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A EXCLUSÃO SOCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DO INDÍGENA BASEADA NO ESTEREÓTIPO Karine Cordazzo 1 Joe Graeff Filho 2 Heitor Romero Marques 3 RESUMO: A diversidade cultural traduz-se na necessidade de que o outro seja reconhecido, afirmado e respeitado, sob forma de igualdade de tratamento. No entanto, a realidade não se coaduna com esta suposta promoção da dignidade da pessoa humana, pelo contrário, nota-se uma verdadeira ruptura na estrutura das sociedades contemporâneas, marcadas nitidamente pela exclusão social. Nesse cenário, os indígenas figuram como os principais alvos da criminalização pautada no estereótipo, afinal, a sustentação de um discurso atemporal, que define estes povos como seres primitivos, serve de amparo para a supremacia do Estado, para o rebaixamento de sua condição existencial e, principalmente, para sua desumanização. A sustentação de um discurso de homogeneização cultural, conjugado com a prevalência da criminalização baseada no estereótipo, reflete, por consequência a completa exclusão destes povos. Palavras-chave: Exclusão social. Estereótipo. Indígenas. 1 Mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados - UNIGRAN (2016). Advogada. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8385110584658796. 2 Graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário da Grande Dourados-UNIGRAN (1998), com Especialização em Direito das Obrigações (1999), Atualmente é Coordenador do Curso de Direito, professor titular nos cursos de Direito (Direito Penal) e Engenharia Civil (Direito e Legislação em Engenharia Civil) do Centro Universitário da Grande Dourados e titular de Escritório de Advocacia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal. É Mestre em Desenvolvimento Local da UCDB - Universidade Católica Dom Bosco. Doutorando regular do programa em Desenvolvimento Local da UCDB. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8732672504083377. 3 Possui graduação em Ciências - Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (1976), graduação em Pedagogia - Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (1981), graduação em Educação Moral e Cívica Exame de Suficiência pela Universidade Federal de Goiás (1971), graduação em Ciências de Primeiro Grau Exame de Suficiência pela Universidade Federal de Goiás (1969), Especialização em Filosofia e História da Educação (1986) - FUCMT. Mestrado Em Educação Formação de Professores pela Universidade Católica Dom Bosco (1996) e doutorado em Desarrollo Local Y Planteamiento Territorial - Universidad Complutense de Madrid (2004). Atualmente é professor na Universidade Católica Dom Bosco, atuando em cursos de licenciatura e bacharelado, bem como na especialização lato sensu e Programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Local em contexto de territorialidades, no qual foi coordenador no período de no período de primeiro de março de 2012 a sete de março de 2016. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6681173217974714. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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A EXCLUSÃO SOCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DO INDÍGENA BASEADA NO ESTEREÓTIPO

Karine Cordazzo1 Joe Graeff Filho2

Heitor Romero Marques3

RESUMO: A diversidade cultural traduz-se na necessidade de que o outro seja reconhecido, afirmado e respeitado, sob forma de igualdade de tratamento. No entanto, a realidade não se coaduna com esta suposta promoção da dignidade da pessoa humana, pelo contrário, nota-se uma verdadeira ruptura na estrutura das sociedades contemporâneas, marcadas nitidamente pela exclusão social. Nesse cenário, os indígenas figuram como os principais alvos da criminalização pautada no estereótipo, afinal, a sustentação de um discurso atemporal, que define estes povos como seres primitivos, serve de amparo para a supremacia do Estado, para o rebaixamento de sua condição existencial e, principalmente, para sua desumanização. A sustentação de um discurso de homogeneização cultural, conjugado com a prevalência da criminalização baseada no estereótipo, reflete, por consequência a completa exclusão destes povos. Palavras-chave: Exclusão social. Estereótipo. Indígenas.

