesperado porque está sendo perseguido por poderosas organiza-ções das quais não pode escapar. Vamos considerar que apresenta uma “en-fermidade” afetiva? Ou uma psicose de perseguição - patologia (disease)?

O indivíduo começa a ter alterações dos fenômenos biológicos (di-sease), mas, encontrando o médico, passa a ser qualifi cado com o conceito médico (doença = sickness)? Sendo a “doença” um ponto de vista médico, não seria mais correto dizer que a patologia pode ser encarada como doença na visão médica e como enfermidade (illness) na visão do paciente?

Aliás, a palavra dis-ease, etimologicamente signifi cando perda do bem-estar (Hoerr e Osol, no New Gould, 1956), não é mais marcada pelo “subjetivismo” do que a palavra illness? É adequado traduzir “disease” por “patologia”? Patologia é o discurso, o logos médico (cultural) sobre o esta-do do paciente. Não é bizarro atribuir a este termo o caráter objetivo, lesio-nal ou funcional marcado no corpo? Faz sentido taxar a “patologia” como evento “natural”, objetivo e livre de “valores”?

Sintoma é o termo usado correntemente para designar as queixas sub-jetivas do paciente; sinal seria o que o médico identifi ca como signifi cativo. Na psiquiatria, muitas vezes os sintomas acusados pelo paciente são diferen-tes do que sinalizam para o médico - a doença. O paciente fala de paralisia ou cegueira, que para a psiquiatra pode indicar um fenômeno conversivo neuró-tico. Convém a separação “objetivo/subjetivo” como critério nosológico?

Podemos ignorar que os físicos postulam que “não existe observação sem a participação do observador?”.

Entre as propostas feitas para defi nir o conceito de saúde mental, não encontramos nenhuma que nos forneça critérios válidos para conceitu-ar a doença mental. Nenhuma que nos infi rme nossa opção: caracterizar a doença mental pela perda de liberdade de fazer escolhas e de conduzir-se conforme suas escolhas.

7. “Recuperação” é outro conceito que, para ser defi nido, encon-tra-se com o conceito de doença. Desde os anos oitenta, fala-se muito em recuperação, já que estudos considerados válidos provam que as doenças

miolo.indd Sec1:14miolo.indd Sec1:14 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Doença mental e perda de liberdade

15

mentais graves não são obrigatoriamente deteriorantes (Harding, 1987). A recuperação tornou-se um programa de assistência e pesquisa. É necessário formular argumentos e provas, para que tal conceito seja tomado em consi-deração, na elaboração de uma política de saúde mental.

Contra a confusão criada por usos diversos dados a este termo, propõem-se idéias, teorias (Jacobson, 2001). Para usuários dos sistemas orientados para recuperação, o termo implicaria em processos caracterizados pela esperança, cura, autorização (habilitação), ligação. Sua aceitação depende de crenças in-dividuais na recuperação, decorrentes de convicções religiosas, artísticas, fi lo-sófi cas. Recuperação não é sinônimo de cura, não é necessariamente volta à saúde e funcionamento normal. Pode visar somente à redução de sintomas ou melhora do ajuste social e psicológico, o que também implica fatores externos, direitos humanos e redução do estigma social. Os usuários teriam que defi nir um self distinto do diagnóstico.

Tais considerações e tal tentativa de teorização não fornecem elemen-tos para defi nir a doença. O modelo conceitual proposto por Jacobson é criti-cado por Peyser(2001): não seria científi co, não oferece provas empíricas.

Uma observação: Peyser considera que os esquizofrênicos não esco-lhem livremente suas vivências, assim como os deprimidos ou obsessivo-compulsivos. “Eles perderam a liberdade com respeito a isso e o médico, ou quem cuida deles, age na tentativa de ajudá-los a superar a desordem e restaurar a liberdade de não sofrer, nem de perder a saúde, família, carreira” (p. 486). Fazendo tais considerações, referindo-se à liberdade diante das imposições externas e dos processos patológicos internos e suas conseqü-ências, Peyser atinge em pleno a questão da liberdade e doença. Porém, não chega a apontar explicitamente a perda de liberdade de escolhas como critério defi nidor da doença mental.

Nem a procura de uma teoria geral da saúde mental nem a das bases conceituais da recuperação propõem uma defi nição da doença mental que sirva às necessidades psiquiátricas em pesquisa e tratamento.

8. Nossa defi nição implica o conceito de liberdade. Estamos acos-tumados a ouvir este termo no discurso político, social, ético. Os sentidos que os fi lósofos lhe dão não preocupam muito aqueles que chamam de “li-berdade” uma rua, um jornal, uma estátua, um partido. Temos consciência da nossa falta de qualifi cação para falar de liberdade em termos fi losófi cos. Nossa intenção é somente inseri-la em um pensamento e uma atividade clínica psiquiátrica.

Certos dicionários de psicologia e psicopatologia dedicam um ver-bete à liberdade. “No sentido psicológico e moral, a liberdade é, para o

miolo.indd Sec1:15miolo.indd Sec1:15 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

16

indivíduo, e do ponto de vista da sua subjetividade, a possibilidade de agir e de se determinar pela refl exão autônoma, pela referência a valores morais, e em plena responsabilidade da sua decisão (...). Capacidade da vontade de não se deixar nem abusar nem constranger por pressões ‘internas’, prova-velmente pulsões, paixões, imagens incoercíveis ou outras tendências não controladas pelo ego-consciente, (...) seria negação do determinismo rigo-roso do comportamento” (Sillamy, 1980, p. 678).

“Na psicologia da personalidade, o problema da decisão e liberdade de escolha desempenha um papel central. Todas as teorias modernas da per-sonalidade são unânimes em afi rmar a existência da liberdade da vontade, mas relativa, não absoluta. A liberdade é limitada pela constituição psicofí-sica, por infl uências sócio-culturais...” (Arnold, Eysenk, Meili, 1982).

Compartilhamos as idéias expostas nas precedentes defi nições. Não pretendemos combater aqui (nem nos justifi car) certos postulados fi losófi cos (como: sentir-se livre é ignorar as causas que nos fazem realmente agir), nem psicanalíticos (referindo às pulsões como atuando em confl ito com o supe-rego), nem das psicologias deterministas (comportamental, refl exológica), segundo as quais a liberdade seria um sentimento subjetivo ilusório do Eu. As observações clínicas nos convenceram que somente os atos cometidos em estado de consciência abolida, ou nível diminuído de consciência, são com-pletamente impulsivos, sem avaliação da situação, das circunstâncias, sem infl uência de valores. Um doente agitado não ataca qualquer objeto, não ataca da mesma maneira, com a mesma violência. Vários fatores infl uenciam seus atos, sua falta de adequação, e não podemos considerar que tudo é expressão de impulsos, aos quais somente forças externas opõem resistência. Nos casos de consciência obnubilada, alterada, como nas epilepsias, qualquer avaliação parece abolida. O drogado julga a situação diferentemente do que ele mes-mo faria em plena lucidez. Mas os impulsos, mesmo quando predominam, encontram resistência, oposição, avaliação interna, em função da solidez dos pensamentos, sentimentos, valores e princípios que lhes são opostos.

Os impulsos podem ser vistos como o “real”. Mas o que observamos e conhecemos é sua manifestação, moldada por elementos de simbolização, imaginário, por valores, representações que adotamos. Em suma, diríamos: o ato é o que fazemos com os impulsos, o que se “torna” o impulso, como ele se “expressa” em função dos julgamentos éticos, da avaliação das situ-ações práticas. Se a manifestação, o fenômeno for considerado o “real”, o impulso seria apenas uma das suas causas ocultas.

9. Consideramos as várias propostas de defi nição da doença (desequi-líbrio humoral, alteração histológica, estrutural, sistêmica, cibernética, fun-

miolo.indd Sec1:16miolo.indd Sec1:16 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Doença mental e perda de liberdade

17

ção que não se auto-ataca, ausência de criatividade etc) como postulados. Nossa proposta também é um postulado. Diferente dos precedentes, diferente daqueles adotados pela nosologia ofi cial em vigor. A difi culdade de tornar conhecida e aceitável tal proposta é enorme, considerando a onipresença das classifi cações CID-10 e DSM-IV e a obrigação de que sejam respeitados os respectivos critérios para publicação em revistas de maior prestígio. Porém, ainda é maior a difi culdade de trabalhar na clínica psiquiátrica, sem adequar ou melhorar os atuais instrumentos e métodos, e sem desfazer-se daqueles que não podem ser melhorados.

Consideramos um equívoco afi rmar que os instrumentos ofi cializa-dos pela OMS e pela APA são aceitos pela maioria ou são intocáveis.

A coordenadora do American Journal of Psychiatry, Andreasen (2001), assina vários editoriais e pesquisas sustentando a necessidade de novos cami-nhos, de diversidade na pesquisa e clínica psiquiátrica. O coordenador da for-ça-tarefa que elaborou o DSM-IV, Frances A (1994), considera indispensável ir além dos instrumentos atuais, tomar em consideração as recomendações dos peritos, formuladas em guias de consenso. Kandel (1999) continua pro-curando um novo quadro intelectual para psychiatria. Os princípios da noso-logia dos códigos de classifi cação são contestados. A procura de “confi abi-lidade” do diagnóstico é realmente necessária? Não prejudicou a “validade” dos quadros isolados? Um simpósio realizado em julho de 2001, sob a égide da OMS, em Londres, concluía (portanto, com o apoio da maioria) que as próximas edições do DSM-III (inicialmente previstas como periódicas, de 7 em 7 anos) e do CID-10, devem ser suspensas até 2010. As bases teóricas e as decorrências delas, na prática e pesquisa psiquiátrica, foram, neste simpósio, severamente criticadas (Banzato, 2001).

A tentativa de isolar quadros válidos clinica e terapeuticamente, pela descrição dos sintomas, não tem perspectivas. Conhecer é ligar a observa-ção a uma regra geral, integrar um fato numa categoria maior, regida por leis cientifi camente estabelecidas. Uma fórmula química afasta-se com-pletamente do objeto captado pela observação. Ela situa o caso particular numa rede de relações, trata-o em um conjunto de relações regidas por leis. Os elementos singulares percebidos são atribuídos a uma classe.

O conhecimento em si e seus caminhos são explorados em vários níveis. Não poderíamos acantonar a psiquiatria nos tipos de refl exão e pro-cedimentos atuais, que embora cheguem a um notável nível de sofi sticação tecnológica, não permitem respostas diferentes daqueles dados há 50 ou mesmo 200 anos. Varela (1988) comenta: as neurociências trabalham com matemática. Os neurônios encarnam princípios lógicos. A “representação”, noção bem instalada no campo da atividade mental, implica intencionalida-

miolo.indd Sec1:17miolo.indd Sec1:17 07.03.2006 18:05:1007.03.2006 18:05:10

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

18

de a respeito de alguma coisa. A dimensão simbólica não é reduzida ao ní-vel físico dos símbolos. O tratamento das informações depende de tomadas de decisões. O cérebro reage seletivamente aos estímulos, discrimina-os. O estímulo visual é encaminhado para várias cadeias neuronais, que o tra-tam. O processamento em circuitos paralelos, não-linear, abre o campo para opções, para escolhas diferentes em função dos contextos. A inadequação das escolhas é patologia. Esta noção, que aplicamos ao conceito de doença mental, tem aplicação à visão neurocientífi ca dos fenômenos centrais.

Existem controvérsias quanto aos conceitos usados. A “estratégia co-nexionista” fala de neurônios com propriedades globais ou de associações que sofrem modifi cações graduais a partir de um estado inicial, mais ou me-nos arbitrário. As reações estereotipadas, isoladas, são sensíveis ao contexto.

O observador e o objeto observado surgem juntos, são elementos da mesma equação que expressa o conhecimento. O que os físicos aceitam e praticam no seu trabalho não pode ser ignorado pelo saber psiquiátrico.

As categorizações atuais podem impedir um entendimento mais pro-fundo da pessoa e dos mecanismos da doença. O tratamento psiquiátrico é tantas vezes uniforme, independente do diagnóstico (Garfi nkel, 2000). Os critérios propostos pela nosologia dos códigos não indicam necessariamen-te patologia (Spitzer, 1999).

BFalou-se e ainda se fala da psiquiatria como um instrumento criado

pelos médicos, representando as classes dominantes, para impor silêncio aos que protestam contra as várias formas de opressão social. A verdadeira “loucura” seria a da sociedade, que proíbe a palavra aos que se rebelam, rotulando-os de doentes e trancando-os em asilos (Goffman, 1971) ou “ma-nicômios”. Rejeitamos tais afi rmações.

No terceiro milênio a.C., uma farmacopéia neosumeriana tratava de dis-túrbios mentais e físicos, assim como a escola babilônica de medicina (orientada por uma deusa), no século 18 a.C. Os nomes dados às doenças eram os dos deu-ses e demônios que as provocavam. Eram punições por pecados, por intermédio de miasmas, frio, secura. As terapias consistiam em orações, junto com plantas, ossos de animais, dedos de mortos, fezes, urina (para enjoar o demônio?). Desde o século VII a.C. a medicina helênica falava da doença como “fenômeno natural”, sendo errado separar a mente do corpo. As Ajurvedas indianas, nos séculos VII-VIII a.C., incluíam alterações físicas e mentais (Sendrail, 1980).

Os médicos, ao longo da história, propuseram uma versão sobre a doença mental e procuraram tratamentos médicos para ela. Contra a

miolo.indd Sec1:18miolo.indd Sec1:18 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Doença mental e perda de liberdade

19

perseguição religiosa e jurídica sempre houve tentativas de interpretação médica, com a devida conclusão: não punir, sim tratar. Tal posição nem sempre conseguiu salvar doentes da fogueira e torturas. Nem todos os médicos eram decididamente comprometidos com tais posturas. E os tra-tamentos experimentados eram muitas vezes cruéis e absurdos. As insti-tuições internavam alienados incapazes de cuidarem deles mesmos, de adaptar-se ao convívio social. Para Foucault (1961), o Hospital Geral de Paris, em 1656, era um lugar de vício, preguiça, com um projeto moral de reabilitação pela punição. Expressava a “reprovação dos loucos e dos criminosos”. Não tinha objetivos terapêuticos, nem era administrado por médicos. Está provado, entretanto, que também havia propostas médicas e instituições com objetivos explicitamente terapêuticos, conforme o saber da respectiva época.

Um trabalho (considerado apócrifo: teria apenas 2000 anos, não 2460) relata como Hipócrates nega o diagnóstico de alienado ao fi losofo Demócri-to, que os cidadãos de Abdera consideravam doente e queriam tratar.

Ao longo da Idade Média, numerosos casos de litígio entre justiça e medicina são conhecidos. A primeira queria a condenação dos doentes por feitiçaria; a segunda diagnosticava a doença e recomendava tratamento. É curioso como vários historiadores da psiquiatria ainda repetem chavões do tipo: “a medicina hipocrática tentou ser científi ca, mas na ‘idade das trevas’, as bruxas, a superstição e o fanatismo tomaram conta dela”. Tal-vez nem seja curioso, mas mal intencionado, assim como os que procla-mam que a burguesia inventou a idéia de doença mental e as instituições de repressão médico-hospitalar. Na verdade, não é possível duvidar que nas culturas antigas (mesopotâmica, egípcia, grega, latina), milhares de anos antes da aparição da burguesia como classe, a sociedade já atribuía aos médicos a tarefa de tratar as alterações psíquicas.

No calor da chamada anti-psiquiatria, Szasz (1961), professor de psi-quiatria nos EUA, declarava a doença mental um mito. Laing (1969) nega-va a existência da doença mental, mas juntava pessoas com alterações de conduta numa instituição dirigida por ele, onde podiam dizer e fazer o que queriam, até recusar os remédios quando ele não conseguia convencê-los a tomar. Basaglia afi rmava numa página que doença mental não existe, mas na página seguinte afi rmava que nunca achou que doença mental não existe. “Talvez não fui claro, mas eu não disse que não existe uma patologia ‘origi-nária’ no homem. Eu disse que não sei o que é a loucura. Pode ser tudo ou nada. É uma condição humana. Em nós a loucura existe e é presente como a razão. (...) Quando alguém é louco e entra no manicômio, cessa de ser louco e transforma-se em um doente...” (Conferenze brasiliane, p. 34).

miolo.indd Sec1:19miolo.indd Sec1:19 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

20

Se Basaglia pensasse que a “doença” é um instrumento médico de es-tudo e tratamento, poderíamos concordar: é do ponto de vista médico que a “loucura” é interpretada como doença, dentro ou fora do que ele chama de “manicômio”. Mas a idéia de Basaglia é outra: loucura não é doença, ela pode ser transformada em doença pela sociedade e seu instrumento “patolo-gisante”, o manicômio. É este o “cavalo de batalha” de Basaglia. O mesmo queria fazer a revolução social e política a partir do hospital psiquiátrico, o que não despertou entusiasmos nos partidos políticos revolucionários. Ba-saglia decidiu abolir a hospitalização dos doentes mentais. No hospital que dirigia, estabeleceu uma sucessão progressiva de etapas até a liberação total. Um cronograma que, inacreditavelmente, era francamente atrasado em com-paração àquele que era realizado no HSPE de São Paulo. A lei 180, inspirada pelo autor que referimos, agora com 25 anos de aplicação, é ainda conside-rada um fracasso por alguns, pois os governos não a aplicaram devidamente; por outros, é considerada um crime contra certos pacientes psiquiátricos e suas famílias. Um grupo francês, ligado a M. Foucault, escandalizado com as tentativas de proibir a palavra àqueles que proclamam a verdade, denuncia a medicina, que em 1830 se opôs a pena capital no caso Pierre Rivière (que as-sassinou sua mãe, uma irmã e um irmão). Diagnosticando doença, a medicina queria desvalorizar a palavra de Pierre Rivière, que expressaria as condições de vida do camponês de seu tempo.

Psiquiatria signifi cou sempre “medicina da psique” e teve objetivo de estudar e tratar doenças. Abusos, erros, imposturas foram feitas em nome dela, mas tem sentido perseverar uma polêmica contra acusações de má-fé?

Basaglia proclama: é a hospitalização que provoca a doença. Não se co-loca, em momento algum, a questão de provar o que afi rma. Wing (1990), que anteriormente tinha achado que a hospitalização prejudica, retifi ca mais tarde tal conclusão: o institucionalismo não causa esquizofrenia. Pelo contrário, ela é uma reação secundária às pressões sociais, que são por sua vez reativas. Não é a internação em si que prejudica, mas as condições ruins de funcionamento de certas instituições.

Em trabalho anterior (Sonenreich e Silva Fo., 1995), citamos auto-res de vários países, cujos estudos demonstram a mesma coisa: pacientes tratados na comunidade evoluem para a cronicidade em percentual similar aos hospitalizados. A internação prolongada tem poucos efeitos sobre os défi cits dos doentes crônicos. Nos abrigos protegidos, a deterioração é pelo menos tão grande quanto nos hospitalizados.

Kluiter (1997) considera provado cientifi camente que nenhuma forma de assistência comunitária, para os doentes mentais graves, pode dispensar o hospital, embora em parte, ele possa ser substituído. As instituições alter-

miolo.indd Sec1:20miolo.indd Sec1:20 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Doença mental e perda de liberdade

21

nativas também podem funcionar bem ou mal. As CCA (Community Care Arrangements) e ACT (Assertive Care Treatment) são cada vez mais espa-lhadas. Do ponto de vista da psicopatologia, do funcionamento social, da mortalidade - incluindo suicídio, dos problemas para familiares e dos cus-tos, os CCA e ACT podem dar resultados pelo menos equivalentes aos do hospital. Contudo, para certas situações como casos agudos, emergências e crônicos com risco de re-hospitalização, o “elo” hospitalar é indispensável. Os estudos já realizados têm resultados contraditórios e não permitem con-clusões para orientar uma política geral.

A desinstitucionalização foi intensamente praticada nos EUA, com base nas recomendações da Comissão de Saúde Mental do Congresso, em 1965. Apoiada pelos governadores estaduais, por causa das vantagens fi scais, provocou sérias reclamações por parte dos pacientes e de suas famílias.

Na Inglaterra, depois da substituição do governo conservador pelo atual governo trabalhista, os prejuízos graves, devido à política de redução de leitos hospitalares, impuseram reformas enérgicas neste sentido (Dratcu, 2000).

Os psicóticos tratados com “care management” intensivo não têm períodos mais curtos de internação do que os com seguimento standard (Burns e outros,1999).

Na Itália, as críticas e os protestos contra a lei Basaglia são dramáti-cos. Seus defensores, sem negarem o fracasso, responsabilizam os gover-nos, que não teriam providenciado em grau sufi ciente as formas alternativas de tratamento. Seria difícil, ainda, proclamar que é a hospitalização quem cria a doença, uma vez que o que mais se fez foi diminuir o número de leitos (embora a abolição do hospital psiquiátrico não chegue a ser total). A expulsão dos pacientes dos hospitais não os “liberou” das doenças.

O programa dos psiquiatras é de pesquisar e aplicar tratamentos para que os doentes recuperem a liberdade de fazer escolhas e de aplicá-las. Instituições adequadas, incluindo hospitais psiquiátricos, nos parecem in-dispensáveis. As instituições irrecuperáveis devem ser fechadas; as defi -cientes devem ser melhoradas para corresponder às necessidades clínicas dos objetivos terapêuticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abragam A. Théorie ou expérience: un débat archaique. In: Hamburger J (ed). La philosophie des sciences aujourd’hui. Paris: Bordas, 1986. p. 21-38.

Almeida Filho N. For a general theory of Health: Preliminary epistemologi-cal and anthropological notes. Cad Saúde Pública 2001; 17:753-99.

miolo.indd Sec1:21miolo.indd Sec1:21 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

22

Andreasen NC. Diversity in psychiatry; or why did we become psychia-trists? Am J Psychiatry 2001; 158:673-5.

Arnold W, Eysenck HJ, Meili R. Dicionário de Psicologia. São Paulo: Loyo-la, 1982.

Banzato CEM. (Editorial). Rev Latino-Americana de Psicopatologia Fun-damental 2001; 6:7-9.

Basaglia F. Conferenze brasiliane. Milano: Einaudi, 1979.

Basaglia F. L’instituition en negation. Paris: Seuil, 1970.

Basaglia F. L’ideologia del corpo como expresivitá neurotica. In: Scritti. Torino: Einaudi, 1979. v. 2. p.441-4.

Berrios GE. Obsessive-compulsive disorder: its conceptual history in Fran-ce during the 19th century. Comp Psychiatry 1989; 30:283-93.

Berrios GE, Porter R (eds). A History of Clinical Psychiatry. The origin and History of Psychiatric Disease. New York: N.Y. University Press, 1995.

Berrios GE. Anxiety disorders: a conceptual history. J Affective Disorders 1999; 56:83-94.

Berrios GE. Obsessive-compulsive disorder: its conceptual history in Fran-ce during the 19th century. Comp Psychiatry 1989; 30:283-93.

Blackinston’s New Gould Medical Dictionary. New York: McGraw Hill, 1956.

Bramini CRD. Aforismos de Hipócrates. São Paulo: Typus, 1998.

Burns T, Cred F, Fahy T, Thompson S, Tyrer P, White I. Intensive versus standard case management for severe psychotic illness: a randomi-zed trial. Lancet 1999; 353:2185-89.

Canguilhem G. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 1966.

Daker MV. Griesinger e a reforma psiquiátrica. In: Associação Mineira de Psiquiatria. O Risco. Belo Horizonte, 2001, set, p. 18-20.

Davidovich L. O gato de Schrödinger. Do mundo quântico ao mundo clás-sico. Ciência Hoje, 1998; 24:27-8.

Dennett DC, Kinsbourne M. Time and the observer. The where and when of consciousness in the brain. Behavioral and Brain Sciences 1992;15:183-247.

Dennett DC. Consciousness explained. Boston: Little Brown, 1991.

miolo.indd Sec1:22miolo.indd Sec1:22 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Doença mental e perda de liberdade

23

Dratcu L. Godzila contra-ataca: breve crônica sobre a ressurreição do trata-mento psiquiátrico hospitalar na Grã-Bretanha. Temas 2000; 58:1-16.

Edelman GE. Bright Air, Brilliant Fire. New York: Basic Books, 1992.

Eisenberg L. Is psychiatry more mindful or brainier than it was a decade ago? (Editorial). Br J Psychiatry 2000; 176:1-5.

Eisenberg. The Social Construction of mental illness (Editorial). Psychol Med 1988; 18:1-9.

Engelhardt T. The concepts of health and disease. In: Engelhardt T, Spick ES (eds). Evaluation and explanation of the Biomedical Sciences. Dordecht: Reidel Publishing, 1975. p. 125-41.

Ey H, Bernard P, Brisset Ch. Manuel de Psychiatrie. Paris: Masson, 1963.

Ey H. Introduction. In: Psychiatrie. Encyclopedie Médico-Chirugicale. Pa-ris, 1955. p. 1-7; 37005 A30.

Falret JP. Des Maladies mentales et des asiles d’alinés. Paris: JB Bailliere, 1864.

Foucault M. Histoire de la folie à l’age classique. Paris: Plon, 1961.

Foucault M. Moi Pierre Riviére ayant egorgé ma mére, ma soeur et mon frére. Rio de Janeiro: Graal, 1961.

Frances AJ. Foreword. In: Sadler JS, Wiggins OP, Schwartz MA. Philoso-phical Perspectives on Psychiatric Diagnostic Classifi cation. Balti-more: J Hopkins University Press, 1994, p. I-VIII.

Freeman WJ. The physiology of perception. Scientifi c American 1991; 264:34-41.

Garfi nkel PE, Dorian BJ. Psychiatry in the new millennium. Can J Psychia-try 2000; 45:40-7.

Goffman E. Asylums. USA: Pelican, 1971.

Good B, Good MJ. Toward a meaning of symptoms. In: Eisenberg L, Klein-man A (eds). The Relevance of Social Science for Medicine. Dordre-cht: Reidel Publishing, 1982.p. 165-9.

Griesinger W. Traité des Maladies Mentales. Paris: Delahaye Ed., 1865.

Griesinger W. Die Pathologie und therapie der psychischer krankenleiten. Wieden: Brunschweig. 1961. p 520-38.

Hans L. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

miolo.indd Sec1:23miolo.indd Sec1:23 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

24

Harding CM, Books GW, Ashikaga A, Strauss JS, Breier A. The Vermont Longitudinal Study of Persons with Severe Mental Illness. Amer. J. Psychiatry 144; 727-35, 1987.

Heisenberg WH. La nature dans la physique. Paris: Gallimard, 1962.

Hipócrates. Sur le rire et la la folie. Petite Bibliotheque Rivages, 1984.

Hippocrates. Les aphorismes. Paris: Coll Antique,1934.

Hoerr NL, Osol A (eds). Blakeston’s New Gould Medical Dictionary. New York: McGrawhill, 1956.

Howells JG (ed). The concept of schizophrenia: Historical perspectives. Washington: American Psychiatric Press, 1991.

Jacobson N, Greenley D. What is Recovery. A conceptual Model and Expli-cation. Psychiatric Services. 2001; 52:482-5.

Kandel ER. Biology and the future of psychoanalysis. A new intellectual fra-mework for psychiatry. Revisited. Am J Psychiatry 1999; 156:505-4.

Kendler KS. Towards a scientifi c psychiatric nosology: strengths and limi-tations. Arch Gen Psychiatry 1990; 47:969-73.

Kleinman A. Local worlds of suffering. An interpersonal focus for ethnographies of illness experience. Qualitative Health Research. 1992; 2:127-34.

Kluiter H. Impatient treatment and care arrangements to replace or avoid it - searching for an evidence - based balance. Current Opinion Psychia-try 1997; 10:160-7.

Laing RD. La politique de l’expérience. Paris: Stock, 1969.

Lanteri-Laura G. La connaissance clinique: histoire et structure en médici-ne et en psychiatrie. L’Évolution Psychiatrique, 1982; 47:425-69.

Leriche R. La cirurgie, discipline de la connaissance. Nice: La Diane Fran-çaise, 1949.

Levine S. The meanings of health, illness and quality of life. In: Guggen-moos-Holzmann I, Bloomfi eld K,

Brenner H, Flick V (eds). Quality of life and Health. Berlin: Bla-ckwell Wiesenschaft Verlag,1995. p.7-14

Nagel E, Newman JR. A prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva, 1973.

Neisser U. Cognitive Psychology. New York: Appleton-Century-Croifts, 1967.

Nordenfeld L. On the Nature of Health. Dardrecht Reidel Publishing, 1987.

Nordenfeld L. Quality of Life. Health and Happiness. Aldershot: Averbury, 1993.

miolo.indd Sec1:24miolo.indd Sec1:24 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Doença mental e perda de liberdade

25

Novo Aurélio. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999.

Peyser H. What is Recovery? A Commentary. Psychiatric Services 2001; 52:486-7.

Piaget J. Seis estudos. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

Plank M. Positivisme et monde extérieur reel. 1931.

Pörn I. An equilibrium model of health. In: Health, Disease and Causal Explanation in Medicine. In: Nordenfeld L, Oldestad J (eds.) Dor-drecht: Reidel Publishing, 1984. p. 225-38.

Sendrail M. Histoire culturelle de la maladie. Toulouse: Privat, 1980.

Sillamy N. Dictionnaire encyclopédique de psychologie. Paris: Bordas, 1980.

Sonenreich C, Silva Filho LMA. Desospitalizaçao. J Bras Psiq 1995; 44:159-67.

Spitzer RL, Wakefi eld JC DSM-IV. Diagnostic criterion for clinical signifi -cance. Am J Psychiatry 1999; 156:1856-64.

Szasz T. The myth of mental illness. New York: Harper and Row, 1961.

The New Michaelis. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

Varela FJ. Connaitre. Les sciences cognitives. Tendences et perspectives. Paris: Seuil, 1988.

Webster’s New Explorer Dictionary and Thesaurus. USA: Merriam-Webs-ter, 1999.

Wing JK. The Functions of Asylum. Br J Psychiatry 1990; 157:822-7.

Young A. The Anthropologies of illness and sickness. Annual Reviews of Anthropologies. 1982; 11: 257-85

Zeki S. The visual image in mind and brain. Scientifi c American, 1992; 267,3:42-51.

Zimmerman M. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.

SUMMARY

“Illness” is the term that psychiatrists use to study and to treat situations lived by the patient. It is an instrument of knowledge, a concept, an approach for the “situation” from the medical point of view. We can draw the history of such concept separately, or study the history of the “situation” it designates. The history of “schizophrenia” - concept created by Bleuler - is different from the history of cases of patients with this kind of psychical suffering. The scientifi c speech is not identical to the object it treats. People live situations; physicians express, study and classify these situations. We de-

miolo.indd Sec1:25miolo.indd Sec1:25 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Carol SONENREICH, Giordano ESTEVÃO e Luiz de Moraes Altenfelder SILVA FILHO

26

fi ne the concept of mental disease as the loss of freedom to choose and to behave according to these choices. Drug addictions, phobias, obsession-compulsions and delusions are illnesses, since these patients act independently of their options. The sum of symptoms is not the best criteria to establish the diagnosis, nor the studies that associate symptoms to alterations of specifi c encephalic areas are the best method of psychiatric study. We need appropriate researches for this pathology level. The defi nition of illness we chose is elaborated according to a vision of the human being. It implicates the idea of freedom, the possibility to act and to determine oneself based on the autonomous refl ection, with reference to values and responsibility. We are aware of freedom limitations by life conditions, environment and hereditariness. But we think that for the psychopathologic and psychiatric study, it suits better to give priority to aspects related to freedom, more than those linked to the physical or psychic determinisms.

KEYWORDS: concept, mental illness, freedom

Serviço de PsiquiatriaHospital do Servidor Público Estadual “FMO”

R. Pedro de Toledo, 180004039-901 – São Paulo – SP

Email: [email protected]

miolo.indd Sec1:26miolo.indd Sec1:26 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

27

POR QUE A PSICOPATOLOGIA?Caso exemplar: A evolução do conceito de alcoolismo, a “mentira

do alcoólico” e suas incidências sobre o tratamento das toxicomanias.

Maria Lúcia BALTAZAR*

RESUMO

A autora, partindo do postulado de que “como tratamos nossos doentes depende de como con-cebemos suas doenças”, acompanha as conceituações utilizadas por um grupo de psiquiatras do HSPE-FMO para o diagnóstico e tratamento das toxicomanias ao longo das últimas décadas. O último conceito, de 1999, afi rma que “As toxicomanias são doenças provocadas pelo uso constan-te ou repetido de substâncias psicoativas, com perda das possibilidades de controlar as quantida-des e as circunstâncias nas quais são consumidas e conseqüente prejuízo para o comportamento do paciente”. Esta formulação teve seus antecedentes, que, a cada momento, designavam distintas conseqüências psicopatológicas e terapêuticas. O procedimento da autora opera em dois níveis. Primeiro, revela a pertinência do postulado inicial e, segundo, verifi ca na psicopatologia e na terapêutica as incidências das diferentes formulações.

UNITERMOS: Psicopatologia, Alcoolismo, Denegação, Toxicomanias, Tratamento, Psicoterapia, ‘mentira do alcoólico’.

Partimos da tese de que “como tratamos nossos doentes depende de como concebemos suas doenças”. Daí ser a psicopatologia a ciência que nos fornece os instrumentos capazes de operar o real da clínica, em con-tínua renovação, ao mesmo tempo em que se constitui em corpo de saber depurado do resto que o exercício desta práxis lega a cada um de seus ofi -ciantes. Por isso a análise contínua da construção de nossos conceitos faz-se necessária não apenas para conhecermos deles suas ideologias subjacentes, mas tomando a clínica como o real que nos concerne, deixarmo-nos guiar por seus impasses, pontos fecundos de sucessivas viragens.

Estas afi rmações não são hipóteses, são teses que se vêem compro-vadas quando acompanhamos as incidências na clínica de nossos conceitos. Escolhemos aqui acompanhar o conceito de Carol Sonenreich, de alcoolis-mo e da “mentira do alcoólico” e seus sucedâneos, e suas incidências psi-copatológicas e terapêuticas das dependências químicas, não apenas para verifi car a tese de que partimos, mas numa análise desta clínica das toxico-manias, verifi car a fecundidade destes conceitos.

*Psiquiatra e Psicanalista. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO” - São Paulo - SP

Temas, 2005, 68-69 : 27-41

miolo.indd Sec1:27miolo.indd Sec1:27 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Maria Lúcia BALTAZAR

28

Em 1971, a tese de doutorado deste autor “Contribuição para o estu-do da etiologia do alcoolismo” (Sonenreich, 1971) conceitua o alcoolismo como “uma doença que se instala com o uso excessivo de bebida alcoólica, por tempo prolongado e sob as infl uências da família, sociedade e cultura” e “a mentira do alcoólico, como a vivência da consciência alterada por este uso”. Na questão psicopatológica antecedente a esta formulação, buscava-se responder se o alcoolismo seria doença primária ou secundária, seria sintoma ou doença, e se seria, para alguns, até mesmo mal-hábito, psicopatia ou doença. É bom lembrar que somente em 1962 o ministério de saúde inglês reconheceu o alcoolismo como doença, passível de hospitalização, dotando, para tanto, de unidades de tratamento.

• A questão da predisposiçãoAté então a literatura psiquiátrica era dominada pela idéia de que o

alcoolismo era uma doença precedida por uma personalidade prévia, sen-do, portanto, uma patologia secundária a distúrbios antecedentes.

As infl uências mais importantes neste sentido vinham da psicanálise, sobretudo americana, com o conceito de “oralidade”, em que “comportamento adulto oral” signifi cava pessimismo, insegurança, passividade e dependência.

Outras correntes viam os alcoólicos como depressivos ou ansiosos, que no álcool buscariam alívio de seus sintomas. Outros autores considera-vam o alcoolismo uma psicopatia.

Destacamos como conseqüências clínicas do conceito do alcoolismo como sintoma ou psicopatia:

• O conceito de alcoolismo como psicopatia tornava difícil ou im-possível seu tratamento.

• Determinava uma clínica de pouca atenção à ingestão do álcool e aos seus efeitos sobre o psiquismo.

Isso talvez possa explicar o desinteresse, por um lado, e, por outro, o reconhecido insucesso que essa prática clínica demonstrou no tratamento do alcoolismo.

Nos anos 80, Vaillant, um autor de língua inglesa que se dedicava ao estudo do alcoolismo, ganhou um prêmio pelo estabelecimento do alcoolis-mo como doença primária, o que provocou uma guinada no tratamento do al-coolismo nos Estados Unidos, com grande dotação de verbas do NIMIH para o tratamento da doença. Destacamos desta época alguns de seus trabalhos:

Vaillant GE. Natural history of male psychologic health: effects of men-tal health on physical health. N Engl J Med 1979 Dec 6; 301(23):1249-54

Vaillant GE. Natural history of male psychological health: VIII. Antece-dents of alcoholism and “orality”. Am J Psychiatry 1980 Feb; 137(2):181-6.

miolo.indd Sec1:28miolo.indd Sec1:28 07.03.2006 18:05:1107.03.2006 18:05:11

Por que a Psicopatologia?

29

Vaillant GE, Milofsky ES. Natural history of male alcoholism: IV. Paths to recovery. Arch Gen Psychiatry 1982 Feb; 39(2):127-33.

Vaillant GE, Milofsky ES. The etiology of alcoholism: a prospective viewpoint. Am Psychol 1982 May; 37(5):494-503.

Vaillant GE, Clark W, Cyrus C, Milofsky ES, Kopp J, Wulsin VW, Mogielnicki NP. Prospective study of alcoholism treatment. Eight-year follow-up. Am J Med 1983 Sep; 75(3):455-63.

Vaillant GE. Cultural factors in the etiology of alcoholism: a pros-pective study. Ann NY Acad Sci 1986; 472:142-8.

Beardslee WR, Son L, Vaillant GE. Exposure to parental alcoholism during childhood and outcome in adulthood: a prospective longitudinal stu-dy.Br J Psychiatry 1986 Nov;149:584-91.

Vamos nos ater a dois destes trabalhos, um que testava as idéias sobre a ‘oralidade’ e outro que pesquisava os efeitos a longo prazo da exposição ao uso do álcool. Vejamos.

Vaillant GE. Natural history of male psychological health: VIII. Antece-dents of alcoholism and “orality”. Am J Psychiatry 1980 Feb; 137(2):181-6.

Neste trabalho o autor realiza um estudo prospectivo com uma amos-tra de 186 homens, acompanhados desde os tempos da universidade e re-tomados quando contavam 50 anos, e classifi ca-os em relação ao uso do álcool:

pouco social abuson=8 n=110 n=26

Vaillant procurou analisá-los segundo o chamado comportamento adulto “oral”, o que equivaleria a pesquisar neles traços de pessimismo, insegurança, passividade e dependência. Estudou ainda o ambiente emo-cional, a estabilidade da personalidade na escola e depois desta, com aten-ção aos que faziam uso do álcool. Os seus resultados demonstraram que infância pobre, personalidade instável na escola e evidências de transtornos de personalidade no adulto foram correlatas de comportamento oral-depen-dente, mas não de abuso do álcool. Ainda verifi cou nos que apresentavam abuso do álcool (n=26) problemas depressivos, difi culdades para se sus-tentar e inabilidade para competir, mas como conseqüência e não causa do uso do álcool. Este estudo abalou fortemente os conceitos de ‘perso-nalidade prévia’ e o estudo seguinte demonstrou que a exposição ao uso do álcool na família ou famílias com história de alcoolismo contribui para ulterior desenvolvimento do alcoolismo, como podemos verifi car no estudo relatado a seguir.

miolo.indd Sec1:29miolo.indd Sec1:29 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Maria Lúcia BALTAZAR

30

Beardslee WR, Son L, Vaillant GE. Exposure to parental alcoholism during childhood and outcome in adulthood: a prospective longitudinal stu-dy. Br J Psychiatry 1986 Nov;149:584-91.

