A Experiência Urbana Nos Comentários de Benjamin

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    A EXPERINCIA URBANA NOS COMENTRIOS DE BENJAMINAOS POEMAS DE BRECHT

    Luciano Gatti*

    O artigo aborda os comentrios de Walter Benjamin aos poemas do ciclo Manual para habitan-tes das cidades de Bertolt Brecht, a fim de discutir a especificidade da lrica brechtiana noquadro mais geral da reflexo de Benjamin sobre a lrica urbana moderna. Benjamin retomaduas questes decisivas constituio da obra de Brecht: a sobriedade da linguagem e oensinamento como forma de transmisso da experincia urbana e poltica. Esse vnculo entreexperincia e transmisso no se reduz instruo de condies de sobrevivncia na cidadegrande, mas se constitui, sobretudo, no aprendizado de uma postura crtica perante a cidade.Enquanto a comunicao entre indivduos isolados precria e a organizao poltica aproxi-ma-se da ilegalidade, os poemas almejam a constituio de um vnculo entre eu e tu pormeio da reflexo potica da experincia urbana.PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin, Bertolt Brecht, lrica urbana, crtica, experincia.

    DOSS

    I

    A reflexo de Walter Benjamin sobre ex-perincia moderna um dos fios condutores desua ltima dcada de trabalho. Em seu derradei-ro escrito sobre Bertolt Brecht, os comentrios de1938 a 1939 ao ciclo de poemas Do manual parahabitantes de cidades, essa questo de amplo al-cance recuperada por meio de um motivo mui-to particular da lrica brechtiana: o imperativo doapagamento dos rastros. De um modo geral, essetema permite a Benjamin retomar, no contextoda lrica brechtiana, motivos encontrados em ou-tro grande ciclo de poemas da lrica moderna, osQuadros Parisienses de Charles Baudelaire, so-bre os quais Benjamin tambm escrevia naquelamesma poca (Benjamin, 1974a). No conjunto deensaios sobre o poeta francs, questes como oapagamento de vestgios da experincia individu-al na experincia coletiva e o consequente senti-mento de estranhamento perante cidade so tra-balhadas de modo a elaborar uma apresentao

    da modernidade parisiense a partir da lrica urba-na de Baudelaire. No ensaio Sobre alguns temasem Baudelaire (1939), por sua vez, tais motivostendem a convergir no diagnstico do declnio deuma concepo tradicional de experincia, ou seja,a experincia moldada por vnculos orgnicos en-tre o indivduo e a histria coletiva e, portanto,oposta vivncia solitria, imediata e entrecortadado habitante da grande cidade, denominada porBenjamin de vivncia do choque.

    Diante desse quadro mais amplo da lricaurbana moderna, este texto pretende salientar aespecificidade da poesia brechtiana comentadapor Benjamin. O objetivo, contudo, no sim-plesmente retomar os temas da reflexo sobreBaudelaire a fim de tornar a lrica de Brecht re-conhecvel no contexto do declnio da experin-cia. Ao contrrio, sem prejuzo desse diagnsti-co, trata-se aqui de tentar levar adiante a pers-pectiva aberta por Benjamin no ensaio Experi-ncia e pobreza (1933), ou seja, examinar omodo como autores decisivos das dcadas de1920 e 1930, como Brecht, lidaram com os desa-fios colocados por essa poca de pobreza da ex-

    * Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filo-sofia da Universidade Federal de So Paulo.Estrada do Caminho Velho, 333 Bairro dos Pimentas Guarulhos So Paulo. Cep: 07252-312. [email protected]

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    perincia. Sem necessariamente endossar termosque tinham uma boa dose de retrica, como o debarbrie positiva, por exemplo, a inteno aqui a de examinar o encaminhamento dado porBrecht a questes como a do vnculo entre o indi-vduo e a coletividade com o objetivo de cons-truir uma experincia poltico-artstica capaz deconfrontar, de modo crtico, os acontecimentosdesses anos. Embora o conceito de experinciano seja expressamente trabalhado nesses comen-trios poesia de Brecht, talvez seja possvel afir-mar que as questes envolvidas apontam para almdo diagnstico do declnio da experincia tradici-onal: ou seja, dizem respeito constituio deuma concepo forte de experincia, subjacenteao trabalho crtico, artstico e poltico desses au-tores, inclusive ao trabalho crtico e historiogrficodo prprio Benjamin. Essa questo compe o panode fundo desta apresentao.