1 Mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados - UNIGRAN (2016). Advogada. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8385110584658796. 2 Graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário da Grande Dourados-UNIGRAN (1998), com Especialização em Direito das Obrigações (1999), Atualmente é Coordenador do Curso de Direito, professor titular nos cursos de Direito (Direito Penal) e Engenharia Civil (Direito e Legislação em Engenharia Civil) do Centro Universitário da Grande Dourados e titular de Escritório de Advocacia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal. É Mestre em Desenvolvimento Local da UCDB - Universidade Católica Dom Bosco. Doutorando regular do programa em Desenvolvimento Local da UCDB. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8732672504083377. 3 Possui graduação em Ciências - Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (1976), graduação em Pedagogia - Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (1981), graduação em Educação Moral e Cívica Exame de Suficiência pela Universidade Federal de Goiás (1971), graduação em Ciências de Primeiro Grau Exame de Suficiência pela Universidade Federal de Goiás (1969), Especialização em Filosofia e História da Educação (1986) - FUCMT. Mestrado Em Educação Formação de Professores pela Universidade Católica Dom Bosco (1996) e doutorado em Desarrollo Local Y Planteamiento Territorial - Universidad Complutense de Madrid (2004). Atualmente é professor na Universidade Católica Dom Bosco, atuando em cursos de licenciatura e bacharelado, bem como na especialização lato sensu e Programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Local em contexto de territorialidades, no qual foi coordenador no período de no período de primeiro de março de 2012 a sete de março de 2016. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6681173217974714.

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1 INTRODUÇÃO

A diversidade cultural traduz-se na necessidade de que o Outro seja reconhecido,

afirmado e respeitado, sob forma de igualdade de tratamento. Todos, independentemente de

cultura, sexo, raça, opção sexual, pertencem a um mesmo grupo, dos seres humanos.

Nessa senda, não existe a necessidade de que as diversas culturas e civilizações se

fechem para si mesmas, mas ao contrário, “que elas se abram umas às outras a partir do que

elas são e não do que deveriam ser. Essa perspectiva pode ser definida como de um mundo

que contém muitos mundos [...]”. (NASCIMENTO, 2010, p. 81)

Em que pese esta suposta promoção da dignidade da pessoa humana, do respeito à

diversidade e da igualdade de tratamento, observa-se, em verdade, uma grande ruptura na

estrutura das sociedades contemporâneas, marcadas nitidamente pela exclusão social.

Observar-se-á que essa exclusão é reflexo de um processo complexo, notadamente

relacionado às injustiças sociais e materiais, o que ocasiona um sentimento de frustração por

aqueles cuja única função é restritamente observar a ascensão e a riqueza de poucos. Esse

sentimento de frustração pode ocasionar diversas respostas, dentre elas, a criminalidade é

preponderante.

Atrelado a este processo de exclusão, adiciona-se um elemento inflamável, qual

seja, a criminalização baseada no estereótipo, na qual, as agências de criminalização

secundária – policiais, juízes, advogados, etc. – deixam de suspeitar de indivíduos e passam

a suspeitar de determinadas categorias sociais.

O Estado, volta-se para a unificação cultural, esquecendo que o fortalecimento da

democracia e a concretização dos ideais exigem o respeito à diversidade étnica e cultural dos

povos.

A identidade dos indígenas vista como universal e atemporal é estereotipada e

estigmatizada, mantendo-se o discurso eurocêntrico de incapacidade de evolução destes

povos, por conseguinte, ficam sujeitos à discursos políticos jurídicos que sobre eles

possibilitam ou vedam a continuação de sua existência física, social e cultural.

Esta definição de indígena como ser primitivo serve de amparo para a supremacia

do Estado, rebaixamento de sua condição existencial e principalmente para desumanizá-lo.

Notadamente, a sustentação deste discurso permite a criminalização baseada no estereótipo

e, consequentemente a completa exclusão destes povos.

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2 A RELAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O MULTICULTURALISMO

A consolidação dos direitos humanos na segunda metade do século XX e a eficácia

normativa conferida aos mesmos pelas constituições democráticas, contribuíram para que os

direitos humanos deixassem de representar meras teorias para ganhar concretude,

protegendo, assim, todo e qualquer indivíduo, que conforme Piovesan (2007, p.118),

“representam o referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea”.

É certo que, “os direitos humanos só puderam florescer quando as pessoas

aprenderam a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes em algum modo

fundamental” (HUNT, 2009, p. 58). Com isso, a ideia de preservação das diferenças naturais

e culturais como forma de fortalecer a humanidade ganhou amplitude, admitindo-se, para

tanto, que a humanidade pode enfraquecer “com a instituição de desigualdades sociais, isto

é, de situações de dominação de uns sobre outros, fundadas na pretensa superioridade

universal de um sexo, de uma raça ou de uma cultura”. (COMPARATO, 2004, p. 427)

Neste prisma, Piovesan (2007, p. 153) destaca a necessidade de se defender uma

“concepção multicultural dos direitos humanos, inspirada no diálogo entre as culturas, a

compor um multiculturalismo emancipatório”. Segundo a autora, o conceito de direitos

humanos deve ser readaptado sob o enfoque do multiculturalismo, uma vez que este seria

condição lógica e necessária para o equilíbrio entre a comunidade global e local, “que

constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no

nosso tempo”.