Trata-se de um estudo longitudinal de 40 anos em escolares, expostos (n=176) ou não (n=230) a pais que faziam uso abusivo do álcool, que mostrou como resultados uma alta correlação entre a exposição ao alcoolismo na infân-cia com o uso do álcool, alcoolismo, prisão, sociopatia e mortalidade, mas não com desemprego, saúde física ruim ou medidas do funcionamento do ego.

Como se pode perceber, as proposições afi rmadas por Sonenreich são verifi cadas mais que uma década depois por Vaillant e colaboradores.

Em 2001, comparece na literatura psiquiátrica um trabalho instigan-te, analisando o modo como concebemos nossos conceitos:

Meza EE, Cunningham JA, el-Guebaly N, Couper L. Alcoholism: beliefs and attitudes among Canadian alcoholism treatment practitioners. Can J Psychiatry 2001 Mar; 46(2):167-72.

Estes autores estudaram uma amostra constituída por 95 ”Coun-sellors” de álcool e drogas, 46 assistentes sociais, 81 clínicos que trabalha-vam com toxicomanias e 74 Psiquiatras especializados em toxicomanias. Eles observaram que médicos e não médicos diferem quanto à crença na validade do uso de medicações para o tratamento do alcoolismo. Os clíni-cos, mais que os psiquiatras, tendem a perceber as alterações psicopatoló-gicas do alcoolismo como decorrentes do uso do álcool, o que nos parece bastante curioso. E os tratadores não médicos têm a tendência a conceber o alcoolismo como sintomático e o álcool como auto-medicação. Portanto, fi ca claro por este estudo que, entre os médicos, o conceito de que o alcoo-lismo seja uma doença primária tornou-se prevalente após três décadas de sua enunciação.

Em 1971, Sonenreich concebe o conceito de “mentira do alcoólico”, que não teria o fi to de enganar, mas que representa a repercussão psicopa-tológica da vivência do uso do álcool, diluindo a consistência da realidade, não permitindo nem importando mais distinguir o verdadeiro do falso. Esta estrutura permite ao alcoólico negar sua doença, sendo a intensidade da negação um indicativo da gravidade da doença.

Este conceito foi igualmente fecundo e revelou sua consistência, ten-do aparecido nos estudos sobre o alcoolismo entre os autores psicanalíticos, sobretudo os de linha lacaniana, sob o conceito de denegação, um conceito trazido de Freud, de 1925, em seu artigo traduzido para o português como A Negativa (Die Verneinug), em que o analisante nega o recalcado ao mesmo tempo em que o conserva presente na consciência: “o senhor vai pensar que era a minha mãe, mas não era a minha mãe” (Freud, 1925). Para esses au-

miolo.indd Sec1:30miolo.indd Sec1:30 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Por que a Psicopatologia?

31

tores, o alcoólico negaria o que torna evidente por outros modos, no próprio discurso, minorando seu uso ou dependência, ao mesmo tempo em que o afi rma; ou mesmo dizendo não ter bebido, com hálito intensamente alcoó-lico. Por outro lado, na psiquiatria fi liada ao DSM-III, ao fi nal dos anos 80 e inícios dos anos 90, surgiram as “Escalas de Negação”, com a fi nalidade de avaliar simultaneamente a gravidade do alcoolismo e sinais de melhora de alcoólicos em tratamento. Desses estudos, destacamos aqui alguns:

Goldsmith and Green’s. Denial Rating Scale (DRS). J Nerv Ment Dis 1988; 176:614-620. A escala é concebida pelo fato dos autores terem formulado que a negação da doença era um entrave no tratamento; avaliar este evento e localizá-lo teria valor terapêutico.

Allan CA. Acknowledging alcohol problems. The use of a visual analogue scale to measure denial. J Nerv Ment Dis 1991; 179(10):620-5.

Newsome RD, Ditzler T. Assessing alcoholic denial. Further examina-tion of the Denial Rating Scale. J Nerv Ment Dis 1993 Nov; 181(11):689-94.

Ino A, Tatsuki S, Nishikawa K. The Denial and Awareness Scale (DAS). Nihon Arukoru Yakubutsu Igakkai Zasshi 2001 Jun;36(3):216-34.

Os autores fazem uso dessa escala com valor prognóstico e para o acompanhamento da evolução do tratamento.

Neste ponto, gostaríamos de ressaltar as conseqüências clínicas e te-rapêuticas dos conceitos de alcoolismo de 1971, de Sonenreich.

• Conseqüências PsicopatológicasEstabelece um corte em relação às idéias anteriores. O alcoolismo

ganha estatuto de entidade clínica e não de sintoma.Através de categorias fenomenológicas, tais como a vivência, a tempo-

ralidade e a consciência, o autor constitui uma psicopatologia do alcoólico e chega ao conceito de “mentira do alcoólico”, de valor heurístico, clínico e tera-pêutico. Com este conceito, o alcoolismo não é mais um efeito químico danoso sobre um corpo, mas a “vivência sucedânea da consciência alterada”.

A vivência produz uma alteração psíquica desse ser no mundo, com uma temporalidade feita de instantes do presente que não se articulam nem ao passado e nem ao futuro - um ser cristalizado na sua incongruência, ali-jado da comunicação, já que “a realidade perdeu para ele a consistência”.

A mentira do alcoólico, sob sua forma da negação da doença, tem importância diagnóstica e valor preditivo de gravidade.

• Conseqüências TerapêuticasEssa psicopatologia do alcoólico implica que sua cura não se esgota

e nem se restringe à abstinência. Torna a psicoterapia indispensável, pois

miolo.indd Sec1:31miolo.indd Sec1:31 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Maria Lúcia BALTAZAR

32

seria talvez o único instrumento terapêutico capaz de alterar os efeitos des-sa qualidade de vivência.

Tirando-se a conseqüência da vivência do tempo nos alcoólicos, de-duz-se a necessidade, nesta psicoterapia, da retirada do alcoólico de sua anomia, da reconstrução de sua história, da subjetivação deste ser e conse-qüente reconstrução de seus laços sociais.

A avaliação da negação da doença é um instrumento de medição do aspecto evolutivo da cura.

Esse conceito, contudo, irá sofrer modifi cações ao longo de sua obra, determinando conseqüências distintas, tanto do ponto de vista psicopatoló-gico, como na implicação de novas incidências terapêuticas.

De seu livro A Maconha na Clínica Psiquiátrica, publicado em 1982 (Sonenreich, 1982), destacamos algumas de suas teses, para verifi car suas conseqüências.

“As drogas constituem não somente um agente de modifi cações que infl uenciam toda a psicologia do indivíduo, mas também seu modo de viver” (p.96).“As drogas não devem apenas ser associadas com as manifestações bioquímicas, mas também aos efeitos decorrentes de um modo de ver o mundo, de se inserir nele, de perceber o espaço e o tempo” (p.96).“(...) é provável que só uma pequena minoria dos consumidores de cannabis se tornem dependentes (...). E a sintomatologia deles, quando se tornam toxicômanos, é comparável com a de outras toxi-comanias” (p. 83).“As experiências vividas marcam a personalidade e a transformam” (p. 93).“Sob o efeito da droga as percepções se modifi cam”(p.95).“Voluntariamente, podemos modifi car nossa percepção do mundo, e por conseqüência nossa convicção na objetividade do mundo, de uma verdade que vale também para os outros”(p95).“A labilidade do mundo que as drogas nos inspiram explica as sur-preendentes mentiras dos drogados”(p.95).“Não é somente a mentira que decorre desta mudança da visão do mun-do. É o próprio sentimento de identidade do paciente, e isto pode levar a quadros idênticos ao que se chama ‘esquizofrenia’...”(p.95-96).“A vivência da descontinuidade, da perda do conceito da realidade, da identidade, pode provocar quadros de desagregação, delirantes, mesmo em pessoas que não estejam mais sob o efeito direto da dro-ga” (p.96).

miolo.indd Sec1:32miolo.indd Sec1:32 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Por que a Psicopatologia?

33

“(...) a prática de abolir a realidade, alterar sua própria maneira de sentir e perceber, criam um modo de viver, uma visão de mundo, que dispensa o comportamento coerente, que torna inútil a lógica do pensamento”(p.170).“Consideramos como sintoma mais signifi cativo dos toxicômanos a perda da aptidão para entender a verdade do outro (...) As mentiras do toxicômano são transparentes, inúteis, inoperantes. Constituem seu sintoma mais característico, mais específi co” ( p.171).“As drogas têm efeito alterador da vivência do próprio indivíduo e do mundo, que conduz a construções psicopatológicas. O modo de existên-cia do drogado leva-o à desagregação, obsessão, delírio...” (p.112).“A sintomatologia das toxicomanias é inespecífi ca. O tratamento não pode ser etiológico, mas um raciocínio patogênico pode funcio-nar” (p.172).Estes conceitos aparentemente tão próximos dos anteriores, no entan-

to, implicam novas conseqüências psicopatológicas, como sublinhamos.O conceito de “mentira do alcoólico” se expande para todas as toxi-

comanias.Não há lugar aqui para comorbidades, pois a alteração, inclusive

da identidade do sujeito, pode dar lugar à mais variada gama de quadros sindrômicos, a partir da alteração da realidade como efeito da vivência do uso das drogas.

O que importa é a psicopatogenia provocada pela vivência do uso das drogas e não a especifi cidade dos efeitos farmacológicos.

Tais conseqüências terão como implicações terapêuticas as seguintes orientações:

Não fará sentido separar os pacientes pelo tipo de droga utilizada.As alterações sindrômicas, tais como quadros delirante-alucinatórios,

de desagregação, depressivos, fóbicos, ansiosos etc. serão vistas como parte das alterações psicopatológicas decorrentes do uso das drogas, e enquanto tal, tratadas.

Fica ainda mais clara a prevalência e a necessidade da psicoterapia para tratar tais alterações.

Antes de seguirmos os ulteriores desenvolvimentos dos conceitos para toxicomania, em Sonenreich, gostaríamos de destacar algumas ques-tões em torno das comorbidades.

A revista Santé Mentale au Quebec, em seu número XXVI de 2001, é dedicada inteiramente à crítica do conceito de comorbidades e apresenta vários trabalhos que chamam de tratamentos integrados, lá considerados não usuais, já que lá se optou, por medida estatal, separar os dependen-

miolo.indd Sec1:33miolo.indd Sec1:33 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Maria Lúcia BALTAZAR

34

tes químicos dos demais doentes mentais. Transcrevemos aqui algumas de suas conclusões e advertências, que nos podem ser de utilidade, pois vemos proliferar entre nós, em vários serviços, este modo de conceber e tratar os dependentes de drogas.

• A separação não facilita nem a comunicação nem a aquisição de novas competências.

• O doente, assim visto, acaba duplamente abandonado, e seus tra-tamentos tornam-se menos benéfi cos, anulando perspectivas de melhora e facilitando abandonos.

• Na toxicomania, a comorbidade é regra e não exceção, devendo ser vista, na maioria dos casos, não como entidades separadas, mas como parte do mesmo quadro; e mesmo nos casos de co-ocorrên-cia, os tratamentos mostram-se mais efi cazes quando integrados.

Tomar tais trabalhos em consideração pode nos precatar dos malefí-cios e riscos do conceito de comorbidade e da separação destes doentes em unidades de tratamento para dependentes químicos. Do ponto de vista psico-patológico, o conceito de comorbidade em Psiquiatria parece ser inteiramente inadequado e mal formulado, ferindo um princípio básico da fi siopatogenia médica, pois para múltiplos sintomas não se deve buscar múltiplas doenças, mas sim uma ‘causa’ básica capaz de unifi car os sintomas em torno de uma doença ou síndrome.

Abrimos aqui um parêntese para analisar os caminhos terapêuticos e psicopatológicos que vêm sendo trilhados pela psiquiatria americana depois de suas concepções desenvolvidas a partir do DSM-III, no que diz respeito especifi camente ao tratamento dos chamados transtornos por uso de drogas. Nesse campo, a psiquiatria americana aliou o DSM-III às concepções dos alcoólicos anônimos, que foram determinantes para o caminho terapêutico que trilharam. Aliados aos seus conceitos mercantilistas de medicina, veri-fi caram que para cada dólar investido no tratamento dos dependentes psi-quiátricos são poupados dois. Evidentemente, isso resultou em um maciço investimento nesses tratamentos; mantê-los separados é também um modo de atrair doações de verbas. Observaram, por outro lado, que tratá-los dimi-nui o custo de todos os serviços clínicos, exceto os psiquiátricos, além do aumento dos dias de trabalho destes pacientes. Os principais recursos utili-zados são os alcoólicos/drogados anônimos e métodos behavioristas, como demonstra o estudo realizado por Yalisove D. The origins and evolution of the disease concept of treatment. J Stud Alcohol 1998 Jul; 59(4):469-76, em que o autor analisa os modelos de tratamento do alcoolismo nos EUA nos últimos 30 anos, procedendo a uma análise dos programas dos AA, das unidades de diversos tipos de tratamento e descrição da interação entre

miolo.indd Sec1:34miolo.indd Sec1:34 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Por que a Psicopatologia?

35

os agentes e pacientes. Os seus resultados apontam que todos os tipos de programa de tratamento tiveram sua origem nos AA, exceto os tratamentos ambulatoriais, e que de, alguma maneira, os princípios dos AA foram incor-porados a estes tratamentos.

Verifi camos as seguintes conseqüências sobre os modelos terapêuti-cos de tais concepções:

• O tratamento de dependentes químicos em unidades separadas das demais patologias psiquiátricas.

• Conseqüente surgimento do conceito de comorbidades, cuja ex-ceção é representada por Vaillant, que vê os distúrbios como se-cundários ao alcoolismo.

• A abstinência como critério de cura (infl uência nítida dos concei-tos dos AA), o que leva a uma distorção da avaliação da efi cácia das psicoterapias.

• A dependência é formulada como conceito farmacológico, sem considerar as alterações da vivência pelo uso droga.

• Em um primeiro momento, acarretou o desprestígio das psicote-rapias e, em segundo momento, levou à prevalência das Psicote-rapias Cognitivo-Comportamentais.

• Indicação das Psicoterapias apenas nos casos mais graves, de de-pendência comprovada, malgrado os trabalhos que atestam que este é o tipo de tratamento que melhor previne as recaídas. Prova-velmente esta conduta é embasada na questão do custo-benefício e nos resultados precários e incertos das psicoterapias, avaliadas pelo critério de abstinência absoluta, sem considerar outros cri-térios, tais como mudanças subjetivas, mudanças no padrão de beber, restabelecimento de laços sociais e afetivos e melhoras em relação ao trabalho e qualidade de vida.

• A indicação maciça dos AA como complementar ao tratamento, em que são evidentes as questões de custo-benefício, insidiosa-mente introduzidas na própria concepção da dependência, além da desesperançada visão do alcoolismo como doença incurável, própria dos AA.

Voltemos ao autor em questão. Em 1999, lança o livro Psiquiatria, Notas, Comentários (Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho LMA, 1999) em colaboração com dois outros autores. Destacamos dali o que julgamos, em relação a este assunto, ser as principais proposições.

“Denominamos toxicomanias as doenças provocadas pelo uso cons-tante ou repetido de substâncias psicoativas, com perda das possi-bilidades de controlar as quantidades e as circunstâncias nas quais

miolo.indd Sec1:35miolo.indd Sec1:35 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Maria Lúcia BALTAZAR

36

são consumidas e conseqüente prejuízo para o comportamento do paciente”(p.41).“As alterações psíquicas dos toxicômanos não são somente efeito da ação química da droga sobre o encéfalo. Expressam também as conse-qüências do modo de viver e conceber o mundo dos drogados” (p.41).“As vivências fl utuantes correspondem a verdades fl utuantes e se es-tabelecem como resultado de experiências fl utuantes” (p.57) .“A dependência como perda de controle sobre o uso de substâncias psicoativas corresponde ao nosso critério de doença psíquica em geral” (p.46).“A análise da vivência do tempo é elemento crucial para compreen-der e tratar os dependentes” (p.58).“O que nos interessa é a experiência vivida pelos toxicômanos, as bases da maneira de seu relacionamento com o mundo, e a verdade mais como característica da atividade, da interação com os outros” (p.59).“Achamos sem sentido procurar distinguir métodos de intervenção psicoterapêutica especiais para a dependência dos vários tipos de substâncias” (p.60).“Para nós, o objetivo da psicoterapia é liberar o paciente de sua fórmula de existência ‘não consigo” (p.60).“O encontro com o analista é uma oportunidade de desenvolver sua própria responsabilidade. É o exercício de uma comunicação na qual o ‘não depende de mim, não consigo’ é posto em debate, é vivido” (p.61).“Falamos da fórmula ‘não consigo’, como base comum de todos os dependentes, qualquer que seja a substância envolvida”. (...) não é signifi cativo separar o alcoolismo de outras toxicomanias” (p.61).

Neste livro, a questão surge de modo a parecer sintetizar e aprofun-dar o anteriormente postulado pelo autor. No entanto, também aqui surgem formulações novas e evidentemente com novas e distintas implicações.

Comecemos com as conseqüências psicopatológicas.O conceito de toxicomania fi ca mais fortemente ligado ao conceito

de dependência, não no seu sentido neuropsicofarmacológico, mas sim no psicopatológico, como perda da liberdade para escolher e, em segunda ins-tância, para se controlar.

Reafi rma-se a inespecifi cidade das toxicomanias.A temporalidade e a vivência da experiência tornam-se mais claras

como algoritmos fundamentais desta psicopatologia e conseqüentemente de sua terapêutica, tornando claro o entrelaçamento de ambas.

miolo.indd Sec1:36miolo.indd Sec1:36 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Por que a Psicopatologia?

37

As conseqüências terapêuticas desta formulação são igualmente dis-tintas. Vejamos.

A fórmula “não consigo” não só não permite a separação das toxico-manias a partir das substâncias, como também pode aproximar estes doentes de outros quadros, como as fobias e os quadros obsessivo-compulsivos.

Não seriam estranháveis grupos psicoterápicos não homogêneos, reunindo pacientes com estes quadros.

Este novo aspecto trazido pela fórmula do “não consigo” encontra igualmente ecos na literatura psiquiátrica. Assim, observamos na literatura trabalhos que usam escalas de obsessividade para controle e com valor pre-ditivo do craving, traduzido para o português como fi ssura. Mencionamos abaixo alguns desses trabalhos:

Roberts JS, Anton RF, Latham PK, Moak DH. Factor structure and predictive validity of the Obsessive Compulsive Drinking Scale. Alcohol Clin Exp Res 1999 Sep; 23(9):1484-91.

Anton RF. Obsessive-compulsive aspects of craving: development of the Obsessive Compulsive Drinking Scale. Addiction 2000 Aug; 95 Suppl 2:S211-7.

CONCLUSÕESOs esforços de novas formulações psicopatológicas são de valor heu-

rístico, demonstrando-se como ferramentas potentes, tanto do ponto de vis-ta diagnóstico como do terapêutico e, portanto, demonstrando o aforismo clínico conhecido “a teoria é indissociável de sua prática”.

Os conceitos de alteração da vivência da realidade, da temporalidade nas toxicomanias, mostram-se fundamentais para condução de seu diagnós-tico e tratamento.

O fato de se verem confi rmadas as teses de Sonenreich por vários autores, indica, sobretudo, uma aproximação mais efetiva do real desta clí-nica, concorrendo para uma melhor efi cácia de nossos diagnósticos e tra-tamentos.

Estas idéias, além de se mostrarem profícuas, inspirando vários auto-res nacionais, têm transbordado, inclusive sobre autores psicanalistas que já ensaiam pensar a toxicomania não mais como ligada à oralidade, mas, sim, como a invenção de um novo objeto-droga que produziria uma espécie de apagamento do simbólico, sendo a denegação um conceito importante para o diagnóstico e tratamento naquela clínica.

Vejamos a formulação de Durval Mazzei Nogueira Filho (Nogueira Filho, 1999), em seu livro Toxicomanias, em que partindo do conceito de discurso em Lacan nos traz a seguinte formulação do Discurso do capitalis-

miolo.indd Sec1:37miolo.indd Sec1:37 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Maria Lúcia BALTAZAR

38

ta: “Um sujeito em sua falta de gozo estrutural demanda ao saber científi co a produção de um objeto perfeito capaz de um gozo que, sem conseqüência, venha fechar sua castração, sua divisão, sua miséria, (...) capaz de pro-duzir o gozo que falta” (p.30). (Tarrab, 1995 apud Nogueira Filho, 1999). Tomando em conta esta formulação e considerando que o encontro do to-xicômano com a droga é um encontro fortuito, um mal encontro, este autor desconsidera as teorias sejam as de oralidade, regressão à fase anal ou fálica ou ainda, outras, de “traumas passados”, defesas, ou as que vêem a toxico-mania como sintoma para valorizar a vivência da droga e suas conseqüên-cias, e chega à seguinte formulação: “A droga interferiria neutralizando a barra do sujeito, cujo gozo não passaria mais pelos signifi cantes, apagando a borda da pulsão, tornando-a uma espécie de instinto, apagando o sim-bólico, com acesso RI (Real- Imaginário), espécie de gozo total, com o apagamento do Outro na impossibilidade de barrá-lo. Um gozo do corpo, numa relação droga-gozo ao invés da relação da castração com o objeto causa de desejo a”. (Nogueira Filho, 1999).

Desta proposição pode-se tirar as seguintes conseqüências, se-gundo Nogueira Filho (1999):

“A barra que representa a divisão do sujeito deixa de oferecer resis-tência à signifi cação” (p.53).“A principal conseqüência deste estado de coisas é o apagamento do Outro”(p.53).“Produz-se uma opacifi cação do discurso falado, nas emoções vivi-das, nas experiências existenciais efetivadas, sinalizando, assim, o abandono do signifi cado e do deslizar metonímico do signifi cante e do desejo” (p.53).“O traço unário não mais discrimina, passando a uma organização do tipo +/-, em consonância com a ausência ou presença da droga” (p.53).“Há pelo apagamento da diferença um apagamento do sexual, em que estaria implícita a castração em relação com o desejo: opera-se uma “instintivação das pulsões” (p.54).“Desaparecendo o valor do objeto enquanto tal, constrói-se assim um novo real pulsional, que procura o prazer não mediado pelo ob-jeto, em que exclui o acaso, tornando-se determinado por pura repe-tição, determinada não pelo passado do sujeito, mas pela construção deste artefato” (droga) (p.54-55).“A pulsão marca o necessário como erótico, a droga marca o eróge-no como necessário, para além do auto-erótico, fora do logos. Como os instintos não falham, o saber tem valor de verdade” (p.56).

miolo.indd Sec1:38miolo.indd Sec1:38 07.03.2006 18:05:1207.03.2006 18:05:12

Por que a Psicopatologia?

39

Na toxicomania estão, portanto, presentes: .• A difi culdade para discriminar devido ao apagamento do simbólico.• A alteração da vivência do tempo - a ahistoricidade. Aqui a pulsa-

ção do tempo se conta por droga/não droga, produz-se a eterniza-ção do presente.

• O imediatismo, por não haver deslizamento na cadeia simbólica.• Há a desmaterialização da realidade. • O processo que se dá na toxicomania é a denegação (Verneinung),

que produz o que foi chamado por Sonenreich (1971) de “mentira do alcoólico”, efeito da perda da consistência da realidade.

• Há a negação da morte, da incompletude e da falha.• Há grande difi culdade para a aceitação dos limites, por enfraque-

cimento da lei simbólica.• Há o fechamento ao outro semelhante por denegação do Outro

simbólico.• Dá-se a vigência da pulsão de morte em seu aspecto destruidor,

por ter perdido seu funcionamento simbólico.Podemos assim observar que, ponto a ponto, as formulações de So-

nenreich encontram possibilidades operacionais por esse algoritmo analíti-co introduzido na psicanálise por Nogueira Filho, em que ganha consistên-cia por sua operatividade clínica, tanto diagnóstica como terapêutica.

Queríamos ainda mencionar uma questão sobre a denegação em nos-sa observação clínica, dos diversos tipos de toxicômanos. Desse modo dirí-amos que há pelo menos três modalidades denegatórias:

• A fórmula presente nos alcoólicos poderia ser:”Não bebo, ou bebo pouco, bebi um gole hoje, mas quando quiser eu paro”.

• A dos usuários de outras drogas ditas ilícitas em que se vê a apo-logia da droga: “A droga abre universos de percepção infi nitos, é claro que posso parar quando quiser, não gosto de tomar medica-mentos, eles fazem mal”. É interessante notar que os usuários de drogas ilícitas são os que com mais freqüência resistem ao uso das “drogas” em seu tratamento.

• A do fumante: “Fumo sim, sei que me faz mal, mas não consigo parar”.

Estes três modos parecem estar correlacionados ao valor e ao modo de inserção social de cada tipo de droga.

Em relação ao álcool, a cultura tem uma atitude ambígua: ao mes-mo tempo estimula seu uso e uma vez constatado o abuso ou depen-dência, o “bêbado” é desprezado, visto como fraco e irresponsável e excluído do convívio social.

miolo.indd Sec1:39miolo.indd Sec1:39 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Maria Lúcia BALTAZAR

40

Quanto às drogas chamadas ilícitas, foram usadas pela contracultu-ra com valor de contestação a algo, um valor revolucionário, rebelde em relação ao “sistema”. Há certo orgulho no seu uso e um desprezo do outro por não ser capaz de perceber “as maravilhas dos paraísos artifi ciais”. Quanto ao fumo, por ser uma droga permitida e, em outras décadas, vista como signo de masculinidade, maturidade, charme e liberdade, só nos úl-timos anos vem sendo reconhecido como droga. Por não alterar a vivência da realidade de modo a torná-la inconsistente como nos modos anteriores, encontra seu usuário atual afi rmando seu uso, e, no entanto, acrescentan-do o não consigo próprio às dependências.

As observações dessas fórmulas denegatórias não são meras curiosi-dades clínicas; são aspectos psicopatológicos que nos ajudam a investigar e esclarecer a estruturação que aponta para sutis particularidades no trata-mento dos toxicômanos.

Ainda um breve assinalamento sobre a questão do grupo homogêneo ou heterogêneo para o tratamento psicoterápico. Em nosso ver, a denega-ção, forma tão característica do sujeito se posicionar nestes quadros, é tam-bém de difícil manejo no início do tratamento. Em grande parte das vezes, este não é solicitado pelo sujeito em função de sua dependência - já que não se reconhece como dependente - e sim, em função de alterações físicas ou psíquicas decorrentes do uso de drogas, ou ainda, o tratamento pode ser solicitado por terceiros. Achamos, diferentemente do autor, que no início do tratamento, até que seja levantada a denegação, o grupo homogêneo pode funcionar como uma espécie de espelho em que o sujeito se vê instigado a se confrontar com o denegado, facilitando um novo posicionamento perante sua dependência, proporcionado uma real demanda de análise ou psicotera-pia. Após o levantamento desse modo, é possível uma mudança de posição subjetiva face à sua dependência, o que pode levar o sujeito a implicar-se e engajar-se em seu tratamento; a partir de então, julgamos que poderá ser tratado em qualquer grupo ou individualmente. Não que julguemos que a denegação não possa ser tratada nos grupos heterogêneos, mas achamos que há uma otimização, nessa fase, nos grupos homogêneos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Freud S. A Negativa. In: Obras Completas, vol. XIX (trad.: José Octavio Aguiar de Abreu). Rio de Janeiro: Imago; 1976. p.293-300.

Nogueira Filho DM. Toxicomanias. São Paulo: Escuta; 1999.127p.

miolo.indd Sec1:40miolo.indd Sec1:40 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Por que a Psicopatologia?

41

Sonenreich C. Contribuição para o estudo da etiologia do alcoolismo. (Tese de doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo; 1971. 168 p.

Sonenreich C. Maconha na Clínica Psiquiátrica (Cadernos de Psicopatolo-gia – vol. III). São Paulo: Manole; 1982.179p.

Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho LMA. Psiquiatria: Propostas, Notas, Comentários. São Paulo: Ed. Lemos; 1999. 199p.

Tarrab M. Apud Nogueira Filho, 1999. Sujeto, goce y modernidad. Funda-mentos de la clínica. Buenos Aires: Atuel-TyA; 1995.

SUMMARY

Starting from the postulate “our conception of diseases depends upon how we treat our patients”, the author follows the formulations on drug addiction in use by psychiatrists during the last de-cades in HSPE-FMO. According to its last 1999 formulation, “drug addiction is a disease re-sulting from the constant or repeated use of psychoactive substances with loss of the possibility of controlling the amount that such substances are consumed and consequent deterioration in the patient behavior”. In each case this formulation has its antecedents that designate different psychopathological and therapeutic consequences. The author works on two levels: fi rst revealing how pertinent is the initial postulate and, second, verifying the psychopathological and therapeutic incidence of the distinct and different formulation on drug addiction.

KEYWORDS: psychopathology, alcoholism, denial, drug addiction, drug abuse, treatment, psychotherapy, ‘alcoholic lie’.

Maria Lúcia BaltazarRua Sergipe, 401/ Cj. 104

SP – SPCep 1234 –000

Email: [email protected]

miolo.indd Sec1:41miolo.indd Sec1:41 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

42

QUANDO A REALIDADE FLUTUA E A VERDADE SE DISSOLVEA psicopatologia do toxicômano segundo Carol Sonenreich e suas

implicações terapêuticas: um relato de caso

Luciana Lorens BRAGA*Maria Lucia BALTAZAR**

RESUMO

A partir do relato de caso de uma paciente dependente de múltiplas substâncias, a abordagem feno-menológica da toxicomania, apresentada por Carol Sonenreich, em 1971, será discutida neste artigo. A ênfase será dada no estudo psicopatológico do caso, a fi m de elucidar em que medida as alterações psíquicas dos toxicômanos não decorrem apenas dos efeitos neuroquímicos da droga sobre o orga-nismo, mas, sobretudo, de como expressam as conseqüências de uma vivência de descontinuidade e inconsistência provocada pelo uso das substâncias. Desta forma, o conceito de cura da dependência química deixa de estar situado em processos orgânicos e neuroquímicos e os objetivos terapêuti-cos extrapolam os limites da desintoxicação e manutenção da abstinência. A compreensão de tal psicopatogenia aponta para a psicoterapia como um instrumento privilegiado no tratamento destes pacientes, por ser talvez o único capaz de produzir uma ressignifi cação de tais vivências.

UNITERMOS: toxicomania, dependência de drogas, psicopatologia

INTRODUÇÃONo exercício de sua clínica diária, o psiquiatra depara-se freqüente-

mente com diversos entraves na abordagem dos dependentes químicos, com uma vultosa taxa de insucesso terapêutico. Apoiar o diagnóstico da toxicoma-nia em critérios baseados nos códigos de doenças pode signifi car restringir-se ao reducionismo da soma de sintomas. Tal procedimento pode contribuir para uma terapêutica parcial e inefi caz, que limita seus objetivos à desintoxicação e à abstinência e compreende os efeitos da droga unicamente sob o domínio do organismo – e não a partir das vivências do indivíduo.

Este artigo se propõe a discutir o caso de uma paciente dependente de múltiplas substâncias psicoativas, a partir da abordagem psicopatológica da toxicomania apresentada em 1971 por Carol Sonenreich. O autor estabelece rupturas em relação às idéias anteriores acerca do alcoolismo, que era con-siderado um sintoma e não uma entidade clínica distinta. Para Sonenreich,

* Médica residente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO” – São Paulo, SP.** Psiquiatra e Psicanalista. Médica Assistente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO” - São Paulo, SP.

Temas, 2005, 68-69 : 42-52

miolo.indd Sec1:42miolo.indd Sec1:42 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve

43

a particularidade da psicopatologia do alcoólico é conceituada como a vi-vência de uma temporalidade descontínua, composta de recortes isolados de um presente que eternamente se sucede, sem chegar a constituir um passado ou uma possibilidade de futuro. Não apenas a realidade perde consistência, como também sua capacidade de comunicação. Na medida em que o toxicô-mano pode modifi car sua percepção de mundo voluntariamente (através do uso da droga), sua convicção na objetividade do mundo e em uma verdade que também vale para os outros é alterada. Esta concepção de denegação do alcoólico (“a mentira do alcoólico”) tem valor prognóstico e terapêutico.

Tal compreensão psicopatológica representa contribuição relevante para o tratamento do dependente químico, uma vez que situa as alterações do seu psiquismo em uma vivência alterada da realidade e não apenas em efeitos neu-roquímicos sobre o organismo, permitindo que a psicoterapia surja como o principal recurso terapêutico na abordagem destes pacientes. Afi nal, é o único instrumento capaz de transformar e produzir uma re-signifi cação da qualidade destas vivências, conduzindo a uma chance maior de boa resposta terapêutica e de um melhor prognóstico. As implicações terapêuticas desta singular e abran-gente concepção da toxicomania serão discutidas ao longo do artigo.

RELATO DE CASONeste relato, será apresentado o caso da paciente M. C. A., de 40

anos, feminina, parda, casada, natural e procedente de São Paulo, católica, desempregada.

M. procurou o ambulatório com a queixa de que seu corpo estava “tremendo por dentro”.

Ela conta que sua história psiquiátrica teve início na infância. Sua mãe sempre a considerou como uma criança “hiperativa”, tendo-a levado, por esta razão, a diversos psicólogos e psiquiatras desde os sete anos. A pa-ciente não se recorda, entretanto, de ter feito uso de medicações. Não tinha muitas amizades e nem era muito comunicativa. Repetiu a segunda série primária. Considerava-se desatenta e achava quase impossível concentrar-se nas aulas. Não conseguiu ir além da oitava série, pois o interior da sala de aula já não a interessava mais. Seu interesse, a partir de então, era apenas “a rua”: a liberdade da rua, os companheiros da rua, as festas.

Bebeu pela primeira vez em uma dessas festas, aos quatorze anos. Sentiu-se tão bem que já não conseguia mais ir a festas sem beber. A pas-sagem à dependência foi muito rápida e logo passou a beber sozinha, che-gando em casa embriagada diariamente. Achava que sua família não dava real importância à dimensão do problema, o que, em sua opinião, apenas

miolo.indd Sec1:43miolo.indd Sec1:43 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Luciana Lorens BRAGA e Maria Lucia BALTAZAR

44

colaborou para o agravamento da situação. A experiência do trabalho em sua vida jamais se deu fora do contexto do alcoolismo. Já em seu primeiro emprego, começou a trabalhar alcoolizada. O mesmo aconteceu em suas funções laborais seguintes, quais sejam, uma fábrica de laticínios, uma ele-trotécnica e uma fábrica de discos. Chegou a sofrer um acidente de trabalho, que sobreveio por conta do uso do álcool. Acredita ser marcada por uma “praga” proferida por uma antiga chefe de trabalho, que a teria amaldiçoa-do ao dizer que ela estaria “condenada a viver na sarjeta, sozinha, bêbada e drogada”. Está há dez anos sem trabalhar.

Ainda na juventude, começou a usar outras drogas, como maconha e cocaína. Mais tarde passou a usar “mesclado” e crack. Nessa época, passou a dormir em praças, em delegacias ou embaixo de carretas. Sentia-se “mais uma entre os bêbados e drogados da cidade”. Aos 34 anos chegou a ser vio-lentada sexualmente por um desconhecido na rua.

Seus sintomas psíquicos tiveram início há cerca de sete anos, com ansiedade e insônia diárias. Com a abstinência, tais sintomas agravavam-se. Demorou a procurar alguma ajuda psiquiátrica, pois acreditava que bastava tornar a intoxicar-se para aliviar seus sintomas. Sua primeira internação psi-quiátrica ocorreu em 2003, para desintoxicação. A partir de então, foi sub-metida a uma série de internações psiquiátricas devido a sintomas cada vez mais graves. Começou a sentir-se perseguida, a ver vultos e ouvir vozes e barulhos estranhos. Quando intoxicada via sangue saindo por seus poros, por suas mãos, por seu corpo. Ansiosa e desesperada, friccionava com vigor as próprias mãos e levava-as diversas vezes à torneira para fazer desaparecer “todo aquele sangue”. Chegou a ferir as próprias mãos pelo intenso e repetido atrito. Após controle de tal sintomatologia com uso de clorpromazina 400mg/d associada ao clonazepam 8mg/d, M. evoluiu para quadro de profunda ane-donia, hipobulia, sentimento de incapacidade, sempre acorrentada ao medo da recaída. Eis um relato escrito pela paciente em uma das internações:

(…) minha tristeza hoje está doendo o meu corpo. De deixar o H. triste, sozinho, nesta chuva. Estou matando ele aos poucos com a minha loucura. Eu não sei fi car sem ele.

(…). Estou acabando com a minha família por ser uma pessoa inútil, bêbada, drogada. Não sou capaz de nada, só de beber. Bebo para virar gente, mas acabo virando um bicho in-capaz. Eu não quero morrer, mas acabo com a minha vida. Estas perseguições, estas vozes, este sangue que me persegue. Este sentimento de não ser nada na vida. Às vezes tenho von-tade de sumir de mim. Tenho medo de mim.

miolo.indd Sec1:44miolo.indd Sec1:44 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve

45

Tenho vontade de subir num lugar bem alto, fi car lá no alto, voando. Quem sabe lá em cima eu consiga chorar natural-mente e voltar a sonhar.

Quando não bebo ou fumo maconha, meu mundo fi ca completamente diferente. Diferente. Não sei conviver com esta diferença. Quando eu fi co muito tempo sem nada, não es-tou agüentando, fumo um cigarro com pasta de dente. Aí dá uma brisa, menor que a maconha, mas acalma um pouco. A cocaína, usei menos, pois tive que operar a sinusite; sangra o nariz, a cocaína.

Quando eu fugia do H. para beber e me drogar, eu falava que ia na minha prima, mas fi cava na rua bebendo, fugia para outros lugares, fi cava 3, 4 dias fora de casa.

Já fui estuprada, levei um soco, ele quebrou meus óculos e enfi ava no meu ouvido até acabar com o que ele queria. Nunca falei isso a ninguém. Tenho medo de falar. Tenho vergonha de mim. Já tive uma arma na cabeça e até hoje sinto tudo isso. Já vi meu pai levar um tiro no assalto. Já vi colegas de bar morrer com um tiro na cabeça. Já acabei com meu carro num acidente.

Perdi muita coisa e vendi muita coisa para meu consu-mo. Perdi emprego, amizade, coisas boas. Hoje tenho medo das pessoas. Tenho medo de ser atropelada pelas pessoas. Perdi o sentido das coisas. (…)

No intervalo, a alma bêbada tropeça e cai sobre si mes-ma, atordoada. O que eu dizia era nada que valesse. Minha alma tem a face empapuçada, a boca sangra e faz saliva espes-sa. Agora zonza é a dor, não a alegria.

Em relação a seus antecedentes pessoais, M. nasceu de parto fórceps a termo e é a primeira fi lha de uma prole de quatro. Teve desenvolvimen-to neuro-psico-motor adequado. Relata doenças próprias da infância sem complicações. Menarca aos 12 anos. Sua primeira relação sexual foi aos 18 anos. Teve cerca de quatro parceiros até o momento. Foi estuprada aos 34 anos. Aos 28 anos engravidou, mas apresentou um aborto espontâneo. Acredita que sua vida poderia ter sido diferente caso esta criança tivesse nascido. Vive com seu atual companheiro, H., há cerca de 13 anos. Come-çaram a namorar quando ela tinha 27 e ele 60 anos. Atualmente ele tem 74 anos e eles vivem bem. Diz que ele é muito carinhoso, preocupa-se e quer seu bem. Há alguns meses ela apresenta queixas de redução na libido, com menor freqüência de relações sexuais com seu marido.

miolo.indd Sec1:45miolo.indd Sec1:45 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Luciana Lorens BRAGA e Maria Lucia BALTAZAR

46

Sua mãe é viva, tem 69 anos, aparenta ter boa saúde e é hipertensa. Seu pai faleceu no fi m de 2004 por problemas cardíacos. Seus irmãos têm 36, 34 e 26 anos. Dois deles gostam de beber, mas não há história de alcoo-lismo, uso de drogas ou problemas psiquiátricos na família. Ela conta que, desde que começou a se tratar, sua família tem estado mais próxima. Conta que há muitas pessoas ao seu lado dando-lhe apoio ao tratamento. Entretan-to, sente-se com muito medo, insegura e incapaz. Gostaria de estar inserida em algum tipo de emprego, no qual pudesse “trabalhar para si mesma”. Considera que a psiquiatria pode ajudá-la a conseguir isto. Em relação aos antecedentes médicos, é hipotireoidea, em uso de levotiroxina 50mcg/d. Não havia alterações ao exame físico, além de sobrepeso.