    Em primeiro plano, vou me deter em duasquestes internas ao trabalho de Brecht nesseperodo da segunda metade da dcada de 1920:1) o ensinamento como forma de constituio etransmisso da experincia urbana e poltica; 2)e a sobriedade da linguagem desenvolvida nesseprocesso de transmisso. Essas duas questessero trabalhadas a partir dos pontos extremosdo ciclo de poemas Do manual para habitantesde cidades (o primeiro e o dcimo poemas). Como intuito de iluminar o entrelaamento dessespontos, recorrerei ainda ao trabalho teatral deBrecht, mais especificamente pea didtica Amedida (1930), que se destaca da sua produodesses anos pelo radicalismo com que lida com aquesto da formao do coletivo.

    Antes de iniciar o exame dos prprios tex-tos comentados por Benjamin, algumas palavrassobre a forma especfica do comentrio, a qual escolhida por ele como a mais adequada ao traba-lho crtico com esses poemas. O comentrio, dizele, parte do classicismo de um texto, ou seja, dopreconceito que sustenta sua autoridade.

    Trata-se de um estado de coisas muito dialticoque essa forma arcaica, o comentrio, que, aomesmo tempo, uma forma autoritria, seja co-

    locada a servio de uma poesia que no s notem nada em si de arcaico, mas tambm faz fren-te ao que hoje tomado como autoridade. (Ben-jamin, 1974b, p.539).

    Benjamin prope aqui um modo muitoparticular de considerar Brecht como autor cls-sico, do qual decorreria o vis crtico da produ-o brechtiana. Antes de entrar nos detalhes des-se classicismo, vale a pena observar que sua pro-posta distinta de duas outras maneiras pelasquais a posteridade considerou Brecht como cls-sico, notadamente em seu perodo de maturida-de. Primeiro, o classicismo como um projetoexplcito do Brecht maduro de apropriar-se dacultura passada num movimento de totalizaoem vista de um novo teatro. Na bibliografia bra-sileira, vale dar uma olhada no livro de Jos An-tnio Pasta Jr., Trabalho de Brecht, republicadoh pouco (Pasta, 2010). Uma segunda atribuiodo termo clssico a Brecht aquele feito porHeiner Mller, que identifica, no Brecht madu-ro, a emigrao para o classicismo. As grandespeas, as grandes parbolas que fizeram a famade Brecht, teriam surgido a partir do momentode afastamento das lutas sociais que deram umprimeiro feitio concepo de teatro pedaggi-co. O Brecht clssico o Brecht do exlio, maisdistante do pblico e da poltica. O classicismoaqui, assim como para o Goethe de Weimar, se-ria uma recompensa literria para a ausncia darevoluo alem (Mller, 2003). Naturalmente,h diversas conexes entre esses dois usos doconceito de clssico.

    Benjamin imprime ao termo clssico umsentido um tanto distinto dos mencionados aci-ma; e no s porque seus comentrios contem-plam poemas escritos antes da tal emigraopara o classicismo lembrada Mller, poemascomo aqueles do ciclo Do manual para habitan-tes de cidades. Leitores dos textos de juventu-de de Benjamin, como o ensaio sobre o romanceAs afinidades eletivas, de Goethe (1922), se re-cordaro do par conceitual crtica e comentrio,e de seus referentes, teor de verdade e teor ma-terial da obra de arte. O comentrio, diz o en-

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    saio, parte da distncia histrica entre a obra e otempo histrico do crtico. Ele pressupe, por-tanto, um duplo sentido de durao ou de vidapstuma da obra: um processo de inevitvel en-velhecimento dos materiais empregados em suaproduo, reforando, assim, sua historicidade;e a recepo da obra, ou seja, as leituras e pre-conceitos acumulados nas pocas posteriores sua produo. Como atividade de cunho histri-co e filolgico, o comentrio prepararia o cami-nho para a crtica, a qual se dedica propriamen-te verdade desses materiais, legvel no momentode sua recepo pela crtica atual. Nesse contex-to, o clssico, muito mais que um atributo in-trnseco obra mesma ou um atributo decor-rente de sua canonizao, uma categoria desua historicidade (Benjamin, 1974b).