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A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, em seu artigo

1º estabelece que a diversidade cultural é patrimônio comum da humanidade, afirma que “a

cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade manifesta-

se na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as

sociedades que compõem a humanidade”. Destaca também o papel essencial dos direitos

humanos como garantes da diversidade cultural, ou seja, o respeito à diversidade cultural

está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana4, implicando assim, um compromisso

por parte de todos em respeitar tanto os direitos humanos, como as liberdades fundamentais,

especialmente “os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones”.

Ademais, “ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos

garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance”.

Neste liame, Young (2002) sustenta que a retórica progressista, que enfatizava a

igualdade entre os diversos grupos multiculturais foi transformada na noção de que as

pessoas são essencialmente diferentes, de que a diferença deve ser reconhecida e respeitada

sob a forma de igualdade de tratamento. Porém, essa pretensa consagração da diferença se

combinou com uma forma excepcional de essencialismo, baseado em essências

aparentemente fixas e atemporais.

O autor critica essa visão essencialista, afinal, as culturas não envolvem essências

fixas e atemporais. Muito pelo contrário, as culturas podem mudar rapidamente no tempo se

as circunstâncias mudarem, afinal, esta hibridação tem se tornado cada vez mais evidente no

período atual de globalização. Destarte, essa noção essencialista figura como uma forma

radical de exclusão social, pois, separa grupos humanos com base na sua cultura, raça, opção

sexual etc.

Nesta toada, a exclusão social na modernidade recente ou pós-modernidade

encontra-se profundamente arraigada neste essencialismo, sendo este, requisito necessário

para que ocorra a demonização de partes da sociedade. Essa demonização permite que os

problemas da sociedade sejam colocados nos ombros de alguns poucos, em geral, situados

na margem da sociedade. Por conseguinte, um dos reflexos inerentes à demonização de

determinados indivíduos ou segmentos sociais é, sem sombra de dúvidas, a criminalidade.

4 O caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um valor próprio, veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo. (COMPARATO, 2004, p. 31)

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3 A CRIMINALIZAÇÃO E A EXCLUSÃO SOCIAL

Resta evidente a partir da discussão acima, que o essencialismo facilita

grandemente o processo de exclusão social, afinal, provê os alvos a partir de estereótipos,

implicando que determinados grupos ou classes sociais sejam considerados os únicos

propagadores da criminalidade.

Neste contexto, o discurso quase que unânime da modernidade recente ou pós-

modernidade, é de que os delinquentes escolhem voluntariamente a criminalidade, sem que

o meio externo influencie de qualquer modo essa realidade. Ou seja, os marginalizados são

vistos como a causa de todos os problemas da sociedade, quando na verdade, os seus

problemas é que são causados pela própria sociedade.

A exclusão social, portanto, não ocorre como simples reflexo de um processo de

exclusão, a instabilidade social da pós-modernidade exibe um verdadeiro processo bulímico,

que inclui e posteriormente exclui. “[...] A ordem social do mundo industrial avançado é

uma ordem que engole seus membros. Ela consome e assimila culturalmente massas de

pessoas através da educação, da mídia e da participação no mercado”. (YOUNG, 2002, p.

125)

Com efeito, a sociedade como um todo é instada a participar do sistema capitalista,

de consumir de maneira desenfreada. É instigada pela busca do tênis de marca, dos carros

de luxo, das joias de grife, mas, diante da impossibilidade de determinados indivíduos

inserirem-se neste círculo vicioso, são rotulados como “perdedores”, excluídos e, por

conseguinte, estigmatizados. Desta forma, “a subclasse reage a essa superidentificação pelo

crime, pela criação de gangues e de subculturas criminais”. (YOUNG, 2002, p.132)

O aumento da criminalidade emerge desta inflamável combinação: do

individualismo, da necessidade autorealização e da impossibilidade de alcançar

determinados padrões impostos pela sociedade de mercado, ocasionando, assim, uma

verdadeira ruptura na estrutura social.