EXAME PSÍQUICONa admissão na enfermaria, a paciente havia acabado de apresentar

uma recaída no uso de drogas. Apresentava-se, no momento da interna-ção, com cuidados de higiene comprometidos e com algum prejuízo no pragmatismo. Estava vigil, com processos psíquicos bastante acelerados e campo vivencial estreitado, devido a um quadro de extrema ansiedade, que traduzia o grande investimento afetivo numa ideação delirante de cunho persecutório. Não se tratava de um delírio estruturado, sistematizado. No entanto, as vivências alucinatórias complexas, visuais e auditivas, bastante vívidas, dominavam o quadro psicopatológico. A paciente sentava-se e le-vantava-se da cadeira diversas vezes em direção ao lavatório, para lavar as mãos de “todo aquele sangue” que via escorrer por seu corpo e sair por seus poros. Por conta disto, é compreensível que toda a atenção da paciente es-tivesse voltada para as próprias vivências alucinatórias, pouco interagindo com o resto do ambiente e nem sempre respondendo às minhas perguntas, o que explicava sua hipovigilância e hipertenacidade. Estava desorientada no tempo, mas com orientação autopsíquica e espacial mantidas. Diante deste fenômeno vivido com grande intensidade afetiva, a paciente não dava mar-gem à possibilidade de melhor avaliar sua memória de evocação. Aparen-temente não tinha défi cits na memória de fi xação. Relatou ter feito uso de substâncias psicoativas ilícitas, mas não era capaz de precisar quais e nem as quantidades de que fez uso. Apresentava crítica prejudicada em relação a seu estado psicopatológico.

EVOLUÇÃOA paciente realizou tomografi a de crânio, eletroencefalograma e per-

fi l laboratorial, todos sem alterações. Foi medicada inicialmente com clona-

miolo.indd Sec1:46miolo.indd Sec1:46 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve

47

zepam 8mg/d associado a clorpromazina 400mg/d. Esta última medicação foi trocada por fumarato de quetiapina 400mg/d devido ao desenvolvimen-to de síndrome extrapiramidal, secundária ao uso da primeira medicação. Muito lentamente, sua apresentação psicopatológica inicial deu lugar a um quadro marcado pela acatisia e postura de dependência de benzodiazepíni-cos, sendo que sempre solicitava aumento ou doses extra das medicações.

Houve remissão total das vivências delirante-alucinatórias, mas ainda chamava atenção um signifi cativo estreitamento no campo vivencial, com algum grau de aceleração nos processos psíquicos. Após ter cursado com notável melhora no quadro de dependência a benzoadiazepínicos, com re-dução de 8mg para 2mg de clonazepam ao dia, houve nova mudança na sua apresentação psicopatológica. Do exame psíquico apreendia-se uma mar-cante hipobulia, anedonia, estreitamento no campo vivencial e lentifi cação nos processos psíquicos. A lentifi cação de seu pensamento era expressada através do débito verbal reduzido. Seu discurso evidenciava ideação de me-nos-valia, incapacidades e impossibilidades centradas no medo de apresen-tar uma recaída e de não conseguir levar adiante o tratamento.

Houve melhora na crítica em relação a seu estado. Entretanto, du-rante seu acompanhamento em hospital-dia, tornou a intoxicar-se em mais de uma ocasião. Chamava atenção a persistente negação de ter feito uso da droga, a despeito das evidências constatadas ao exame físico, como há-lito alcoólico, perplexidade ao olhar e aceleração psíquica aguda, quadro que contrastava com o exame psíquico habitual da paciente.

O acompanhamento psicoterápico semanal (três vezes na se-mana, com psicoterapia individual e em grupo), as atividades diárias de terapia ocupacional e a farmacoterapia constituíram o tripé do seu tratamento. Aos poucos, foi sendo notada por toda a equipe a mudança na postura da paciente, que passou a participar de forma mais ativa dos grupos de psicoterapia, ao elaborar suas experiências com a droga e refl etir sobre o seu envolvimento com o tratamento. Nas atividades de terapia ocupacional, demonstrava motivação por atividades de pintura e artesanato. Chegou a produzir diversas peças artesanais para presentear seus familiares. No acompanhamento individual, foi possível constatar uma favorável mudança no eixo do discurso, inicialmente centrado em queixas somáticas, relatos das vivências delirante-alucinatórias e pela sensação de “vazio interior”. Progressivamente, o conteúdo do discurso passou a ser focalizado na busca pela compreensão de sua posição diante da doença e diante do mundo, incluindo relatos de uma nova maneira de se ver e de ser vista pelos seus familiares. Disse um dia: “parece que eu estou virando gente…”.

miolo.indd Sec1:47miolo.indd Sec1:47 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Luciana Lorens BRAGA e Maria Lucia BALTAZAR

48

DISCUSSÃOA relevância de se discutir este caso reside muito mais nas possibilida-

des de compreensão da psicopatologia do toxicômano, valendo-se da história e exame psíquico da paciente, do que numa possível dúvida diagnóstica. Pretendo discutir a toxicomania a partir da proposta de Sonenreich (1999), segundo a qual as alterações psíquicas dos toxicômanos não são apenas efeitos da ação química da droga sobre o encéfalo, mas também expressam as conseqüências do modo de viver e conceber o mundo dos drogados. Se a questão é de uma alteração da vivência provocada pelo uso das drogas, torna-se claro que o tratamento não se resume apenas na desintoxicação e abstinência, uma vez que é essencial tratar o psiquismo alterado por esta vivência alterada que a droga produz.

Abordar a dependência química signifi ca inicialmente compreender o conceito desta síndrome, que segundo Nogueira Filho (2005), está inserida num espectro clínico amplo que raramente, talvez nunca, possa ser abordada por uma leitura unidimensional. Apoiar o diagnóstico desta paciente em cri-térios baseados nos códigos de doenças pode signifi car valer-se de uma inter-pretação baseada no reducionismo da soma de sintomas, que não compreende a complexidade da percepção da realidade do paciente e da sua relação com o mundo. Nogueira Filho (2005) ainda refl ete que a referência nosográfi ca mais utilizada na prática psiquiátrica, o CID-10, traduz a clara intenção dos autores em enquadrar a atividade médica no molde verifi cacionista e em franquear a passagem à ideologia de tom biológico e comportamental. O DSM-IV, as-sim como o CID-10, propõe uma multiplicidade de diagnósticos e sintomas relacionados aos transtornos por uso de substâncias, o que não corresponde necessariamente a uma apreensão fenomenológica do caso. O DSM-IV, por exemplo, distingue, dentre outras modalidades de adoecimento pelo uso de substâncias, a intoxicação aguda, o uso nocivo, a síndrome de dependência, o estado de abstinência, os transtornos psicóticos e a síndrome amnéstica. Tais códigos descrevem e tratam das características dos quadros, mas em momen-to algum conceituam os modos de adoecer.

Partir do conceito de doença mental como perda da capacidade de escolha signifi ca compreender a toxicomania como a perda da liberdade de abster-se das drogas. Sonenreich, em 1999, cita Postel (1998), que compre-ende esta doença como a tradução de uma relação alienante com uma droga mais ou menos tóxica, tendendo a subordinar toda existência do sujeito à procura dos efeitos do produto. A paciente em questão exalta esta posição de alienação diante do mundo e servidão à droga quando diz: “Não sou capaz de nada, só de beber” ou então “Perdi muita coisa e vendi muita coisa para meu consumo. Perdi emprego, amizade, coisas boas. (…) Perdi o sentido das coisas.”

miolo.indd Sec1:48miolo.indd Sec1:48 07.03.2006 18:05:1307.03.2006 18:05:13

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve

49

Para Sonenreich (1999), o uso de drogas altera a percepção da reali-dade, o que signifi ca que o mundo passa a ser percebido de acordo com o estado psíquico da pessoa, se drogada ou não-drogada. Este modo alterado de relacionar-se com a realidade corresponde a uma vivência de inconstân-cia, instabilidade e fl utuação. É um mundo sem identidade, frouxamente constituído, no qual há uma verdadeira dissolução da realidade. A repetição de tal experiência determina o modo de existir do drogado, descrito pelas próprias palavras da paciente: “Quando não bebo ou fumo maconha, meu mundo fi ca completamente diferente. Diferente. Não sei conviver com esta diferença”.

O usuário das substâncias pode inicialmente controlar o padrão e freqüência desta alteração nas percepções. No entanto, Sonenreich (1999) explica que, instalada a dependência, esvai-se qualquer possibilidade de controle e a pessoa passa a drogar-se não mais para buscar o bem-estar, mas no intuito de aliviar o insuportável mal-estar da carência da droga. Destarte, as relações com o mundo perdem a previsibilidade, deliberação e constân-cia. As experiências do sujeito fi cam reduzidas ao domínio da droga, empo-brecidas, determinando um novo modo de existir, que é experimentado pela paciente: “Bebo para virar gente, mas acabo virando um bicho incapaz. Eu não quero morrer, mas acabo com a minha vida. Estas perseguições, estas vozes, este sangue que me persegue. Este sentimento de não ser nada na vida. Às vezes tenho vontade de sumir de mim. Tenho medo de mim”.

A negação do uso da droga, ou a sua minimização, expressadas pela paciente, estão diretamente relacionadas à inconsistência da realidade do to-xicômano. Esta concepção da “mentira do drogado” de Sonenreich (1999), pode ser traduzida como a dissolução do conceito de uma realidade que possa preservar sua identidade, deixando de existir uma verdade capaz de expressar a realidade. Assim, se para o dependente a coerência ou identidade não existe, ele não leva em consideração que esta verdade pode continuar existindo para o interlocutor. “Vivências fl utuantes correspondem a verdades fl utuantes”, re-sume o autor. Dessa forma, constrói-se um discurso sem conseqüências – que não implica sanções –, calcado no descrédito, em que a própria continuidade do sujeito é prejudicada, bem como sua vivência do futuro. Esta conduta ime-diatista dos toxicômanos, na qual o depois parece não existir, é explicada pela própria paciente: “Quando eu fugia do H. para beber e me drogar, eu falava que ia na minha prima, mas fi cava na rua bebendo, fugia para outros lugares, fi cava 3-4 dias fora de casa”.

Este conceito de alcoolismo foi proposto por Sonenreich em 1971, e estabelece uma ruptura em relação aos conceitos anteriores acerca do proble-ma, que passa a ter estatuto de entidade clínica e não mais de mero sintoma.

miolo.indd Sec1:49miolo.indd Sec1:49 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Luciana Lorens BRAGA e Maria Lucia BALTAZAR

50

Baltazar (2002) articula as idéias deste autor, e compreende a psicopatologia do alcoólico, através da apreensão fenomenológica de uma vivência de descon-tinuidade da temporalidade, restrita a instantes do presente desarticulados do passado e do futuro. Submetido a tais experiências sucedâneas de consciência alterada, o sujeito fi ca cristalizado em sua incongruência, já que a realidade para ele perdeu a consistência. O fenômeno denominado denegação ou “mentira do alcoólico” sobrevém, portanto, como expressão deste alijamento da comunica-ção, resume a autora. No entanto, não é somente a “mentira” que decorre desta mudança da percepção do mundo. O próprio Sonenreich, em 1982, comenta que o sentimento de identidade do paciente também pode estar alterado, poden-do levar a quadros idênticos ao que se chama “esquizofrenia”.

Nesta abordagem não há lugar para o conceito de comorbidade, conforme avalia Baltazar (2002), já que a mais variada gama de quadros sindrômicos pode advir desta alteração da percepção do mundo. Portanto, as alterações sensoper-ceptivas e representativas, as alterações dos juízos de realidade e as manifestações fóbico-ansiosas que a paciente apresentava foram compreendidas como parte das alterações psicopatológicas decorrentes da vivência do uso das drogas.

A principal implicação terapêutica secundária à compreensão desta psicopatologia é que o conceito de cura do alcoolismo perde o caráter re-ducionista, que situa o tratamento apenas na especifi cidade dos efeitos neu-roquímicos ou farmacológicos. O objetivo terapêutico não mais se esgota e nem se restringe à abstinência. O que importa é a psicopatogenia provocada pela vivência do uso das drogas, tornando a psicoterapia indispensável no tratamento do paciente, por ser o único instrumento capaz de alterar os efeitos desta qualidade de vivência.

Sonenreich (1999) utiliza a fórmula do “não consigo” como sendo a base comum da existência de todos os dependentes, qualquer que seja a substância envolvida. Não é signifi cativo, portanto, separar o alcoolismo de outras toxicomanias. O objetivo da psicoterapia, portanto, é liberar o paciente da fórmula do “não consigo”. Segundo o autor, “o encontro com o analista é uma oportunidade de desenvolver a sua própria responsabilidade. É um exercício no qual o ‘não depende de mim, não consigo’ é posto em debate, é vivido”. Isto signifi ca que os dependentes químicos podem ser tratados em grupos de psicoterapia heterogêneos, já que esta fórmula do “não consigo” está presente em outras patologias, como nos quadros fóbi-co-ansiosos e obsessivo-compulsivos, dentre outros.

Através da psicoterapia, refl ete Baltazar (2002), será possível ao pa-ciente sair de sua condição de anomia, resgatar sua subjetividade e a pos-sibilitar a reconstrução dos seus laços sociais. Outros recursos terapêuticos para o tratamento do dependente químico também devem ser sempre ex-

miolo.indd Sec1:50miolo.indd Sec1:50 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Quando a realidade flutua e a verdade se dissolve

51

plorados – como é o caso da terapia ocupacional – no sentido de estimular o doente a desenvolver e orientar suas capacidades pragmáticas, que lhe permitirão desenvolver uma nova e diferente inserção social.

Os recursos psicofarmacológicos e a desintoxicação apresentam uma evidente importância para o restabelecimento físico e neurofi siológico no tratamento da dependência química. A discussão destes aspectos terapêuti-cos está além dos objetivos de discussão deste artigo. A partir do relato, foi possível constatar que enquanto a paciente permaneceu durante anos sendo tratada com base apenas em tais opções terapêuticas, seu prognóstico e sua evolução permaneceram desfavoráveis. Após ter sido iniciado tratamento psicoterápico e ocupacional, notável melhora e até mesmo perspectiva de cura se instalaram, revelando que este talvez seja o único instrumento tera-pêutico capaz de alterar os efeitos desta qualidade de vivência.

CONCLUSÃOO estudo psicopatológico do caso, ao valer-se do conceito de toxicoma-

nia de Carol Sonenreich, busca elucidar em que medida as alterações psíquicas dos toxicômanos não decorrem apenas dos efeitos neuroquímicos da droga sobre o organismo, mas, sobretudo, expressam as conseqüências de uma vivência de descontinuidade e inconsistência provocada pelo uso das drogas. Através de tais categorias fenomenológicas chega-se ao conceito da “mentira do alcoólico”, de valor heurístico, clínico e terapêutico. A principal implicação no tratamento do dependente químico a partir de tal abordagem reside no fato de que o conceito de cura deixa de estar situado apenas na especifi cidade reducionista dos efeitos neu-roquímicos e farmacológicos. Desse modo, os objetivos terapêuticos extrapolam os limites da desintoxicação e da manutenção da abstinência. A compreensão de uma psicopatogenia provocada pela vivência alterada da realidade, secundária ao uso das drogas, aponta para a psicoterapia como um instrumento privilegiado no tratamento destes pacientes, talvez o único capaz de transformar e produzir uma re-signifi cação da qualidade destas vivências. Esta abordagem permite um enten-dimento peculiar e integrador do toxicômano, e pode signifi car maiores chances de sucesso terapêutico destes pacientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Baltazar ML. Notas de Aula do Curso “Psicopatologia: Contribuições à No-sologia”. Aula: “A alteração da vivência da realidade no alcoolismo e demais dependências químicas e suas conseqüências clínicas e terapêu-ticas”. XX Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Florianópolis, 2002. Resumo publicado nos Anais do XX CBP, 16-18 out 2002, p.38.

miolo.indd Sec1:51miolo.indd Sec1:51 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Luciana Lorens BRAGA e Maria Lucia BALTAZAR

52

Baltazar ML. Por que a Psicopatologia? Caso exemplar: A evolução do conceito de alcoolismo, a “mentira do alcoólico” e suas incidências sobre o tratamento das toxicomanias. Texto Inédito.

Nogueira Filho, DM. Abuso de drogas: do ritual ao uso massifi cado. In: Ra-madam ZBA, Assumpção Jr. FB. Psiquiatria da magia à evidência? São Paulo: Manole; 2005.

Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho, LMA. Alcoolismo e Toxicomanias. In: Psiquiatria: Propostas, notas, comentários. São Paulo: Lemos; 1999.

Sonenreich C. Contribuição para o estudo do alcoolismo (Tese de doutora-do, Universidade de São Paulo). São Paulo; 1971.

Sonenreich C. Maconha na Clínica Psiquiátrica. São Paulo: Manole; 1982 (Cadernos de Psicopatologia – vol. 3).

SUMMARY

Based on a clinical report of a patient dependent of multiple substances, the phenomenological approach of drug dependence, presented by Carol Sonenreich, in 1971, will be discussed in this article. The emphasis will be done in the psychopathological study of the case, to elucidate in which way the psychic alterations of the drug dependents are secondary not only to the neu-rochemical effects of the substance, but, specially, to how they express the consequences of an experience of discontinuity and inconsistence provoked by the drugs. Therefore, the concept of cure in chemical dependence is not anymore situated in the organic or neurochemical processes; and the therapeutic objectives overstep the limits of desintoxication or maintenance of withdrawal. The comprehension of this psychopathogeny points to psychotherapy as a privileged instrument in the treatment of these patients, for being the unique resource able to produce a re-signifi cation of these experiences.

KEYWORDS: drug dependence, psychopathology

Serviço de PsiquiatriaHospital do Servidor Público Estadual ”FMO”

R. Pedro de Toledo, 1800São Paulo - SP

04039-901Tel. 50 88 81 21

Email: [email protected]

miolo.indd Sec1:52miolo.indd Sec1:52 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

53

O PSIQUIATRA DO TERCEIRO MILÊNIO*

Diva REALE**

RESUMO

A autora examina alguns aspectos da formação do psiquiatra na contemporaneidade, enfocando os primeiros passos da formação do psicoterapeuta. O texto se inicia com um breve apanhado do cenário das psicoterapias em geral, com ênfase na articulação entre o campo psiquiátrico e o campo psicanalítico. Em seguida, relata a experiência com os primeiros passos da formação psi-coterápica de residentes em Psiquiatra da Infância e Adolescência, através do curso Psicoterapia Dinâmica de Adolescentes. Destacam-se aspectos que interferem no aprendizado tais como: pre-sença ou não de experiência prévia na clínica psicoterápica e em psicoterapia pessoal, apetências e defi nições prévias de linhas de atuação dentre outros. Na parte fi nal, examina-se criticamente um conjunto de relatos e observações informais, que permitem confi gurar um (res)caldo cultural institucional batizado como psiquiatria neo-liberal, enfatizando-se as possíveis repercussões ne-gativas na formação das novas gerações de psiquiatras.

UNITERMOS: Educação médica, residência em psiquiatria, psicoterapia breve, psicanálise, ne-oliberalismo, análise crítica.

Neste terceiro milênio, a formação do psiquiatra enfrenta desafi os si-milares a outras especialidades médicas, tais como garantir que o residente receba em quantidade e qualidade satisfatórias um volume maciço de infor-mações, sobretudo geradas pelo desenvolvimento de novas tecnologias de saúde (desde aparelhos geradores de imagens na sua faceta “hard”, até uma avalanche de instrumentos “medidores de escores”, as “escalas” na sua face-ta “soft”). As repercussões conceituais desta “revolução da informação” no campo psiquiátrico ainda estão contraditoriamente formalizadas, como fi ca explicitado em artigo contundente escrito por um neurologista e um psica-nalista (Riva e Forbes, 2004), unidos na crítica a uma tentativa recente de formular uma síntese ou integração entre as neurociências e a psicanálise.

A questão da integração ou reconhecimento das fronteiras epistemoló-gicas intransponíveis entre conceitos e técnicas próprios ao campo da psiquia-tria e aqueles operadores utilizados no campo psicanalítico deixou de ser um problema que desperta discussões ou mesmo interesse por parte da maior parte

* Este artigo baseou-se no trabalho “A formação do Psiquiatra e do Psicoterapeuta”, apresentado no XXI Ciclo de Debates do Hospital do Servidor Público Estadual: “Psiquiatras da nova geração”, em 14 de agosto de 2004.** Psiquiatra, psicanalista, mestre em Medicina Preventiva - FMUSP. Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da USP SEPIA -IPHC / FMUSP - São Paulo – SP.

Temas, 2005, 68-69 : 53-66

miolo.indd Sec1:53miolo.indd Sec1:53 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Diva REALE

54

das novas gerações de psiquiatras. Destaco a psicanálise, dentre as chamadas abordagens psicodinâmicas, pois estas não confi guram conceitualmente um campo homogêneo, mas vale lembrar que em alguma medida, tal questão tam-bém envolve as referidas abordagens. Elejo falar do campo psicanalítico, pois nele se deu minha formação e desta forma é nele que encontro as raízes de onde crescem as refl exões acerca da formação do psicoterapeuta.

A fi gura do psicoterapeuta conviveu com fi guras mais defi nidas, quando se associam às linhas ou escolas de formação psicoterápica, apresentando-se os psicoterapeutas como psicanalistas, junguianos, psicodramatistas, guestaltistas, analistas existenciais etc. Mesmo tais apresentações, dentro de suas escolas es-pecífi cas, já não satisfazem o sufi ciente as diferenças que se quer evidenciar. Assim, dentro do campo psicanalítico há os freudianos, os freudianos-... (acres-cente-se aqui um ou dois nomes de autores preferidos), os pós-(freudianos, kleinianos etc), os lacanianos, os winnicotianos etc, além de inúmeras combi-nações de acordo com as preferências por autores que marcaram a formação.

Provavelmente tais considerações iniciais parecerão estranhas aos psiquia-tras das novas gerações. Afi nal de que tratam tais denominações? Para que elas servem, afi nal? Tais linhas, “sub-linhas”, são mesmo tão diferentes assim?

Um aspecto não-dito destas nomeações é que elas servem principal-mente para delimitar áreas de pertencimento e não pertencimento, infor-mando principalmente que o profi ssional deseja ser identifi cado com tal ou qual pensamento/autor e não com os outros não nomeados.

Na prática isto não serve para muita coisa, seja em termos de distin-guir como tais profi ssionais trabalham, seja para informar o que esperar de diferenças no que vai acontecer na relação terapêutica ou quanto vai durar aquela terapia; perguntas ou expectativas que os pacientes costumam ter, mesmo que nem sempre revelem.

Há também as questões geradas pela necessidade dos fi nanciadores do pagamento destas práticas; eles querem saber se e por que investir em tais práticas. São fi nanciadores, na saúde pública, o Estado e/ou seus “par-ceiros”, e no mercado de serviços de saúde, as empresas de seguro-saúde ou de “planos de saúde”. Tais questões são formuladas em termos de cus-to-benefício (“vale a pena gastar com isso?”), desdobrando-se em efi cácia (“quanto de garantia tal prática nos dá de que ela é capaz de produzir bons resultados?”), efi ciência/efetividade (“qual a extensão desses bons resul-tados, para quantos tipos de pacientes esta prática é efi caz?”, ou “qual a extensão da sua efi cácia?”) e numa última pergunta crucial: “em quanto tempo tal prática permite que se obtenham bons resultados?”.

A impossibilidade efetiva de responder a grande parte destas ques-tões com graus satisfatórios de certeza, contribuiu bastante para que parte

miolo.indd Sec1:54miolo.indd Sec1:54 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

O psiquiatra do terceiro milênio

55

destas práticas caíssem em descrédito, e nem chegassem a ser oferecidas pelas empresas de planos ou seguradoras de saúde.

Vivemos num tempo em que os discursos gerados a partir de um enfoque científi co-positivista (onde tem valor empírico aquilo que pode ser mensurável) lançam uma sombra sobre aquilo que está fundamentalmente comprometido com as qualidades (inefáveis?) do humano: o singular de cada um, sua subjetividade e aquilo que dela se desdobra, como as formas particulares de realização pessoal e profi ssional daquela pessoa, sua forma de ser e alcançar a felicidade e obter prazer.

Tais questões têm sido relegadas a segundo plano em amplos seg-mentos da população. Em muitas circunstâncias, atuam fortemente meca-nismos de alienação: as pessoas alienadas de si mesmas passam a perseguir os signos de felicidade conformados pelo mercado de consumo de produtos e imagens; nestes casos o sofrimento pode, por exemplo, se equacionar com variações na balança e fi ta métrica e, neste caso, a “cura” ou felicidade se obtém ao serem consumidos tratamentos de embelezamento ou de recons-trução do corpo (como promete a lipoescultura) malhações etc.

Em outras circunstâncias, é mais acessível um livro de auto-ajuda (ou mesmo um remédio “receitado” pelo balconista da farmácia) do que uma sessão de psicoterapia (ou consulta médica). Reproduzindo a necessi-dade de ocultar a falta de recursos materiais, assunto tabu para a ideologia neoliberal, a racionalização opera e um livro substitui o contato inter-huma-no, ou um balconista substitui o médico inacessível. O que talvez esteja ao nosso alcance, e seja mesmo nossa responsabilidade discutir aqui, é que não se trata exclusivamente da falta de acesso condicionada por uma dimensão econômica, por falta de investimento na saúde pública ou por uma distân-cia entre o poder aquisitivo dos clientes e dos preços praticados. A falta de acesso pode se dar na presença do profi ssional de saúde, quando este oferecer na consulta apenas uma reprodução de conhecimentos técnicos, privando o paciente do contato humano, sem o qual o contato com profi s-sional passa a ser facilmente substituível pela informação veiculada por um meio que oferece gratuitamente um sofi sticado e gigantesco catálogo virtual. Não se espera contato humano da e na consulta à internet para se obter uma informação técnica.

As contradições no campo das psicoterapias (principalmente as psi-codinâmicas) inexoravelmente se refl etem nas escolhas profi ssionais que as novas gerações de psiquiatras têm feito. Como e por que incluir na sua formação profi ssional, que já lhe cobrou pelo menos dezoito anos de estudo (para chegar sem interrupções ao fi nal do segundo ano de residência em psiquiatria geral), ainda outros vários anos (em média, pelo menos mais

miolo.indd Sec1:55miolo.indd Sec1:55 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Diva REALE

56

quatro anos, dentro de uma instituição formadora em psicanálise) com cus-tos que vão de “não desprezíveis” até “bastante consideráveis”?

Dentro deste contexto profi ssional contemporâneo, sumarizado rapida-mente, passamos a refl etir sobre a formação do psiquiatra e psicoterapeuta, a par-tir de uma experiência concreta com a formação de residentes em psiquiatria den-tro de um Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência de um dos maiores centros hospitalares universitários do país, o Hospital das Clínicas de São Paulo.

O texto se articula em duas partes distintas: a primeira relata a ex-periência como (in)(con)formadora de residentes de terceiro e quarto ano (enquanto existia), que participaram de dois cursos por mim coordenados: “Psicoterapia Dinâmica Breve de Adolescentes”* (PDBA) e “Aborda-gem Psicodinâmica da família na clinica da infância e do adolescente”**. A segunda parte fecha o artigo com algumas refl exões críticas acerca da (de)formação praticada informalmente sob o signo daquilo que chamei de psiquiatria neo-liberal.

Parte IA formação do psicoterapeuta: primeiros passosAbordarei aqui alguns aspectos mais específi cos da formação inicial

em psicoterapia de jovens médicos, dentro da Residência em Psiquiatria da Infância e Adolescência. Tomarei principalmente, como base para a re-fl exão, a experiência com seis anos do curso de PDBA, atentando para al-gumas características dos residentes, do formato do curso e da instituição, que precisam ser levadas em consideração para minimizar os desgastes e maximizar o aprendizado.

1. Da heterogeneidade da experiência clínica em psicoterapiaÉ comum o residente que egressa da Residência em Psiquiatria Geral

ter tido em sua formação algum tipo de experiência em atendimento em psi-coterapia: grupos terapêuticos, psicoterapia individual, ou, mais raramente, psicoterapia breve.

Às vezes isso não aconteceu, e neste caso, o curso de PDBA passa a ser sua primeira experiência no acompanhamento de um paciente, psicoterapica-mente. Para enfrentar esta situação é preciso bastante tato, pois faz grande di-ferença receber um aluno que tenha ou não tenha tido tal experiência prévia.

Duas questões pedagógicas foram levadas em conta:

* Neste curso conto com a colaboração, desde a implantação, da psicanalista Fernanda Freire.**Conto com a terapeuta de família Daniela Rothschild, com quem divido a coordenação pedagógica e supervisão de casos, e de Nídia A. Vaillati, que atende as famílias em PFB junto com os residentes, alunos do curso.

miolo.indd Sec1:56miolo.indd Sec1:56 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

O psiquiatra do terceiro milênio

57

- em primeiro lugar, a PDB é uma psicoterapia mais trabalhosa, por-que mais tensa, devido à premência da passagem do tempo. A comu-nicação ao paciente de que a terapia terá duração pré-defi nida, em nosso caso anunciando um número fechado de sessões, instaura um registro distinto daquele decorrente da vivência de ausência do tem-po, nas psicoterapias psicanalíticas comuns. A intrusão do princípio de realidade modifi ca inexoravelmente as vivências transferenciais e, por conseguinte, as vivências contra-transferenciais, conforme avalia Schoueri (1997). Tais alterações também são observadas em PDBs de adolescentes, ainda que com matizes peculiares à psicodinâmica do adolescente (Reale, 2002);- em segundo lugar, para a maioria dos autores que trabalham com psico-terapia do adolescente, esta modalidade psicoterápica é considerada mais complexa do que aquela feita com adultos, e mesmo com crianças. Assim sendo, este residente inexperiente acabará por seguir um per-

curso “anti-pedagógico”, pois partirá do mais complexo sem ter tido uma experiência com o mais simples. O reconhecimento deste fato permite que sejam feitos, individualmente, ajustes quanto à expectativa de desempenho, além de ser exigido um cuidado maior na supervisão.

2. O residente vocacionadoMenos freqüente é recebermos no curso um residente com uma li-

nha/escola de formação já defi nida. Esta defi nição era muito mais freqüente nas gerações passadas, por razões parcialmente esboçadas na introdução deste artigo.

Temos em mente o caso de um residente com grande interesse por psi-canálise, à qual já se submetia há alguns anos, freqüentando as sessões várias vezes por semana. Curiosamente, em nossa experiência, quando isto aconte-ceu, a receptividade deste residente para o aprendizado em PDB foi bastante reduzida. Digo curiosamente, pois em meu entendimento, há mais afi nidades do que incompatibilidades entre a psicoterapia psicanalítica e a psicoterapia dinâmica breve, tal como concebida e ensinada em nosso curso.

Mas as vicissitudes individuais contam muito nas escolhas por áreas de formação em psicoterapia. No caso mencionado, o residente mal conse-guia disfarçar sua grande reserva quanto à possibilidade e propriedade des-ta modalidade psicoterápica. Nossa hipótese para refl etir sobre esta reserva tão precocemente conformada é que tal residente reproduzia aspectos da cultura dominante da instituição psicanalítica mais tradicional, na qual as variações da técnica-padrão não são fácil nem regularmente aceitas. Nossas impressões sobre esta “cultura dominante” desta instituição passam, é claro,

miolo.indd Sec1:57miolo.indd Sec1:57 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

Diva REALE

58

por nossas preferências, por leituras críticas de vários autores pertencentes ou não a ela, e por nossas observações de eventos por ela organizados.

A questão acerca das fronteiras entre o que é psicanálise e o que é psi-coterapia psicanalítica suscita discussões complexas e acirradas, pois dis-tintos pontos de vista tornam esta questão nada consensual, mesmo quando estamos falando apenas de uma variação da técnica, que envolve número de sessões semanais e mudança de posição divã-poltrona para face-a-face. Ainda que consideremos que tais variações não sejam desprezíveis nos efei-tos produzidos na relação terapêutica, acreditamos, como alguns poucos (?) psicanalistas, que o impacto produzido pelas variações do enquadre possam ser objeto de refl exão e ajustes clínicos (Hegemberg, 1988).

Já o impacto produzido pela variação no tempo de duração da psicote-rapia parece enfrentar ainda muitas resistências. Gilliéron (1993) ressalta que tais resistências são bastante compreensíveis, pois, provavelmente, o primei-ro contato com esta modalidade de psicoterapia dar-se-á através de práticas institucionais que nem sempre respeitam os rigores técnicos que tal modalidade exige. Szambock (1997) sublinha que ainda predomina o desconhecimento da literatura específi ca de qualidade (ainda que relativamente restrita), que discute com propriedade, por exemplo, cuidados na indicação e contra-indicação para esta modalidade.

Temos a impressão de que nos “círculos fechados” de vários seg-mentos de psicanalistas “puristas” a PDB não é aceita.

3. Experiências prévias com psicoterapia pessoalTambém é heterogêneo, o grupo, no que diz respeito aos residentes terem

ou não passado pela condição de ser um paciente de psicoterapia. Uma boa parte deles já teve alguma experiência em psicoterapia pessoal. Acontece também de recebermos residentes que nunca se submeteram eles próprios à psicoterapia. As expectativas e ansiedades despertadas nestes casos variam de acordo com os re-cursos emocionais de que estas pessoas dispõem previamente.

O aprendizado, neste último caso, se dá com uma tensão maior, pois, sem contar com alguma experiência prévia, o residente pode absorver os conteúdos teóricos do curso como parâmetros de exigência a serem cumpri-das imediatamente, o que na prática psicoterápica é indesejável. Além disso, a exposição a conceitos psicanalíticos que fazem parte do conteúdo teórico do curso pode despertar, eventualmente, fantasias e angústias que não têm a possibilidade de serem processadas sem uma psicoterapia pessoal.

O desgaste do residente ao longo da residência é notório. Temos uma situação que me foi contada como tendo acontecido na Residência de Psi-quiatria Geral do IPq há alguns anos. Uma assistente bastante comprometi-

miolo.indd Sec1:58miolo.indd Sec1:58 07.03.2006 18:05:1407.03.2006 18:05:14

O psiquiatra do terceiro milênio

59

da com o ensino detectou em suas conversas informais com seus residentes, que na época todos estavam tomando algum medicamento antidepressivo. Intrigada com estes relatos, procurou averiguar com os demais residentes e descobriu que todos eles, naquele ano, estavam sendo medicados. Sua con-clusão, a meu ver acertada, foi a de que este fato deveria estar relacionado com a própria condição (altamente estressante) de ser residente. Certa mo-bilização de alguns assistentes sensíveis à questão redundou na estrutura-ção posterior de um programa de tutoria para residentes em psiquiatria, que permaneceu ativo por quatro ou cinco anos, cuja fi nalidade foi propiciar um “holding” institucional para questões despertadas na relação dos residentes com a instituição, protegidos por um contrato que lhes garantia sigilo.

Temos observado, em algumas ocasiões, jovens até então saudáveis adoecerem severamente, e nem sempre de doenças transmissíveis, cuja exposição é maior em ambiente hospitalar. O que chama atenção é que a exposição a situações de extremo sofrimento físico e psíquico parece não ser sufi cientemente contabilizada e enfrentada pelos responsáveis pela resi-dência médica. Também temos observado que a realização de psicoterapia individual, durante o período de residência, tem o potencial de reduzir parte do stress emocional que pode contribuir para estes adoecimentos.

4. Determinações institucionais

I. Supervisão clínicaOutro aspecto que representa um ônus inevitável dos cursos introdutó-

rios à psicoterapia nos moldes usados na residência médica é a imposição de um supervisor clínico para os casos a serem acompanhados durante o curso.

As afi nidades de estilo pessoal do residente e do terapeuta-supervi-sor fi cam relegadas ao acaso: quando houver tais afi nidades, o caminho do aprendizado se torna mais suave; quando não houver, dependerá da capaci-dade do residente de se adaptar/tolerar diferenças. Diferenças estas sobre as quais muitas vezes ele não tem clara consciência.

Esta sobrecarga aumenta ainda mais quando o supervisor do caso é o coordenador do curso, acumulando funções formativas propriamente ditas e, secundariamente, desempenhando atividades avaliativas – o que, inevitavel-mente, em algum grau é capaz de despertar sentimentos persecutórios.

Com o intuito de minimizar o desgaste emocional do residente (so-bretudo daquele que durante o curso não conta com o recurso de uma psi-coterapia individual) procuramos abordar estas ansiedades, explicitando os aspectos do curso com maior potencial persecutório, relembrando que a avaliação do curso se dá em dois níveis: teórico e prático.

miolo.indd Sec1:59miolo.indd Sec1:59 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Diva REALE

60

II. Avaliação No nível teórico avalia-se o empenho, a forma e qualidade da apre-

sentação do conteúdo dos textos previamente selecionados. Em alguns anos realizamos também um trabalho escrito. A nota fi nal deriva primordialmen-te da atividade teórica.

No nível prático, a avaliação se dá pela capacidade do residente em se empenhar para poder se aproximar daquilo que se pode esperar de um psicoterapeuta iniciante, como, por exemplo, que ele se adapte às necessi-dades psíquicas de seu paciente, na medida sufi ciente para que a relação que se estabeleça entre eles assemelhe-se mais a uma relação psicoterapêu-tica e menos a uma relação clínico-psiquiátrica.

A avaliação das atividades práticas tem, sobretudo, um caráter de feedba-ck, para que o residente leve consigo uma primeira opinião acerca de suas carac-terísticas estilísticas na clínica. Ela vai sendo realizada informalmente durante as supervisões, constituindo outro aspecto formativo de sua prática profi ssional.

Com a fi nalidade de tornar a exposição mais clara, apresentamos um quadro, que didaticamente nos aponta as diferenças que vêm sendo obser-vadas entre as duas relações terapêuticas:

Relações terapêuticas

Psicoterapia Consulta clínica

Condução da entrevista Modo semi-aberto Tende a ser mais fechada

Ritmos do diálogoColoquialidade ampla(abertura p/ associações do paciente)

Coloquialidade restrita(pergunta/resposta)

Liberdade/ uso de materialGráfi co/lúdico

Variando com o processo psicoterápico

Mais padronizadoFinalidade diagnóstica

Tolerância ao silêncio Varia de acordo c/ o parNão faz parte, necessariamente

Cuidados com o setting (moldura):

Tempo da sessão Padronizado Variável

Disposição espacial Estabilizar face-a-face Médico-mesa-paciente

Sala/horário Importante fi xar Nem sempre

Atenção Bi-focal (paciente/terapeuta) Focada paciente

Atividade Variável (expectante) Iniciativa do médico

miolo.indd Sec1:60miolo.indd Sec1:60 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

O psiquiatra do terceiro milênio

61

Parte IIPsiquiatria para que e para quem? Ou as Cruzadas nunca terminamAs formas de apresentação do campo psiquiátrico para os residentes

variam. Não abordarei aqui aquilo que constitui o esperado a ser encontrado numa Residência em Psiquiatria. Examinarei certas características da prá-tica do ensino em psiquiatria que ocorrem no cotidiano e na informalidade da supervisão/discussão clínica. Nestes momentos, que não são os momen-tos solenes de ensino, como aulas expositivas, reuniões de serviços, cursos estruturados etc, surgem opiniões e posições que têm mais ligação com o caldo cultural institucional, ou mesmo com o resíduo deste caldo, além de reproduzir a síntese pessoal que cada profi ssional faz da clínica. Reunirei aqui algumas refl exões a partir de observações e relatos informais sobre este rescaldo institucional, que chamarei de psiquiatria neo-liberal. Este termo designa neste texto um conjunto de deslizes (re)produzidos pela invasão da prática médica por aspectos ideológicos inerentes à lógica capitalista de mercado. Em poucas palavras, refi ro-me a práticas onde a desumanização – desvalorização do humano – evidente tanto no contato médico–paciente, quanto na adoção de determinadas concepções e técnicas é ocultada (ou justifi cada) por racionalizações pseudo-científi cas. Em outras ocasiões, tal desvalorização do humano é tratada como normal e como um efeito inevi-tável das condições (lastimáveis) do serviço público em geral.

