A Excêntrica Família de Dona Lucíola
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A excêntrica família de Dona Lucíola
Ela encostou os dedos na minha cintura. Dedos largos de uma mão enrugada e azul.
Suas mãos comprimiram ainda mais minha cintura, com o indicador já pela altura dos
quadris. “Senhora perfeitinha”, soltou. Virei o corpo, quase derrubei o vinho. “Senhora
perfeitinha”, repetiu apertando minhas sobras pelas laterais. Ah, Dona Lucíola, do que
me sobra dos lados, me falta no resto. A falta me aperta no que as veias saltadas das
suas mãos se excedem. Quis dizer a ela do que sou feita, mas tirei quieta suas mãos da
minha cintura. “Dona perfeitinha, sim. Das minhas netas é a única que não fez
plástica.”, disse aquilo com uma das mãos de volta ao meu queixo. Engoli de uma vez
todo o vinho do copo. Àquela altura minha prima confirmava com o marido a segunda
alcoólatra da família. “Você nunca quis modificar nada do corpo?”, perguntou aquilo
minha avó, com a mão em um guardanapo, sujos de baba e de vinho. Se eu fosse
homem talvez tentasse aumentar meu pau, iria atrás dessas propagandas enlarge your
penis, mas não era o caso; pensei, enquanto observava o marido da minha prima e a
própria se aproximarem. “Não, vó, nunca quis mudar nada.”, disse. “Nada mesmo,
prima?” Talvez de gene, pensei, enquanto me lamentava por não ter sido trocada na
maternidade.
A festa era da minha prima recém-bem-casada Rosalinda, pela bem-sucedida
plástica no nariz. Percorria a casa com uma tala no lugar do nariz e duas manchas roxas
ao redor dos olhos. Todos a elogiavam como se estivesse, de fato, linda. As manchas
arroxeadas ganhavam a forma do rosto. Ela agradecia a cada elogio como se fosse, de
fato, linda. As manchas arroxeadas ganhavam a forma da festa. Eu estava lá pela bebida,
havia muito tempo desconhecia o gosto de vinho importado. Inventaria um elogio se
necessário, mas elogiei antes o garçom, único a antecipar a catástrofe de um copo vazio.
As mãos da minha avó se prenderam às minhas, circulamos juntas pela sala maior da
casa. Dois sofás se intercalavam a uma poltrona antiga, única peça anacrônica àquele
ambiente moderno e asséptico. “Essa poltrona é sua, vó.” Ela segurou meu copo antes
que o derrubasse pela segunda vez. “Essa poltrona é sua, vó. Ninguém pode roubar de
você.” Ah, Dona Lucíola, se você soubesse do que nós duas somos feitas não me
chamaria de Senhora Perfeitinha. Se lhe dissesse de que somos feita da mesma matéria
movediça, a fazer de mim uma bêbada, e de você, escrava das próprias netas, não
pensaria em perfeição. “Não vai fazer nada, então.” Minha avó baixou a cabeça,
conformada. Sentei na poltrona velha, alguma poeira haveria de levantar naquela festa
impecavelmente chata. O garçom, leal à missão, transbordou novamente meu cálice.
Vamos, senhorita perfeitinha, o copo de vinho é mais importante do que uma poltrona
velha. “O primeiro gole é pro santo.” Pintei a poltrona de vermelho-vinho-importado.
Rosalinda dizia que a poltrona fedia a naftalina. Uma poltrona marrom-escura
entre os muitos móveis e quinquilharias esparramados na estreita sala da vovó. Dona
Lucíola xingava a neta, porque gostava da poltrona, mas, no final, concordava com
Rosalinda. “Fede a naftalina essa merda.” Todas as netas riam. Ah, vovó, me xingaria
mais se lhe dissesse que elas riam de você. Dos seus dedos largos, da sua mão enrugada
e azul, da sua poltrona que fede a naftalina. Mas prefere abaixar a cabeça quando vê sua
poltrona, logo sua poltrona!, na sala grande da Rosalinda, entre dois sofás de couro
legítimo. Da minha parte, derramo boa dose de vinho e de embriaguez na poltrona-que-
fede-a-naftalina; me vingava pelas risadas e pelo desconforto de ser a Senhora
Perfeitinha.
Aqueles dedos largos tocaram meu ombro. “Rosalinda não vai gostar dessa
mancha de vinho.” Você, e mais ninguém, quem deveria gostar ou não gostar do que
quer que fizessem na sua poltrona marrom-escura, Dona Lucíola. Agarrei-me a sua
mão, estava fria. “Você está bem, vó?”. “Um mal súbito. Vai passar, vai passar.” Deitei
seu corpo frágil na sua poltrona de direito, ela não piscava, apenas suas mãos azuis se
moviam lentas nos braços da poltrona. “Dei essa poltrona porque Rosalinda é uma boa
menina.” Rosalinda voltou a cara torta à poltrona. “Vozinha, não vai dormir aí. Augusto
te leva de volta.” Augusto que era o bom menino, aguentava o narigão da Rosalinda
antes e depois da cirurgia. Dona Lucíola começou a roncar, as netas riram ao que eu
derramava mais vinho pro santo, ou a alguém capaz de lamber o sofá de couro legítimo.