Baumann, grande visionário e pensador da modernidade, já advertia quanto à

existência de uma sociedade de consumo estratificada, onde todos seriam convidados a

desemprenhar o papel de consumidor, mas, a grande maioria sequer poderia chegar perto

dos objetos desejados. Com efeito, todos podem “desejar ser um consumidor e aproveitar as

oportunidades que esse modo de vida oferece. Mas nem todo mundo pode ser um

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consumidor. [...] Como todas as sociedades, a sociedade pós-moderna de consumo é uma

sociedade estratificada”. (BAUMAN, 1999, p. 94)

Neste sentido, é possível observar que os excluídos socialmente são aqueles

impedidos de participar do jogo do consumo e, portanto, sua única função é de ficar

observando a ascensão e a riqueza de poucos.

Bauman (1999, p. 56) destaca que esta visão de muitos observando poucos, remonta

à ideia do Panóptico de Jeremy Bentham, e que Michel Foucault utilizou como metáfora

para referir-se à redistribuição dos poderes de controle.

O Panóptico visava demonstrar que as pessoas, ou melhor, os súditos, não poderiam

se esconder da presença onipotente e onipresente de seus superiores, ou seja, a certeza de

que estariam sendo vigiados a todo momento: um controle absoluto por meio da vigilância.

Trata-se, portanto, de poucos vigiando muitos. Assim, “o principal propósito do Panóptico

era instilar a disciplina e impor um padrão uniforme ao comportamento dos internos; o

Panóptico era antes e acima de tudo uma arma contra a diferença, a opção e a variedade”.

(BAUMAN, 1999, p. 58)

Por outro lado, o Sinóptico – por assim dizer, uma extensão do Panóptico – sugere

que muitos estariam vigiando poucos. Ou seja, na pós-modernidade, estar-se-ia

desenvolvendo novas técnicas de poder e controle, notadamente fomentadas pelos meios de

comunicação de massa. “Os poucos que são observados são as celebridades. [...] No

Sinóptico, os habitantes locais observam os globais. [...] infinitamente superiores mas dando

um brilhante exemplo para todos os inferiores seguirem ou sonharem em seguir”.

(BAUMAN, 1999, p. 61-62)

Trata-se, desta forma, da verdadeira essência do processo de exclusão, onde os

situados à margem da sociedade, permanecem estáticos, imóveis, fixados em seu local,

apenas aplaudindo a ascensão e a riqueza dos que pertencem ao mundo globalizado, mas que

ali devem permanecer, conformados, sob pena de ameaçar a estabilidade desta sociedade

utópica do vendedor leva tudo.

Nesse contexto, a “insatisfação face à situação social pode dar lugar a uma

variedade de respostas políticas, religiosas e culturais e, frequentemente, fechar e restringir

as possibilidades criando respostas criminais”. (YOUNG, 2002, p. 30)

Existe, portanto, uma relação inequívoca entre as mudanças na criminalidade com

as mudanças na base material. Afinal, a exclusão social decorre de um processo complexo

que visa, antes e acima de tudo, criar condições favoráveis para os grandes investidores,

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relegando os trabalhadores à própria sorte. “[...] A dimensão global das opções dos

investidores, quando comparada aos limites estritamente locais de opção do fornecedor de

mão de obra”, garante essa assimetria, que por sua vez é subjacente à dominação dos

primeiros sobre o segundo”. (BAUMAN, 1999, p. 113)

Nesse sentido, quando as normas do mercado de trabalho tornam-se menos rígidas,

quando o sistema de proteção social é transformado com a finalidade de abarcar interesses

unicamente da classe dominante e dos grandes investidores, observa-se a realocação do

mercado de trabalho, ou seja, da mão de obra primária para as relações terceirizadas – com

contratos curtos, precários e sem quaisquer garantias. Essa combinação de restrição ao

mercado de trabalho, conjugada com a impossibilidade de participação da sociedade de

consumo, reflete, necessariamente, no único meio à disposição destes socialmente excluídos,

qual seja, a criminalidade.

Tudo isso nos leva a crer na necessidade de que sejam implementadas políticas

públicas que alcancem os que estão na margem da sociedade, que fomentem a distribuição

das recompensas baseadas no mérito de cada um, extirpando de vez com a prática delével

da alocação da riqueza apenas nas mãos de uma minoria detentora do poder. “Através da

abertura da esfera de trabalho a todos, da restrição à riqueza herdada e da garantia de que a

remuneração reflita o mérito” (YOUNG, 2002, p. 274), é possível iniciar uma transformação,

rompendo de vez com o paradigma da exclusão social.