No âmbito da prática profi ssional, o jovem residente pode sofrer uma an-siedade antecipatória por seu futuro profi ssional, delineado pelos efeitos que as pressões (inevitáveis) exercidas pelo mercado de trabalho impõem aos iniciantes.

O cenário apresenta contrastes marcados: para uma minoria, uma clínica praticada com preços incomuns, inacessível à maioria dos profi s-sionais e pacientes de classe média, e representa o shangrilá atingido pelos eleitos. Por outro lado, sabe-se que as opções de empregos públicos ou pri-vados (principalmente plantões) pressupõem jornadas de trabalho extensas e extenuantes (incluindo deslocamentos por longas distâncias cruzando a cidade de ponta a ponta). Temos a impressão de que o atendimento de pa-cientes conveniados em consultório não se tornou ainda prática habitual entre psiquiatras. No entanto, na rapidez com que as conclusões são tiradas no afã diário (portanto reproduzindo ideologias comuns na nossa sociedade atual), uma análise simplista (dentro da ideologia neo-liberal) dita que tais contrastes são retrato de mérito pessoal e competência técnica, numa duali-dade simplifi cadora: winners de um lado e loosers do outro.

O IPQ-FMUSP é um bom lugar para examinar este rescaldo ideo-lógico, por inúmeras razões, dentre as quais citarei apenas uma: a USP é considerada, ainda hoje, na área médica, como a instituição que oferece um

miolo.indd Sec1:61miolo.indd Sec1:61 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Diva REALE

62

dos melhores cursos de formação universitária. Sendo a psiquiatria uma especialidade médica, não há porque acreditar que a fama do HC não se estenda à psiquiatria, conferindo-lhe alta cotação no mercado da residência médica.

Ser formado numa escola de excelência será o bastante? Acho que os jovens sabem que deverão imprimir esforços consideráveis para ampliar oportunidades profi ssionais.

Já no âmbito das instituições universitárias, a corrida pelas notas atri-buídas por instituições fi nanciadoras de pesquisa, acaba por reproduzir a mesma pressão de mercado exercida sobre a prática do consultório particu-lar, agora acenando com a competição pelo acesso a um maior número de bolsas e subsídios. Esta competição feroz leva a uma não disfarçada valo-rização da clínica que se presta à produção de pesquisa, em detrimento de uma clínica voltada para o aprendizado do atendimento de excelência.

Ao sofrer tais pressões e não reconhecer criticamente seus efeitos, alguns deslizamentos ocorrem. Publicações ou mesmo títulos, ao promete-rem maior visibilidade, são tomados como sinônimos de excelência do pro-fi ssional. Em geral, os títulos obtidos indubitavelmente signifi cam que os profi ssionais dedicaram tempo e esforço consideráveis para produzir seus trabalhos, o que representa aprendizado e avanço acadêmico inestimável para o ensino e pesquisa brasileiro. Não nos cabe, no âmbito deste artigo, entrar em considerações acerca da qualidade da produção científi ca nacio-nal na área de psiquiatria. Apenas gostaria de lembrar que excelência clíni-ca não é sinônimo de excelência acadêmica. É só pensar nos cuidados que normalmente tomamos ao escolher para qual colega iremos encaminhar um parente querido e próximo. A titulação não é o único critério (e às vezes nem é cogitado) na hora de decidirmos.

Nas instituições são muito cotados “os campeões de número de pa-cientes atendidos/mês”. Estes obedecem a critérios de produtividade, ado-tados há alguns anos pelo SUS/secretarias de estado e municipais, e são encorajados a superarem seus escores, indicando um deslizamento, no qual o número de atendimentos realizados passa a ser tomado como índice a que se dá visibilidade e valorização, e que é objeto de preocupação ou satisfa-ção das chefi as, que devem responder pelos serviços prestados.

Muitas vezes, críticas esboçadas a determinados modelos de atendi-mento praticados são caladas diante da valorização dos números exibidos por estes mesmos grupos e modelos.

Na intimidade da prática clínica, observamos o incentivo à utilização de escalas como maneira de dar uma maior formalização ao atendimento clínico; a orientação dada aos residentes para manterem a máxima objetivi-

miolo.indd Sec1:62miolo.indd Sec1:62 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

O psiquiatra do terceiro milênio

63

dade na consulta (o que signifi ca evitar coloquialidade, buscando priorizar a obtenção de “informações objetivas e úteis”) e um enfoque fundamental-mente psicofarmacoterápico na terapêutica.

Os dois primeiros aspectos representam uma busca legítima de ob-jetivação e padronização mínima aceitáveis em determinados desenhos de pesquisa científi ca (para objetos de investigação que pedem métodos quantitativos), mas quando aplicadas indiscriminadamente à prática clínica, representam um deslize que compromete imperdoavelmente a qualidade mínima desejável pela ética para a relação médico-paciente.

A utilização das referidas escalas exige, como rezam os pressupostos metodológicos científi cos, que inúmeros cuidados sejam tomados, desde a sua validação até um treinamento rigoroso para sua utilização e entendi-mento do seu signifi cado específi co no campo científi co. Nem sempre estes cuidados são respeitados, sobretudo quando a aceleração impressa pelo alto teor de competitividade, que invadiu também os espaços universitários, faz com que as pesquisas passem a ser produzidas como numa “escala indus-trial”, numa “linha de montagem”, atropelando o tempo da refl exão, elabo-ração e realização, minimamente necessário para preservar sua qualidade.

Quanto a fundamentar a clínica na psicofarmacoterapia... Não estamos menosprezando o desenvolvimento que trouxe benefícios ines-timáveis a largas parcelas de pacientes, o problema é que para tantos outros pacientes, este enfoque terapêutico único torna o tratamento pra-ticamente inefi caz.

Alguns aspectos contribuem para esta situação. Pensemos no grande aumento dos custos das novas tecnologias de saúde, geradoras de lucros para os donos de suas patentes (na maioria dos casos, compradas dos países de pri-meiro mundo). Em paralelo a este aumento dos custos com as novas tecnolo-gias de saúde, há uma política econômica que tem levado o Estado à redução da proporção do orçamento com gastos com a Saúde ou a uma destinação que reduz efetivamente o número de vagas disponíveis para atendimento da população mais carente. Esta retração da participação da esfera pública na saúde dentro do HC repercute com uma progressiva participação do capital privado (representado pela megaindústria farmacêutica), que obviamente de maneira nada desinteressada tornou-se um dos principais fi nanciadores explí-citos de inúmeros eventos, como simpósios e jornadas, para os quais a pro-paganda direta parece ser seu pagamento justo, mas que também atua como fi nanciador discreto de tantos outros eventos, para os quais o interesse é poder infl uenciar na escolha das medicações a serem preferencialmente prescritas. Para aqueles profi ssionais que ainda se mantêm vigilantes a esta infl uência, uma certa neutralização da mercantilização das prescrições é conseguida.

miolo.indd Sec1:63miolo.indd Sec1:63 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Diva REALE

64

Sua infi ltração nos serviços é visível pela presença de um merchan-dising mudo, mas gritantemente visível: enfeites, canetas, bloquinhos, apa-radores (com nome inscrito), o fi nanciamento dos breakfasts...

Em suma, identifi camos um borramento das fronteiras entre público e privado, o que perpassa e conforma esta psiquiatria neo-liberal, bem como um borramento das fronteiras entre atendimento clínico e pesquisa, o que indiretamente também é ressonância desta mesma cultura desumanizada.

A esse respeito, lembramos que, com o advento há mais de duas dé-cadas, da epidemiologia clínica, inúmeros avanços na pesquisa quantitativa foram embasados nesta disciplina. No entanto, os bons pesquisadores e os bons clínicos sabem que os procedimentos necessários a uma e a outra con-tinuam distintos e, em algumas ocasiões, mutuamente irredutíveis. Quem afi rma o contrário pratica a redução indevida de uma área à outra, ou o borramento entre a necessária fronteira entre as duas áreas.

A estes aspectos já mencionados, acrescento um último para não nos estendermos em demasia. Trata-se do uso que se faz das novas tecnologias de imagem (PET scan, tomografi a computadorizada etc) como se fossem armas de uma Guerra Santa travada pelos adeptos da posição dominante contra aqueles considerados pagãos.

Dentre aquelas práticas que são tratadas como seitas pagãs por estes fundamentalistas da organicidade, continua a se destacar como inimiga po-derosa a psicanálise, mãe-terra primordial do campo das práticas psicoterá-picas psicodinâmicas.

É compreensível que este desenvolvimento abra perspectivas empol-gantes de investigação e ímpetos para que sejam reformuladas teorias cien-tífi cas sobre o funcionamento e relacionamento mente-cérebro. Não temos dúvida quanto à importância destes avanços e comemoramos seu advento como psiquiatras e psicanalistas, mas lastimamos profundamente quando tais avanços são ideologicamente veiculados e se alastram em proposições nas quais o campo da psiquiatria deveria se reduzir ao estudo da circuitaria cere-bral. O acesso ao estudo de determinadas funções/áreas cerebrais ampliou-se, e quanto a isso não há dúvida. Entretanto, isso não signifi ca que, com o de-senvolvimento destas tecnologias, a escolha de como, para que e para quem usá-las não continue sendo uma decisão de cunho ético-político.

Entendo a psiquiatria como uma área de atuação que inclui a aplica-ção de conhecimentos gerados cientifi camente, não apenas pelas chamadas neurociências, mas também por estudos epidemiológicos populacionais que permitam identifi car intersecções de múltiplos fatores intervenientes no adoecer psíquico, que não se restringem apenas aos biológicos.

miolo.indd Sec1:64miolo.indd Sec1:64 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

O psiquiatra do terceiro milênio

65

Que os novos conhecimentos interfi ram nas fronteiras daquilo que tradicionalmente é conhecido como psiquiatria é aceitável. Mas é inaceitá-vel que essa movimentação implique na expulsão, do campo da psiquiatria, do estudo e reconhecimento da subjetividade como uma parte igualmente essencial. Nenhuma máquina ou tecnologia é suposta de defi nir o signifi -cado e sentido a serem dados à produção de conhecimento (científi co ou não). Esta é uma defi nição de caráter ético e político, e responde a questões de interesses que afetam a humanidade no presente e no futuro. Quando a doença mental passa a ser considerada doença do cérebro, o que está sendo revelado é uma concepção empobrecida e empobrecedora, simultaneamen-te, do homem e derivadamente das formas que seu adoecimento toma.

Com os recursos de poder “olhar por dentro” da caixa preta, o so-nho de localizar no cérebro aquilo que acontece na doença mental parece ingenuamente estar próximo de acontecer. Não nego que “esta espiadela” possa mesmo provocar certo fascínio. Porém, cabe, sobretudo ao cientista, afastar-se do encantamento inicial e recuperar a sua razão e crítica. Porque ciência sem senso crítico é “neura”ciência, e não neurociência.

Se a psiquiatria desistir da subjetividade humana, como poderá fazer frente ao sofrimento humano? Com esta biologização metastática da psiquiatria, como as novas gerações de psiquiatras poderão fazer face aos desafi os da clínica?

De que humano falamos, ao excluir do universo de investigação do processo saúde/doença, os condicionantes históricos, econômicos e sociais que afetam indissoluvelmente as condições de vida humana? A quem ca-berá construir os modelos de saúde e doença mental que respeitem a com-plexidade do acontecer humano? Não deveria ser um trabalho conjunto de cientistas, que incluiria necessariamente os psiquiatras?

Quem continuará a examinar, reconhecer e estudar os mediadores físi-cos, psicológicos e sociais, que participam do processo saúde-doença? As for-mas de organização do trabalho, a inserção (parcial e precária) do profi ssional no mercado de trabalho não interfere com o processo saúde-doença mental?

Que psiquiatras serão estes que alienaram de seu campo de inves-tigação tais questões? Quem poderá interrogar: a serviço do que está esta fragmentação do humano, refl etida e aprisionada, mercadologicamente, em áreas de saber estanques?

Talvez a pletora de questões colocadas nestas linhas fi nais refl ita a intensidade da preocupação gerada por essas posições deslizantes em dire-ção a uma franca desumanização da psiquiatria. Nos tempos da chamada era pós-moderna, constitui um sintoma da barbárie o risco de o homem ser reduzido à sua imagem.

miolo.indd Sec1:65miolo.indd Sec1:65 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Diva REALE

66

A psiquiatria parece revelar que também sofreu sua invasão bárbara na apresentação da faceta disto que chamei aqui de psiquiatria neoliberal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Gilliéron E. Introdução às Psicoterapias Breves. São Paulo: Martins Fontes; 1993.

Hegemberg M. Indicação de Psicoterapia de acordo com diferentes enqua-dres. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 1988. 170p.

Reale D. Psicoterapia Dinâmica Breve de Adolescentes. In: Assumpção Jr F, Reale D. (eds.). Práticas Psicoterápicas da Infância e Adolescência. São Paulo: Manole; 2002.

Riva D, Forbes J. Complexo de cientista. Folha de São Paulo. Caderno Mais, 11/07/2004, p.17.

Schoueri PL. Transferência em PDB. In: Segre D. Psicoterapia Breve. São Paulo: Lemos Editorial; 1997.

Szambock M. Indicações e contra-indicações da PDB. In: Segre CD. Psico-terapia Breve. São Paulo: Lemos Editorial; 1997.

SUMMARY

In this article, the author analyses some aspects of the psychiatric education process, including a re-fl ection about the fi rst steps of the psychotherapeutic training. The fi st part of the article focuses on a brief evaluation of the actual scene of the psychodynamic psychotherapy, particularly the articulation between the psychiatric and psychoanalytic fi elds. Then, the experience of an initial training of Child and Adolescent Psychiatry residents in the Adolescent Brief Psychotherapy is reported. The major aspects that interfere with the learning process are: previous experience as a psychotherapy patient or with psychotherapeutic practice; previous options for some psychotherapeutic line. In the last part of the article, the author exposes a critical examination of diverse informal observations, which permit to confi gure an institutional cultural broth called neoliberal psychiatry, and discusses if this local culture can lead to a negative infl uence in the learning process of the new generations of psychiatrists.

KEYWORDS: Medical education, psychiatry residence, brief psychotherapy, psychoanalysis, ideology, neoliberalism.

Diva RealeR. Itacolomi, 333 cj 35.

Higienópolis, 01239-020

tel: [email protected]

miolo.indd Sec1:66miolo.indd Sec1:66 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

67

PHILIPPE PINEL, VIDA E OBRA

Guido Arturo PALOMBA*

RESUMO

PHILIPPE PINEL (1745-1826), médico francês, foi introdutor da função médica no hospício, ao liber-tar das correntes os loucos de Bicêtre. O autor mostra um pouco de sua vida e de sua obra, os prêmios que concorrera, a freqüência aos salões de Madame Helvetius, os Ideólogos, dos quais era um dos membros, seus discípulos, seus métodos de tratamento, o amigo JEAN BAPTISTE PUSSIN (1746-1811), o precursor da reforma. Mostra, também, que PINEL foi o criador da Residência Médica.

UNITERMOS: Philippe Pinel, Ideólogos, Residência Médica, Jean Baptiste Pussin.

Dentro da Psiquiatria, PHILIPPE PINEL, que curiosamente foi mé-dico de Napoleão Bonaparte (Szekely, 1958, p. 449), tem lugar de destaque na galeria dos grandes de todos os tempos. Uns aí entraram pelo brilhantis-mo teórico; outros, pelas idéias luminosas; outros ainda, pela descoberta de uma síndrome, mas foi Pinel que fi cou para a história como o introdutor da função médica, esculapiana, nas alienações mentais, ao libertar os loucos de suas correntes, às quais viviam aprisionados.

Tudo começou em Bicêtre (que passou a fazer parte do Hospital Ge-ral de Paris em 1660), quando PINEL (1745-1826), em 25 de agosto de 1793, assume as suas funções no hospício, tornando o local uma casa de tratamento, não mais um depósito pétreo de horror e de temor.

O primeiro doente mental a ser desacorrentado foi um capitão inglês, tido como louco furioso, que estava acorrentado em Bicêtre havia quarenta anos. O segundo, Chavingé, o bêbado com delírio de grandeza; o quinto, um eclesiástico, delirante agudo, místico, que tinha sido expulso da Igreja por se julgar o próprio Cristo, e estava acorrentado desde a sua entrada, em 1782. Foram liberta dos doze alienados, no primeiro lote. Depois, ao todo, oitenta. (Esquirol, 1838, p. 535).

Esse mesmo tipo de compreensão dos loucos, na mesma época, tam-bém existia na Inglaterra, no Retiro de York, um hospício (novo) dirigido pelo quacre SAMUEL TUKE (1732-1822), que não era médico (comer-ciante de chá), e imprimiu uma visão de liberdade na maneira de ver o alie-nado. As estruturas físicas do novel asilo não obedeciam, pela primeira vez na história, aos padrões das velhas instituições, pois parecia ser uma grande fazenda rústica, “sem barras de ferro ou grade nas janelas” (Foucault, 1978,

* Psiquiatra forense da Academia de Medicina de São Paulo e da Academia Paulista de História

Temas, 2005, 68-69 : 67-72

miolo.indd Sec1:67miolo.indd Sec1:67 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Guido Arturo PALOMBA

68

p. 459). Quanto ao Velho Betlehem (antigo mosteiro de Santa Maria de Be-lém, que virou asilo em 1547), coloquialmente chamado de Bedlan, levou um tempo para assimilar as mudanças.

Na Itália, ao mesmo tempo em que PINEL fazia a reforma, VICEN-ZO CHIARUGI (1759-1820), diretor do hospital Boni fácio, na Toscana, libertava os loucos. Alguns anos depois, em 1813, quando as idéias de PI-NEL e a fama de Bicêtre corriam o mundo, o rei de Nápoles (JOAQUIM) promulgou uma lei que mandava reformar o asilo de Aversa, em cujo local havia um sino que marcava, com diferentes toques, desde a madrugada até a hora de dormir, as atividades diárias do manicômio (“sino de Aversa”).

PHILIPPE PINEL nasceu no seio de uma família modesta de cirurgi-ões no sudoeste da França, foi educado para ser padre. Saiu de casa e foi para Toulouse estudar ciência, onde conseguiu obter o doutoramento, em 1773. Completou os seus estudos com leituras clássicas, por meio de textos médicos científi cos em Montpellier, dedicando-se, aí, aos assuntos inerentes à natureza humana, embora mantivesse grande interesse pelas mate máticas (Weiner, 1980, p. 6). Apresentou vários trabalhos na Academia de Ciências de Montpellier. Nessa cidade, durante quatro anos, freqüentou regularmente as aulas públicas da Faculdade, a biblioteca, fez visitas diárias ao hospital, onde deixou anota-ções sobre a história de pacientes internados. À época dedicava-se ao estudo dos clássicos, modernos e antigos. Continuou o mesmo tipo de atividade em Paris e pode-se dizer que, em 1793, PINEL era uma das mentes mais ilustres daquela época de grandes produções intelectuais. (Weiner, 1980, p. 7).

PINEL concorreu várias vezes aos prêmios oferecidos pela Real Socie-dade de Medicina da França (que na época já não era mais socie dade real) e ao Prêmio Diert. Nunca ganhou. Em 1784 o júri deste Prêmio concluiu assim: “O sr. Pinel tem poucos conhecimentos. É fraco em anatomia. Em fi siologia, em-bora melhor, seu trabalho não é notável assim como em cirurgia, tanto na parte teórica quanto prática. Conhece pouca química e um pouco mais de medicina e farmácia. Tem noções adequadas sobre patologia geral mas não sabe lidar obje-tivamente com assuntos relacionados”. (Paris, Faculté de médicine. Commen-taires de 1777 à 1786. p. 1136-1137). Mais de duzentos anos depois é difícil julgar a opinião do júri, pois é preciso considerar que PINEL era extremamente tímido, não era bom orador, certamente não se saíra bem nas provas orais, e é difícil imaginar que tinha poucos conhecimentos básicos de medicina.

Interessante notar que em 1793, quando já gozava de fama entre os seus pares, época em que iniciava a revolução na maneira de encarar o do-ente mental, PINEL concorrera ao Prêmio da Sociedade de Medicina, que, neste ano, não premiou as obras concorrentes, pois, para a Sociedade, os competidores não apresentaram nada de novo. O trabalho de PINEL foi

miolo.indd Sec1:68miolo.indd Sec1:68 07.03.2006 18:05:1507.03.2006 18:05:15

Philippe Pinel, vida e obra

69

apreciado por três juízes do concurso: doutores CAILLE, COQUÉREAU e THOURET. Por outro lado, registra-se que PINEL, um ano antes, recebera a prix d’encouragement, honorable mention (menção honrosa), pelo ma-nuscrito sob o seguinte título: Indique a melhor maneira de tratar pacientes cujas mentes se desequilibram antes da senilidade. Esse trabalho foi lido na Sociedade, em 28 de setembro de 1792 (segundo o livro de minutas).

Em 1784 PINEL freqüentava os salões de Madame Helvetius, em Autiuil, no qual médicos e outros discípulos do abade CONDILLAC (1715-1780) reuniam-se desde 1780 até o fi nal de 1790. PINEL foi introduzido neste grupo por GEORGES CABANIS (1757-1808). É de notar que CA-BANIS enfatizava a relação do corpo com a alma, publicando, em 1802, o livro Relação entre a natureza física e moral do homem. É possível que o marquês de CONDORCET (1743-1794), cunhado de CABANIS, partilhas-se essas idéias. Outro visitante do salão era BENJAMIN FRANKLIN, que tentou levar PINEL para a Améri ca, não logrando êxito pelo alto senso de responsabilidade patriótica de que PINEL era dotado.

Suas convicções científi cas, fi losófi cas e políticas o levaram a unir-se ao destacado grupo de intelectuais franceses conhecidos como Ideologes (Ideólogos).

Especifi camente na área da medicina, esse grupo sentia-se atraído por uma maneira pluridimensional e revolucionária, à época, de ver o pa-ciente, considerando os aspectos físicos, mentais e sociais como um todo. Essa concepção acabou gerando, na década de 1790, a grande reforma psi-quiátrica, e pode-se dizer que ela é totalmente fruto da expressão mais alta das concepções dos Ideólogos.

O grupo entendia, entre outras, que não deveria haver distinção en-tre médicos clínicos e cirurgiões, preconizava uma mesma educação para ambos, e igual currículo para todas as escolas de medicina de França. Pre-conizava ainda o exercício da prática médica como ponto importantíssimo no aprendizado; que o médico, obrigatoriamente, deveria ter conhecimento completo das drogas, alimentação; que era preciso ter com os pacientes cuidados sanitários, higiênicos e suporte moral.

PINEL também pode ser tido como um dos precursores da Residên-cia Médica, uma vez que propunha a divisão dos grandes hospitais em en-fermarias, nas quais os médicos seriam treinados, antevendo a formação de especialista, “que trabalharia em tempo integral como chefe de residência do hospital e devotaria os seus esforços para treinar grupo especial de alu-nos (...) o chefe de clínica presidiria uma socie da de de pesquisa e publicaria um jornal”. (Pinel, 1980). Aos professores desses médi cos em formação, para PINEL, o ideal é que abrissem mão do lucro da prática da medicina: a

miolo.indd Sec1:69miolo.indd Sec1:69 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Guido Arturo PALOMBA

70

recompensa seria a satisfação de treinar a geração jovem e promissora e a possibilidade de ter novos conhecimentos.

A integração do ensino da clínica prática no currículo das escolas de medicina que PINEL e seus aliados advogavam tornou-se realidade legal, na França, com o Decreto de 4 de dezembro de 1794.

Entre os alunos que PINEL treinou, merecem menção CHARLES SCHWILGUÉ (1774-1808), AUGUSTIN LANDRÉ-BEAUVAIS (1772-1840), JEAN ETIENNE ESQUIROL (1772-1840), FRANÇOIS LEURET (1797-1851). Esse último, mais tarde, escreveu: “Os estudantes procuravam Pinel por duas qualidades especiais: sua percepção clínica precisa e sua grande clareza como professor. Quando discutia uma doença parecia ler no livro da natureza”. (Busquet, 1928, p. 184).

PIERRE BAILLY, também aluno de PINEL, disse informalmente em 1802: “M. Pinel é único, ele não consegue dizer duas palavras sem um so-luço e cura os seus pacientes como qualquer outro o faria, só que prestou um excelente serviço à medicina, treinando tantos médicos, tão bons (...) as expressões em sua face encolhida ensinaram-me mais do que suas palavras. Reconheço que ele fez de mim um médico, entretanto não sei dizer ao certo como foi: mas na cabeceira dos doentes me ensinou a reconhecer os prin-cipais sintomas de cada doença e relacioná-los ao gênero e espécie em seu quadro nosográfi co”. (Bailly, 1924, p. 52).

O ensino para PINEL, ao lado de sua aguçada visão clínica, sempre foi marcante em sua vida. Chegou a chefi ar a cadeira de Higiene e Física Médica em 1794, na recém-criada Escola de Saúde de Paris.

Embora PINEL e os seus confrades Ideólogos procurassem mudar o que estava estabelecido e serem ávidos por inovações, freqüen temente voltavam a HI-POCRATES, que entendia a doen ça como um fenômeno natural no contexto de outras forças naturais, considerando o meio ambiente do paciente, a sua ocupação, seu histórico, incluindo, em suma, não apenas a saúde, mas também a natureza. Seria infl uência das vivências infantis, quando costumava caminhar dez milhas, de sua casa até a escola, pelas montanhas e campos da cidade onde nascera?

PINEL dizia-se infl uenciado por SIR FRANCIS BACON, por D’ALEMBERT e por WILLIAM CULLEN, cuja obra traduziu.

Sua formação humanística, voltada para a adequação do homem ao seu meio ambiente, levou-o à concepção de que para ser um bom médico era pre-ciso muito mais auxiliar o doente a adequar-se à natureza e ao meio social do que intervir com drogas pesadas. (É preciso lembrar que o arsenal farmacêutico à época era pequeno). PINEL também condenava as sangrias e a miscelânea de remédios. Para ele o paciente hospitalizado era uma pessoa que tinha sido arrancada de seu ambiente natural e, portanto, por melhor que fosse tratado,

miolo.indd Sec1:70miolo.indd Sec1:70 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Philippe Pinel, vida e obra

71

sempre havia o desconfortável. A limpeza, a higiene pessoal, quartos particu-lares, cadeiras cômodas, horas livres para visitas, passeios e exercícios eram indispensáveis para o restabelecimento do equilíbrio físico-mental. De 1784 a 1790 PINEL publicou, na Gazette de la Santé, uma série de artigos intitulados Hygiene, que pretendia compilar em forma de tratado. Nesses escritos, conside-rava a tradição galênica e seus seis tópicos importantes para o equilíbrio da saú-de: ar, alimentação, funções corporais, exercícios, sono, controle das paixões.

Admite-se que PINEL tenha se inclinado para a psiquiatria após 1784, quando um seu amigo íntimo de quem cuidava, após uma severa depressão, suicidou-se, o que teria levado PINEL a inclinar-se para a medicina mental. Quando nomeado para Bicêtre, no outono de 1793, PINEL já era grande conhecedor dessa arte, talvez uma das maiores autoridades de seu tempo.

Interessante notar que a revolução que causara em Bicêtre, desacor-rentando os loucos que lá se encontravam, foi por infl uência direta de JEAN BAPTISTE PUSSIN (1746-1811), que, apesar de não ser médico, lá estava a cuidar dos loucos. PINEL, várias vezes, expressou o seu agradecimento a PUSSIN, reverenciando-o pelo talento e como pessoa que lhe ensinara a cuidar dos doentes mentais.

Em verdade, quem de fato tirou as correntes dos alienados mentais foi PUSSIN (PINEL era o diretor do hospício), consoan te recente desco-berta do Observation of M. Pussin on the insane. Trazido à luz por DORA WEINER, explica o método de PUSSIN em detalhes: “Pussin tratava os doentes mentais com carinho, insistia que seus assistentes não os maltra-tassem nem batessem e sistematicamente despedia as enfermeiras que o desobedeciam. Foi ele que libertou os loucos das correntes de Bicêtre, em junho de 1797 e passou a usar camisas de força para pacientes violentos e não controláveis”. (Weiner, 1980, p. 12).

PHILIPPE PINEL escreveu uma obra clássica da psiquiatria: Traité médico-philosophique sur l’aliénation mental, em 1801, reeditado em 1809 (“entierement refondue et très-augmen tée”). (Pinel, 1809).

A fama de PINEL corria o mundo, e por onde passava, deixava a sua mar-ca irreversível: os loucos já não eram mais aquelas fi guras abomináveis e temidas dantanho, mas sim doentes mentais a necessitar de tratamento médico. (Palomba, 2003, p.16). PINEL é reconhecido como o primeiro a escrever histórias de casos “simpáticos e eloqüentes, retratando o doente mental como homens e mulheres desafortunados, merecendo respeito e compaixão”. (Stone, 1999, p.69).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bailly PB. Souvenir d’ une élève des Ecoles de Santé de Strasbourg et de Paris, pendant la révolution. Strasbourg: Strasbourg Medical, 1924, p. 52.

miolo.indd Sec1:71miolo.indd Sec1:71 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Guido Arturo PALOMBA

72

Busquet P. Les biografi es medicales. Paris: Bailliere, 1928, p. 184.

Esquirol JE. Des maladies mentales. Bruxelas: Tircher, 1838, p. 535.

Foucault M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 459.

Palomba GA. Tratado de psiquiatria forense civil e penal. São Paulo: Athe-neu Editora São Paulo, 2003, p.16.

Paris, Faculté de médicine. Commentaires de 1777 à 1786. Paris: Steinheil, 1906, v. 2, p. 1136-1137.

Pinel Ph. Memoire sur cette question proposée pour sujet d’ un prix par la Société de Médicine: determine quelle est la meilleure manière d’enseigner la médicine pratique dans un hôpital. Baltimore: Johns Hopkins University Press (The clinical training of doctors), 1980.

Pinel Ph. Traité médico-philosophique sur l’alienation mentale. Paris: Bros-son, 2ª edição, 1809.

Stone MH. A cura da mente. Porto Alegre: ARTMED, 1999, p. 69.

Szekely L. Dicionário enciclopédico de la psique. Buenos Aires: Claridad, 1958, p. 449.

Weiner DB. Introdutory essay of Philippe Pinel: the clinical training of doc-tors. Baltimore: Johns Hopkins

University Press, 1980, p. 6.

Weiner DB. Ibidem, p. 7.

Weiner DB. Ibidem, p. 12.

SUMMARY

It was the French doctor PHILIPPE PINEL (1745-1826) who introduced medical practice into hospices, when he released the insane in the Bicêtre asylum from their chains. The author shows a little of his life and works, the prizes that he competed for, his frequenting of the salons of Madame Helvetius and the Ideologues (which he was a member of), his disciples, his treatment methods and his friend JEAN BAPTISTE PUSSIN (1746-1811), the implementer of his reforms. It also shows that PINEL was the creator of Medical Residence.

KEYWORDS: Philippe Pinel, Ideologues, Medical Residence, Jean Baptiste Pussin

Guido Palomba

Rua Manoel da Nóbrega, 2064

São Paulo – SP

04001-006

Tel. 38 84 12 31 / 38 87 88 45

miolo.indd Sec1:72miolo.indd Sec1:72 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

73

MORTALIDADE EM PACIENTES ESQUIZOFRÊNICOS E DELIRANTES PERSISTENTES

Um estudo de dez anos de seguimento

Antonia Elvira TONUS* Marcelo Feijó de MELLO**

RESUMO

Objetivos: Avaliar a mortalidade e morbidade somática dos pacientes com diagnóstico de transtorno esquizofrênico e delirante persistente após dez anos de admissão na enfermaria de psiquiatria do HSPE durante o período de 1991 a 1995. Métodos: A amostra foi composta por 85 pacientes. O per-fi l médico foi avaliado através de inventários sócio-demográfi co, psiquiátrico e de saúde somática. Os óbitos ocorridos neste período foram avaliados. Resultados: Dois terços dos pacientes tinham problemas com sua saúde somática, os quais necessitaram atenção e tratamento especializado. Para cada indivíduo com uma boa saúde somática nós encontramos 1.55 indivíduos com ao menos uma doença somática. Houve uma relação estatística signifi cativa entre dependência de nicotina e presen-ça de outras doenças. Durante os dez anos de seguimento ocorreram oito óbitos. O Índice de Morta-lidade Padronizado (IMP) na nossa amostra foi de 195,5%, comparado com as taxas de mortalidade no mesmo período na região metropolitana de São Paulo, ajustados por idade e sexo. Conclusões: Os pacientes esquizofrênicos e delirantes têm elevadas taxas de disfunção não só no campo psíqui-co como somático. A alta prevalência de problemas somáticos deve estar relacionada com fatores extrínsecos, como dependência de nicotina, estilo de vida sedentária, nutrição inadequada, efeitos adverso dos psicotrópicos, e também a prováveis fatores intrínsecos da própria doença.

UNITERMOS: mortalidade, morbidade, esquizofrenia

Dados sobre a mortalidade em pacientes esquizofrênicos publicados ao longo dos últimos sessenta anos revelam que este grupo apresenta um tempo de vida diminuído (Odegard, 1936; Alstrom, 1942). Um estudo de quatro décadas de seguimento mostrou elevada taxa de mortalidade entre pacientes esquizofrênicos comparado com as taxas da população geral, es-pecialmente durante os primeiros dez anos após internação. Num estudo retrospectivo, Newman e Bland (1991) encontraram risco de mortalidade duas vezes maior para todas as causas de mortalidade combinadas em um grupo de esquizofrênicos. Para o suicídio, o risco era vinte vezes maior neste grupo. Black e cols. (1992) também encontraram mortalidade maior em pacientes esquizofrênicos com menos de 40 anos. Um estudo de meta-nálise realizado por Inskip e cols. (1998) concluiu que 60% deste excesso

*Médica Psiquiatra do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO” – São Paulo**Médico Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP

Temas, 2005, 68-69 : 73-85

miolo.indd Sec1:73miolo.indd Sec1:73 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

74

de mortalidade foi atribuído a doenças somáticas, sendo apenas 28% atri-buído ao suicídio e 12% a acidentes. Utilizando dados contemporâneos e técnicas modernas, estes autores recalcularam o risco de suicídio ao longo da vida na esquizofrenia e encontraram 4% maior do que as taxas gerais de 10%. Também identifi caram mortalidade excessiva na esquizofrenia de-corrente de causas naturais. Recentemente, Brown e cols. (2000) seguiram por treze anos um grupo de 370 pacientes esquizofrênicos em tratamento ambulatorial, registrando 79 óbitos. O Índice de Mortalidade Padronizado (IMP) para todas as causas (298), para causas naturais (232) e para causas não naturais (1.273) foi signifi cativamente maior do que aquele esperado na população geral. As doenças fatais relacionadas ao tabagismo foram mais proeminentes do que na população geral.

Jeste e cols., em 1996, afi rmam que a procura por cuidados médicos gerais tende a diminuir com a instalação de uma doença psiquiátrica. Algu-mas características dos pacientes esquizofrênicos podem contribuir para a omissão do diagnóstico clínico, como um prejuízo na habilidade em verba-lizar o que sentem, conforme avaliam Lieberman e Cobum (1986), Massad e cols.(1990), Goldman (1999) e Dickey e cols. (2000). Outros falores que podem levar a tal prejuízo são a incapacidade em visitar outro médico que não seja o seu psiquiatra, como frisam Dickey e cols. (2000) ou pobre insight sobre a doença (Massad e cols., 1990; Lieberman e Coburn, 1986). Estes úl-timos autores ainda observam que pacientes com uma doença mental severa, tal como esquizofrenia e transtorno bipolar, apresentam alta tolerância à dor física. Psiquiatras freqüentemente assumem o tratamento para os sintomas de sua especialidade e acreditam que os outros especialistas fazem o mesmo.

Pesquisa de Druss e Rosenheck (1997) demonstra que 25 a 80% dos pa-cientes com doença mental severa possuem outras doenças médicas associadas e mais de 53% destas não são diagnosticadas. O número de doenças e as taxas de mortalidade decorrentes de doenças clínicas são substancialmente elevadas em pacientes com doenças mentais graves comparados com a população geral, con-forme avaliam Holmberg (1988) e Dixon e cols. (2000). A incidência de algumas doenças crônicas são elevadas, como é o caso do diabetes mellitus (Goldman, 1999; Massad e cols., 1990; Dixon L e cols., 2000 e McCarrick e cols., 1986), da hipertensão (Dickey e cols., 2000; Goldman, 1999; McCarrick e cols., 1986) e da doença pulmonar obstrutiva crônica (Druss e Rosenheck, 1997).

Alguns serviços tentam melhorar o atendimento médico para esta po-pulação. Uma solução sugerida envolve psiquiatras e médicos de atendimento primário promovendo tratamento tipicamente oferecido por outros especialis-tas. Contudo, muitos psiquiatras são inaptos para o exame físico e não estão atualizados no manejo das doenças mais comuns, como observam Massad e

miolo.indd Sec1:74miolo.indd Sec1:74 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

75

cols. (1990) e Lieberman e Coburn (1986). É preciso melhorar o acesso ao tratamento e a integração entre serviços médicos variados e psiquiatras para os pacientes com doença mental grave; entretanto, as informações nesta área são escassas, concluem Mauksch e cols. (2001) e Golomb e cols. (2000). Um estudo realizado por Cradock-O’Leary e cols., em 2002, sobre a utilização de um serviço médico geral por pacientes psiquiátricos, observou que estes tinham poucas visitas médicas se comparados a pacientes de outras espe-cialidades; a maior diferença foi vista para os pacientes com doença mental grave. Pacientes com diabetes ou hipertensão – e que foram diagnosticados como esquizofrênicos, bipolares ou com um transtorno de ansiedade – tive-ram substancialmente menos visitas médicas do que aqueles que não possuí-am diagnósticos psiquiátricos.

Atualmente, um número maior de estudos focaliza os problemas mé-dicos específi cos entre os esquizofrênicos (por exemplo, o prejuízo à saúde associado ao ganho de peso). Fontaine e cols. estimaram o impacto do ga-nho de peso induzido por antipsicóticos na mortalidade, e a incidência das taxas de prejuízo na tolerância à glicose e hipertensão entre os americanos adultos. Utilizando dados de 5029 indivíduos, estimaram um número de óbitos para um período de dez anos a partir de 1999. Eles observaram que 416 mortes poderiam estar relacionadas ao ganho de peso induzido pelos antipsicóticos. Os autores também questionaram o benefício da redução nas taxas de suicídio pelo uso dos antipsicóticos atípicos versus o aumento das mortes como conseqüência do ganho de peso.

Com o atual aumento do conhecimento das elevadas taxas de morbi-dade e mortalidade dos pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes, decidimos avaliar esta população com um estudo retrospectivo de dez anos de seguimento após internação psiquiátrica.

MÉTODOS

AmostraForam selecionamos todos os prontuários médicos dos pacientes interna-

dos na enfermaria de psiquiatria do Hospital do Servidor Estadual de São Paulo (HSPE-SP) do período de janeiro de 1991 a dezembro de 1995 que receberam diagnóstico de psicose na alta, correspondendo aos códigos 29.3 a 29.5 da nona edição da classifi cação das doenças pela Organização Mundial de Saúde (OMS-CID-9). Os prontuários foram revisados e selecionados de acordo com dois critérios de inclusão: 1) apresentar diagnóstico de transtorno esquizofrênico ou transtorno delirante persistente de acordo com a CID-10 (OMS). O diagnóstico foi realizado de acordo com os dados da admissão na internação, aplicando o

miolo.indd Sec1:75miolo.indd Sec1:75 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

76

instrumento para diagnóstico Checklist (CID-10) por um pesquisador (AET) e confi rmado por outro pesquisador e orientador (MFM), cego para a primeira confi rmação diagnóstica. Casos com diagnóstico duvidoso foram analisados em conjunto e considerados quando os pesquisadores chegaram a consenso sobre o diagnóstico. Casos duvidosos ou apresentando dados insufi cientes não foram incluídos; 2) Pacientes entre 18 e 65 anos de ambos os sexos.