    A partir de meados dos anos 1920, a aten-o crescente de Benjamin a obras e artistas con-temporneos talvez explique o abandono, pelomenos de modo explcito, dessa distino entrecrtica e comentrio. Diante de escritores recen-tes, o comentrio perderia sua razo de ser, ain-da que Benjamin continue prestando ateno recepo das obras, como o comprova sua pol-mica contra a recepo teolgica de Kafka (a fa-mosa carta a Gershom Scholem tambm de1938) (Benjamin, 1992). Pelo mesmo motivo,consideraes sobre a recepo e a distncia his-trica voltam a ocupar Benjamin em considera-es metodolgicas de seu planejado livro sobreBaudelaire. Em um fragmento de 1938 (mesmoano dos comentrios aos poemas de Brecht, dosensaios sobre Baudelaire e da carta sobre Kafka),ele se refere introduo propiciada pela socie-dade burguesa leitura da poesia de Baudelaire.E afirma que, no contexto do processo de trans-misso da cultura em perspectiva materialista,realizar uma leitura crtica de Baudelaire tam-bm exigiria avaliar esse aprendizado a fim delibertar sua obra de uma considerao da cultu-ra considerada por Benjamin como fetichista, ouseja, que separa a cultura de suas condies ma-teriais de produo e recepo. No seria desca-bido encontrar aqui uma recolocao do proble-

    ma da obra clssica (Benjamin, 1974a, p.1151).Diante disto, podemos nos perguntar em

    que medida se justifica uma leitura de Brecht comoautor clssico. Em outras palavras: como Benja-min introduz, nesses comentrios, a questo dadistncia histrica necessria ao gnero do comen-trio? Sua resposta est no enfrentamento da si-tuao histrica presente, ou seja, no conheci-mento de que o dia seguinte poderia trazer des-truio em escala to gigantesca que ns nos ve-remos apartados dos textos e das produes deontem como que por sculos (Benjamin, 1974b,p.540). Reconhecer que uma catstrofe est sen-do gestada no tempo presente produz uma novaperspectiva sobre a cultura e a histria recentes.Ela introduz, em suma, uma distncia em rela-o ao tempo presente. A produtividade de taldistncia no se reduz, contudo, a conferir umaespcie de atualidade anacrnica forma tradi-cional do comentrio. Ela tambm permite de-cifrar a histria recente nos poemas do Manu-al: a experincia da clandestinidade urbana, tan-tas vezes evocada no ciclo, ganha contornos his-tricos precisos pelo vis da experincia do ex-lio imposta militncia poltica e intelectual co-munista. essa experincia que orienta a inter-pretao proposta por Benjamin do poema Apa-gue os rastros.

    Apague os rastros

    Separe-se de seus amigos na estaoDe manh v cidade com o casaco abotoadoProcure alojamento, e quando seu camarada bater:No, oh, no abra a portaMas simApague os rastros!

    Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgoou em qualquer outro lugarPasse por eles como um estranho, vire na esqui-na, no os reconheaAbaixe sobre o rosto o chapu que eles lhe de-ramNo, oh, no mostre o rostoMas simApague os rastros!

    Como a carne que a est. No poupe.Entre em qualquer casa quando chover, sente emqualquer cadeira

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    Mas no permanea sentado. E no esquea seuchapu.Estou lhe dizendo:Apague os rastros!

    Sempre que voc disser algo, no diga duas vezes.Encontrando o seu pensamento em outra pessoa:negue-o.Quem no escreveu sua assinatura, quem nodeixou retratoQuem no estava presente, quem nada falouComo podero apanh-lo!Apague os rastros!

    Cuide, quando pensar em morrerPara que no haja sepultura traindo onde jazCom uma ntida inscrio que o denuncieE o ano de sua morte que o entregue!Mais uma vez:Apague os rastros!