A única lição a ser aprendida, afirma Young (2002, p. 214), é desviar desta linha de

punição desvairada, “é compreender que se for necessário um gulag para manter a sociedade

do vencedor leva tudo, então é a sociedade que precisa ser mudada, e não as prisões

expandidas”.

4 A CRIMINALIZAÇÃO PAUTADA NO ESTEREÓTIPO

A criminalização lastreada pelo critério do estereótipo não é recente, pelo contrário,

remonta aos primórdios da história humana, quando o colonizador Europeu, branco e

católico, decidiu impor sua cultura aos demais povos. Notadamente, ao promover os valores

eurocêntricos, a Modernidade foi severamente cruel com as outras culturas e os outros

povos. (BRITO, 2013, p. 89)

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Com efeito, a propagação de uma cultura hegemônica e opressora sobre as demais,

consagrou um verdadeiro massacre de diversas culturas ocidentais, legitimada, antes de mais

nada, sob o discurso da necessária evolução da espécie humana. Era “a lógica da exploração,

negando a existência, a voz e a identidade a todos aqueles que lá se encontravam”. (BRITO,

2013, p. 77)

Destarte, é evidente que este processo de exclusão baseado no estereótipo não ficou

restrito ao colonialismo.

Nas sociedades pós-modernas, o discurso da criminalização, tanto primária –

sancionadora de determinado crime em sentido abstrato –, como secundária – reflexo da

punição exercida sobre sujeitos concretos – constitui-se necessariamente a partir da

existência de um poder formalizado, personificado na figura Estado. Desta forma, o Estado,

na qualidade de detentor do jus puniendi, exerce esse papel através das agências de

criminalização selecionando determinados indivíduos que suspostamente seriam violadores

dos mandamentos legais.

Carnelutti esclarece que o direito está intrinsecamente ligado à figura do Estado,

pois, somente com a presença desta seria possível construir uma ordem jurídica estável.

“Hemos visto que el derecho sirve para ordenar la sociedad. La ideia del orden se resuelve

en la ideia la estabilidad. El caos es esencialimente inestable. [...] Por eso la sociedad

juridicamente ordenada se llma Estado." (CARNELUTTI, 2002, p. 65)

Assim, diante da existência de um vasto programa de criminalização primária, ou

seja, da existência de uma quantidade escatológica de crimes em sentido abstrato, as agências

de criminalização secundária, a exemplo da polícia, viram-se obrigadas a proceder de

maneira seletiva. “[...] Desta maneira, elas estão incumbidas de decidir quem são as pessoas

criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potenciais protegidas”. (ZAFFARONI,

BATISTA, ALAGIA et al., 2003, p. 44)

É, nesse cenário de alta complexidade do sistema penal, traduzido no excesso de

possibilidades, bem como diante da necessidade de manutenção de uma ordem jurídica

estável, viceja a seletividade de determinados indivíduos vulneráveis. Por serem “pessoas

desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob

a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma imagem pública do delinquente com

componentes de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos”. (ZAFFARONI,

BATISTA, ALAGIA et al., 2003, p. 46)

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Nota-se, então, que o estereótipo exerce papel fundamental neste critério seletivo

da criminalização. Por conseguinte, as agências de criminalização secundária – policiais,

juízes, advogados, etc. – deixaram de suspeitar de indivíduos e passaram a suspeitar de

determinadas categorias sociais. Destarte, “a justiça que o suposto infrator recebe torna-se

resultado, não de uma culpa individual e uma punição proporcional, mas de um processo

negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas, e não de obediência a padrões

absolutos”. (YOUNG, 2002, p. 75)

De qualquer forma, esta seletividade penal consagra-se como regra em todas as

sociedades pós-modernas, já que opera justamente em razão da vulnerabilidade de

determinados indivíduos pertencentes a grupos sociais, geralmente, minoritários.

Nesta senda, os indígenas figuram no papel principal quando se trata da novela da

criminalização baseada no estereótipo.

5 OS INDÍGENAS E A CRIMINALIZAÇÃO BASEADA NO ESTEREÓTIPO

Todos os discursos – do período colonial à pós-modernidade – carregam

essencialmente a dicotomia existente entre o ser civilizado e o homem bárbaro, selvagem.