InstrumentosProntuários médicos no HSPE – há um único prontuário para cada

paciente. Todos os procedimentos médicos recebidos pelo paciente são re-gistrados nesse prontuário único. O HSPE é um hospital geral que atende os funcionários públicos do Estado de São Paulo e os seus dependentes. Esses funcionários tendem a usar o HSPE ao invés de serviços privados, dirigindo-se a todas as especialidades, tanto no tratamento quanto na medi-cina preventiva. Este sistema de saúde “fechado” nos possibilitou avaliar a saúde global dos pacientes e a utilização dos serviços através da análise dos prontuários médicos.

Livro de registro das internações – todos os pacientes admitidos na unidade de enfermaria psiquiátrica foram registrados pelo serviço de enfer-magem com dados de nome, registro, diagnóstico de admissão e de alta.

Inventário sócio-demográfi co – elaborado para coletar idade na inter-nação, sexo, estado civil, nível educacional, etnia e dados profi ssionais.

Inventário clínico psiquiátrico: elaborado com dados sobre a história natural da doença nos estágios prévios e na internação índice (chamada de T0) como: idade de início da sintomatologia (chamado de T2), idade ao buscar o atendimento psiquiátrico (T1), presença de ideação suicida na in-ternação, tentativa de suicídio prévia a internação, condição mental na alta e tipo de tratamento efetuado. Para avaliação da evolução da doença foram coletados dados após 5 anos da internação índice (T0) e também após dez anos da internação índice (T0). Faziam parte dos dados de evolução: ativi-dade profi ssional, estado civil, aderência ao tratamento, tipo de tratamento recebido, número de internações entre os períodos estudados, estado fun-cional do paciente, assim como a presença de tentativas de suicídio.

Inventário médico geral – elaborado para coletar dados relacionados à saúde geral como: tabagismo, abuso de etílicos ou drogas ilícitas; diagnóstico médico que necessitou de tratamento especializado. Os diagnósticos foram subdivididos em categorias de acordo com os sistemas do organismo.

Banco de registro de óbitos – todos os casos da amostra foram analisados quanto à ocorrência de óbito durante os dez anos de seguimento do estudo.

miolo.indd Sec1:76miolo.indd Sec1:76 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

77

ProcedimentosColeta de dados – os dados demográfi cos foram coletados diretamen-

te. A atividade profi ssional foi classifi cada de acordo com o status funcional realizado por um departamento médico pericial autônomo.

Os dados clínicos gerais foram coletados quando havia notifi cação sobre tabagismo, uso de álcool ou outras substâncias psicoativas. Os diag-nósticos ou procedimentos foram notifi cados (doenças que levaram a um tratamento clínico, intervenção cirúrgica, terapia física, dieta etc.). Os pa-cientes que apresentaram diagnóstico médico além do psiquiátrico foram considerados como pacientes com morbidade somática.

Análise EstatísticaFoi realizada inicialmente análise descritiva das variáveis demográ-

fi cas e clínicas. A média e o desvio-padrão das variáveis contínuas foram calculadas. Desfechos somáticos favoráveis ou desfavoráveis foram con-siderados para a análise estatística. O desfecho somático foi considerado favorável quando não havia nenhuma morbidade somática associada. O desfecho somático foi avaliado após dez anos da internação na qual os pa-cientes iniciaram o estudo.

Foi realizada uma cross-table entre as variáveis clínicas e demográ-fi cas usando o chi-square para as variáveis categoriais e t student para as variáveis contínuas. Foi realizada análise da variância para detectar modi-fi cações ao longo do tempo. Foi considerado signifi cante do ponto de vista estatístico quando p< 0.05, com Intervalo de Confi ança de 95%.

Para análise das taxas de mortalidade foi calculado o Índice de Mor-talidade Padronizado – IMP (ou Standardised Mortality Ratio – SMR) para avaliar o possível excesso nas taxas de mortalidade, dividindo o número de óbitos ocorridos na amostra durante os dez anos de seguimento (1991 a 2000) pela soma do número de óbitos esperado na população geral da re-gião metropolitana de São Paulo do período em questão, pareados pelo sexo e idade multiplicado por 100.

RESULTADOSOitenta e cinco pacientes foram incluídos, 46 (54.1%) homens e 39

(45,9%) mulheres. Após dez anos da internação índice, o grupo apresentava idade média de 47(+/- 11,7) anos. Setenta (82,4%) eram brancos, 12 (14,1%) negros e 3 (3,5%) de outras etnias. Cinqüenta e quatro (63,5%) eram soltei-ros, 15 (17,7%) casados 14 (16%) separados e 2 (2,3%) viúvos. Quarenta e sete (55,3%) completaram o ensino superior, 15 (17,6%) o ensino médio, 12 (14,1%) o ensino fundamental e 5 (5,9%) eram analfabetos. Em relação

miolo.indd Sec1:77miolo.indd Sec1:77 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

78

à atividade profi ssional, 26 (31%) estavam ativos, 29 (34,5%) estavam de-sempregados e 29 (34,5%) aposentados por invalidez. Foi possível preencher o inventário da saúde somática para 69 pacientes, sendo que deste total 46 (67%) apresentavam ao menos um sistema orgânico afetado. O sistema car-diovascular e o endocrinológico foram os mais acometidos. (23%).

Obesidade foi notifi cada em 21% dos casos, doenças pulmonares em 11%, câncer e doenças neurológicas em 9% e doenças gastroenterológicas em 4% dos pacientes.

Os indivíduos com morbidade somática eram mais velhos. A média das idades para o grupo dos pacientes sem morbidade somática associada ao quadro psiquiátrico era de 41,9 anos e para o grupo com morbidade somática era de 49,6 anos (t= 2,5956 e p= 0,0121). Na internação índice também os indivíduos no grupo dos com morbidade somática também eram mais velhos (33.5 e 41 anos, t= 2.4308, p= 0,0184). Não encontramos dife-rença entre os grupos de acordo com a idade média de início dos sintomas psiquiátricos (26,4 anos para o grupo com saúde somática e 27,1 anos para o grupo com desfecho somático desfavorável, t= 0,2462 e p= 0,8065) e para a idade no início do tratamento psiquiátrico (27,5 anos para o grupo sem morbidade somática e 27.1 para o grupo com morbidade somática, t= 0,1494 e p= 0,8819). Não houve diferença entre os grupos em relação ao número de internações psiquiátricas durante os dez anos de seguimento (1,6 internações para o grupo sem morbidade somática e 2 internações para o grupo com morbidade somática (t= 0,4382 e p= 0,6632).

Quando comparados os grupos por gênero não houve diferenças (21 [61%.8%] homens e 13 [38,2%] mulheres no grupo com morbidade somática e 14 [63,6%] homens e 8 [36,4%] mulheres no grupo sem patologia somática associada, x2= 0.20 e p= 0.888). Também não houve diferença signifi cativa relacionada à etnia entre os grupos. Para a categoria de indivíduos com do-ença somática presente havia 27 (79,41%) brancos, 6 (17,65%) negros e 1 (2,94%) de outra etnia. Para a categoria de pacientes sem doença somática havia 18 (81,82%) brancos, 3 (13,64%) negros e 1 (4,55%) de outra etnia (x2 =0,2396 e p= 0,887) .

A relação entre o estado civil dos pacientes e o desfecho somático não apresentou diferença estatística. Entre o total de indivíduos que possuíam doenças somáticas havia 19 (65,52%) solteiros, 3 (10,34%) casados, apenas 1 (3,45%) viúvo e 6 ( 20,69%) separados. Já para os indivíduos que não possuíam doenças somáticas havia 12 (60,0%) solteiros, 3 (15,0%) casados, apenas 1 (5,0%) viúvo e 4 (20,0%) separados (x2= 0,3390 e p= 0,953). Não encontramos uma diferença signifi cativa entre saúde somática e atividade profi ssional. Entre os indivíduos com doença somática presente havia 28

miolo.indd Sec1:78miolo.indd Sec1:78 07.03.2006 18:05:1607.03.2006 18:05:16

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

79

(96,55%) inativos e apenas 1 (3,45%) ativo. Entre os indivíduos sem a pre-sença de doenças somáticas havia 18 (81,82%) inativos para 4 (18,18%) indivíduos ativos. (x2= 3,7091 e p= 0,157). Quanto ao grau de escolaridade não houve diferença estatística em relação ao prognóstico clínico somático. Para os pacientes que apresentavam doenças somáticas havia 8 (25,81%) com ensino fundamental, 18 (58,06%) com ensino médio e 5 (16,13%) com ensino superior; já entre os pacientes que apresentavam doenças somáticas havia 8 (38,10%) com ensino fundamental, 10 (47,62%) com ensino médio e 3 (14,29%) com ensino superior. (x2= 0,8958 e p= 0,639).

Entre o grupo com morbidade somática 26 (81,25%) eram fumantes e apenas 6 (18,75%) não fumavam. Ao contrário, no grupo sem morbidade somá-tica, 11 (55%) não eram fumantes e 9 (45%) eram fumantes. (x2= 7.3499 e p= 0,007). A odds ratio entre ser fumante e apresentar morbidade somática foi 5.29.

Os grupos apresentaram diferenças nos diagnósticos recebidos na internação índice. No grupo com morbidade somática havia 6 (17,65%) com diagnóstico de transtorno esquizofrênico paranóide, 3 (8,82%) com transtorno esquizofrênico hebefrênico, 13 (38,34%) diagnosticados como transtorno delirante persistente, 10 (29,41%) como esquizofrenia residual e 2 (5,88%) como psicose a esclarecer; no entanto, no grupo saudável do ponto de vista somático, havia 11 (50%) com transtorno esquizofrênico pa-ranóide, 7 (31.82%) com transtorno delirante persistente e 4 (18,18%) com transtorno esquizofrênico hebefrênico (x2= 13,4601 e p= 0,009).

Após dez anos da internação índice ocorreram 8 óbitos, sendo 6 de-correntes de causas naturais, 1 por suicídio e 1 por causa indeterminada. Este óbito de causa indeterminada ocorreu em um indivíduo com antece-dente de diabetes mellitus e hipertensão arterial.

O Índice de Mortalidade Padronizado (IMP) para intervalo de con-fi ança de 95% foi igual a 196,5% (46-319).

DISCUSSÃOA amostra de pacientes internados na unidade de psiquiatria do HSPE

com diagnósticos de psicoses não afetivas, há quatorze anos, foi caracterizada por maioria de brancos, solteiros, com bom nível escolar comparado com o padrão da população brasileira e em sua maioria inativos profi ssionalmente.

Mais da metade dos pacientes da amostra recebeu diagnóstico de transtorno esquizofrênico, 28,2% recebeu o diagnóstico de transtorno de-lirante persistente e 14,1% de psicoses não especifi cadas. Os sintomas tiveram início tardio; por outro lado, os indivíduos receberam o primeiro tratamento psiquiátrico logo após o surgimento dos sintomas. O fato de

miolo.indd Sec1:79miolo.indd Sec1:79 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

80

termos cerca de um terço dos pacientes com diagnóstico de psicose não esquizofrênica com certeza infl uenciou na idade média de início dos qua-dros, sendo que estas últimas podem ocorrer mais tardiamente. A severi-dade da doença não somente foi demonstrada pela internação, mas tam-bém pelo rápido tratamento efetuado na eclosão da doença. A internação índice ocorreu em média 12 anos após o surgimento da doença. A interna-ção índice não foi a primeira para muitos dos indivíduos da amostra.

Dois terços dos indivíduos apresentavam morbidade somática asso-ciada ao transtorno psiquiátrico. Os pacientes neste grupo apresentavam diagnósticos clínicos que os levaram a tratamentos ou limitações de seu funcionamento e provavelmente da sua qualidade de vida. Para cada indi-víduo com boa saúde somática encontramos 1,55 indivíduo com má con-dição. Os indivíduos acometidos eram mais velhos e a internação índice foi feita em uma idade mais avançada. Não havia relação entre idade do aparecimento dos sintomas e do primeiro tratamento psiquiátrico com pior prognóstico somático.

A relação de pior saúde somática com tabagismo, como era espera-do, foi signifi cativa.

Não houve relação da pior condição de saúde somática com o sexo, raça, estado civil, atividade profi ssional, escolaridade ou tipo de tratamento.

Os dados demonstram que esses pacientes costumam apresentar saú-de comprometida em números signifi cativos quando comparados a popu-lação geral. Os dados coletados no presente estudo demonstram que tais pacientes com diagnóstico de esquizofrenia e transtornos delirantes per-sistentes são muito comprometidos não somente do ponto de vista mental como somático.

O achado sobre a saúde somática é marcante e confi rma os estudos publicados. De maneira geral, esses pacientes apresentam saúde precária. As causas desta morbidade ainda são desconhecidas. Hwang e Bermanzo-hm (2001) consideram que a falta de cuidados com a saúde pelos esquizo-frênicos e a negligência dos profi ssionais de saúde mental e dos serviços de saúde mental em cuidar da saúde física dos pacientes psiquiátricos poderia ser responsável pela elevada morbidade.

Contudo, nesta amostra, temos um grupo de pacientes que procura o hospital e faz o seguimento, tendo, portanto, seus diagnósticos clínicos e encaminhamentos para tratamento, diferente de pacientes da comunidade, que porventura nunca foram diagnosticados e tratados em serviços espe-cializados. Um prontuário único para todas as especialidades e o fato da psiquiatria estar inserida dentro do hospital geral como uma das especiali-dades médicas, em geral pode facilitar o encaminhamento e o seguimento

miolo.indd Sec1:80miolo.indd Sec1:80 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

81

das patologias não psiquiátricas. Uma vez que sabe que seus pacientes têm estas patologias, o psiquiatra clínico fi ca mais atento às prescrições, às pos-síveis interações e de certa forma, cobra o seguimento concomitante das diversas especialidades.

Com isso, podemos supor que nossa amostra, composta de pacientes com transtornos delirantes persistentes e esquizofrênicos, tem uma alta in-cidência desses diagnósticos somáticos e, na grande maioria, recebeu algum tipo de tratamento especializado. Além do diagnóstico, podemos supor que o tratamento dessas condições acaba sendo também freqüente e que nossa amostra apresenta índices mais baixos de subdiagnóstico e subtratamento de patologias somáticas do que os pacientes que fazem tratamento psiquiá-trico em instituições que não estão inseridas em um hospital geral.

Podemos perceber que a alta prevalência de problemas somáticos in-depende de um diagnóstico precoce, e que estes devem estar associadas a fatores externos, como alimentação, tabagismo, sedentarismo, obesidade, entre outros, e também a prováveis fatores intrínsecos associados à própria doença psiquiátrica, que levariam a uma disfunção do organismo.

É possível concluir, através de nossos achados, que a presença de problemas somáticos independe do correto tratamento da patologia psiqui-átrica; contudo, a evolução psiquiátrica pode determinar a evolução da mor-bidade somática. Os casos residuais, que são os mais graves do ponto de vista psicopatológico e que em geral culminam com uma deterioração men-tal do indivíduo, apresentam mais problemas somáticos. Nenhum paciente desse grupo fi cou entre os pacientes saudáveis do ponto de vista somático. Esse achado pode indicar que talvez as alterações somáticas tenham uma correlação com a gravidade psicopatológica.

Portanto, os indivíduos com diagnósticos de transtornos esquizofrê-nicos e delirantes com mais idade seriam mais suscetíveis à degeneração de seus sistemas fi siológicos do que os indivíduos da população geral. A vida sedentária, o alto índice de tabagismo e os prováveis descuidos com a pró-pria saúde provavelmente têm um peso acentuado para a ocorrência dessa morbidade. O uso de antipsicóticos sabidamente tem efeitos colaterais, entre eles o aumento de peso, a dislipidemia e o aumento da tolerância à insuli-na, acarretando prejuízos ao funcionamento fi siológico. Talvez estes fatores ambientais possam ser mais intensos nos pacientes residuais, que têm maior prejuízo; contudo, não podemos desconsiderar a probabilidade de alterações biológicas – que acompanham esses transtornos psiquiátricos – que possam potencializar a alta prevalência de doenças somáticas. A maioria das patolo-gias envolvidas é causada em parte por fatores que podem ser prevenidos, como obesidade, tabagismo e sedentarismo.

miolo.indd Sec1:81miolo.indd Sec1:81 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

82

Alguns estudos não creditam somente aos fatores ambientais essa maior morbidade. Ryan e Thakore, em 2002, apontam para uma hiperati-vidade do eixo hipotálamo-pituitário-adrenal como fator de risco para esta maior morbidade. Talvez nestes indivíduos que apresentam deterioração (os residuais), esta hiperatividade do eixo HPA possa ser mais signifi ca-tiva. As causas desse achado ainda não são totalmente claras e a pesquisa nesse campo se inicia com mais dados.

Outro dado importante no estudo é o Índice de Mortalidade Padro-nizado (IMP), que se mostrou, no limiar, inferior aos dados da literatura existente. O IMP de 196,5% é menor do que as taxas da literatura, que vão geralmente de 200 a 400%. Contudo, essa mortalidade denuncia excesso em relação à mortalidade esperada na população na mesma faixa etária e de ambos os sexos na região metropolitana de São Paulo.

Acreditamos que nossos resultados se devam em parte ao fato do nosso serviço de psiquiatria fazer parte de um hospital geral que trata funcionários públicos e suas famílias em um sistema único. É importante lembrar que a maioria dos estudos avalia a morbidade e mortalidade entre esquizofrênicos tratados na comunidade, ou seja, em vários centros e, conseqüentemente, em um sistema de referência e contra-referência não tão afi nado entre as partes.

Uma vez que esses pacientes são diagnosticados e tratados, é possível diminuir as taxas de mortalidade. Novos estudos devem ser feitos focalizan-do tratamentos preventivos das doenças somáticas associadas ao transtorno psiquiátrico, para avaliar se essa mortalidade pode diminuir ainda mais ou se os fatores intrínsecos à doença são predominantes.

A mortalidade tem sido causada principalmente por doenças sistê-micas, apesar da freqüência do suicídio ser elevada nesses casos. Brown e cols. (2000), em um estudo das causas do excesso de mortalidade na esquizofrenia, observaram que mortes decorrentes por causas naturais en-globaram 63% do excesso total da mortalidade. Em nossa amostra houve somente um caso de suicídio, outro devido à causa desconhecida e seis por intercorrências clínicas. Esses dados devem ser vistos com cautela, pois muitos pacientes já estavam doentes há bastante tempo quando da sua inter-nação índice, o que poderia mascarar o número real de suicidas entre estes pacientes, uma vez que a literatura - Dake e cols., 1985 - mostra que os suicídios costumam ocorrer nos primeiros anos da doença.

Nosso estudo mostra que, além da efi cácia do tratamento psiquiátrico para a obtenção de uma melhor evolução da doença psiquiátrica e possivel-mente para redução da taxa de suicídio entre esses pacientes, um correto diagnóstico e tratamento de outras condições médicas manteve a mortalida-de em um limite inferior.

miolo.indd Sec1:82miolo.indd Sec1:82 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

83

Esses resultados reforçam a importância da inclusão da psiquiatria no hospital geral. Discriminar corpo e mente e, por conseqüência, optar por tratá-los separadamente não possui fundamento teórico e pode levar a distorções e negligências no tratamento.

Segundo Sonenreich e cols., seria “pertinente falar de mente e cé-rebro como processos, como dois aspectos, dois modos de abordagem da mesma realidade. As atividades do cérebro têm as características que são designadas como subjetividade. Esta subjetividade infl uencia a atividade neuronal em si. Concebemos o homem como um ser que se transcende, inserido numa cultura. Sem estes apanágios, o humano se descaracterizaria. Podemos falar de psiquismo como uma estrutura, incluindo o sujeito e seu ambiente. Achamos necessário salientar a inclusão do cérebro e do am-biente, em interação, numa estrutura cuja manifestação é a pessoa humana, com seu psiquismo. A especifi cidade dos organismos vivos é devida à sua organização e não à propriedades vitais elementares. A organização dos elementos ‘cérebro’ e ‘mundo’ é a base do funcionamento do psiquismo”.

Orientações dietéticas, hábitos de higiene, recomendações de exer-cícios físicos, exames físicos e exames clínicos preventivos de rotina são necessários dentro de qualquer programa de atenção à saúde e, portanto, também no campo da saúde mental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alstrom CH. Mortality in mental hospitals with especial regard to tubercu-losis. Acta Psychiatr Neurol 1942; supplement(42).

Black DW, Fisher R. Mortality in DSM-IIIR schizophrenia. Schizophr Res 1992; 7(2):109-16.

Brown S, Inskip H, Barraclough B. Causes of the excess mortality of schi-zophrenia. Br J Psychiatry 2000; 177:212-7.

Cradock-O’Leary J, Young AS, Yano EM, Wang M, Lee ML. Use of Ge-neral Medical Services by VA patients with psychiatric disorders. Psychiatr Serv 2002; 53(7):874-8.

Dickey B, Azeni H, Weiss R, Sederer L. Schizophrenia, substance use di-sorders and medical co-morbidity. J Ment Health Policy Econ 2000; 3(1):27-33.

Dixon L, Weiden P, Delahanty J, Goldberg R, Postrado L, Lucksted A, Leh-man A: Prevalence and correlates of diabetes in national schizophre-nia samples. Schizophr Bull 2000; 26(4):903-12.

miolo.indd Sec1:83miolo.indd Sec1:83 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Antonia Elvira TONUS e Marcelo Feijó de MELLO

84

Drake RE, Gates C, Whitaker A, Cotton PG. Suicide among schizophre-nics: a review. Compr Psychiatry 1985;26:90-100.

Druss BG, Rosenheck RA. Use of medical services by veterans with mental disorders. Psychosomatics 1997; 38(5):451-8.

Goldman LS. Medical illness in patients with schizophrenia. J Clin Psychia-try 1999; 60 Suppl 21:10-5.

Golomb BA, Pyne JM, Wright B, Jaworski B, Lohr JB, Bozzette SA. The role of psychiatrists in primary care of patients with severe mental illness. Psychiatr Serv 2000; 51(6):766-73.

Fontaine KR, Heo M, Harrigan EP, Shear CL, Lakshminarayanan M, Casey DE, Allison DB. Estimating the consequences of anti-psychotic induced weight gain on health and mortality rate. Psychiatry Res 2001; 101(3):277-88.

Holmberg S. Physical health problems of the psychiatric client. J Psychosoc Nurs Ment Health Serv 1988; 26(5):35-9.

Hwang MY, Bermanzohm PC. Schizophrenia and comorbid conditions (Diagnoses and Treatment).

Washington, DC, American Psychaitric Press, 2001.

Inskip HM, Harris EC, Barraclough B. Lifetime risk of suicide for affective di-sorder, alcoholism and schizophrenia. Br J Psychiatry 1998; 172:35-7.

Jeste DV, Gladsjo JA, Lindamer LA, Lacro JP. Medical comorbidity in schi-zophrenia. Schizophr Bull 1996; 22(3):413-30.

Lieberman AA, Coburn AF. The health of the chronically mentally ill: a review of the literature.

Community Ment Health J 1986; 22(2):104-16.

Malzberg B. Mortality among patients with mental disease. New York: Sta-te Hospital Press, 1934.

Massad PM, West AN, Friedman MJ. Relationship between utilization of mental health and medical services in a VA hospital. Am J Psychiatry 1990; 147(4):465-9.

Mauksch LB, Tucker SM, Katon WJ, Russo J, Cameron J, Walker E, Spitzer R. Mental illness, functional impairment, and patient preferences for collaborative care in an uninsured, primary care population. J Fam Pract 2001; 50(1):41-7.

McCarrick AK, Manderscheid RW, Bertolucci DE, Goldman H, Tessler RC. Chronic medical problems in the chronic mentally ill. Hosp Commu-nity Psychiatry 1986; 37(3):289-91.

miolo.indd Sec1:84miolo.indd Sec1:84 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Mortalidade em pacientes esquizofrênicos e delirantes persistentes

85

Newman SC, Bland RC. Mortality in a cohort of patients with schizophre-nia: a record linkage study. Can J Psychiatry 1991; 36(4):239-45.

Odegard O. Mortality in Norwegian mental hospitals from 1916 to 1933. Acta Psychatr Neurol 1936; 11:323-56.

Ryan MC, Thakore JH. Physical consequences of schizophrenia and its tre-atment: the metabolic syndrome. Life Sci 2002; 71(3):239-57.

Sonenreich C, Bassitt W, Estevão G. Processos cerebrais e psíquicos. Temas 1982;23:5-30.

Tsuang MT, Woolson RF. Excess mortality in schizophrenia and affective disorders. Do suicides and accidental deaths solely account for this excess? Arch Gen Psychiatry 1978; 35(10):1181-5.

SUMMARY

Objectives: Evaluate the mortality and somatic comorbidity after ten years of an admission at the HSPE inpatient unity during the period of 1991 to 1995 with diagnostics of schizophrenic disorder and persistent delusion disorder. Methods: The sample was composed by 85 subjects. All medical charts were evaluated using socio-demographic, psychiatric, and somatic health in-ventories. All deaths occurred within this period were evaluate. Results: 2/3 of the subjects had problems with their somatic health, which required medical attention and specialized treatment. For each subject with a good somatic health we found 1.55 subjects with at least one somatic di-sease. There is a statistically signifi cant relationship with nicotine dependence and the presence of health diseases. During ten years follow-up we found eight deaths. The Standard Mortality Ratio (SMR) was 196,5% in our sample compared to the mortality ratio occurred at the same period at the metropolitan Sao Paulo region, adjusted by age and sex. Conclusions: The patients with a schizophrenic and persistent delusional disorder had high levels of mental and somatic health dys-function. The high prevalence of somatic problems might be related to extrinsically factors like: nicotine dependence, sedentary life style, inadequate nutrition, and the long-term adverse effects of the psychiatric medications. Intrinsically factors related to the psychiatric disorder might be related to this high prevalence.

KEYWORDS: mortality, morbidity, schizophrenia

Serviço de Psiquiatria e Psicologia MédicaHospital do Servidor Público Estadual “FMO”

R. Pedro de Toledo, 180004039-901 - São Paulo – SP

Email: [email protected]. 011 – 50 88 81 90

miolo.indd Sec1:85miolo.indd Sec1:85 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

86

DELÍRIO COM ALUCINAÇÕES OU ANSIEDADE COM DISSOCIAÇÃO: UM DIFERENCIAL PSICOPATOLÓGICO

Rodrigo FERNANDEZ*Débora Pastore BASSITT**

RESUMO

A partir da discussão do caso de uma paciente com sintomas tanto do dito espectro fóbico-obses-sivo quanto de suposta natureza alucinatória, procurou-se estabelecer critérios diagnósticos que permitissem uma abordagem mais apropriada de indivíduos com quadros situados na zona entre a fobia/obsessão/compulsão e os transtornos delirante-alucinatórios. Para tanto, lançou-se mão de uma releitura dos conceitos adotados pelos códigos tomados como referência no campo da pes-quisa bem como no da prática clínica. Concluiu-se, por fi m, que há utilidade na adoção de mode-los diagnósticos distintos do preconizado na CID-10 ou no DSM-IV, que nem sempre são capazes de se adequar à miríade de possibilidades psicopatológicas observada na clínica psiquiátrica.

UNITERMOS: delírio, espectro fóbico-obsessivo, psicopatologia

IntroduçãoTem-se observado muitas vezes na prática clínica, fato corroborado

pela literatura, que nem sempre o modelo diagnóstico proposto pelos códi-gos adotados para pesquisa e referência médico-legal possibilita o estabele-cimento de um diagnóstico acertado, sem o conseqüente projeto terapêutico adequado. As razões para essas limitações estão além do escopo do presen-te trabalho, devendo, entretanto, haver uma discussão mais aprofundada acerca do tema.

Buscou-se, no caso exposto a seguir, a identifi cação da entidade no-sológica que melhor explicasse o quadro clínico da paciente em questão, a fi m de se propor a melhor conduta terapêutica. Para tanto, chegamos à con-clusão de que seria mais conveniente abandonar os modelos propostos pela CID-10 e DSM-IV, decisão que acabou por se evidenciar acertada, tendo em vista a favorável evolução clínica da paciente.

Relato de casoIdentifi cação: VEV, 35 anos, separada, quatro fi lhos, natural e pro-

cedente de São Paulo, auxiliar de enfermagem, kardecistaQueixa e duração: Medo e esquecimento há cerca de um ano e meio

* Médico residente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo “FMO”. ** Médica psiquiatra preceptora do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo “FMO”. Doutora em Ciências da Saúde pela FM – USP.

Temas, 2005, 68-69 : 86-96

miolo.indd Sec1:86miolo.indd Sec1:86 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico

87

História da moléstia atual: Há um ano e meio, a paciente começou a apresentar crises de medo com dois tipos distintos de manifestação: ou tal sensação se dava de forma isolada ou era acompanhada por tremores, sudorese, palpitações e sensação de morte iminente. Foi encaminhada pela Clínica Médica, passando a ser acompanhada pelo Serviço de Psiquiatria após tentativa de suicídio em que abriu o gás de cozinha a fi m de dar cabo de si e do fi lho que gestava, pois acreditava não haver solução para seu pro-blema, apesar de relatar que não se recorda de ter aberto o gás, somente de quando o marido a socorreu. A partir de então, recusando-se a ser internada, passou a tomar nortriptilina 50mg/dia, que foi substituída por fl uoxetina 80mg/dia e posteriormente, por imipramina 50mg/dia, abandonando o tra-tamento no fi nal de 2002, após o término da licença-maternidade; conta que, com todas as drogas, houve melhora dos sintomas após cerca de cinco dias da introdução das terapêuticas. Durante o ano de 2003, usando nor-triptilina durante quatro a cinco dias quando achava estar pior do quadro de medo, relata melhora parcial dos sintomas, com diminuição da intensidade e freqüência das crises. No fi nal desse ano, após expulsar o marido de casa, passou a ser ameaçada por ele de que iria roubar-lhe as crianças e, desde então, começou a ouvir vozes que a chamavam e diziam coisas que não conseguia compreender. Além dessas vozes, sempre masculinas, também escutava ruídos que a faziam pensar que havia alguém se aproximando. Tais situações causavam-lhe muito medo, que só era aliviado quando checava se as portas e janelas estavam trancadas e não havia ninguém sob a cama; eventualmente, quando o medo era intenso a ponto de impedi-la de checar sob a cama, punha-se a rezar em voz alta, tapando os ouvidos, até que os ru-ídos e vozes cessassem. Relata que esse quadro a deixava desesperançosa e, com freqüência, tinha pensamentos de se matar – ao atravessar um viaduto ou passar ao lado de um ônibus, vinham-lhe pensamentos de atirar-se; diz não ter feito isso por medo de deixar os fi lhos e por saber do mau destino dos suicidas segundo o pensamento espírita. Conta que, aos 14 anos, via imagens de homens e mulheres que lhe falavam, mas não tinha medo, pois sua família lhe explicava que só não deveria conversar com eles para que fossem embora – tratava-se somente de mediunidade. Tais manifestações persistiram até cerca de vinte anos, cessando espontaneamente, sem inter-venção medicamentosa ou psicoterapêutica. A paciente não vê nenhuma associação entre o quadro desse período e o atual, já que, naquela época, não sentia medo e agora, que acredita não se tratar de problema espiritual, teme tais manifestações. Queixa-se também de períodos de esquecimento, que têm ocorrido ultimamente: súbito, dá-se conta de que não se recorda do que está fazendo; cita exemplo de um dia em que, no trabalho, não sabia

miolo.indd Sec1:87miolo.indd Sec1:87 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Rodrigo FERNANDEZ e Débora Pastore BASSITT

88

mais qual era seu material, quais seus pacientes e o que estava fazendo. Relata que isso tem acontecido esporadicamente nas últimas semanas, mas que o marido, antes de sair de casa, dizia-lhe que isso já acontecia – certa vez, derrubou-o para fora da cama e não se recordava disso.

Antecedentes pessoais: Filha mais nova de prole de três, nascida de parto normal hospitalar sem complicações; teve doenças próprias da in-fância, sem seqüelas. Iniciou os estudos aos sete anos, cursando até o fi m do segundo grau; repetiu a sétima série porque faltava muito às aulas e a quinta série, após episódio em que tentou cortar os pulsos no banheiro da escola, mas diz não se lembrar os motivos desse ato; fez curso para auxiliar de enfermagem, exercendo essa função atualmente. Menarca aos 11 anos; primeiro namorado aos 14 anos; primeira relação sexual aos 17 anos, mas prefere não falar sobre o assunto por motivos que preferem não explicitar, somente informando que houve violência na ocasião. Conta que nessa épo-ca o pai a levou para fazer um exame confi rmatório da gravidez, quando no local, a médica foi hostil com ela, machucando-a ao examiná-la e dizendo que vagabunda tem que ser tratada desse jeito mesmo.Tem quatro fi lhos, sendo a mais velha fruto de um relacionamento com um namorado que era alcoólico e com quem preferiu não viver, apesar de a família ter insistido muito para que isso acontecesse; só voltaram a falar com ela após o nas-cimento da menina. Casou-se aos vinte e oito anos, após sair de casa por desentender-se com o pai; conhecera o namorado há três meses e teve três fi lhos com ele; diz que brigavam muito, separando-se por ocasião das três últimas gestações. Relata que brigavam muito, pois ele implicava demais com a enteada, chamando-a implicante e chegando a ameaçar seu namora-do de morte, mas nunca tinha tais atitudes na frente da paciente, que tem receio de que ele possa ter intentado abusar da fi lha, pois esta já o acusou de tentar agarrar duas de suas amigas. Ultimamente a paciente vinha discu-tindo freqüentemente com o marido; agrediam-se verbalmente e, no dia em que ele foi embora de casa, chegaram a agredir-se fi sicamente.

Antecedentes mórbidos: Etilista social; nega uso de drogas ilícitas ou tabagismo.Relata dois episódios de uso de medicação para emagrecer (o primeiro aos dezenove anos, durante três meses, por orientação de endocri-nologista, e o segundo episódio aos vinte e três anos, quando comprou por dois meses uma fórmula vendida pela televisão). Conta, nas duas ocasiões, que fi cou agitada inicialmente e depois se sentia animada, tendo difi culdade para interromper seu uso (da primeira vez por falta de dinheiro e, da segun-da, porque pararam de vender o produto).

Antecedentes familiares: Pai falecido por IAM, mãe falecida por pneumopatia; irmãs e fi lhos hígidos; fi lha mais velha grávida de 5 meses

miolo.indd Sec1:88miolo.indd Sec1:88 07.03.2006 18:05:1707.03.2006 18:05:17

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico

89

(diz sobre isso que desejava outro destino para a fi lha, pois sabe que ela terá muitas difi culdades).

Exame físico: Sem alterações sugestivas de patologias, além da obesidade.

Exame psicopatológico: Paciente consciente, vigil, globalmente orientada, com amnésia lacunar; certa hipervigilância, sem marcada hipo-tenacidade; sensopercepções e representações sem alterações evidentes no momento do exame (diz que vê e ouve os espíritos principalmente à noite em sua casa). Humor depressivo, com afeto congruente; velocidade normal dos processos psíquicos, com estreitamento do campo vivencial. Discurso com discreta pressão, sem alterações em seu curso, com conteúdo centrado na problemática vivenciada. Crítica parcial quanto a sua patologia; pragma-tismo preservado.

Evolução: Em discussão após a apresentação do presente caso em reunião clínica, optou-se por introduzir fl uoxetina e clonazepam, tendo sido levantada a hipótese de ansiedade generalizada com períodos de dis-sociação, que explicariam os esquecimentos e os episódios de auto-mu-tilação. Além disso, iniciou-se psicoterapia. Durante a internação, foram realizadas dosagem de TSH e de T4 livre, ambas com resultados dentro do padrão de normalidade; também se realizou tomografi a computadorizada de crânio, que não demonstrou nenhuma alteração, bem como um eletro-encefalograma, que resultou normal. Depois de internada na enfermaria psiquiátrica do HSPE, com alguma melhora do quadro psicopatológico, a paciente recebeu alta, passando a ser acompanhada em hospital-dia e pos-teriormente em ambulatório. Recebeu até 60mg/dia de fl uoxetina e, ini-cialmente, 0,5mg/dia de clonazepam, sendo aumentada progressivamente a dose até 6mg/dia em razão da excessiva ansiedade e queixas de insônia e recrudescimento dos sintomas depois de iniciar as atividades do hos-pital-dia e o seguimento psicoterapêutico; substituindo-se fl uoxetina por paroxetina até 40mg/d sem melhora signifi cativa das queixas da paciente, decidimos por interromper o uso de inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), mantendo somente clonazepam na dose atual de 5 mg/d. Durante as sessões de psicoterapia, acabou por contar que sua fi lha mais velha nasceu de uma gravidez conseqüente de um estupro que não foi divulgado, o que indispôs sua família contra ela e seus pais a excluí-ram das relações cotidianas; em razão da agressão sofrida, relata que sem-pre foi, a partir dessa ocasião, inferior aos outros, em particular às suas irmãs, que não foram violentadas e que nunca fi zeram nada de errado. Ao longo da terapia, diz eventualmente que a vida não vale a pena, seria melhor morrer, mas não o faz porque tem os fi lhos pequenos.

miolo.indd Sec1:89miolo.indd Sec1:89 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Rodrigo FERNANDEZ e Débora Pastore BASSITT

90

Realizaram-se uma a duas sessões de psicoterapia por semana e, acerca dessa atividade, a paciente dizia sentir-se angustiada, mas se recusava terminan-temente a interrompê-la, até que a abandonou, passando então a freqüentar um grupo de psicoterapia. Percebe-se que o quadro psicopatológico tem se modifi ca-do lentamente com o passar do tratamento, chamando atenção a atitude apelativa com relação aos sintomas e a “auto-desresponsabilização” no tocante aos eventos que se têm sucedido. Mostrou certa melhora principalmente após o nascimento da neta, apresentando signifi cativa redução do estreitamento de campo vivencial, além de menor polarização do humor e um afeto menos lábil e irritável.

DiscussãoJulgamos ser interessante abordar os seguintes aspectos na presen-

te discussão: quais critérios permitiram que se chegasse ao diagnóstico de transtorno de ansiedade com manifestações fóbico-obsessivas e episódios dissociativos, descartando-se a hipótese de um quadro psicótico? Qual a proposta terapêutica adotada e qual seu rationale?

I. Refutação da hipótese de um quadro delirante-alucinatório

1. Conceito de delírio segundo a CID-10 De acordo com Bertolote (1997), delírio seria defi nido para a CID-10

pela convicção ou juízo falso, incorrigível, fora dos padrões da realidade e incompatível com as crenças sociais da cultura e do meio do indivíduo. Se-gundo tais critérios, não se poderia falar em transtorno delirante no presente caso, uma vez que existe todo um contexto que justifi ca a crença da paciente na existência de espíritos que seriam vistos por ela. Outro ponto a ser levanta-do refere-se à questão de não se haver observado ideação delirante no discur-so da paciente: em momento algum ela demonstrou convicção em idéias de referência, infl uência, ciúmes, grandeza, ruína, cunho religioso ou obsessivo, aspectos pesquisados segundo recomendação de Dalgalarrondo (2000).