    (Assim me foi ensinado.)(Brecht, 1968a, p.267-268; 2000, p.57-8)

    Em seus comentrios, Benjamin insiste,antes de tudo, em uma novidade no contexto dalrica urbana (Whitman, Verhaeren, Baudelaire,Heym). Brecht teria sido o primeiro a situar ohabitante urbano em primeiro plano. At ento,a lrica da grande cidade teria feito abstraodessa espcie de morador. Mesmo em Baudelaire,o foco seria a transitoriedade de Paris, e oparisiense s apareceria como portador do estig-ma dessa transitoriedade.

    Ler as circunstncias do exlio a partir detal habitante exige, porm, algum cuidado. Ben-jamin menciona o acerto de alguns crticos emafirmar que o poema teria ganhado um novo sen-tido aps 1933 (ref. Arnold Zweig), mas insisteem que a condio de emigrante no se restringe daquele que foi forado a abandonar o prpriopas. Ela diz respeito tambm situao daque-les que lutam no prprio pas em favor da classesocial explorada. A situao dos comunistas naRepblica de Weimar denominada, ento,como uma cripto-emigrao, uma forma primei-ra tanto da emigrao efetiva quanto da ilegali-dade qual os opositores seriam submetidos. Oimperativo apague os rastros seria um manda-mento tanto para os ilegais quanto para os inte-lectuais opostos ao regime.

    por meio desse habitante que a cidade

    aparece no poema como um campo de batalhas,em duplo sentido, vinculando, na obra de Brecht,a experincia anrquica da luta pela existncia(o Brecht anterior do Brevirio Hauspostille)com a perspectiva revolucionria da luta de clas-ses (o Brecht posterior de poemas como Os trssoldados). O poema articularia ambas no sna elaborao de uma perspectiva de observa-o distanciada, avessa ao sentimentalismo, mastambm na dico sbria e fria da linguagem, aqual seria explicitamente tematizada no ltimodos dez poemas do ciclo. Como diz Benjamin,Brecht o observador menos sentimental da ci-dade.

    Gostaria agora de realar esse conceito decripto-emigrao para discutir essa posio deobservador no-sentimental. Sabemos que a au-sncia de sentimentalismo na escrita de Brechtse vincula a uma postura poltico-artstica de teorcrtico e racional, a qual embasaria o teor peda-ggico e esclarecedor de sua produo. O pr-prio ttulo do ciclo de poemas (Manual) reforaessa inteno. A frieza e a sobriedade da lingua-gem um componente essencial elaborao deuma postura marcada pelo distanciamento, aqual receberia extenso desenvolvimento tericona dcada seguinte (1930) (a teoria teatral doefeito de estranhamento um de seus desenvol-vimentos). nesse contexto que o conceito decripto-emigrao se torna revelador, pois ele norestringe o exlio ao distanciamento geogrficodo exilado. Ao contrrio, ele ressalta a constru-o de uma posio distanciada perante a reali-dade urbana em que se est inserido, posioque, segundo Brecht, seria a nica capaz de mo-bilizar os poucos meios disponveis em prol doque ele denomina, em muitos textos desse per-odo, especialmente nas peas de aprendizagem(Lehrstcke), de transformao do mundo. Aclandestinidade da cripto-emigrao, mais queum apagamento unilateral da individualidade,pode ento ser reformulada por Brecht em umaforma de atuao poltica e de transmisso daexperincia urbana. Para entender melhor essaquesto, voltemos ao poema.

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    Em cada uma das cinco estrofes, o eu lri-co evoca a um tu, em situaes marcadas peloanonimato e pela dissoluo de vnculos, diri-gindo a ele o mesmo imperativo: caso elas severifiquem, apague os rastros. As estrofes ini-ciais apresentam a exigncia de rompimento dosvnculos pessoais sob as condies da existnciaurbana. As duas primeiras assinalam a entradana clandestinidade daquele que no pode maisser visto pelos que o reconheceriam. O chapudado pelos pais smbolo de cuidado e proteo passa a ser utilizado como instrumento de afas-tamento de relaes. Juntamente com o casaco,ele compe um vesturio destinado a exerceruma nova funo: encobrir as dimenses do cor-po e as feies faciais, de modo a transformar orecm-chegado numa figura annima. Ou ain-da: manter o anonimato do recm-chegado. J oespao fsico (alojamento e cidade) a noo demoradia urbana se dissocia da noo de lar(Heim), seja como a casa reconhecvel pelos ca-maradas do morador, seja como a cidade em quese reconhecem origens e identidades. O teto,como indica a terceira estrofe, no mais queum abrigo temporrio, avesso noo de per-manncia.1