Esta visão totalitária e etnocêntrica do colonizador Europeu, pregava a

desconstituição da própria condição humana dos povos indígenas, reduzindo-os a meros

objetos. “As guerras impostas pela “civilização” contra a chamada ‘barbárie’ representam a

radicalização do sujeito como ser absoluto e como negação do Outro”. (BRITO, 2013, p. 98)

Nesse contexto – ainda no período colonial –, mesmo com o suposto trabalho da

Igreja Católica em reconhecer a condição humana dos indígenas, estes ainda eram

considerados seres inferiores, desprovidos da capacidade de alcançar a condição evolutiva

dos homens brancos, católicos e Europeus. “[...] trata-se de tomar narcisamente sua própria

imagem como referência absoluta daquilo que se pensa sobre o que é o humano. Nesse

processo, surgem os estigmas, as segregações, os genocídios e toda manifestação da

colonialidade, do poder, do saber e do ser”. (BRITO, 2013, p. 142).

Nesse sentido, “é significativo ressaltar que o processo histórico de afirmação do

homem racional, cognitivamente fundado no Iluminismo, fortaleceu o modelo civilizatório,

em oposição à diversidade humana, tida como bárbara e selvagem”. (BRITO, 2013, p. 42)

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Esta negação do outro – especialmente quanto aos povos indígenas – tornou-se fixa

e atemporal, não ficando restrita ao período colonial. Muito pelo contrário, foi na suposta

sociedade “globalizada”, “pós-moderna” e “utópica” que manteve-se latente o discurso da

negação do outro.

Durante muito tempo no Brasil, persistiu a ideia da assimilação dos povos indígenas

à comunidade nacional. Este discurso encobria, sem sombra de dúvidas, um processo

sorrateiro de forçada homogeneização, culminando, assim, em um verdadeiro etnocídio com

relação aos resistentes a este inclusivismo. Bem salienta Brito (2016, p. 156), que

“assimilacionismo é etnocídio, genocídio cultural, violação radical à democracia étnica e à

pluralidade cultural”.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, teoricamente foi dada como

superada essa visão integracionista, afinal, conferiu-se novo tratamento jurídico aos povos

indígenas, prestigiando-se o direito à organização social, à autodeterminação e aos costumes.

No entanto, embora as referidas mudanças puderam ser vistas com bons olhos em um

primeiro momento, mesmo assim a concepção assimilacionista permaneceu a orientar a

ordem jurídica nacional.

Em verdade, a criminalização dos indígenas considera ainda hoje o discurso da

aculturação para conferir-lhes ou negar-lhes direitos. Isto é, os indígenas ainda são vistos

como uma espécie inferior na escala evolutiva humana, sendo responsabilizados

criminalmente de acordo com a superação ou não deste atavismo, conquistado através do

contato interétnico.

Nota-se, portanto, uma potente técnica de neutralização da cultura indígena,

desenvolvida inicialmente no processo civilizatório e mantida até hoje por meio da completa

exclusão social baseada no estereótipo. “A ameaça às culturas nativas no mundo globalizante

de hoje é, em grande medida, inescapável [...]”. (SEN, 2010, p. 308)

Notadamente, uma das grandes consequências deste processo de exclusão reflete

peremptoriamente no isolamento destes povos. Afinal, por não pertencerem à comunidade

nacional, bem como sua insignificância perante a estrutura econômica e social, os indígenas

são mantidos à margem da sociedade, invisíveis aos olhos da cultura dominante e relegados

à própria sorte. “A separação espacial que produz um confinamento forçado tem sido ao

longo dos séculos uma forma quase visceral e instintiva de reagir a toda diferença e

particularmente à diferença que não podia ser acomodada nem se desejava acomodar [...]”.

(BAUMAN, 199, p. 114)

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Disponível em

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Sem sombra de dúvidas, a cultura de dominação baseada nesse tipo de discurso

precisa, antes de mais nada, manter esta relação dicotômica, qual seja, a de dominador e de

dominado. “A única coisa que o primeiro não pode fazer com o segundo é eliminá-lo, porque

assim eliminaria seu próprio poder que se assenta em sua preponderância, na relação

estabelecida”. (CÁRCOVA, 1998, p. 167-168)

De tal sorte, não há como se falar em cultura hegemônica, em sistema capitalista e

em sociedade de consumo, sem a presença da pobreza, da criminalidade e da exclusão social.