2. Conceito de delírio segundo Sonenreich (adotado pelo HSPE)O conceito de delírio adotado por Sonenreich et al. (1999), de uma

perda da capacidade de comunicação lógica com o interlocutor/examinador (entendendo-se por lógica a forma de organização do raciocínio passível de compartilhamento pelo interlocutor) possibilita outra ordem de abordagem do presente caso: a paciente, ao longo de todo o seguimento, tem-se mostrado permeável à contestação de sua explicação para o que tem ocorrido consigo; distinta da conduta do delirante, que simplesmente expressa sua opinião sem a preocupação de convencer ou arrebanhar a favor de sua causa aquele a quem fala, a sua postura não impossibilita o diálogo, aceitando que se discorde de seu ponto de vista, sem com isso interromper a interação comunicacional.

miolo.indd Sec1:90miolo.indd Sec1:90 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico

91

3. ConclusãoA partir da argumentação apresentada até aqui, pode-se afi rmar que a

apresentação da paciente não caracteriza um quadro delirante-alucinatório. Resta então discutir-se quanto à nosografi a pertinente, bem como sua pro-vável etiologia e o tratamento mais adequado para a hipótese apresentada.

II. Demonstração de se trata de um quadro fóbico-obsessivo-compulsivo segundo a concepção de Sonenreich

1. Conceitos de transtornos fóbico e obsessivo-compulsivo segundo o DSM-IV

Segundo estabelecido no DSM-IV em citação de Kaplan (2003), o transtorno de pânico sem agorafobia seria caraterizado por:

A. a e b:a. ataques de pânico recorrentes e inesperadosb. pelo menos um dos ataques foi seguido por período de 01 mês

(ou mais) de uma ou mais das seguintes características:• preocupação persistente acerca de ataques adicionais• preocupação acerca das implicações do ataque ou de suas

conseqüências• uma alteração comportamental signifi cativa relacionada aos ata-

quesB. ausência de agorafobiaC. os ataques de pânico não se devem aos efeitos fi siológicos diretos

de uma substância ou de condição médica geralD. os ataques de pânico não são melhor explicados por outro trans-

torno mental como Fobia Social, Fobia Específi ca, TOC, Trans-torno de Estresse Pós-traumático ou Transtorno de Ansiedade de Separação

Já a defi nição de ataque de pânico dá-se pelos seguintes critérios do DSM-IV (não sendo codifi cável per se, havendo que incluí-lo em outro transtorno):

Um período distinto de intenso temor ou desconforto, no qual quatro ou mais dos seguintes sintomas desenvolveram-se abruptamente e alcança-ram um pico em 10 minutos:

a. palpitações ou ritmo cardíaco aceleradob. sudoresec. tremores ou abalosd. sensações de falta de ar ou sufocamentoe. sensações de asfi xiaf. dor ou desconforto torácico

miolo.indd Sec1:91miolo.indd Sec1:91 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Rodrigo FERNANDEZ e Débora Pastore BASSITT

92

g. náusea ou desconforto abdominalh. sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaioi. desrealização ou despersonalizaçãoj. medo de perder o controle ou enlouquecerk. medo de morrerl. parestesiasm. calafrios ou ondas de calorSegundo tais critérios, a paciente apresentaria ataques de pânico, mas

não seria possível caracterizar seu quadro dentro da categoria de transtorno de pânico, já que a tentativa de suicídio da paciente teria acontecido num período dissociativo de que ela não se recordava, o que descaracterizaria “uma altera-ção comportamental signifi cativa relacionada aos ataques”; ela também não se mostrava propriamente preocupada com os “ataques de pânico” e sim com as visões que tinha.

Quanto à possibilidade de se tratar de um quadro obsessivo-compul-sivo (segundo os critérios do DSM-IV) associado ao hábito de checagem que a paciente desenvolveu, avaliem-se os critérios:

a. obsessões (defi nidas por a, b, c e d) ou compulsões (defi nidas por e e f):

b. pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento

c. os pensamentos, impulsos ou imagens não são meras preocupa-ções excessivas com problemas da vida real

c. a pessoa tenta ignorar tais pensamentos, impulsos ou imagens, ou neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação

d. a pessoa reconhece que os pensamentos, impulsos ou imagens obsessivos são produtos de sua própria mente

e. comportamentos repetitivos ou atos mentais que a pessoa se sente compelida a executar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que devem ser rigidamente aplicadas

f. os comportamentos ou atos mentais visam prevenir ou reduzir o so-frimento ou evitar algum evento ou situação temidos; entretanto, es-ses comportamentos ou atos mentais não têm conexão realista com o que visam neutralizar ou evitar ou são claramente excessivos.

Sem que haja necessidade de arrolar todos os demais itens da defi -nição do DSM-IV, pode-se desde já descartar o diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, uma vez que as manifestações apresentadas pela pa-ciente não atendem às exigências diagnósticas. Cabe então interrogar a que

miolo.indd Sec1:92miolo.indd Sec1:92 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico

93

categoria diagnóstica devemos nos ater a fi m de traçar o plano terapêutico mais adequado à paciente. Para tanto, lançamos mão da proposta nosológi-ca de Sonenreich, como exposto abaixo.

2. Conceito de manifestações fóbico-obsessivo-compulsivas segundo Sonenreich (1999)

A fi m de permitir a abordagem de casos de natureza similar à deste, criou-se o conceito de um quadro unitário de fobia-obsessão-compulsão, levan-do-se em conta que, como tais manifestações podem ser estudadas conjunta-mente em termos psicológicos ou neurofi siológicos, não é útil para pesquisa ou tratamento, a separação entre quadros fóbicos e obsessivo-compulsivos. Todas essas manifestações têm como esteio comum a fórmula “não consigo supor-tar a ansiedade, o mal estar que determinadas situações, certos pensamentos invasivos me provocam”. Fobias e obsessões seriam exteriorização do desloca-mento promovido pelo paciente da ansiedade relacionada a uma situação insu-portável para outra(s) menos alarmante(s); o quadro ansioso, por sua vez seria caracterizado pela associação entre a aceleração dos processos psíquicos e o estreitamento do campo vivencial.

3. O componente dissociativoA apresentação dos episódios de amnésia da paciente sugerem quadro

dissociativo, característico mecanismo de defesa neurótico em que, segun-do Kaplan (2003), se dá a ventilação da ansiedade do indivíduo. Outra al-ternativa seria encarar tais momentos como sendo de despersonalização por ansiedade, uma vez que, ainda segundo Kaplan, atenderia aos critérios pelo DSM-IV (“uma alteração persistente e recorrente da percepção de si mesmo, podendo atingir um grau em que o senso da própria realidade é perdido”). Tal afi rmação de maneira alguma torna menor a possibilidade de se tratar de quadro de aceleração dos processos psíquicos com estreitamento do campo vivencial – um transtorno de ansiedade generalizada de acordo com o CID-10 –, mas sim corrobora tal hipótese, além de acrescentar um dado interessante no tocante à egodistonia promovida na paciente por sua ansiedade – marcador de gravidade – e pelas manifestações da própria despersonalização.

III. O tratamento proposto

1. As propostas correntesO que se observa com freqüência na literatura é uma grande contro-

vérsia quanto a propostas de tratamento de quadros ansiosos: com inibido-res seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), ou determinados tricícli-cos, ou benzodiazepínicos ou todas as combinações entre tais categorias de medicamentos, além de outras alternativas terapêuticas menos usuais:

miolo.indd Sec1:93miolo.indd Sec1:93 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Rodrigo FERNANDEZ e Débora Pastore BASSITT

94

clomipramina, fl uoxetina ou fl uvoxamina (Kelly 1980); ISRS, buspirona, pimozide, clozapina, eletroconvulsoterapia (ECT) (Jenicke e Rauch 1994); clomipramina como primeira escolha (Versiani et al. 1992), benzodiazepí-nicos (Gastpar e Kielholtz 1991), associados ou não a outras drogas (Drum-mond 1993), bem como ECT ou neurocirurgia (Versiani et al. 1992).

Disso tudo, depreende-se que não há realmente um tratamento de elei-ção para os ditos transtornos de ansiedade. Cabe então questionar se a pato-gênese desses quadros, bem como os mecanismos de ação propostos para as drogas realmente são coerentes e, ademais, sugerirem-se outras explicações.

2. A proposta de Sonenreich para tratamento do quadro de FOCA explicação para a gênese do quadro de FOC passaria por diversos

planos organizacionais: no âmbito existencial, o indivíduo acometido por esse transtorno caracterizar-se-ia pela fórmula “não consigo controlar, não consigo suportar minha angústia, não consigo organizar meu relacionamen-to com o mundo”, muito mais que pela somatória de sintomas arrolados numa lista (Sonenreich et al 1999). Sob a perspectiva psicopatológica, a atividade sem um objetivo é a marca do conceito de FOC: atividade sem uma fi nalidade que não ela mesma, determinando a incapacidade de fazer escolhas. Tal aspecto se limita com um possível correlato em escala estru-tural: o silêncio absoluto inexiste para o cérebro; todavia, nestes pacientes, o fracasso de experiências prévias quanto à satisfação de demandas para as quais o cérebro se mobiliza leva ao abandono das vias neurais estabelecidas para esse fi m; resta ao cérebro o estímulo de redes que não serão capazes de levar a cabo a proposta por que foram ativadas, promovendo uma alça de feedback positivo que termina por levar a estrutura cerebral como um todo a entrar na situação descrita por Pierre Janet como psicastenia. Como se pode observar, a proposta de Sonenreich et al dá conta de vincular todos os níveis existentes no complexo cérebro-mente, tornando desnecessária e até mesmo incorreta a separação dessas duas esferas, proposta sustentada na literatura por autores que estudam a relativamente recente teoria da emer-gência como Johnson (2003).

Conseqüente a essa abordagem, justifi ca-se a utilização de uma me-dicação que promova uma lentifi cação da atividade neuronal, correspon-dendo a uma diminuição da velocidade dos processos psíquicos, consegui-da com a administração de benzodiazepínicos, que levam a uma elevação do limiar neuronal de disparo e conseqüente lentifi cação da transmissão de impulsos. Por serem mais difusos pelo cérebro, os receptores GABA, uma vez estimulados, permitem uma resposta mais efetiva que a obtida pelo bloqueio neuroléptico. Essa visão do processo psicopatogênico em certo

miolo.indd Sec1:94miolo.indd Sec1:94 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Delírio com alucinações ou ansiedade com dissociação: um diferencial psicopatológico

95

sentido contra-indicaria o uso de antidepressivos se for atribuída a eles a função exclusiva de estimuladores neuronais, o que levaria a uma acelera-ção da atividade neuronal, com aumento da velocidade dos processos psí-quicos sem necessariamente um concomitante alargamento das dimensões do campo vivencial, como se observa em alguns pacientes que começam a tomar ISRS e se queixam de aumento da ansiedade. Por outro lado, se os antidepressivos tiverem também a capacidade de infl uenciar na dimensão do campo vivencial, expandindo-o, justifi ca-se seu uso para o tratamento de quadros de aceleração dos processos psíquicos num campo vivencial estreitado, característica psicopatológica dos quadros de FOC.

IV. Conclusão A evolução do presente caso para a provável diferenciação de um

quadro de neurose de ansiedade em um outro de neurose histérica, deno-tando certo grau de progresso psicoterapêutico e sintomatológico dentro do esperado em psicoterapia de quadros ansiosos; isso demonstraria, além do acerto quanto à hipótese diagnóstica baseada em dados psicopatológicos, a utilidade da adoção de modelos diagnósticos distintos do preconizado na CID-10 ou no DSM-IV, que nem sempre são capazes de se adequar à miría-de de possibilidades psicopatológicas observada na clínica psiquiátrica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bertolote JM. Glossário de termos de psiquiatria e saúde mental da CID-10 e seus derivados. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.

Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Por-to Alegre: Artes Médicas; 2000.

Drummond LM. The management of obsessive-compulsive disorder. Curr Opin Psychiatry 1993; 6:201-4.

Gastpar M, Kielholtz P (eds). Problems of psychiatry in general practice. Levinston: Hagrefe, Huber; 1991.

Jenicke MA, Rauch SC. Managing the patient with treatment resistant ob-sessive compulsive disorder. J Clin

Psychiatry 1994; 55 (supl 3): 11-7.

Johnson S. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2003.

Kaplan HI, Sadock BJ, Greb JÁ. Compêndio de Psiquiatria:ciências do comportamento e psiquiatria clínica. São Paulo: ARTMED; 2003.

miolo.indd Sec1:95miolo.indd Sec1:95 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Décio Gilberto NATRIELLI FILHO, Otávio José Figueira VERRESCHI e Giordano ESTEVÃO

96

Kelly D. Anxiety and emotions. Springfi eld: Ch. C. Thomas; 1980.

Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho LMA. Psiquiatria: propostas, notas, comentários. São Paulo: Lemos Editorial; 1999.

Versiani M, Nardi AE, Saboxa E et al. Tratamento farmacológico do trans-torno obsessivo compulsivo. J Bras Psiquiatr 1992; 41: 15-9.

SUMMARY

Based on a clinical report of a patient with symptoms of phobic-obsessive pattern as well as those of delusional nature, we tried to establish diagnostic criteria which allowed us to handle with cases located in the zone between phobia-obsession/compulsion and delusion/hallucination. To do it, we suggest a new approach to the concepts utilized by the diagnostic codes usually cited by clinical and theoretical researches. We concluded, in the end, that it would be useful if one tried to adopt diagnostic models different from the usually utilized by psychiatrists in research as in clinical practice.

UNITERMOS: phobic-obsessive disease, schizophrenia, psychopathology

Serviço de Psiquiatria MédicaHospital do Servidor Público Estadual “FMO”

R. Pedro de Toledo, 1800CEP 04039-901São Paulo – SP

e-mail to: [email protected]

miolo.indd Sec1:96miolo.indd Sec1:96 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

97

NEUROSARCOIDOSE E DEPRESSÃO: RELATO DE CASO

Décio Gilberto NATRIELLI FILHO*Otávio José Figueira VERRESCHI**

Giordano ESTEVÃO***

RESUMO

Sarcoidose é uma doença infl amatória sistêmica, de causa desconhecida, que ocorre em todo o mundo e acomete pessoas de todas as idades e etnias. O diagnóstico requer evidência histológica de granulomas não-caseosos em um ou mais sistemas de órgãos afetados. Os pacientes situam-se na faixa de 20 a 40 anos de idade no momento do diagnóstico. A neurosarcoidose ocorre em aproximadamente 5% a 15% dos casos de sarcoidose. Neste relato, será apresentado o caso de uma mulher de 42 anos, com história clínica de depressão com sintomas atípicos relacionada ao envolvimento do sistema nervoso central por sarcoidose. A avaliação clínica e o sucesso terapêutico com antidepressivo são descritos, bem como a importância de um encaminhamento adequado para a investigação clínica e o tratamento.

UNITERMOS: Sarcoidose. Neurosarcoidose. Depressão.

INTRODUÇÃOSarcoidose é uma doença infl amatória sistêmica, de causa desconhecida,

caracterizada pela presença de granulomas não-caseosos em um ou mais siste-mas de órgãos afetados (Weinberger, 2001; Thomas e cols., 2003; Burns, 2003).

Os granulomas podem ocorrer aleatoriamente pelo organismo, sendo mais freqüentes nas formas pulmonar e nos linfonodos do mediastino e na re-gião hilar (Thomas e cols., 2003). Segundo estes mesmos autores, os pacien-tes podem ser assintomáticos, ter resolução espontânea ou desenvolver doença progressiva acometendo vários sistemas, incluindo queixas psiquiátricas.

Estudos epidemiológicos comparativos demonstraram que fatores geográfi cos, étnicos e genéticos estão fortemente associados às característi-cas clínicas destes pacientes. Thomas e cols. ainda apontam que a incidên-cia da doença é maior em negros dos Estados Unidos (EUA) e na população da Escandinávia, parecendo ser menos comum em brancos dos EUA, japo-neses, indianos, espanhóis e populações sul-americanas.

Afeta predominantemente indivíduos entre 20 e 40 anos, sendo as mulheres mais afetadas que os homens. Quando atinge pessoas acima de 40

*Médico Assistente do Serviço de Psiquiatria, Preceptor e Coordenador da Interconsulta Psiquiátrica do Hospital do Servidor Público Estadual – HSPE “FMO”. São Paulo, SP.**Médico Assistente do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual – HSPE “FMO”. São Paulo, SP.***Médico Assistente e Preceptor do Serviço de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”. São Paulo, SP.

Temas, 2005, 68-69 : 97-102

miolo.indd Sec1:97miolo.indd Sec1:97 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Décio Gilberto NATRIELLI FILHO, Otávio José Figueira VERRESCHI e Giordano ESTEVÃO

98

anos, geralmente está associada ao desenvolvimento de doença crônica e progressiva. Mau prognóstico inclui lupus pernio, envolvimento da mucosa nasal, uveíte crônica, hipercalcemia, nefrocalcinose, declínio progressivo da função pulmonar, lesões ósseas císticas, neurosarcoidose e comprometi-mento cardíaco (Thomas e cols., 2003).

Acometimento neurológico ocorre em aproximadamente 5 a 15% dos casos. Devido à sua heterogeneidade, o diagnóstico é freqüentemente difícil, especialmente em pacientes sem manifestações sistêmicas (Ferriby e cols., 2001). Outras conseqüências incluem convulsões, cefaléias, menin-gite, neuropatia periférica e sintomas psiquiátricos. O comprometimento do eixo hipotalâmico-hipofi sário pode causar hiperprolactinemia e diabetes insípido (Weinberger, 2001; Lynch III JP, 2003).

O objetivo deste relato de caso é descrever a importância da rela-ção entre os sistemas psíquico, neuro e endocrinológico, principalmente na avaliação inicial de pacientes com síndromes depressivas e na subseqüente investigação laboratorial e de diagnóstico por imagem.

RELATO DE CASO Paciente feminina, 42 anos, parda, compareceu à avaliação psiquiá-

trica com queixa inicial de “tontura, fraqueza e formigamento nas pernas que subia à cabeça” há 7 meses. Relatava também quedas em via pública devido à fraqueza e permanecia em casa deitada na cama com uma “tristeza profunda”, desânimo, inapetência e insônia intermediária. Ao exame foi observada uma lentifi cação dos processos psíquicos em um campo viven-cial estreitado. Há 6 meses, em outro serviço, havia iniciado uso diário de Fluoxetina 20 mg e Clonazepam 1 mg com pouca melhora. Trouxe ainda tomografi a computadorizada de crânio evidenciando espessamento de haste hipofi sária com realce pós-contraste. No interrogatório informou amenorréia de 1 ano, sem avaliação. Com a apresentação psicopatológica levantou-se hipótese de transtorno depressivo orgânico (F06.32, Classifi ca-ção Internacional de Doenças - CID–10) e amenorréia a esclarecer. Foram prescritos Fluoxetina 40 mg e Clonazepam 1 mg diariamente.

Em 2 meses, mantinha sintomas depressivos, queixou-se também de polidipsia, vômitos, xerostomia e síncopes. Apresentava sonolência diurna e insônia, não tolerando a Fluoxetina. Na ocasião, foi medicada com Sertralina 50 mg ao dia e solicitada avaliação neurocirúrgica após o resultado da Res-sonância Magnética (RNM) de crânio, na qual observava-se: “espessamento concêntrico de infundíbulo pituitário e corpos mamilares, com impregnação interna pelo contraste”. Evidenciou-se também “impregnação dos sulcos en-

miolo.indd Sec1:98miolo.indd Sec1:98 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Neurosarcoidose e depressão: relato de caso

99

tre os giros corticais”. O quadro era compatível com processo granulomato-so, interrogando-se sarcoidose, tuberculose, linfoma ou leucemia.

Após três meses teve uma internação eletiva na neurologia, onde re-cebeu, além da Sertralina, Amitriptilina 25 mg diariamente para cefaléia holocraniana. Na campimetria apresentou quadrantopsia absoluta temporal superior no olho direito e campo retraído (têmporo-nasal) no olho esquer-do. Apresentou também elevação nos níveis da prolactina sérica. Com a biópsia muscular revelou-se granulomatose com sinais de neuropatia ainda muito leve e, neste caso, a hipótese etiológica considerada foi sarcoidose. Manteve-se sob investigação com as hipóteses de Neurosarcoidose, Diabe-te insípido hipofi sário e Amenorréia secundária, sendo acompanhada pela psiquiatria em uso de Sertralina 75 mg ao dia. Na ocasião teve melhora na apresentação depressiva, quando recebeu também pulsoterapia, desmopres-sina 0,05 ml intra-nasal a cada 3 dias, prednisona 30 mg via oral cedo.

A biópsia de rinofaringe evidenciou processo granulomatoso caseo-so compatível com sarcoidose. Nos 12 meses subsequentes, recebeu diag-nósticos de Hipotireoidismo secundário e Síndrome de Cushing (exógeno). O quadro psiquiátrico evoluiu com labilidade do humor, com predomínio da irritabilidade. Frente à demanda psicoterápica, foi encaminhada para atendimento psicológico. A Sertralina foi aumentada para 150 mg ao dia, apresentando melhora do quadro e tolerando a retirada da Amitriptilina sem outras intercorrências.

DISCUSSÃODuwve e Turetsky (2002) afi rmam que, dada a baixa incidência desta

doença na população, a inclusão da sarcoidose no diagnóstico diferencial dos transtornos mentais não é realizada freqüentemente. Descrevem o caso de uma mulher negra, de 37 anos, com transtorno psicótico secundário a comprometimento central por neurosarcoidose, sem investigação clínica consistente, medicada apenas com antipsicóticos e com diversas interna-ções. Durante os 6 anos de hospitalizações, o diagnóstico prévio de neu-rosarcoidose era desconhecido ou até ignorado, demonstrando a falta de integração entre clínicas e serviços que prestaram assistência.

Lipscombe e cols. (2003) relatam que características clínicas das le-sões envolvendo o hipotálamo e a haste hipofi sária dependem da localiza-ção, grau de extensão adjacente e da progressão.

As lesões envolvendo o hipotálamo e haste podem levar a defi ciên-cia hormonal da hipófi se anterior, causadas tanto por comprometimento da liberação dos peptídeos hipotalâmicos quanto por compressão glandular.

miolo.indd Sec1:99miolo.indd Sec1:99 07.03.2006 18:05:1807.03.2006 18:05:18

Décio Gilberto NATRIELLI FILHO, Otávio José Figueira VERRESCHI e Giordano ESTEVÃO

100

Os pacientes procuram tratamento devido a evidências de disfunção gona-dal, hipotireoidismo secundário e até mesmo defi ciência de cortisol. Lesões que comprimem ou infi ltram a haste hipofi sária geralmente resultam em hiperprolactinemia devido à interrupção da inibição dopaminérgica sobre a secreção de prolactina na hipófi se anterior. Conforme avaliam Lipscombe e cols. (2003), o comprometimento da secreção do hormônio antidiurético no diabete insípido pode resultar da infi ltração ou compressão da hipófi se posterior, da haste hipofi sária, hipotálamo ou da região paraventricular do terceiro ventrículo, mas são incomuns, conclui Saeger (2002).

Queixas visuais com massas selares ou paraselares são comuns de-vido à proximidade ao quiasma óptico, nervos e tratos. Défi cits visuais atí-picos, conforme descritos no caso relatado, seriam decorrentes de lesões envolvendo o quiasma. A cefaléia é, com freqüência, sintoma proeminente nas lesões selares. (Lipscombe e cols., 2003).

Frohman e cols. (2001) salientam que os médicos devem estar aten-tos para manifestações de neurosarcoidose inicialmente neuro-oftalmoló-gica. Afi rmam que a RNM do crânio e órbita seria a melhor escolha na avaliação inicial e estudo por imagem nestes casos. Concordante ao nosso estudo, se a sarcoidose é suspeita nos achados da RNM – que poderia in-cluir espessamento das meninges, aumento hipotalâmico e envolvimento da haste hipofi sária –, seria indicada uma avaliação diagnóstica detalhada e focalizada.

Segundo a CID-10 e o Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders 4th ed. (DSM-IV), os transtornos orgânicos do humor (afetivos), devem acompanhar o fator orgânico e não representar uma resposta emo-cional a transtorno cerebral simultâneo (Akiskal, 2000).

Sonenreich e cols. (1999) propõem diagnosticar depressão nos casos caracterizados pela lentifi cação dos processos psíquicos em um campo vi-vencial estreitado. Escrevem: “A velocidade dos processos psíquicos cons-titui um aspecto básico para todos os autores que elaboraram ou estudaram os quadros depressivos e maníacos. Aceleração do lado da mania e lentifi -cação do lado da depressão não deixam de ser mencionadas pelos autores que adotam o conceito de transtornos do humor ou afetivos”. O conceito de campo vivencial baseia-se nos trabalhos de Lewin (1936), citado por Sonenreich e cols.: “Referimo-nos ao campo vivencial como o espaço no qual se desenrola a atividade global da pessoa, síntese da análise das infor-mações provenientes do corpo, do ambiente, da intercomunicação com os outros, com signifi cados dados pela memória das experiências passadas, pelos valores, pelos projetos, com ressonância afetiva e sugestões de res-posta. (…) Nesse sentido, falamos das ‘dimensões do campo vivencial’”. O

miolo.indd Sec1:100miolo.indd Sec1:100 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Neurosarcoidose e depressão: relato de caso

101

estreitamento observado na depressão caracteriza-se por uma limitação das ações e vivências do indivíduo em todas as áreas acima descritas.

Conforme o acompanhamento longitudinal, pudemos observar a persistência de queixas afetivas, difi cultando o seu funcionamento diário, a relação temporal do início dos sintomas com a doença sistêmica (com acometimento do sistema nervoso central) a partir da história e anamnese e, posteriormente, com os exames laboratoriais e de imagem. A melhora dos sintomas associados às complicações da neurosarcoidose não determinou a remissão dos sintomas afetivos, que tiveram uma melhor resposta à Ser-tralina 150 mg ao dia. O contato do psiquiatra com a paciente, a anamnese, a avaliação psicopatológica e as diretrizes diagnósticas apresentadas forne-cem, em conjunto, um substrato sufi ciente para a indicação do antidepressi-vo, que resultou em grande benefício para a paciente, com alívio (ainda que parcial por um bom período) da sintomatologia depressiva.

A identifi cação, na primeira consulta, de alterações na tomografi a com-putadorizada, bem como a investigação dos antecedentes pessoais, com a constatação da amenorréia, favoreceram o rápido encaminhamento para outras especialidades e a solicitação imediata do exame por imagem mais indicado (RNM), possibilitando uma abordagem global e integrada do indivíduo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Akiskal HS. Mood Disorders: Clinical Features. In: Sadock BJ, Sadock VA. Kaplan & Sadock´s

Comprehensive Textbook of Psychiatry. 7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000. p. 1338-77.

Burns TM. Neurosarcoidosis. Arch Neurol 2003; 60: 1166-8.

Duwve BV, Turetsky BI. Misdiagnosis of schizophrenia in a patient with psychotic symptoms.

Neuropsychiatry Neuropsychol Behav Neurol 2002; 15(4): 252-60.

Ferriby D, Seze J, Stojkovic T, Hachulla E, Wallaert B, Destée A, et al. Long-term follow-up of neurosarcoidosis. Neurology 2001; 57: 927-9.

Frohman LP, Grigorian R, Bielory L. Neuro-ophthalmic manifestations of sarcoidosis: clinical spectrum, evaluation, and management. J Neu-roophthalmol 2001; 21(2): 132-7.

Lipscombe L, Asa SL, Ezzat S. Management of lesions of the pituitary stalk and hypothalamus. Endocrinologist 2003; 13(1): 38-51.

miolo.indd Sec1:101miolo.indd Sec1:101 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Décio Gilberto NATRIELLI FILHO, Otávio José Figueira VERRESCHI e Giordano ESTEVÃO

102

Lynch III JP. Neurosarcoidosis: How good are the diagnostic tests? J Neu-roophthalmol 2003; 23(3):187-9.

Organização Mundial de Saúde. Classifi cação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnós-ticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.

Saeger W. Tumor-like lesions of the pituitary and sellar region. Endocrino-logist 2002; 12: 300-14.

Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho LMA. Psiquiatria: Propostas, Notas, Comentários. São Paulo: Lemos Editorial, 1999.

Thomas KW, Hunningale GW. Sarcoidosis. JAMA 2003; 289(24): 3300-3.

Weinberger SE. Sarcoidose. In: Goldman L, Bennett JC, editors. Cecil – Tratado de medicina interna. 21a

ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A.; 2001. p. 480–3.

SUMMARY

Sarcoidosis is a multisystem granulomatous disorder of unknown etiology that occurs throughout the world and affects people of all races and ages. Diagnosis requires histological evidence of wi-despread noncaseating epithelioid cell granulomas in more than one organ. Patients are typically between 20 and 40 years of age at the time of diagnoses. Neurosarcoidosis occurs in approximately 5% to 15% of sarcoidosis cases. A case is presented of a 42 year-old woman with a clinical history of atypical depressive symptoms related to the involvement of the central nervous system due to sarcoi-dosis. The clinical evaluation and the successful treatment with antidepressant therapy are described as well as the importance of an adequate referral to clinical investigation and treatment.

KEYWORDS: Sarcoidosis. Neurosarcoidosis. Depression.

Décio Gilberto Natrielli Filho Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica Hospital do Servidor Público Estadual - “FMO” Rua Pedro de Toledo, 1800 – Vila Clementino CEP: 04039-901 São Paulo – SP - BRASIL

E-mail: [email protected]

miolo.indd Sec1:102miolo.indd Sec1:102 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

103

ENTREVISTA COM VALENTIM GENTIL FILHO*Entrevista a Mônica Teixeira**

Mônica Teixeira: Quais são suas restrições ao modelo de saúde mental preconizado pelo Ministério da Saúde?

Valentim Gentil Filho: De várias ordens. O modelo ideal seria uma rede de serviços. Concordo com o princípio de que o hospital psiquiátrico não deve ser o centro, nem a porta de entrada. Não sou contra reduzir o número de leitos hospitalares especializados na medida em que eles sejam desnecessários e substituídos por equipamentos alternativos de atendimen-to às necessidades médicas e sociais supridas por eles. Sou contra a des-hospitalização imprevidente realizada nos últimos 15 anos. Também critico a falta de investimento em boa psiquiatria, com programas de prevenção secundária efetiva, e na prevenção primária possível, que poderiam de fato reduzir a demanda por leitos hospitalares. No modelo atual, não se prevê quase nenhuma prevenção primária em psiquiatria. Essa é uma restrição importante. Por exemplo: nunca ouvi uma palavra do Ministério da Saúde, em nenhum governo, alertando para as evidências científi cas de que ma-conha faz mal à saúde. Ao contrário, assisto a uma atitude complacente ou mesmo simpática dos seus representantes. Além de agravar e precipitar vá-rios quadros, a maconha fumada por meninas antes dos quinze anos aumen-ta em três vezes o risco de depressão; desde os anos 1980, e comprovado desde 2002 pela publicação de pelo menos cinco estudos em vários países – um deles com seguimento de 27 anos – mostrando um aumento signifi ca-tivo do risco para esquizofrenia entre jovens que fumam maconha uma vez por semana antes dos dezoito anos. Nunca vi o Ministério da Saúde levar em conta trabalhos científi cos mostrando que infecções virais gripais, na primeira metade da gravidez, aumentam o risco de esquizofrenia; eles po-deriam alertar as mulheres grávidas para evitarem ambientes onde possam se contaminar com vírus da gripe. Nunca vi uma campanha sugerindo que pessoas de temperamento instável não devem se expor a anorexígenos, es-timulantes, ao abuso de álcool. Isto é prevenção primária em saúde mental, possível e justifi cável, mesmo que seja politicamente difícil.

M.T.: Mas isso não é pedir demais ao Ministério da Saúde?

*Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Professor Titular da Faculdade de Medicina da USP.**Entrevista publicada originalmente na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, março de 2005.

Temas, 2005, 68-69 : 103-126

miolo.indd Sec1:103miolo.indd Sec1:103 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Valentim GENTIL FILHO

104

V.G.F.: Não. É obrigação. Em algumas áreas da saúde se faz pre-venção. Mas por que o Ministério não faz mais? Porque a estrutura de saú-de mental é muito pequena, inefi ciente e fi ca perdida na questão que foi tomada como bandeira – o fechamento dos manicômios. Também não se faz prevenção secundária. Por que não? Talvez porque prevenção secun-dária tenha que ser feita com boa medicina, e boa clínica psiquiátrica não é prioridade nessa política, comprometida com a corrente da reabilitação psicossocial e des-medicalização da psiquiatria.

M. T.: O que o senhor chama de prevenção secundária?

V.G.F.: Quando se detecta precocemente uma doença, é possível in-tervir de forma efi caz e impedir que ela cause mais problemas e sofrimento. Os mais favorecidos no Brasil podem ter prevenção secundária: quando detectam algum problema ligam para o médico, que indica um serviço psi-quiátrico qualquer e intervém precocemente. Apesar disso, leva-se muitos anos para chegar ao diagnóstico defi nitivo, porque existe um grau

de incompetência no sistema. De qualquer forma, cada vez que al-guém começa a entrar em fase ou em surto, há intervenção precoce, a pes-soa não chega a ser internada. No meu consultório, quase não interno – tra-balho com gente com depressão grave, mania. Isso é verdade para a maioria dos psiquiatras que atendem em clínica privada. Entretanto, só no Estado de São Paulo, mais de 10.000 Autorizações de Internação Hospitalar são feitas todos os anos, apenas para depressão bipolar e mania, demonstran-do a falta de prevenção secundária efetiva. Como se poderia fazer preven-ção secundária neste país, no SUS? Implementando uma rede de serviços ambulatoriais – não prontos-socorros, como preconiza o modelo – para o acompanhamento dos pacientes e suas famílias, e à qual as pessoas possam recorrer quando apresentam os primeiros sinais de recaída. Isso seria efi -ciente para reduzir internações.

M.T.: Os defensores do modelo atual afi rmam que os Centros de Atenção Psicossocial deveriam prestar esse serviço.

V.G.F.: É só olhar os números: quantos Caps existem? Quantas pes-soas são atendidas nos Caps? Entrei no site do Ministério da Saúde em agosto de 2004 e lá constava existirem 546 Caps, dos quais 64 eram para álcool e drogas e 41 para crianças e adolescentes. Sobram 441 para os adul-tos com todos os outros quadros, especialmente as psicoses. Os dados do site mostravam também um salto no número de atendimentos nos Caps, de 389 mil em 2002, para 3,7 milhões em 2003. Dá para acreditar? Sem

miolo.indd Sec1:104miolo.indd Sec1:104 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Entrevista a Mônica Teixeira

105

aumentar proporcionalmente o número de funcionários e o número de Caps? Deve ter havido algum erro de aritmética. O fato é que, não apenas os hospitais mas também a rede ambulatorial foram desmontados antes de haver uma rede alternativa. A estrutura de Caps não visa ampla prevenção secundária psiquiátrica: é basicamente voltada para o acompanhamento de um determinado grupo de pacientes com equipe multiprofi ssional, visando “prevenção de todos os níveis” – entre aspas. O modelo adotado atua como se psiquiatria fosse apenas a “clínica das psicoses”. Trabalhar com reabili-tação, hospital-dia, para dar atendimento em substituição à hospitalização, é importante. Mas não é a melhor forma de fazer prevenção secundária dos principais transtornos mentais, pois a maioria dos transtornos mentais não vai parar nos Caps – são pessoas com depressão, pânico, fobias, transtorno obsessivo-compulsivo, ou transtorno bipolar maníaco-depressivo. Esses são transtornos mentais que não precisam, não procuram e não aceitam o tipo de atendimento oferecido pelos Caps. O modelo SUS propõe uma estrutura de Unidade Básica de Saúde (UBS) e Programa de Saúde da Família (PSF), para detectar e tratar transtornos mentais comuns. Basta ir às UBSs e aos PSFs e ver se eles têm competência psiquiátrica para fazer isto. A resposta é: não – nem aqui nem nos outros países. Quanto tempo vai levar para que essas equipes estejam capacitadas a fazer boa prevenção secundária, para os municípios montarem uma rede ambulatorial em substituição à rede es-tadual, se o SUS remunera muito mal uma consulta psiquiátrica? Qual é o prefeito que vai poder contratar esses serviços, a R$ 2,54 por consulta? O modelo todo é assim: não tem boa prevenção primária onde dá para fazer – que é pouco – e não tem boa prevenção secundária, porque Caps e pronto-socorro não servem para isso.

M.T.: Mas nem o Estado de São Paulo tem uma rede de ambulató-rios de saúde mental? Mirsa Dellosi, da Secretaria da Saúde, em entrevista dada a esta revista, em dezembro de 2003, disse que essa rede existe.

V.G.F.: Com exceção dos hospitais universitários e de servidores, a rede de ambulatórios estaduais está sendo fechada ou já fechou, pois o Sis-tema Único de Saúde manda municipalizar – mas o município não tem re-cursos para montar a rede alternativa para saúde mental ou mesmo ter um psiquiatra. Para alguns, os problemas psiquiátricos podem ser atendidos em cuidados primários, como se um generalista pudesse diagnosticar e tratar os transtornos mentais de crianças a idosos. Não é verdade. Talvez clínicos bem treinados possam dar conta das depressões. Quem olha os dados da OMS, re-centemente publicados (J.A.M.A., junho de 2004) vê que, mesmo nos países

miolo.indd Sec1:105miolo.indd Sec1:105 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Valentim GENTIL FILHO

106

mais desenvolvidos, de 35 a 50% dos casos mais graves de transtornos men-tais comuns não recebem atendimento num período de 12 meses. Nos países menos desenvolvidos isso chega a mais de 85%. No modelo brasileiro não se faz boa prevenção secundária – conseqüentemente, os casos se agravam. Alguns mentores da nossa reforma propõem que o Pronto-Socorro seja uma porta de entrada. Ora, Pronto-Socorro é indício de falência do sistema: só se vai ao Pronto-Socorro com problema psiquiátrico porque ele se agravou a tal ponto que a família não pode mais cuidar. O caso ocupará o espaço e o tempo de alguém que deveria estar atendendo um infarto ou um acidente – que são imprevisíveis. Pronto-Socorro não é para tratar depressão – não tem cabimen-to. Depressão você detecta precocemente, intervém, aborta e pronto.

M.T.: Mas o que se vê no hospital público com deprimidos não pode ser descrito dessa maneira: “intervém, aborta e pronto”. A clínica mostra que os deprimidos, medicados ou não, são muito renitentes...

V.G.F.: Se você detecta precocemente um quadro depressivo, sua chan-ce de livrar a pessoa dessa depressão imediatamente é muito alta. A maior parte das depressões médicas – não existenciais, médicas –, principalmen-te aquelas conhecidas há séculos, endógenas, são depressões com começo, meio e fi m. A maior parte desses quadros entra em remissão. Outra coisa é a depressão neurótica, de baixa intensidade – aí talvez a efi cácia seja menor.

M.T.: Entre esses deprimidos, o senhor não reconhece um compo-nente que não é biológico?

V.G.F.: Chamo de depressão não os sintomas, mas a síndrome. Se não houver um componente biológico, a síndrome não se instala. Sua causa é multifatorial, mas a vulnerabilidade biológica é fundamental. Estou fa-lando do quadro clínico defi nido medicamente como depressão. Não estou falando de depressão em senso amplo.

M.T.: Mas o senhor falava do tratamento em pronto-socorros...

V.G.F.: Não é no Pronto-Socorro que se atende nem depressão, nem casos de transtorno bipolar agravado. É para esperar alguém entrar em ma-nia, chegar ao Pronto-Socorro e tomar uma injeção? Não: você faz preven-ção secundária efi caz. Nestes últimos 25 anos, quase nada se fez no país para montar uma rede assim. Estamos fazendo um projeto em São José do Rio Preto, fi nanciado pela Fapesp em parceria com a Faculdade de Medi-cina e de Enfermagem de lá, testando prevenção secundária de transtorno bipolar, junto com as Unidades Básicas de Saúde. É um projeto de pesquisa,

miolo.indd Sec1:106miolo.indd Sec1:106 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Entrevista a Mônica Teixeira

107

porque é necessário provar que aquilo é efi ciente, para depois recomen-dar para governos – e não ir implementando procedimentos que não foram sequer testados, como é o costume no Brasil. Quando as pessoas já estão mais comprometidas, é preciso fazer prevenção terciária, que requer maior complexidade no atendimento, em geral em hospital especializado de bom nível, uma raridade em extinção no modelo. O que os governos fi zeram, nos últimos 15 anos? Montaram Caps mal equipados, com recursos humanos pouco qualifi cados e baixa resolutividade. Não há no Brasil alguém que vá defender manicômios...