    Nas duas ltimas estrofes, por sua vez, aclandestinidade fsica se torna tambm intelec-tual e espiritual. Palavras, pensamentos e retra-tos so ndices de permanncia, de testemunho,de vnculos, de rastros, enfim, capazes de ates-tar alguma presena, inclusive para alm domomento da morte, como assinala a refernciada ltima estrofe inscrio na lpide. Como

    portadores de vestgios reconstituveis at algu-ma noo de identidade, todos devem ser nega-dos. Essas ltimas estrofes no oferecem apenasuma radicalizao do imperativo, de modo a re-forar o apagamento completo dos rastros indi-viduais nas criaes coletivas. Ao inquirir, demodo retrico, como que para enfatizar a juste-za do imperativo, Como podero apanh-lo!,elas introduzem uma linha divisria entre doiscampos de confronto. o que legitima o esforode Benjamin em traar uma referncia histricaentre esses imperativos de anonimato e aconcretude de um problema real, localizvel his-toricamente, a saber, a situao dos militantescomunistas na Repblica de Weimar.

    Nas peas de aprendizagem do final dadcada de 1920, a diretriz do autoapagamento mobilizada para discutir pressupostos da forma-o da coletividade ou, mais especificamente, docomprometimento individual em um esforocoletivo. De modos diversos, esse esforo coleti-vo aparece tanto na orientao emancipatria datcnica e da cincia, produzidas no interior docapitalismo (O voo sobre o oceano, A pea deBaden Baden sobre o acordo), quanto na lutapela expanso do comunismo contra a explora-o vigente nas sociedades capitalistas (A medi-da). Nessa ltima pea, o apagamento da pr-pria identidade uma condio para a luta cole-tiva. Sabe-se que Brecht utiliza, em A medida, oartifcio da pea dentro da pea para examinar acorreo de dois comportamentos polticos: ocomportamento do jovem camarada, que co-loca em risco a sobrevivncia do grupo revoluci-onrio, ao reagir de modo muito emocional eimediatista diante das condies de exploraocapitalistas; e o comportamento do grupo revo-lucionrio, os quatro agitadores, que encenampara o coro de controle, o partido, a medidaj tomada contra o jovem camarada. Tal medidahavia sido o assassinato do jovem camaradaem prol da sobrevivncia do grupo e da conti-nuidade do avano da luta comunista, decisoque submetida por meios teatrais ao exame dacoletividade, aqui representada pelo recurso ao

    1 Cf. o comentrio de Lehmann, 2009, p.230: justamentenos pais, aps a negao do contato, que colocado o acen-to pattico na exigncia repetida. O chapu que foi presen-teado no pode ser esquecido nem involuntariamente. Estechapu sem sentido, intercambivel, indica uma obrigao,da qual o sujeito da poesia que est sempre partindo, noconsegue se livrar. Justamente por ficar como figura enig-mtica, abrir apenas um campo de conotaes (estar vigi-lante, cuidado, proteo, chapu velho) o prprio chapuinclui a contemplao com presentes, como interfernciae lacuna, na viso do mundo da fuga. usada toda a forapara o ar e a ddiva, do passado, da gerao anterior, mastambm para todas as casas, cadeiras e refeies ofereci-das, de tomar o seu poder da obrigao. A frieza destaliberdade paga com subtrao e separao. Por isso sempre um outro aquele que fala entre parnteses queindica o dito como se fosse a ele ditado, levando assim auma separao absoluta para a inteno.

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    coro. Novamente, como no poema, trata-se deuma constelao formada pelo apagamento daindividualidade, o trabalho poltico clandestinoe a ameaa constante de que a descoberta daprpria identidade se reverta na prpria morte.O apagamento , portanto, tambm uma condi-o de sobrevivncia.