Necessariamente, a prevalência da criminalização de determinados segmentos sociais

baseada no estereótipo, a exemplo dos indígenas, “é consequência inevitável de um sistema

‘bem-sucedido’ de mercado livre”. (YOUNG, 2002, p. 85)

Nesse sentido, voltando-nos para uma perspectiva regional, é imperioso destacar a

relevância do Estado de Mato Grosso do Sul, no que tange à criminalização dos indígenas,

bem como de sua reflexa consequência: a violação dos direitos humanos.

Com efeito, segundo Relatório de indígenas, estrangeiros e presos processados e

condenados pela Justiça Federal, publicado pela Agência Estadual de Administração do

Sistema Penitenciário (AGEPEN/MS)5, referente ao período de janeiro de 2017 a 10 de

fevereiro de 2017, o Estado de Mato Grosso do Sul contava com 131 indígenas condenados.

Ademais, através do último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística – IBGE de 20106, a população autodeclarada indígena por situação do domicílio,

segundo os municípios do Brasil, Dourados comportava cerca de 6.830 indígenas, número

este que pode ser ampliado, se considerados os municípios próximos, tais como Itaporã

(5.095 indígenas) e Caarapó (4.370 indígenas). Vale dizer, esta região candidata-se a ser um

possível reduto de graves violações dos direitos dos indígenas, uma vez que a crescente

seletividade baseada no estereótipo viceja cada vez nas sociedades pós-modernas.

5 Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário/AGEPEN/MS. Relação de indígenas, estrangeiros e presos processados e condenados pela Justiça Federal-ref. janeiro-17/f-10-02-2017. Disponível em: <http://www.agepen.ms.gov.br/wp-content/uploads/sites/58/2017/02/JPresos-Justica-Dederal-Indios-estrangeiros-jan-2017-1.pdf>. Acesso em 07 de junho de 2017. 6 Os indígenas no Senso Demográfico 2010. Tabela 3. População autodeclarada indígena por situação do domicílio, segundo os municípios – Brasil – 1991/2010. Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3.html>. Acesso em 07 de junho de 2017.

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Por consectário lógico, dada a presença maciça de indígenas nesta região, abre-se

espaço para a consagração da seletividade criminalizante baseada na simples condição do

“ser indígena”. Ou seja, a própria identidade de um indivíduo como pertencente a esta

cultura, autoriza, per si, a criminalização baseada no estereótipo. Amartya Sen evidencia

esta situação. Sustenta o autor que a grande maioria dos conflitos e das barbáries no mundo

são engendrados “pela ilusão de uma identidade única e sem alternativa. A arte de fabricar

o ódio assume a forma de uma invocação do poder mágico de uma identidade supostamente

predominante que afoga outras filiações [...]”. (SEN, 2015, p. 13)

Nessa senda, é perceptível que o poder punitivo criminaliza de maneira seletiva

aqueles que se enquadram nos estereótipos criminais, e a partir de então, torna-os sujeitos

vulneráveis, ou seja, a eles sempre serão imputados a causa de todos os delitos da sociedade.

Inegavelmente, “o sistema penal opera em forma de filtro para selecionar tais pessoas. [...]

o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante a correspondência com

o estereótipo for maior ou menor”. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA et al., 2003, p. 49)

Sendo assim, quando a seleção prevalente é baseada peremptoriamente no

estereótipo, os indígenas figuram como protagonistas neste processo, não precisando fazer

qualquer esforço para serem colocados nessa posição de risco.

Nessa toada, frise-se a necessidade de abandonar essa visão estigmatizante dos

indígenas, extirpar verdadeiramente do sistema punitivo a prevalência pela criminalização

baseada no estereótipo. É preciso lutar por um novo inclusivismo, onde o direito à diferença

é efetivamente respeitado, onde a igualdade material seja a pedra angular da sociedade como

um todo, refletindo uma proporcional distribuição da renda baseada no mérito de cada um.

Afinal, criminalidade tem ligação linear com injustiça social, e somente quanto esta for

superada, a criminalização será atenuada.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sustenta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana configurar-se como

pedra angular de todas as sociedades que se dizem respeitadoras de direitos. Este princípio

“simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar

o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial

racionalidade, unidade e sentido”. (PIOVESAN, 2007, p. 31)

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Destarte, essa noção revigorante de respeito à dignidade da pessoa humana, que

tantas vezes é apresentada como caráter intrínseco a todas as pessoas, em nada se coaduna

com realidade inerente aos grupos segregados e estigmatizados da sociedade pós-moderna.