M.T.: Nem o senhor?

V.G.F.: Já escrevi muitas vezes que não defendo manicômio – para mim, mistura de asilo, com hospital, com prisão. Segundo a “Justifi cação” do projeto Paulo Delgado, de 1989, havia 120 mil leitos psiquiátricos no Brasil – “100 mil remunerados pelo setor público e cerca de 20 mil leitos estatais” (sic*). Em 2004, segundo a página do Ministério da Saúde, exis-tiam 48 mil e mais 3,5 mil seriam fechados este ano. A população pulou de 80 milhões para 180 milhões. Aritmética simples: o equivalente àqueles 120 mil seriam, hoje, 270 mil; como restavam 48 mil, então 82% dos leitos desapareceram. O que se construiu de alternativa? Na página do Ministé-rio, é possível descobrir que temos 2.000 leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais. Desmontou-se parte da rede hospitalar ruim, às vezes depósitos, às vezes asilos – às vezes hospitais – e substitui-se por 2.000 leitos psi-quiátricos em Hospitais Gerais e 450 Caps (fora aqueles para crianças e adolescentes e para álcool e drogas). Onde foram parar as pessoas “desin-ternadas”, os novos doentes graves e o dinheiro? Tenho sérias críticas a essa política irresponsável. Houve imprevidência e tentou-se resolver “revolu-cionariamente” uma questão muito complexa, que não é única do Brasil. Em outros países, essa forma de enfrentar o problema não deu certo. Não se desconhecia aqui o que ocorreu nos Estados Unidos com a des-hospita-lização. Franco Rotelli, quando esteve no Brasil, na década de 1980, disse que o modelo italiano era muito diferente do modelo americano. Segundo ele, o modelo americano resultou nos “loucos pelas ruas”, pois os hospitais foram fechados para economizar recursos fi nanceiros, antes de se instalar uma rede alternativa. Ele também afi rmou que os centros de Saúde Mental da era Kennedy não davam conta disso.

*Sic do entrevistado (Nota do E.).

miolo.indd Sec1:107miolo.indd Sec1:107 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Valentim GENTIL FILHO

108

M.T.: Os loucos americanos, presentemente, estão na cadeia.

V.G.F.: Os loucos brasileiros nós não sabemos onde estão.

M.T.: Na rua.

V.G.F.: Não só. Basta conversar com quem trabalha com a população carcerária para saber que há muitos nas cadeias e prisões. As pessoas foram alertadas que não deveriam fazer isso.

M.T.: Com base na experiência italiana e na experiência norte-americana?

V.G.F.: O Rotelli disse explicitamente que não poderíamos cometer o erro da política de saúde mental dos Estados Unidos – não poderíamos fechar leitos antes de termos alternativas. Mesmo na Itália, o modelo foi bem-sucedido apenas em alguns lugares. Por exemplo, ao sul da cidade de Verona – não em Verona, mas ao sul da cidade de Verona –, onde há o projeto do Michelli Tansella, fortemente subsidiado por se tratar de um projeto de pesquisa. Eles não precisam de hospital psiquiátrico: a popu-lação é relativamente pequena e há leitos em Hospital Geral. Em Trieste, foi parcialmente bem-sucedido. Houve ali características peculiares: uma cidade de 300 mil habitantes, uma sociedade multiétnica e tolerante, onde a população optou por cuidar dos doentes – nada que se possa generalizar. Os textos do Rotelli diziam para não fazermos isso que foi e continua a ser feito aqui. Mesmo assim, o que aconteceu? Os líderes do movimento apre-goaram que poderíamos fechar leitos e, “com o dinheiro economizado”, abrir os recursos alternativos “mais baratos” e mais humanitários. Mesmo que fosse verdade, mesmo que aquele dinheiro fi casse na área, seria preciso ter equipes e equipamentos efi cientes. Depois de vinte anos dessa política, a realidade é a que está aí.

M.T.: Qual?

V.G.F.: Cidade de São Paulo: 10.394 moradores de rua, na parte do município que foi estudada, de acordo com o recenseamento da Fipe (10/2003), segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social. Se apenas 10% dessa população tiver esquizofrenia – como em Juiz de Fora, conforme a tese de doutorado de Uriel Heckert, publicada em 1999 –, então são mais de mil esquizofrênicos nas ruas da Capital de São Paulo. Adianta colocá-los num hotelzinho da Estação da Luz? Adianta tratar como se fosse um pro-blema de habitação? Não adianta: essas pessoas estão doentes. Em termos

miolo.indd Sec1:108miolo.indd Sec1:108 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Entrevista a Mônica Teixeira

109

de ortopedia, isso equivaleria à fratura exposta. Então, temos mais de mil pessoas com fratura exposta nas ruas de São Paulo: qual é o programa que acolhe a demanda dessas pessoas?

M.T.: Segundo a legislação, a responsabilidade é dos Caps.

V.G.F.: Então deveria haver uma rede de Caps efi ciente – o que não existe. Os abrigos, asilos e leitos foram fechados e as pessoas deixadas ao relento – como já disse, a população aumentou em 100 milhões, mas o nú-mero de leitos foi reduzido e os recursos alternativos são irrisórios.

M.T.: Em São Paulo, a des-hospitalização ocorreu dessa maneira, na sua opinião? Na entrevista que já citei, concedida aqui por Mirsa Dellosi, da Secretaria Estadual da Saúde, ela afi rmou que não houve desassistência nem isso que o senhor chamou anteriormente de “irresponsabilidade”.

V.G.F.: O Governo do Estado de São Paulo foi pressionado a fechar mais leitos, mas se recusou – por saber que não havia onde pôr as pessoas. Descobriu-se que o Estado não poderia despejar os doentes na rua. Entre-tanto, a maioria dos psicóticos nas ruas de todos os países que fecharam seus leitos nem chegaram aos manicômios; simplesmente não foram atendi-dos. Isso é desassistência. Mas o que deveria ter sido feito? Fomentar a cria-ção de bons serviços de psiquiatria: de hospitalização aguda; residências terapêuticas – um equipamento caro, mas que pode diminuir a demanda por atendimento hospitalar quando a pessoa não mais precisa de cuidados intensivos. Mas também se poderia ter criado asilos e abrigos para habita-ção, condomínios supervisionados, que são equipamentos sociais. E você não escapa da necessidade de institucionalização. Quem diz isso é Stefan Priebe, em editorial na Acta Psiquiátrica Escandinávica, em 2004. Os pro-jetos de desinstitucionalização esbarram no contingente de doentes mentais mais graves, que não conseguem viver sem uma supervisão institucional. Isso a Secretaria Estadual da Saúde reconheceu, e em São Paulo houve mais prudência nos últimos anos. Mas se o cuidado deve ser institucional, qual será o equipamento adequado para dar habitação a quem não precisa mais de hospital? Não é residência terapêutica, e obviamente não é Caps.

M.T.: Por que não é residência terapêutica?

V.G.F.: A residência terapêutica é um equipamento quasi-hospitalar. É um lugar ainda de tratamento. Mas os doentes mentais mais graves preci-sam de residência supervisionada, onde sejam ajudados a resolver pequenos confl itos, a resolver as difi culdades que têm para viver sozinhos. Isso de-

miolo.indd Sec1:109miolo.indd Sec1:109 07.03.2006 18:05:1907.03.2006 18:05:19

Valentim GENTIL FILHO

110

veria ser feito não com verbas da Saúde, mas da área de Bem-Estar Social. Nada é mais difícil para as pessoas comprometidas por psicose ou alguns outros transtornos psiquiátricos do que entender a lógica da sociedade: são explorados, entram em confl ito com os vizinhos, com a polícia, são vítimas da difi culdade de compreensão sobre as regras do jogo social. Precisam de alguém que intermedeie – e isso é institucional. Já houve a fantasia de que a desinstitucionalização seria possível. De acordo com o muito informativo livro Loucos pela vida, de Paulo Amarante e colaboradores, a proposta para o Brasil era desinstitucionalizar, desconstruir a doença mental como um problema médico e vê-la como um problema psicossocial. A razão de se usar a palavra manicômio para designar qualquer hospital psiquiátrico, por exemplo, foi uma decisão estratégica para identifi car todos os serviços hos-pitalares com os manicômios judiciários. Mas o que aconteceu? Em vez de desinstitucionalização, houve des-hospitalização, aquilo que Rotelli conde-nou nos Estados Unidos. No mínimo, isso foi uma aventura irresponsável.

M.T.: Qual é a diferença entre des-hospitalizar e desinstituciona-lizar?

V.G.F.: Para desinstitucionalizar, as propostas seriam ainda mais radicais: os pacientes deveriam se tornar autônomos. O que houve, na me-lhor das hipóteses, foi trans-institucionalização: a pessoa saiu do hospital para ir para o Caps, que é uma instituição. Um artigo no British Medical Journal, em novembro de 2004, demonstra trans-institucionalização e au-mento da população carcerária doente mental em seis países da Europa, inclusive na Itália. Estamos, de fato, incapazes de desinstitucionalizar. Por quê? Porque, diferentemente de 1960, não temos nenhuma dúvida de que essas são doenças médicas incapacitantes. O pós-guerra trouxe a expectativa de que, através de intervenções psicossociais, haveria pre-venção em todos os níveis, inclusive na reabilitação dos doentes mentais. Com a indisponibilidade de qualquer tratamento médico efi caz para esse tipo de problema – não existia nada, a não ser o eletrochoque – todas as fi chas foram colocadas na chamada abordagem social-comunitária, de inspiração psicodinâmica. O principal articulador nos Estados Unidos foi Gerald Caplan. O problema é que nada daquilo foi submetido a teste de efi cácia – era intuitivamente correto, lógico, dentro dos conhecimentos da época, só que acabou prometendo mais do que podia fazer. As promessas do movimento psicodinâmico-psicossocial-comunitário e da “psicanálise nas instituições” não puderam ser cumpridas. Quais eram elas? Em famí-lias saudáveis, não haveria doentes mentais; em uma sociedade solidária,

miolo.indd Sec1:110miolo.indd Sec1:110 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Entrevista a Mônica Teixeira

111

haveria menos problemas psiquiátricos. Esqueceu-se a dimensão médica, biológica, conhecida desde o Velho Testamento, porque as pessoas têm doenças e não apenas “sofrimento psíquico”.

M.T.: “Apenas” sofrimento psíquico?

V.G.F.: O sofrimento psíquico é universal. É necessário sair da am-bigüidade para que a psiquiatria não perca a identidade. Se vamos falar de sofrimento psíquico, prefi ro Dostoiévski, Proust, Thomas Mann – es-sas pessoas falaram de sofrimento psíquico muito melhor do que qualquer psiquiatra. O domínio do sofrimento psíquico é da humanidade. Quem faz melhor a abordagem disso são escritores, poetas, fi lósofos, não são os médi-cos, psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Falar em sofrimento psíquico é inespecífi co demais. É a mesma coisa que falar em humanização. Por acaso nós somos veterinários? O que estou dizendo é que o sofrimento psíquico não é um problema médico. Se se fala em sofrimento psíquico, não se fala daquilo que identifi camos como “anormal”, “doente”, e que hoje tem tra-tamento efi caz. Isto é negligência, omissão de socorro, anti-ético. Estou falando de esquizofrenia e outras doenças graves. Em 2005, a efi cácia da psiquiatria é comparável à das outras áreas da medicina; só que o modelo montado ou não leva em conta essa efi cácia, ou é ambivalente em relação às abordagens médicas e tenta contrapô-las à “reabilitação psicossocial” ou à “escuta”, em vez de investir na prevenção secundária efi caz. Além disso, como já disse, o modelo não pode ser só voltado para as psicoses, deixando de lado os transtornos mentais comuns. Agora, se há sofrimento psíquico e não há problema médico, então a pessoa pode se benefi ciar de outras alternativas para o alívio da dor psíquica – uma boa relação afetiva, uma abordagem religiosa, um consolo na fi losofi a; ou merecer um tratamento específi co, uma psicoterapia, por exemplo; se quiser se conhecer mais pro-fundamente, entender a origem dos confl itos, se quiser um referencial mais robusto, mais sólido, faz como eu fi z algumas vezes: vai para a análise.

M.T.: O senhor se submeteu à psicanálise?

V.G.F.: Um pouco; o sufi ciente para ter uma vivência do que é a psicanálise. Sou casado com uma analista.

M.T.: Qual é então o lugar da psicanálise, quando se trata do so-frimento psíquico?

V.G.F.: A psicanálise tem indicações específi cas; eu encaminho pa-cientes para psicanálise. Existem angústias, confl itos, relações interpessoais

miolo.indd Sec1:111miolo.indd Sec1:111 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Valentim GENTIL FILHO

112

estressantes, distúrbios de identidade, problemas de escolha de caminhos existenciais. Não há nada melhor do que a psicanálise para isso. As pessoas pensam que falar de psicanálise é como falar de religião, é necessário lou-var o tempo inteiro. Eu não louvo; isso não é religião.

M.T.: Como foi a des-hospitalização nos Estados Unidos?

V.G.F.: Isso é contado no livro Madness in the Streets – How Psychiatry and the Law Abandoned the Mentally Ill (Loucura nas ruas – Como a psiquiatria e a lei abandonaram os doentes mentais), escrito pela socióloga Rael Jean Isaac e pela escritora Virginia Armat. É lamentável que esse livro de 1990 não tenha sido traduzido para o português. Ali se contam, também, fatos conhecidos de outras publicações: a partir dos mo-vimentos de higiene mental e de saúde pública, sob infl uência da psicaná-lise dos anos 1940-1950 e da psiquiatria comunitária de Gerald Caplan, as pessoas pensaram que seria possível resolver problemas psiquiátricos com boa intervenção psicossocial. Não funcionou: os leitos foram fechados nos Estados Unidos e, em 2003, havia quase um milhão de doentes mentais graves no sistema penal – 284 mil presos com esquizofrenia e transtorno bipolar, outros 550 mil em liberdade condicional, além de 200 mil mo-rando nas ruas – conforme o McMan’s Depression and Bipolar Weekly, na Internet.

M.T.: A idéia norte-americana foi substituir o hospital por...

V.G.F.: Psiquiatria comunitária. Na era Kennedy, esperava-se que Centros de Saúde Mental fossem dar conta de tudo.

M.T.: É a mesma idéia em que se baseia a experiência italiana?

V.G.F.: Na teoria, não. Segundo os italianos do movimento basaglia-no, o objetivo dos americanos era meramente econômico: queriam continu-ar institucionalizando, mas de uma forma mais barata, para investir menos recursos na Saúde Mental, enquanto eles, basaglianos, faziam isso de forma muito mais humanitária, sem preocupação com a economia, e sim com a re-inserção social dos pacientes. Todas as análises sobre a psiquiatria ita-liana vão mostrar que em alguns centros isso ocorreu: mas não na maioria do país.

M.T.: A expressão “reabilitação psicossocial” nasce quando e como?

miolo.indd Sec1:112miolo.indd Sec1:112 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Entrevista a Mônica Teixeira

113

V.G.F.: Existe uma Associação Mundial para Reabilitação Psicosso-cial, recente, promovida por Benedetto Saraceno, e uma Associação Interna-cional de Serviços de Reabilitação Psicossocial, mais antiga. Não sei se se fundiram. Esse é um conceito desenvolvido a partir do pós-guerra. No Brasil, seus líderes vêm dos movimentos de Reforma Sanitária, da Saúde Mental/Pública/Coletiva, da Psiquiatria Comunitária, da Terapia Ocupacional. Ela sofre infl uência conjunta de teorias sociológicas e de base psicanalítica. Por exemplo, em 1978, houve um Primeiro Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições. Segundo o livro do Paulo Amarante, esse congres-so estava “inserido na estratégia para o lançamento de uma nova socieda-de psicanalítica de orientação analítica institucional, o Instituto Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições”. Isso possibilitou a vinda ao Brasil dos principais mentores da rede alternativa da psiquiatria do Movimento de Psiquiatria Democrática Italiana – Franco Basaglia, Felix Guattari, Roberto Castel, Ervin Golfman, entre outros. Depois disso aconteceu a Feira da Psica-nálise num congresso no Copacabana Palace. Obviamente essas pessoas não fazem parte das sociedades de psicanálise e nem sei se isso vingou. Mas, em setembro de 2004 no Hospital Juliano Moreira, de João Pessoa, houve um curso de extensão sobre “A Psicanálise e a Reforma Psiquiátrica Brasileira”, ministrado por um psicanalista da UERJ, discutindo “o paradigma da desme-dicalização e a concepção da loucura como efeito dos processos de exclusão social”. Algumas pessoas continuam a contrapor um modelo psicossocial ao modelo médico. Entretanto, algumas propostas da reabilitação psicossocial são interessantes, e as adotamos aqui no Instituto de Psiquiatria da USP. Gos-to, em particular, do fomento a empresas sociais.

M.T.: Então na base da reforma...

V.G.F.: ... há um confl ito ideológico. Aliás, três confl itos ideológicos básicos. Autores ingleses citam como um dos pressupostos dos basaglianos a idéia euromarxista de que a psiquiatria é um instrumento do capitalismo. O outro confl ito contrapõe psiquiatria clínica, mais médico-biológica, e os movi-mentos de higiene mental e psicossomático, de inspiração psicanalítica, para os quais as alterações psiquiátricas seriam reações a problemas e confl itos intrap-síquicos ou interpessoais, mas as insere também num contexto político-social ao falar da sociedade hostil, “desigual, intolerante para os seus homens e suas idiossincrasias”. A psiquiatria psicodinâmica era, até 1976, a forma dominante nos departamentos de psiquiatria dos Estados Unidos. Se as alterações psiquiá-tricas eram reações psicológicas, seu corolário seria poder intervir precocemen-te, com ferramentas psicossociais, para a prevenção de doenças mais graves.

miolo.indd Sec1:113miolo.indd Sec1:113 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Valentim GENTIL FILHO

114

M.T.: Tornando o ambiente não hostil?

V.G.F.: Ou então fazendo com que a pessoa se tornasse mais capaz de enfrentar essa hostilidade sem se desestruturar.

M.T.: A que esse entendimento se contrapõe?

V.G.F.: A todo o avanço que aconteceu na psiquiatria como especiali-dade médica, de 1960 para cá, fortemente subsidiado pelos recursos terapêu-ticos efi cazes. Até o início dos anos 1950, não havia nada com que intervir dentro do modelo médico; você não podia fazer um diagnóstico, dar um me-dicamento e obter uma resposta previsível. Isso permeava a psiquiatria como um todo, e o psiquiatra era quase um botânico, discutindo suas classifi cações e teorias psicopatológicas. Quando comecei a falar sobre síndrome do pâni-co, as pessoas diziam que era um modismo, que o pânico era a neurose de angústia de Freud. Insisti que era, sim, a neurose de angústia de Freud e não a “neurose ansiosa”, como se usava nas classifi cações da época, que englobava a ansiedade generalizada. Pânico é uma condição específi ca, como Freud per-cebeu em 1895, com Catarina. É fantástico; uma descrição muito pertinente de síndrome do pânico com agorafobia secundária. Freud dizia que, um dia, o quadro seria tratado com medicação. Há alguns anos, conversei com um dos psiquiatras que mais estimo e respeito em São Paulo, de orientação mais psicodinâmica do que a minha, que sou de maior formação farmacológica. Disse a ele: “Proponho tratar esta nossa cliente desta forma; espero, daqui a duas semanas, ter tal resposta”. Ele respondeu: “Vamos ver o que vai acon-tecer, mas não espero que isso aconteça”. Duas semanas depois, aconteceu o que eu previra. Para mim, não foi surpresa; psiquiatria é medicina, e como em qualquer outra área médica, a partir de um diagnóstico, há uma formula-ção clínica, propõe-se uma conduta terapêutica, e espera-se um determinado resultado dentro de um prazo determinado. Isso não é nada além de medicina; em todas as áreas é assim. Esse contraponto virou uma questão ideológica, em vez de ser uma questão técnica; psiquiatria biológica e psiquiatria psico-dinâmica são reducionismos indesejáveis.

M.T.: Por quê?

V.G.F.: Porque as abordagens devem ser complementares. Vivemos num mundo dualista e reducionista. Para fazer pesquisa pode ser impossível escapar de reducionismos metodológicos. Em psicanálise, deve-se fi car no referencial psicanalítico; em biologia molecular, é preciso fi car na biologia. Toda vez que se tenta fazer pontes, corre-se o risco de cair porque não há elementos estrutu-

miolo.indd Sec1:114miolo.indd Sec1:114 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Entrevista a Mônica Teixeira

115

rais para fazer essas pontes. A literatura recente na interface de neurociências e psicanálise é muito interessante, mas mostra que ainda não há elementos só-lidos para sustentar uma ponte. Obviamente, há uma fertilização cruzada de conhecimentos, mas deve-se abandonar esse dualismo metodológico e fazer uma abordagem integrativa na hora em que se chega ao paciente. Porém, além disso, existem questões político-ideológicas e corporativas. Uma publicação do Conselho Federal de Psicologia mostra isso; aliás, o CFP é muito alinhado com o “Movimento da Luta Antimanicomial”. A publicação dos anais de um Fórum Nacional, de 31 de maio de 2000 – “Como anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira” – traz citações nominais a mim. Por exemplo, David Capistrano, falecido precocemente, diz: [lê] “A meu ver, respondendo a uma indagação dos organizadores do Fórum, há dois grandes inimigos para o movimento de reforma... o Sindicato dos Donos de Hospitais, Federação dos Hospitais e ou-tras entidades, e um pensamento acadêmico, biologicista, reducionista, que le-vantou novamente a cabeça nas nossas instituições universitárias, cuja ponta de lança é a psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o professor Valentim Gentil e seu bando. Isso se constitui num obstáculo e num centro de difusão de um pensamento hostil à reforma psiquiátrica em nosso país, que não podemos subestimar. Isso tem se espraiado por várias entidades de representação corporativa da categoria médica, que em nenhum lugar do mundo foi favorável à reforma psiquiátrica, pelo menos como maioria sólida, e tem uma infl uência considerável”. Tirando a grosseria, essa me pareceu uma avaliação lúcida dele. De fato, existem dois conjuntos principais de opositores – um, que representa os interesses dos hospitais, e, outro, as Universidades e as representações dos médicos, em todos os níveis. Por que essa segunda fonte de resistência? Porque o viés da reforma psiquiátrica é claramente anti-médico, pretende desmedicalizar as doenças mentais. Não tenho nada contra desme-dicalizar problemas – desde que se encontre alguma ajuda melhor do que a abordagem médica para eles. Tenho responsabilidade social, ética, pessoal, de cidadão, de dizer que esses são problemas médicos, da esfera da psiquiatria. Uma assessora do Domingos Sávio uma vez perguntou se eu achava que os psiquiatras entendiam mais de saúde mental do que os outros profi ssionais. Respondi que sim, porque os psiquiatras sabem o que é doença. Não se pode falar de saúde sem saber o que é doença.

M.T.: E o que é doença?

V.G.F.: É um conceito arbitrário, uma convenção. Certo. Mas é uma convenção útil para quem a sofre. É tudo aquilo com consistência para que se consiga identifi cá-la com robustez sindrômica; que, em geral, se repete

miolo.indd Sec1:115miolo.indd Sec1:115 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Valentim GENTIL FILHO

116

em diferentes épocas, em diferentes culturas, em diferentes condições; que faz parte da espécie em estudo – pode ser doença de planta, ou de gente –; que é lesiva para a integridade do indivíduo; que interfere signifi cativa-mente com a vida, o bem-estar e a capacidade de exercer suas funções; e que pode ter tratamento específi co. Em psiquiatria, encontramos doenças conhecidas desde a Bíblia, como a depressão e o transtorno bipolar. No Velho Testamento, lê-se textualmente: “Então, fulano fi cou louco”, “fulano está delirando”, “fulano teve um acesso de fúria e matou bois”, “fulano foi tomado por uma infl uência divina que o deixou deprimido”, e daí por diante. Estados semelhantes aos que encontramos em diferentes partes do mundo, em diferentes culturas, conhecidos há séculos, não podem ser ape-nas decorrentes de confl itos ou situações sociais. Têm que decorrer de uma disfunção específi ca do corpo humano.

M.T.: Novamente: Mas não há aí um sofrimento psíquico?

V.G.F.: Se eu fosse dualista, teria que tratar o psiquismo como algo separado.

M.T.: Do quê?

V.G.F.: Do físico. Pode-se trabalhar com o dualismo, se você pensar em alma. Dualismo interacionista, por exemplo. Mas não se pode trabalhar com o dualismo se você pensar em psíquico e biológico – não consigo pen-sar em nada que não seja biológico que tenha psique; não consigo imaginar psique sem biologia; nem imaginar a psique dos metais ou dos minerais. Não sou animista. Tento não ser dualista na clínica. Imagino que pessoas em coma possam até ter alguma vida psicológica; mas os mortos não. Não acredito em algo psicológico que tenha a ver com vidas passadas. Temos evidências muito seguras do papel da genética, de alterações na fi siologia corporal, até de alterações micro-anatômicas no cérebro de portadores das principais do-enças mentais. Não há como considerá-las psicogênicas. Isso não quer dizer que não existem componentes ambientais e estresse psicossocial participando da vulnerabilização, precipitação, manutenção, agravamento ou melhora e remissão desses quadros. Os componentes causais podem ser numerosos e temos que trabalhar com mecanismos complexos, inclusive na prevenção.

M.T.: O que leva, na sua opinião, os adeptos da reabilitação psicos-social a negarem esse aparato de conhecimento?

V.G.F.: A negação não vem da reabilitação psicossocial; ela é rema-nescente do movimento antipsiquiátrico. A reabilitação psicossocial tem

miolo.indd Sec1:116miolo.indd Sec1:116 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Entrevista a Mônica Teixeira

117

aspectos interessantes. Para promover a reabilitação psicossocial, não é ne-cessário desconstruir a psiquiatria, não é necessário “libertar a identidade” e dizer que a psiquiatria é uma farsa, uma ideologia, uma disciplina inexistente, como sustenta Benedetto Saraceno. O viés antipsiquiátrico tem também um componente corporativista. Qual é a origem do movimento da luta antimani-comial? Segundo Paulo Amarante, ele começa como um Movimento dos Tra-balhadores em Saúde Mental. Em 1978, na chamada “Crise da DINSAM”, essas pessoas estavam lutando por melhores condições de trabalho, por poder exercer melhor a sua arte, serem mais bem remuneradas, mais bem treinadas, para terem mais poder.*

M.T.: Quem eram esses “trabalhadores da saúde mental”?

V.G.F.: Jovens psiquiatras que estavam empregados em hospitais da DINSAM no Rio, com bolsas insufi cientes, sobrecarregados; enfermeiros, psi-cólogos, assistentes sociais, estudantes universitários, médicos. Era o fi m do regime militar, e o movimento de trabalhadores, querendo melhores condições de trabalho, tornou-se um momento de confronto social. Não foi um movi-mento de pacientes, nem para fechar hospital, para fechar manicômio: foi um movimento de trabalhadores, corporativo, de luta social. Quer dizer: “Vamos tirar um pouco da autoridade desses dirigentes de hospitais, desse governo au-toritário, desse Ministério da Saúde, e vamos aproveitar para tirar um pouco do poder dos médicos mais graduados das instituições universitárias”. Todo o movimento da reforma psiquiátrica brasileira passa à margem da Universidade. Por quê? Pela mesma razão que a Associação Brasileira de Psiquiatria saiu das mãos dos catedráticos – porque os jovens dessa época, todos nós, queríamos mais autonomia, mais poder. O que acontece quando, em 1984, seis anos de-pois, se constitui o movimento da Luta Antimanicomial? Decidiu-se que era hora de não apenas defender melhores condições de trabalho, melhor remune-ração, mais poder para os não-médicos da equipe, mais autonomia para esco-lher tipos de conduta terapêutica – acrescentou-se a tudo isso a idéia de fechar algumas das péssimas instituições; serviram-se então do movimento basagliano (da Lei 180 de 1978 na Itália) para negar a psiquiatria. Quem visitava a maioria dos hospitais psiquiátricos brasileiros da década de 1970 tinha mesmo vontade de fechá-los. Aqui no Instituto de Psiquiatria, em 1990, apresentavam-se para nós duas opções: fechar ou modernizar. Modernizamos. Quando somos mais jovens, é mais fácil demolir; se tivessem se preocupado com o custo social, pro-

*Os trabalhadores da DINSAM – Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde – no Rio de Janeiro, em 1978, teriam sido desencadeadores do futuro movimento antimanicomial ao denunciar as más condições de quatro hospitais psiqui-átricos do Estado, de acordo com a versão apresentada comumente por autores ligados ao movimento. (Nota do E.)

miolo.indd Sec1:117miolo.indd Sec1:117 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Valentim GENTIL FILHO

118

vavelmente teriam percebido que melhor seria readequar algumas das institui-ções. Mas a época era de revolução; uma revolução não-sangrenta, exceto para os pacientes e para as famílias. Esse movimento se torna “Movimento da Luta Antimanicomial” e sua bandeira passa a ser o fechamento dos hospitais. O que está por trás disso continua sendo a mesma coisa: melhores condições de tra-balho, mais poder, mais direito de dizer o que fazer para cada paciente, condi-ções mais agradáveis de trabalho. Quais são essas condições mais agradáveis? Desconsidera-se os casos mais complicados e mais difíceis, como se eles não existissem; seleciona-se os casos mais adequados para o modelo que a equipe pretende seguir; propõe-se atividades em grupo para ajudar criativamente essas pessoas a se sentirem melhor; também o profi ssional de saúde procura se sentir mais feliz, realizado e, de preferência, mais bem remunerado. Quem fala isso sobre os centros italianos não sou eu. É Kathleen Jones, Professora Emérita de Política Social na Inglaterra. Ela visitou os serviços: atendiam neuróticos e psi-coses leves, em grupo, em psicoterapia, ambientes assépticos, algumas horas por dia, bem remunerados. Não é uma maravilha? O que aconteceu, na Itália, em muitos centros comunitários, foi que eles só fi caram com os casos de que podiam dar conta.

M.T.: O senhor acha que é isso que acontece nos Caps?

V.G.F.: Com exceção da remuneração. Você tem alguma dúvida?

M.T.: Eu não sei.

V.G.F.: Vá a um Caps, veja quantos pacientes estão amarrados na cama. Nenhum.

M.T.: E isso não é bom?

V.G.F.: Isso quer dizer que paciente psiquiátrico não precisa ser amar-rado na cama? Não. Quer dizer que o paciente que precisa ser amarrado na cama, enquanto o medicamento não funciona, não está no Caps. Onde ele está? Ou em algum manicômio residual, ou num pronto-socorro, ou preso, ou com alguma família que o mantém em casa, a duras penas para ambos. A maioria dessas pessoas não entra nas estatísticas. Elas não existem. Quando estão nas ruas, passam a fazer parte da paisagem. Outro dia, entrevistei o senhor Raimundo. Conhece o senhor Raimundo? Você conhece: é aquele se-nhor que fi ca na Pedroso de Moraes*, sentado naquela esquina, escrevendo.

*A Pedroso de Morais é a avenida de grande circulação em bairro abastado de São Paulo; Raimundo tem sua casinha de madeira no canteiro central da avenida. (Nota do E.)

miolo.indd Sec1:118miolo.indd Sec1:118 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Entrevista a Mônica Teixeira

119

Ele está lá, segundo me disse, há mais de dez anos. Olhando, dá a impressão de que não toma banho. Se ele te der uma folhinha de papel, será mais branca do que essa do seu caderno. Ele escreve frases, sem maior coerência ou con-teúdo. O bairro todo passa pelo lugar do seu Raimundo, dá água, comida. Só que o seu Raimundo está psicótico, há muitos anos, e está na rua. Há outros psicóticos que, de repente, podem se tornar violentos devido a delírios ou alucinações. Uma vez, visitando o Juqueri, vi um paciente amarrado na cama porque avançava nos olhos ou nos testículos – de outras pessoas, ou dele mes-mo. Esses indivíduos existem, e não vão para os Caps; estão doentes e não estão sendo atendidos adequadamente.

M.T.: O que o senhor propõe?

V.G.F.: Nem nos hospitais psiquiátricos mais modernos há equipe e ambiente adequados para atender esses doentes. Não necessariamente há uma solução para isso: quando a situação é muito grave, ou ela é enfren-tada, ou as pessoas vão continuar como estão até morrer. É revoltante que o movimento antimanicomial fi nja que não existem situações como essas, simplesmente porque não são freqüentes; ou, quando vêm a público, que se culpe a psiquiatria pela falta de atendimento adequado ou pela sua própria existência. O que é necessário para enfrentar uma situação dessas? Em prin-cípio, identifi car quantas pessoas estão assim; ter um centro de cuidados intensivos, onde essas pessoas possam ser avaliadas, estudadas, e se desen-volva uma tecnologia para atendê-los. É necessário acompanhar o que se faz no mundo com pessoas nessas condições. Estou propondo à Secretaria da Saúde de São Paulo a criação de um centro assim num dos hospitais do Estado, com equipe altamente qualifi cada para receber essas pessoas e in-vestigar o que fazer com elas.

M.T.: Mas quem são essas pessoas?

V.G.F.: São psicóticos graves, alguns deles com quadros orgânicos, com problemas neurológicos.

M.T.: O que é um psicótico grave?

V.G.F.: Que tal um que pensa em arrancar os próprios olhos, por exemplo, isso é grave, não é? Conhecemos vários que já fi zeram isso.

M.T.: Então o seu critério é a possibilidade de causar dano, para outro ou para si próprio.

miolo.indd Sec1:119miolo.indd Sec1:119 07.03.2006 18:05:2007.03.2006 18:05:20

Valentim GENTIL FILHO

120

V.G.F.: Imagine que ele ouve uma voz. Essa voz diz para ele seguir algo escrito em algum livro religioso. Por exemplo: ao ver algo de condená-vel, ele tem que arrancar os próprios olhos. Não faltam textos para sugerir esse tipo de coisa. Ou que tal o caso da enfermeira norte-americana Andrea Yates, que afogou seus cinco fi lhos na banheira? Sofria de depressão psicótica pós-parto, foi tratada com antidepressivos de penúltima geração. A indicação específi ca para ela teria sido eletroconvulsoterapia; mas, no Texas, fazer ECT é muito complicado. Recebeu alta; em casa, quando o marido foi trabalhar, afogou todos os fi lhos, um atrás do outro; depois telefonou à polícia, e espe-rou ser presa. Foi condenada à prisão perpétua. O marido a defendeu no tribu-nal. Minha pergunta é: quem deveria ser condenado? A sociedade do Texas.

M.T.: O senhor afi rma então que no modelo de Saúde Mental preconi-zado pelo Sistema Único de Saúde, essas pessoas não podem ser tratadas.

V.G.F.: Obviamente, elas precisam de tratamento médico ultra-es-pecializado. Num caso como o de Andrea Yates (e eles existem aqui), é necessário um centro capaz de fazer eletroconvulsoterapia, sob anestesia, com cuidado intensivo. Onde é possível fazer isso na rede pública no Bra-sil? Em alguns centros universitários e em poucos hospitais públicos. Tente fazer isso fora daí. Em primeiro lugar, o ECT não é remunerado pelo SUS. Por isso, alguns hospitais fi lantrópicos o aplicam, mas sem as condições técnicas adequadas. Tente regulamentar isso. Participei de uma audiência pública na Câmara Federal; estava lá o autor de um projeto para regulamen-tar o ECT, o Deputado Marcos Rolim. Levei um vídeo para mostrar como se faz ECT aqui no Hospital das Clínicas: uma senhora idosa entra, deita, põe os eletrodos de monitorização, é anestesiada, faz a convulsoterapia, le-vanta, toma café e vai embora para casa – a maior parte dos nossos clientes são ambulatoriais. Surpresa na platéia: “quer dizer que não é na marra, 450 volts, passando uma motocicleta por cima das pessoas?” Não. O ECT é um procedimento médico que salva vidas. No caso da Andrea Yates, poderia ter salvo a vida de cinco crianças e a dela. Só que, na Câmara Federal, os mé-dicos foram contra, por considerarem o projeto uma intervenção na auto-nomia do médico; o Conselho Federal de Psicologia foi contra, porque não quer que a eletroconvulsoterapia seja reconhecida pelo SUS. Um absurdo. O projeto foi rejeitado; conseqüentemente, até hoje a rede não tem como atender casos como o de Andrea Yates. O que é isso?

M.T.: Um momento. Na proposta da Reforma Sanitária da Saúde Mental, não se leva em conta a existência dessas pessoas? Ou eles acham que é possível dar conta delas no ambiente do Caps?

miolo.indd Sec1:120miolo.indd Sec1:120 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Entrevista a Mônica Teixeira

121

V.G.F.: Todos sabemos que essas pessoas não podem ser atendidas nos Caps, a não ser que o Caps se torne uma unidade de cuidados intensivos em psiquiatria.

M.T.: No modelo, os Caps 24 horas deveriam ser capazes de acom-panhar casos graves durante até cinco dias. Prevê-se que a pessoa não saia do Caps no período.

V.G.F.: Isso que você descreve chama-se “hospital psiquiátrico de agudos”.

M.T.: Tenho notícia de que esse parece ser um problema bastante concreto no modelo: não há lugar para agudos.

V.G.F.: Agudos precisam de Unidade Psiquiátrica. Chega uma certa hora em que não se pode negar assistência; em cinco dias, o caso do seu Raimundo ou o de Andrea Yates não se resolvem. Mas eles não têm que fi car num manicômio.

M.T.: O hospital psiquiátrico não pode ser substituído pela enfer-maria psiquiátrica no Hospital Geral?

V.G.F.: A enfermaria psiquiátrica no Hospital Geral é útil, principal-mente em regiões em que não se pode ter uma instituição mais sofi sticada. Há entre essas enfermarias aquelas que são manicomiais. Por quê? Por mis-turar patologias num mesmo ambiente; por não ter equipes com o número de funcionários e a competência técnica necessários. A remuneração do leito psiquiátrico pelo SUS não é compatível com a manutenção de um serviço adequado. Os casos mais graves deveriam ser remunerados como Alta Complexidade.

M.T.: Mas essas enfermarias são pequenas. Falta a elas essa carac-terística de imensidão do que é chamado de manicômio.

V.G.F.: A lógica é manicomial: uma equipe mal treinada lida simul-taneamente com doenças diferentes. Não adianta dizer que as enfermarias psiquiátricas da Unicamp, de Ribeirão Preto, da Escola Paulista de Medici-na, do Servidor Estadual, ou a da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – as melhores que temos – dão conta de tudo. Eles não podem atender vários casos muito graves. Em uma delas, não se podem atender homens. Precisaríamos de muitas unidades psiquiátricas no Hospital Geral. Como se faz para não fi car manicomial? Pode-se, por exemplo, criar unidades

miolo.indd Sec1:121miolo.indd Sec1:121 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Valentim GENTIL FILHO

122

psiquiátricas especializadas em determinados tipos de problemas afi ns, em diferentes hospitais gerais. Por exemplo, uma para esquizofrenia e transtor-nos psicóticos ou afi ns, outra para transtornos ansiosos e do humor, outra para casos geriátricos, outra para anorexia nervosa e distúrbios alimentares, uma para crianças e adolescentes, outra para dependências e descontrole dos impulsos, em diferentes hospitais gerais.

M.T.: Cada um no seu escaninho. Mas esses são casos graves?