    A segunda cena da pea se chama Anula-o (Auslschung). Os revolucionrios, em tra-balho ilegal na China a servio do partido, nodevem ser vistos. A clandestinidade condiodo trabalho ilegal, um processo que Brecht en-cena por meio do uso de mscaras, as quais ser-vem, nessas peas, apresentao do consenti-mento de quem as veste em abdicar da prpriaidentidade. O diretor da casa do partido d asmscaras aos agitadores e afirma: Agora vocsno so mais vocs mesmos. [] A partir destemomento vocs no so mais ningum, a partirdeste momento, e talvez at seu desaparecimen-to [...] (Brecht, 1991, p.241). A exigncia deapagamento pode ento ser entendida como umanecessidade colocada pelas circunstncias da lutapor esse objetivo coletivo. Alm disso, ela tam-bm um gesto de desprendimento em relao auma noo de identidade anterior ao estabeleci-mento dessa dialtica entre indivduo e coletivi-dade, dialtica calcada sempre na conscincia dahistoricidade da personalidade humana.

    O apagamento no , contudo, impostopelo partido. Uma questo essencial s peas di-dticas como um todo o consentimento, a ma-nifestao do estar de acordo, a qual explicitaas dificuldades da formao do coletivo. O indi-vduo tem de expressar com conscincia (o sim dito aps momento de reflexo) seu acordo,enquanto o coletivo no deve furtar-se respon-sabilidade pelo destino do indivduo. Encontra-se a uma dupla exigncia: de submisso dos in-teresses individuais s pretenses legtimas dacoletividade; e de verificao da legitimidade erazoabilidade das pretenses apresentadas aoindivduo. As duas questes tocam a competn-cia individual de avaliao de questes de umaextrema seriedade, como a prpria sobrevivn-

    cia. Como pergunta o partido, trata-se de questi-onar o consentimento com a prpria morte ecom o ocultamento dos mortos.

    Ao contrrio da interpretao que predo-minou em boa parte da recepo dessa pea,Brecht no pretendeu mostrar o partido como ainstncia annima e burocrtica que deve sobre-viver a todo custo ao indivduo (este o precon-ceito negativo formado pela recepo da pea).Ele , antes de tudo, uma forma de organizaodos indivduos. Como coportador de um pro-cesso decisrio coletivo, o indivduo deve acei-tar a competncia da experincia coletiva, orga-nizada em torno do partido, mas este deve, porsua vez, conquistar essa competncia por meioda democracia intrapartidria. Nesse sentido, stem validade a sabedoria que pode ser produzi-da coletivamente (Krabiel, 2001). Seja sbio jun-to a ns, diz o texto. Este ns no indica ne-cessariamente um partido estabelecido, mas oprocesso de aprendizado coletivo a que a con-cepo da pea didtica busca dar forma cnica.

    nesse contexto de discusso da ao co-letiva que o imperativo de apagar os rastros (oepisdio do apagamento) ganha umaduplicidade: ele pode indicar tanto a morte fsi-ca do jovem camarada quanto a clandestinidadeda militncia comunista. A relao entre indiv-duo e coletivo determinar um ou outro resulta-do. Quem deixa rastros o jovem camarada queretira sua mscara e revela sua identidade, aban-donando o coletivo com o mesmo gesto com quecoloca sua segurana em risco. A deciso de mat-lo durante a fuga e apagar seus traos faciais aforma assumida pela necessidade de apagar osrastros, numa situao em que o esforo coleti-vo ameaado pela unilateralidade de umposicionamento individual. A medida o ato deviolncia fsica capaz de restituir os quatro agi-tadores situao que permite o trabalho revo-lucionrio, ou seja, clandestinidade, situaoem que o apagamento uma forma de existn-cia ilegal em favor da causa da transformao domundo. A medida lida, assim, com uma questodecisiva para o Brecht dos final da dcada de

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    1920: a violncia na composio dos coletivos:violncia contra o individualismo e contra a exis-tncia fsica dos membros desviantes. O Materi-al Fatzer, por sua vez, produzido nessa mesmapoca, encaminha essa questo de maneira ain-da mais radical, ao entrelaar a deciso de elimi-nar o membro desviante o egosta no proces-so de esfacelamento do coletivo, transmitindo,por fim, ao pblico a responsabilidade dereconstituir a coerncia fabular dos acontecimen-tos que levaram morte dos desertores. Ecosdesses problemas ocupariam posteriormenteHeiner Mller, em peas como Mauser e Quar-teto. A medida , por sua vez, ainda mantm umarranjo dramtico, sustentando pela possibilidadede ensinamento do comportamento correto pormeio da discusso do comportamento incorretodo jovem camarada.