O mal-estar da pós-modernidade está muito mais arraigado no sentido da exclusão

social, sendo possível estabelecer uma relação linear entre exclusão social e injustiça na base

material. A combinação de restrição ao mercado de trabalho, conjugada com a

impossibilidade de participação da sociedade de consumo, reflexe, necessariamente, no

único meio à disposição destes excluídos, a criminalidade.

A criminalidade então, não resulta de uma simples opção pelo crime, mas sim de

um verdadeiro destino à criminalidade. Resulta de um processo de inclusão e exclusão, onde

aqueles que não podem participar do jogo do consumo, geralmente minorias, são rotulados,

excluídos e, por conseguinte, estigmatizados.

Nesse cenário de exclusão, os indígenas figuram como principais alvos da

criminalização pautada no estereótipo, bastando o mero fato de “ser indígenas” para serem

colocados nessa posição de risco.

Esta negação do outro – ideologia fixada desde o período colonial – manteve-se

latente na suposta sociedade pós-moderna e globalizada. Em verdade, o discurso de

dominação sobre os selvagens, que outrora fora baseado na imposição da cultura

eurocêntrica, ganhou nova roupagem, mas de modo algum deixou de tecer o papel de

neutralização das culturas minoritárias.

De tal modo, apesar da supostas mudanças paradigmáticas ocorridas quanto ao

tratamento jurídico dos indígenas, ainda assim têm prevalecido, mesmo que sorrateiramente,

o discurso da aculturação. Em verdade, os indígenas ainda são vistos como uma espécie

inferior na escala evolutiva humana, sendo responsabilizados criminalmente de acordo com

a superação ou não deste atavismo.

Nesse sentido, o Estado de Mato Grosso do Sul apresenta relevância no estudo da

criminalização de indígenas baseada no estereótipo, afinal, a seletividade penal, consagrada

como regra na pós-modernidade, opera justamente em razão da vulnerabilidade destes

indivíduos. Sendo assim, o referido Estado, por abarcar um número expressivo de indígenas

em toda sua extensão territorial, é um forte candidato a ser reduto dessa desprezível prática.

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Desta forma, a existência de uma sociedade que permite a criminalização pautada

no estereótipo, que atribui as causas da criminalidade aos socialmente excluídos, que

mantém o discurso da assimilação aos povos indígenas, que culpa categoriais sociais ao

invés de definir uma culpa individual, que promove a dominação, a segregação e a

estigmatização, evidencia, por consequência, a falaciosa promoção da aclamada dignidade

da pessoa como pedra angular de todas as sociedades.

7 REFERÊNCIAS

AGEPEN/MS. Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário. Relação de indígenas, estrangeiros e presos processados e condenados pela Justiça Federal-ref. janeiro-17/f-10-02-2017. Disponível em: <http://www.agepen.ms.gov.br/wp-content/uploads/sites/58/2017/02/JPresos-Justica-Dederal-Indios-estrangeiros-jan-2017-1.pdf>. Acesso em 07 de junho de 2017.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BRITO, Antonio José Guimarães. Direito e barbárie no (I) mundo moderno: a questão do Outro na civilização. Dourados: Ed. UFGD, 2013.

CÁRCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito. Traduzido por Edilson Alkmin Cunha. São Paulo: LTr, 1998.

CARNELUTTI, Francesco. Cómo nace el derecho. Traducción Santiago Sentis Melendo; Marino Ayerra Redí. Bogotá: Editorial Temis S. A., 2002.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os indígenas no Senso Demográfico 2010. Tabela 3. População autodeclarada indígena por situação do domicílio, segundo os municípios – Brasil – 1991/2010. Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3.html>. Acesso em 07 de junho de 2017.

NASCIMENTO, José do. Direitos humanos, culturalismo, multiculturalismo e as diversidades culturais. Campo Grande: IDHMS, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 8. ed. ver. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

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SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta; revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______. Identidade e violência: a ilusão do destino. Tradução José Antonio Arantes. 1. ed. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2015.

UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 07 de junho de 2017.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. (Pensamento criminológico; 7) 3ª reimpressão, 2015.

ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. (1ª reimpressão 2013)

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