V.G.F.: Podem ser e cabem unidades psiquiátricas sub-especializa-das para casos agudos que precisam de hospitalização em cidades grandes, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador. Mas não é o caso de se fazer isso numa cidade de porte médio, porque não haverá as diferentes equipes. Recebendo diárias de R$ 37,00, qual é o Hospital Geral que abrirá leito psiquiátrico, ao invés de leito cirúrgico de alta complexidade? Resposta: só os hospitais gerais públicos, sempre defi citários, nos quais o problema são equipes mal remuneradas. Uma outra crítica aos defensores da reforma – os psiquiatras nela engajados não brigaram pelo essencial: que a psiquiatria de agudos fosse tratada como uma especialidade médica e não como se doença mental fosse uma questão de saúde pública básica, de cuidados primários, ou simples “sofrimento mental”. Esse foi um erro tático fundamental para quem queria alternativas como a internação em Hospital Geral.

M.T.: De acordo com os postulados da reforma, isso era estratégico, pois justamente se tratava de diluir o saber próprio do psiquiatra.

V.G.F.: Isso; para os anti-psiquiatras. Mas do ponto de vista do Mi-nistério da Saúde, da Secretaria de Saúde, psiquiatria deveria ser tratada como a cardiologia, deveriam existir programas de prevenção.

M.T.: O senhor estava descrevendo o seu ideal de hospital psiquiá-trico. No que ele é diferente de um manicômio?

V.G.F.: É um hospital de agudos, especializado, de alta complexida-de, que deve funcionar como uma UTI. Um paciente internado num hospi-tal psiquiátrico deve ser tratado intensivamente para abreviar a internação. Nada de fi car em observação de rotina, durante dias, sem ser medicado. O melhor dos hospitais nunca vai ser um lugar agradável. Para quem está com doença mental é pior ainda, porque o paciente já não entende a lógica da instituição. É necessário ter um controle da efi ciência e capacidade de adequar o sistema conforme a necessidade de cada paciente. Não se pode simplesmente adotar um procedimento por ele parecer intuitivamente efi -

miolo.indd Sec1:122miolo.indd Sec1:122 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Entrevista a Mônica Teixeira

123

caz, ou apenas por ser compatível com uma teoria ou ser bem intencionado. É necessário adotar procedimentos que funcionem. Não vai ser o PNASH [Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares] que vai mudar essas coisas. O texto do PNASH para psiquiatria foi baseado numa pesqui-sa de satisfação do “cliente externo... no Grupo Hospitalar Conceição” no Rio Grande do Sul. Nada se sabe dessa pesquisa. Imagine se alguém per-guntar a um usuário: “Você quer tomar eletrochoque?; quer ser amarrado na cama?; quer tomar remédio sedativo?”. Avalia-se assim a efi ciência de um sistema? Foi perguntado se a pessoa precisa de ECT; se é preciso fi car temporariamente contido no leito enquanto toma um soro ou espera uma medicação fazer efeito; se tem impulsos agressivos agudos; se precisa de uma medicação sedativa durante algum tempo, para controlar sintomas psi-cóticos ou agitação? Ao mesmo tempo, o PNASH não serve para remunerar decentemente um serviço melhor. Só é levado em conta para reduzir a diária hospitalar, já aviltante, conforme o número de leitos de uma instituição, independentemente da qualidade dos seus serviços. Isso parece o garrote espanhol. É mais uma forma de fechar leitos e impedir a oferta de servi-ços hospitalares, adotada desde que o Projeto Delgado foi derrotado, ao não conseguir impor o fechamento obrigatório dos hospitais. Se fosse para aumentar a receita para serviços extra-hospitalares, a estratégia deveria ter sido ir ao Congresso, ao Ministério da Fazenda, dizer: “precisamos de mais recursos para a área de saúde mental; isto aqui causa prejuízos de bilhões de dólares por ano”. A verba para a Saúde Mental – R$ 600 milhões por ano – é irrisória perto do prejuízo, dos custos indiretos das doenças mentais. O que precisaria ser dito é: “temos hoje boa medicina, boa psiquiatria, boa efi cácia, boa prevenção secundária; vamos investir num sistema efi ciente, treinar bem as equipes, dar os medicamentos essenciais e diminuir as reper-cussões econômicas e sociais disso”. Mas não é o que acontece. O Ministé-rio vai ao Congresso se vangloriar do fechamento de leitos e promete fazer mais Caps. Por quê? Como reivindicar psiquiatria de alta complexidade, se o compromisso é com cuidados primários e com o movimento basagliano, que pretende negar a psiquiatria e desmedicalizar os problemas de Saúde Mental? Como dizer que a eletroconvulsoterapia é um procedimento efi caz e seguro, que deve ser utilizado por salvar vidas, que deve ser remunerado para ser bem utilizado, quando os seus aliados querem caracterizar o ECT como tortura? Falávamos de três confl itos...

M.T.: O senhor explicitou dois: socialismo versus capitalismo, psi-quiatria dinâmica versus psiquiatria biológica.

miolo.indd Sec1:123miolo.indd Sec1:123 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Valentim GENTIL FILHO

124

V.G.F.: O terceiro grande confl ito é o corporativista.

M.T.: Esse não é exatamente um confl ito.

V.G.F.: É uma briga por espaço e mercado. Em parte, o confl ito é entre o modelo de saúde pública e um modelo médico, entre saúde pública e psi-quiatria. O principal é a disputa entre médicos e outros profi ssionais de saúde mental. Com freqüência, junto a isso, tem relação com a negação da doença mental, a antipsiquiatria, a anti-instituição psiquiátrica, ou até a defesa da liberdade de ser louco como forma de existir. Existem, por outro lado, sérias críticas aos argumentos de Michel Foucault, feitas por importantes historia-dores da medicina, como Roy Porter e Edward Shorter, aparentemente des-conhecidos dos que escrevem sobre este tema em nosso meio. Por exemplo, a idéia de “grande internamento” é aplicável, na melhor das hipóteses, somente ao que ocorreu na França, pois os demais países da Europa sequer tinham governos centralizados para fazer isso. Desautorizar Foucault desmonta boa parte dos argumentos sobre as relações da psiquiatria, em sua origem na Eu-ropa, com o poder e a repressão aos divergentes. Houve abusos, sem dúvida; mas, segundo essas análises, o que estava por trás da instituição dos asilos era a tentativa malsucedida, mas bem intencionada, de acolher e cuidar das pessoas doentes mentais das ruas e prisões (para onde elas voltaram cem anos depois, graças às – talvez bem intencionadas e malsucedidas – reformas dos últimos quarenta anos). A psiquiatria avança no conhecimento desses qua-dros, estabelece seus diagnósticos e gera-se um outro confl ito que persiste até hoje: como delimitar o que se pode chamar de doença. Esbarra-se em perguntas como: psicopatia é doença ou não é?

M.T.: O que é um psicótico? E o que é um psicopata?

V.G.F.: Os textos nos dizem que o psicótico tem uma quebra no contato com a realidade; o psicopata é um indivíduo com uma alteração na personali-dade que o impede de ter uma conduta moral compatível com a da maioria das pessoas. No âmbito da reforma, postula-se representação por organização de pacientes. Difi cilmente um grupo de pacientes psicóticos vai poder se organi-zar para defender bem os seus próprios intere manobra. Já testemunhei isso. Vi grande número de pacientes serem levados a fóruns, conferências, comissões, onde, freqüentemente, não entendiam direito o que se passava: pedia-se o voto deles em propostas que difi cilmente poderiam ser compreendidas. Participei de um programa de televisão em que um rapaz estava delirando e uma profi ssio-nal, muito ativa politicamente, o acariciava, tentava acalmá-lo; mas foi preciso retirá-lo do estúdio, pois estava muito perseguido. Depois passaram um fi lme

miolo.indd Sec1:124miolo.indd Sec1:124 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Entrevista a Mônica Teixeira

125

em que ele participava de corridas de saco e com ovo na colher. Isso me revolta. Cadê a Ética, o respeito humano, o direito dessa pessoa de ser preservada? É um indesculpável abuso.

M.T.: Qual deve ser, no seu entendimento, o destino dos Caps?

V.G.F.: Para os Caps funcionarem bem, devem estar adequados ao local em que se encontram. Em um município de 30 mil habitantes, um Caps pode ser o centro de triagem e de referência, até estabelecer um pro-grama de reabilitação semelhante ao hospital-dia, por exemplo. O problema é: ele não serve para moradia, nem para hospitalização aguda. Ele serve como centro para coordenar um programa de prevenção em vários níveis. Mas uma coisa é certa: não substitui o hospital e nem o asilo.

M.T.: Qual deveria ser o lugar do psiquiatra nesse Caps que o se-nhor descreveu?

V.G.F.: Custa formar um psiquiatra: seis anos de Medicina, dois anos de residência, mais alguma especialização. Como a questão é de saúde pú-blica, o que é melhor: ter um médico generalista com formação básica em psiquiatria numa cidade com 30 mil de habitantes, ou levar um psiquiatra para uma cidade de 30 mil habitantes? Lógico que deveria ser um médico generalista com conhecimento de psiquiatria. Não é necessário ter um psi-quiatra em cada Caps, um psiquiatra em cada cidade. Mas se esse generalis-ta precisar de uma supervisão ou de uma consultoria, então deve haver um psiquiatra a quem ele possa recorrer. Existem perto de nove mil psiquiatras no Brasil. Com 180 milhões de habitantes, não é possível esperar que a as-sistência esteja centrada no psiquiatra. Mas na hora que houver um proble-ma psiquiátrico mais complexo, dá para transferir a responsabilidade para a equipe multiprofi ssional? Não dá.

M.T.: Os defensores do modelo atual acham que dá?

V.G.F.: Sim. Mas os membros das equipes multiprofi ssionais não têm formação para isso. Como se prova que não têm? Simples: basta pedir que entrevistem dez pacientes e formulem um diagnóstico clínico. Impossível. Mesmo um clínico geral – e muitos psiquiatras que fi zeram residência há muito tempo e não se reciclaram, também – não sabe fazer diagnósticos di-ferenciais. Seria preciso um sistema de educação continuada para garantir qualidade, como se faz em alguns países. O resto é falso: “vamos fazer uma assembléia para decidir se damos alta ou não para uma pessoa”. Bonito? Um dia assisti a uma palestra, aqui no Instituto de Psiquiatria, quando contaram

miolo.indd Sec1:125miolo.indd Sec1:125 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Valentim GENTIL FILHO

126

uma experiência em que uma decisão dessas foi tomada em reunião de equipe: a opinião do psiquiatra valia quase tanto quanto a da cozinheira do serviço. Eu comentei que quando o psiquiatra e a cozinheira trocam de papéis, quem sofre é a comida. Então, vamos preservar responsabilidades e competências, porque estamos lidando com a vida de uma outra pessoa que está sofrendo; vamos parar de tratar isso como se fosse mais simples do que é, pois não é simples. Tenho 35 anos de psiquiatria, e tenho medo de não saber o que fazer em muitas situações. Como posso esperar que alguém sem vivência, que não conhece a literatura, com formação em área complementar, possa tomar deci-sões desse tipo? Não posso aceitar. Eu sou médico; agora, toda vez que tiver um parto, vou entrar? Não; não tenho competência para isso. Se as pessoas fi cassem dentro da ética, da responsabilidade, da competência e da honestida-de, teríamos menos problemas. As pessoas estão correndo riscos desnecessá-rios, e estão fazendo outras pessoas correrem riscos desnecessários.

M.T.: O senhor, ao se contrapor aos partidários da Reforma, defen-de uma especifi cidade da psiquiatria frente aos outros profi ssionais, mas para confundi-la com a medicina.

V.G.F.: Confundir não, identifi car com a medicina. A única coisa que a psiquiatria tem de efi caz é a abordagem médica. É uma especialidade médica, como a neurologia ou qualquer outra.

M.T.: E seu objeto...

V.G.F.: ... é o indivíduo doente mental, desde as doenças mentais mais leves, como o transtorno de pânico, até as doenças mentais mais gra-ves, até a demência. Quem defi ne melhor a psiquiatria é o maior psiquiatra da Grã-Bretanha, o maior psiquiatra da língua inglesa de todos os tempos, Aubrey Lewis. A defi nição dele, que eu uso muito: “Psiquiatria é o estudo do comportamento anormal do ponto de vista médico: ela se ocupa com o diagnóstico, o prognóstico, a prevenção e o tratamento.”*

M.T.: Não há nada mais próprio à psiquiatria do que ela ser medicina?

V.G.F.: A psiquiatria é uma especialidade médica, não é outra coisa. Não é psicanálise, não é terapia comportamental, não é psicofarmacologia, não é nada disso. Ou não? Quem disser que não, por favor me conte o que é então a psiquiatria.

*A defi nição apareceu em “Empirical or rational? The nature basis of psychiatry”. Lancet, 1967. A tradução é do professor Valentim, para: “Psychiatry…is the study of abnormal behaviour from the medical standpoint: it is therefore concerned with diagnosis, prognosis, prevention and treatment”. (Nota do E.).

miolo.indd Sec1:126miolo.indd Sec1:126 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

127

COMENTÁRIOS EM RELAÇÃO À ENTREVISTA DO PROF. VALENTIM GENTIL FO.

Carol SONENREICH *

Desde 1962, no Hospital do Servidor Público Estadual de São Pau-lo, os médicos que lá trabalham esforçam-se para praticar uma psiquiatria capaz de responder às necessidades dos benefi ciários. No que diz respeito à equipe terapêutica, espaço, recursos materiais, compreensão das autorida-des, passamos muitas vezes por condições difíceis. Porém, sempre mantive-mos os objetivos: atendimento psiquiátrico no hospital-geral, limitando ao indispensável as internações no próprio HSPE ou em hospitais de convênio, ampliação das atividades ambulatoriais.

Nos anos 60, muita literatura proclamava a necessidade de uma “re-forma da assistência à saúde mental”. Principalmente sob a infl uência do que se chamou de “antipsiquiatria”, a diretiva era: doença mental não exis-te, é uma invenção das classes dominantes, o “asilo deve ser abolido”. Esta não foi, em momento algum, a nossa orientação. Considerávamos que a medicina tem direito e possibilidade de formular conceitos de doença men-tal, e de assumir o seu combate.

O movimento da luta antimanicomial falava de “recursos alternativos”, mas basicamente o que proclamava era abolir os hospitais psiquiátricos (asi-los, manicômios), reduzir o número de leitos para doença mental. Os partici-pantes do “movimento”, no Brasil, eram predominantemente voltados contra hospitais particulares, cujo fechamento era visto como uma grande conquista. Os recursos alternativos não precisavam ser prioridade, e sua criação depen-deria das economias que seriam feitas pelos estados, deixando de pagar as instituições conveniadas, denunciadas como “indústria da loucura”.

Algumas das alegações dos protagonistas da luta antimanicomial eram: doença mental não existe, o hospital psiquiátrico é um lugar de con-fi namento da classe trabalhadora, servindo aos interesses da classe hege-mônica, o “asilo” nunca teve objetivos terapêuticos e a internação é causa de cronifi cação. Não é necessária muita erudição, para saber que, estudos clínicos, históricos desmentiam tais asserções. Os psiquiatras conheciam as condições horríveis às quais, no mundo inteiro, eram submetidos os doen-tes mentais, internados ou abandonados, e trabalhavam para corrigi-las.

* Médico psiquiatra. Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital do servidor Público “FMO” – São Paulo - SP

Temas, 2005, 68-69 : 127-134

miolo.indd Sec1:127miolo.indd Sec1:127 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Carol SONENREICH

128

O conhecimento das situações catastrófi cas, ou apenas péssimas, de certas instituições, nos fez procurar desmascará-las, combatê-las, trabalhar para modifi cá-las. Ainda mais porque consideramos, por experiência pró-pria e leituras, que o hospital aspira a ser um instrumento de cura; que as condições desumanas prejudicam a doença, mas que – em si – a internação combate à loucura, e falar de efeito demenciador do hospital é um engano.

Achamos que, entre as autoridades que dirigiam a política de saúde mental, as idéias dos “anti-manicomialistas” tiveram muito mais sucesso do que entre os médicos que trabalhavam com os doentes. Na condução dos departamentos de psiquiatria, nos ministérios dos governos estaduais e municipais, houve sempre, nos anos 60-80, decididos “anti-manicomialis-tas”. É até curioso que não terem aplicado mais suas idéias, já que não lhes faltava o poder. O que mais fi zeram foi reduzir os leitos psiquiátricos.

A redução dos leitos foi também feita na Grã-Bretanha, desde 1962, durante os governos conservadores. Depois de 1997, com a eleição dos tra-balhistas, uma revisão enérgica desta política foi iniciada. A assim chamada “assistência comunitária” passou a ser nomeada “espectro assistencial”. Alo-caram-se verbas impressionantes para construir unidades psiquiátricas, para corrigir os “males da desinstitucionalização”. O número crescente de aban-donados, indefesos, perigosos, presos sem tratamento, enfi m, os “expulsos dos hospitais” constituíram um problema que o governo decidiu não ignorar mais. (Dratcu 2000 e 2002).

No Canadá, desde 1960, portanto antes de todos os outros países, a política de “desospitalização” começou a ser aplicada. A redução dos hos-pitais psiquiátricos, grandes e pequenos, foi qualifi cada de “escandalosa”, e as residências protegidas, a colocação em famílias, o tratamento na co-munidade e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, considerados insufi -cientes. O governo foi acusado de intencionar apenas reduzir os gastos, sem sensibilidade pelos interesses da população (Bernard-Thomson 1997).

Nas “comunidades” aparecem “nômades” desorganizados, “crimina-lisados”, complicados com abuso de drogas ilícitas e álcool. Aumentou o número dos sem-teto, criou-se a situação chamada porta-giratória nos hos-pitais psiquiátricos, apareceu um novo tipo de pacientes jovens-adultos com transtornos crônicos, novos casos de longa duração. Os autores manifestam a preocupação com o “destino dos pacientes sofrendo de distúrbios mentais muito graves e persistentes, sem hospital psiquiátrico” (Trudel, Lesage , 2005).

Nos EUA (começando com a Califórnia, governada na época por R Reagan), já em 1983, o Grupo para Progresso da Psiquiatria concluía: a afi rmação de que os cuidados comunitários são melhores do que o hospi-

miolo.indd Sec1:128miolo.indd Sec1:128 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Comentários em relação à entrevista do Prof. Valentim Gentil Fo.

129

tal deve ser tomada por uma piada, equívoco, opinião. Falava-se (Talbott, 1985) de desastre da desinstitucionalização. Foi compensada em parte por uma rápida expansão dos serviços de internação, predominantemente par-ticular (Dorwart, 1988).

Em 2000, uma conferência realizada na Alemanha nos informa sobre a situação em diversos estados europeus. Aparece claramente que, nos paí-ses do leste europeu, sob regime comunista, a questão da “reforma psiquiá-trica não se colocava”. Na República Democrática Alemã só se iniciou uma reforma depois de 1989, depois da unifi cação. Do outro lado, na República Federativa Alemã, o parlamento recomendou em 1971 uma reforma, sem fechamento de hospitais psiquiátricos, mas com reestruturação.

Como no resto do mundo, na Europa a reforma foi aplicada somente nos países mais ricos. Os regimes comunistas nunca a adotaram. Nem na China, nem em Cuba proclamou-se o objetivo de reduzir o número de leitos psiquiátricos.

A Itália merece observação destacada, especialmente pela importân-cia que é dada à “reforma”, associada ao nome de Basaglia, legalizada em 1978. A lei “180”, aprovada por entendimento entre as lideranças parti-dárias, não foi a primeira, mas foi a mais radical na abolição do hospital psiquiátrico, Até 1996, todo hospital psiquiátrico deveria ser fechado. Este prazo foi adiado para 31 de Março de 1998, mas até hoje não concluído.

Em 1985, Papeschi declarava ser errada esta lei, e exigia sua recon-sideração. Pederzini (1986) dizia que a fi losofi a da lei 180 fazia parte da cultura de morte. A viúva de Basaglia, Franca Ongaro (1988) constatava que por falta de instrumentos, persistiam na Itália “manicômios dos mais degradantes”. A hospitalização seria necessária, para elaborar a identidade do delirante, escrevia Sarli (1986), citando Basaglia.

Saraceno, que muitas vezes fez afi rmações incompreensíveis sobre a doença mental e seu tratamento, escrevia (1990) que a reforma não teria sido “contra o asilo”, mas exaltava a terapia comunitária.

Parece que muitos hospitais psiquiátricos italianos declararam for-malmente seu fechamento, mas freqüentemente escondem a realidade sob outros nomes (Bassi-Parma, 1999).

O Ministro da Saúde, F. di Lorenzo (1991), declarava que a Lei 180 foi um remédio quase pior que a doença. Favoreceu verdadeiras tragédias, atos de violência. As famílias foram muito mal tratadas.

Em 1996 jornais protestavam contra a perspectiva de mais fechamen-tos de hospitais.

Tais informações serão desconhecidas para os “lutadores antimani-comiais” do Brasil? A fi gura e a atividade de Basaglia, na visão de Colucci

miolo.indd Sec1:129miolo.indd Sec1:129 07.03.2006 18:05:2107.03.2006 18:05:21

Carol SONENREICH

130

(2001) - autor da única biografi a dele que conhecemos - não são das mais merecedoras de um culto. Ele não conseguiu o cargo universitário que de-sejava, em Parma, e foi para o “manicômio” de Gorizia, que representava o oposto da carreira universitária. Neste lugar, nada conseguiu realizar “por falta de apoio das autoridades (1961). Sua saída de lá não foi bem vista por seus companheiros; Jervis o acusava de carreirismo (1977). Mudou-se para Trieste já com apoio material da OMS (173). Em 1977, foi eleito secretário nacional da Psiquiatria Democrática. Preferiu não debater o signifi cado da “doença mental”, enquanto não fosse realizada a transformação da institui-ção. Uma “auto-suspensão científi ca, para não atrasar a luta antimanico-mial”. Às vezes dizia que a doença mental existe, outras vezes a via como um instrumento de rotulação, e o manicômio como instrumento de des-truição daquele que foi rotulado (1979), ou: “Não quero dizer que doença mental não exista, mas que nós produzimos uma sintomatologia - o modo de exprimir-se a doença conforme o modo que pensamos em questioná-la - porque a doença constrói-se e exprime-se sempre conforme as medidas adotadas para enfrentá-la”.

Os autores da biografi a citada acham que Basaglia não fez muito para os pacientes, para a psiquiatria, mas fez muito para sua carreira.

Conhecemos uma série de tomadas de posição dos psiquiatras brasi-leiros, contrários ao fechamento indiscriminado de instituições e leitos psi-quiátricos, como objetivo de uma “reforma”. Sempre proponho caminhos, meios de melhorar as condições hospitalares, de criar modos alternativos de atendimento, de valorizar os ambulatórios, o tratamento na comunidade. Assim orientamos toda nossa atividade, na Unidade Psiquiátrica no Hospi-tal-Geral, no HSPE de São Paulo.

Argumentar com veemência contra o uso de leitos psiquiátricos ou contra o “modelo hospitalocêntrico” foi, e continua sendo, uma prática mais exercida por não-médicos, seja exercendo poderes públicos, seja como componentes eventuais da “equipe de saúde mental”. Alguns deles susten-tam esta posição por achar – equivocadamente – que a “reforma”, assim como foi proposta por Basaglia, teria um caráter popular de esquerda, o que é decididamente falso. Somente os governos mais conservadores, nos países mais ricos do mudo, adotaram tais medidas.

Outros, por interesses corporativistas, acham que assim podem abrir grandes campos de trabalho para eles mesmos ou para suas categorias pro-fi ssionais. Encontraram apoio em pessoas que exercem, de uma forma ou de outra, o poder, continuando uma linha que não foi interrompida durante as ditaduras. Num fórum organizado pelo Conselho Federal de Psicologia, em 31 de Maio de 2000, foi enaltecida a abolição do “modelo hospitalocêntrico,

miolo.indd Sec1:130miolo.indd Sec1:130 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

Comentários em relação à entrevista do Prof. Valentim Gentil Fo.

131

baseado na exclusão social”. Política assumida como nacional pelo próprio ministério da Saúde. Abolir quase 20.000 leitos psiquiátricos na última dé-cada (noventa) foi mérito do “brilhantismo da condução ministerial daquele momento - e da capacidade política de certo dirigente - e das condições ins-titucionais daquele mesmo momento” (pg. 20). No mesmo fórum, falava-se do “bando” de psiquiatras que se opunham à reforma, e da necessidade de combater a psiquiatria acadêmica, a aliança com a indústria farmacêutica, os donos de hospitais, os reducionistas que levantam a cabeça.

Encontramos ainda na literatura brasileira (maio, 2005) artigos que repetem o tom e o conteúdo dos panfl etos de trinta anos atrás, omitindo, voluntariamente ou não, a evolução das idéias e das práticas, as avaliações dos resultados de uma “reforma” basicamente orientada para a abolição dos hospitais psiquiátricos. Segundo tais autores, os hospitais sempre teriam como objetivo “limpar” as cidades, conforme modelos da burguesia. Não havia, proclamavam eles, uma preocupação com a patologia médica, mas uma correspondência a interesses políticos, econômicos, sociais. Os “lou-cos” internados nestes hospitais trocavam uma prisão por outra. O “mani-cômio” apareceu para conter a irracionalidade (Pinel acreditava na anima-lidade do “louco”). A prática do confi namento da classe trabalhadora seria o interesse da classe hegemônica. Um ator faz tais declarações e outros o citam piedosamente. Dispensam argumentos, dispensam uma tentativa de observar o que estava acontecendo nos respectivos anos, nos países nos quais o governo não era “burguês” (parlamentar ou ditatorial), na então URSS e outros países com governos comunistas.

A década de 90 teria sido da “luta antimanicomial” (Gonçalves, 2005, p. 904). Com o nascimento da Associação Basaglia, em São Paulo, e da Franco Rotelli, em Santos, é evocada a Conferência Nacional de Saúde Mental, de 1992, na qual eram denunciados “os empresários da loucura”, que teriam os privilégios de um modelo de atendimento caro e cronifi cante. Os familiares dos doentes mentais, enganados, desinfor-mados sobre outras formas de trabalho que evitam a segregação e a a cronifi cação (como fariam os CAPS, NAPS e os leitos psiquiátricos em hospitais-gerais), persistem em reivindicar o modelo hospitalocêntrico, os asilos. Persistem na sua “ignorância”, apesar das tentativas ofi ciais ou dos lutadores antimanicomiais, de orientá-los. Não por falta de esforços de propagação dos “ideais antimanicomiais”, na ocasião do Encontro Es-tadual (1997), no Rio Grande do Norte, realizaram um “ato público” na praia de Ponta Negra, em Natal, estrategicamente escolhido por concen-trar grande contingente de banhistas, segundo a psicóloga Alencar A. I., funcionária da Secretaria Municipal de Saúde do RN (em: Estudos de

miolo.indd Sec1:131miolo.indd Sec1:131 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

Carol SONENREICH

132

Psicologia, 2(2):421-423, 1997). Os funcionários governamentais, mais uma vez eram os promotores de ações antimanicomiais.

Certos postulados da “luta antimanicomial foram adotados até trans-formados em leis estaduais e municipais. Schneider (2003) cita a expressão “revolução antimanicomial feita em Santos”, por exemplo, em artigo no qual lemos: “a luta antimanicomial foi apenas o pretexto, nada mais do que a mesma política de tomada de poder institucional, na área médica, que ocorria em outras especialidades e em todos os estados” (p. 4). Os militan-tes instalados na rede pública, em cargos de direção, nomearam centenas de companheiros em toda a rede pública. O objetivo era desmedicalizar, desinstitucionalizar. O comitê popular de saúde defi nia neste sentido suas diretrizes: os quadros dele deviam ocupar cada vez mais espaços importan-tes nos programas de implantação do SUS. “Imensas verbas municipais en-travam na mão de pequenos grupos políticos e de duas comissões, digamos fi scalizadoras”, escreve Schneider (p. 8), evocando também alguém que ele chama de notável sanitarista de renome internacional, Capistrano.

Em 25 de Novembro de 2004, a Revista Consultor Jurídico publica: “Por-tas Abertas. O Estado é obrigado a reabrir unidade de Hospital Psiquiátrico (São Pedro)”. Os desembargadores negaram a apelação do Estado do Rio Grande do Sul e determinaram a reabertura do hospital. O Sindicato dos Médicos do RGS, a Sociedade de Apoio ao Doente Mental e a Fraternidade Cristã dos Doentes e Defi cientes do Estado do RGS, abriram ação contra a desativação do sistema de atendimento, que não foi substituído por alternativas. Foi afi rmado que o fecha-mento da unidade não atende aos fundamentos constitucionais de respeito a dig-nidade humana, nem ao principio universal de acesso à saúde. O estado foi proi-bido de construir uma escola pública na área referente ao Hospital Psiquiátrico.

A publicação cita a opinião da advogada S.P.P.F: “decisão acertada, contra um despejo covarde, desumano”. O médico R.F. do RJ considera que o fechamento de hospitais é um freio aos movimentos antimanicomiais, provocado por pessoas físicas ou jurídicas desumanas e maus governantes, tornando a “reforma” um retrocesso aos tempos primitivos, nos quais o abandono e extermínio de pessoas incapacitadas era a regra. Em resumo, a lei seria boa, mas quando deturpada, torna-se nociva.

Em 2 de outubro de 2005, nasceu um movimento de luta pela revi-são da reforma Psiquiátrica no RGS, Porto Alegre: MAIS - Movimento pela Atenção Integral à Saúde Mental. Reúne entidades de portadores de trans-tornos psiquiátricos e familiares, profi ssionais de instituições psiquiátricas e unidades de hospitais, órgãos do setor público e da sociedade organizada. Lutará pela melhoria da estrutura de atendimento do doente mental, propon-do a revisão da lei de reforma adotada pelo RGS. Uma das metas: suspender a proibição de abertura de leitos em hospitais e clínicas psiquiátricas.

miolo.indd Sec1:132miolo.indd Sec1:132 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

Comentários em relação à entrevista do Prof. Valentim Gentil Fo.

133

Para Barreto (2004) a reforma aplicada em Minas Gerais “descons-truiu grande parte da estrutura carcerária existente, mas... está hoje sob sé-ria ameaça de reduzir-se a um movimento político”.

O Presidente da ABP, Josimar França, preconiza uma reforma feita com seriedade, sem abolir leitos, sem se limitar às estruturas insufi cientes dos CAPS. Uma reforma capaz de melhorar a qualidade assistencial para o paciente. A carta aberta ao Ministro da Saúde, encontrou apoio público de destacadas lideranças da psiquiatria brasileira.

As tomadas de posição com respeito à “reforma” proposta pelos luta-dores antimanicomiais, consistindo principalmente na abolição dos hospitais psiquiátricos, foram rejeitadas por muitos dos profi ssionais da saúde mental.

Por parte da diretoria da APB, em certos momentos, houve um equi-vocado apoio. Médicos exercendo funções governamentais (federais, esta-duais, municipais) manifestaram apoio a projetos “radicais” e às vezes as aplicaram, sem tomar em consideração pontos de vista dos trabalhadores no campo da saúde mental que não exerciam poder.

Por parte das associações de psicólogos, o clamor para a reforma - a mais excessiva - tomou às vezes um caráter evidentemente cooperativista, apesar das divergências entre os vários grupos, mais de caráter pessoal do que político. O tom mais autoritário era usado por pessoas exercendo poder público. Seria uma tarefa ingrata tentar informá-las sobre o que aconteceu em outros países e no Brasil, já que não acreditamos que estariam interes-sados em saber. Até nos últimos anos, várias delas se pronunciaram como se não soubessem nada sobre a evolução das idéias de reforma psiquiátrica no mundo inteiro.

As citações que fi zemos acima, poucas (já que não pretendemos fa-zer aqui um levantamento das posições atuais no campo da saúde mental), servem para mostrar que não nos sentimos isolados, quando ao invés de “luta antimanicomial”, escolhemos trabalhar para uma psiquiatria de conte-údo e organização, apta a servir os usuários, na nossa unidade psiquiátrica no hospital geral no HSPE de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alencar AI. Estudos de psicologia 1997; 2(2):421-423.

Barreto F. Entre as aves e as feras. Casos Clínicos em Psiquiatria 2004; 6:6-11.

Basaglia FO. Assistenza psiquiatrica: proposta de integrazione della lege 180. Prospettive Sociali e Sanitari 1988; 15:1-4.

miolo.indd Sec1:133miolo.indd Sec1:133 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

Carol SONENREICH

134

Bassi M. The desinstitutionalization process in Italy. XI World Cong of Psychiatry. Hambourg, 1999. p. 214.

Bernard-Thomson K, Leichner P. L’avenir dss hopitaux psychiatriques. Santé Mentale au Quebec 1997 ; 22: 53-70.

Colluci M, Di Vittorio P. Franco Basaglia. Bruno Montadori, 2001.

Di Lorenzo F. Entrevista a Rafagas Hospitalares. Madrid, 2001; 189(24):27-29

Dorwart RA, Schlesinger M. Privatization of psychiatric services. Am J Psychiatr 1988; 145(5):543-53.

Dratcu L. Godzila contra-ataca: breve crônica sobre a ressurreição do trata-mento psiquiátrico hospitalar na Grã-Bretanha. Temas 2000 58:1-16.

Dratcu L. Acute hospital care: the beauty and the beast of psychiatry. Edi-torial. Psychiatric Bulletin 2002, 26:81-82.

Gonçalves, SL, Sousa DRC. A saúde/doença mental como processo históri-co e social. Fragmentos de Cultura 2005; 1(5) 891-915.

Papeschi R (Lucca). The Denial of the institution. A critical review of Fran-co Basaglia’s Writing. Brit J Psychiatry 1985; 146:246-254.

Pederzini A (Milano). Programar a psiquiatria. Hospitalidade 1986 ; 50(197):15-20.

Saraceno B. Desinstitutionalisation. Psychiatrie Française (Rev des Syndi-cats de Psychiatrie Française) 1990; 3(90):13-17.

Sarli V. Per un tratamento dello psicotico grave nel servizio psichiatrico. Fogli di Informazione 1986; 119:3-11.

Schneider I. O uso político da psiquiatria: a luta antimanicomial. J Mineiro de Psiquiatria 2003; 22, Ano IX.

Talbott JA. Community Care for the chronically mentally ill. Psychiatr Clin North Amer 1985; 8:437-446.

Trudel JF, Lessage A. Le sort des patients souffrant de troubles mentaux graves et persistants lorsqu’il ny a pas d’hopital psychiatrique. Sante Mental au Québec 2005; XXX 1:47-71.

Serviço de PsiquiatriaHospital do Servidor Público Estadual “FMO”

R. Pedro de Toledo, 180004039-901 – São Paulo – SP

Email: [email protected]

miolo.indd Sec1:134miolo.indd Sec1:134 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

135

SERVIÇO DE PSIQUIATRIA E PSICOLOGIA MÉDICA

2005

MÉDICOS

Dr. Carol Sonenreich - DiretorDr. Zacaria B. A. Ramadam - Chefe da Seção de PsiquiatriaDra. Maria Aleuda A. M. Radesco - Encarregada do Setor de EnfermariaDr. Lenine da Costa Ribeiro - Encarregado do Setor de Ambulatório - tardeDr. Andres dos Santos Júnior - Encarregado do Setor de Ambulatório - manhãDr. Getulio Bezerra Castro - Encarregado do Setor de Psicoterapia de GrupoDra. Antônia E. Tonus - Encarregada do Setor de Psiquiatria InfantilDra. Daniele S. Furlani

Dra. Débora P. BassittDr. Décio G. Natrielli Fo.Dr. Durval Mazzei Nogueira Fo.Dr. Edson Daher Jr.Dr. Eduardo Guedes N. LealDr. Fernando MoralesDr. Filipe T SoaresDr. Flávio José GoslingDr. Frederico G. NevesDr. Getúlio Vargas da SilvaDr. Giordano Estevão Dra. Janete SimiemaDr. José Luiz BonfittoDra. Luciana E. GóesDra. Mara Regina Zanfolin Dra Márcia C. R. RufinoDr. Márcio Falcão SimoneDra. Maria Lúcia Baltazar - Pós Graduação

Dr. Otávio J. F. VerreschiDra. Patrícia F. MattosDr. Paulo M. CunhaDr. Pedro ÁlvarezDr. Renato T. LopesDra. Ruth B. de OliveiraDra. Taís MancusoDr. Tito Paes de Barros NetoDra. Vanessa T. R. de Lima

MÉDICOS RESIDENTES

R1

Dra. Anny de M. B. MacielDr. Dionísio Trevisoli Jr.Dr. Evandro L. P. BorgoDr. Fábio L. LawsonDra. Giovana Dall’Stella

R2

Dra. Bruna MarchioriDr. Frederico A M. FacchiniDra. Janaína B. MunizDr. Luciana Lorens BragaDra. Luciana V. A NunesDr. Rodrigo Fernandez

ESTAGIÁRIOS

Dra. Luciana F. NunesDr. André de C. Ângelo

TERAPEUTAS OCUPACIONAIS

Ana Cristina B. A. SalmistraroAna Lúcia dos R. BranquinhoCamila SoaresCáthia S.S. Bueloni

miolo.indd Sec1:135miolo.indd Sec1:135 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

136

Gisele Dabul e SilvaMariana Moraes SallesValéria de C. Marques APRIMORANDAS

Lígia Maria VieiraLetícia T. MathiasBárbara VilaçaAnali Del Bello Guarini

PSICÓLOGAS

Aparecida Bastos PereiraClarissa MedeirosDaniela de Andrade AthuilEva WongtschowskiKarina V FernandezKátia da S. WanderleyLúcia de Mello S. do ValleLuciana P. V. GutierresMarcella P. MaiaMárcia A. Pin Maria Tereza V. MontserratMariângela BentoMarina C. S. EberleinMilene Shimanbuco e SilvaRoberta KatzRosângela Carboni Castro APRIMORANDAS

Ana Lúcia FachimotoCláudia N. ChimettoDébora C. G. CostaFabiana S. N. PetitoFlávia Regina C. da SilvaFlaviana C. da SilvaMaria Laura M. GomesSamanta B. G. N. Rossi

ENFERMEIRAS

Ester G. R. da Silva

Leila AunMaísa B. de OliveiraSônia Maria Alves de Castro – HD

TÉCNICOS DE ENFERMAGEM

Cleusa F. O AlmeidaElizabete Peinado AUXILIARES DE ENFERMAGEM

Allen G. SilvaCláudia Tadeu de AlmeidaDalva V. da SilvaDaniela Maria de FreitasElena X. de AlmeidaElisângela F. ÂngeloInês M. de MeloJosé Reinaldo S. RamosMaria Aparecida CubasMaria das Neves FaustinoMaria do Carmo da SilvaMaria Gessiê S. R. MoreiraMaria José CabralMarlene M. dos Santos Vilma de S. Pereira OFICIAIS ADMINISTRATIVOS

Alice Moreira LopesMagali Falcão dos PassosMaria Célia de A. dos SantosMônica M. PoncianoPedrina Q. ReisRoseli T. SoaresVerônica M. Rodrigues

AUXILIAR DE SERVIÇOS

Maria de Fátima SenaPetterson A. Paulo

miolo.indd Sec1:136miolo.indd Sec1:136 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

Aos leitores

Há um número crescente de interessados que nos solicitam TEMAS. Uma limitação na tiragem nos impede de atender a todos. Temos dado preferência ao atendimento de bibliotecas universitárias, instituições psiquiátricas.

Solicitamos a gentileza de confirmar o recebimento deste número.

ATUALIZAÇÃO DE ENDEREÇO

Nome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Profissão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Rua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nº . . . . . . . . . Apto. . . . . . . . . .

CEP . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . País . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Enviar paraRevista TEMASServiço de Psiquiatria e Psicologia MédicaHospital do Servidor Público Estadual “FMO”Rua Pedro de Toledo, 1800São Paulo - SP04039-001Brasil

TEMASTEORIA E PRÁTICA DO PSIQUIATRA

miolo.indd Sec1:137miolo.indd Sec1:137 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

miolo.indd Sec1:138miolo.indd Sec1:138 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

miolo.indd Sec1:139miolo.indd Sec1:139 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22

miolo.indd Sec1:140miolo.indd Sec1:140 07.03.2006 18:05:2207.03.2006 18:05:22