    Caso retornemos agora ao poema de 1926,podemos notar que a perspectiva pedaggica doapague os rastros, assim como sua visada cole-tiva, tambm est ali presente. Aps as cincoestrofes, todas marcadas pelo pathos da clan-destinidade, Brecht conclui com um surpreen-dente verso entre parnteses: (Assim me foiensinado). Esse arranjo formal recorrente nociclo: o ltimo verso, sempre entre parnteses,lana uma nova luz sobre versos precedentes,sugerindo ao leitor a necessidade da releitura.Alterando um trao de gnero, o carter dram-tico da segunda pessoa no tempo presente cede natureza pica da terceira pessoa no passado,distanciando as estrofes anteriores e permitindoum novo conhecimento a respeito de seu con-tedo. O trao pico do ltimo verso revela oprocesso de transmisso dos preceitos sobre ocomportamento urbano. As instrues transmi-tidas a um tu recm-chegado so tambm o con-tedo de um ensinamento transmitido em umtempo passado que, agora, atualizado pelo atode pass-lo adiante. Trata-se, portanto, de umprocesso de transmisso de experincia capaz deestabelecer os vnculos que as circunstncias ad-versas da clandestinidade ameaam vedar.

    Essa relao entre eu e tu, entre a pri-

    meira e a segunda pessoa, constitui a grande di-ficuldade da compreenso do poema e tambmseu maior achado potico. A forma potica noinstitui a autoridade de um poeta que transmiteuma viso de mundo ou um conhecimento par-ticular a seus leitores. Essa autoridade do autor desmobilizada por Brecht. Lembremos da ob-servao de Benjamin de que Brecht se volta con-tra aquilo que tomado como autoridade. A fi-gura do poeta uma dessas formas de autorida-de. Um dos achados do poema , nesse sentido,remover o eu e o tu do posto de identidadesfixas, colocando-os na posio de polos que sse constituem nesse processo de transmisso doensinamento. A sugesto da segunda leitura re-toma, portanto, a reiterao necessria trans-misso de uma experincia de teor coletivo. Umdado tcnico refora esse ponto de vista: os poe-mas foram pensados para ser gravados e escuta-dos em disco de vinil, criando, assim, tambm,condies para uma transformao da recepopor meio de sua escuta coletiva.

    Os motivos de tal modo de composiodo discurso potico vm tona no ltimo poe-ma do ciclo.

    Quando falo com vocfrio e impessoalcom as palavras mais secassem te olhar(eu aparentemente no te reconheoem tua particularidade e dificuldade especiais)

    falo assim apenascomo a realidade mesma(a sbria, incorruptvel pela tua particularidadeespecialfarta da tua dificuldade)que para mim voc parece no conhecer

    (Brecht, 1968a, p.277).

    Entre a primeira e a segunda pessoa, huma distino entre dois modos de ver a reali-dade: o enunciador j reconheceu como essarealidade, a qual ainda desconhecida para oTu. Adotar a dico da realidade fria, impes-soal torna-se ento uma forma de ensinamento.Sbria no s a realidade, mas tambm a lin-guagem perpassada pelo conhecimento dessa re-

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    alidade que impe a clandestinidade queles in-teressados em transform-lo. No final de A me-dida, encontramos a seguinte concluso: Sensinados pela realidade que podemos trans-formar a realidade (Brecht, 1991, p.266). esseensinamento que d o tom frio, seco e direto dospoemas desse ciclo.

    Mais que uma nova linguagem, a sobrieda-de ensina tambm uma nova postura perante acidade. Termo decisivo tanto para a compreensodo trabalho de Brecht quanto para a interpreta-o de Benjamin, a postura sbria umposicionamento frio e avesso ao sentimentalismo,que permite regular a distncia em relao rea-lidade, de modo a garantir condies de sobrevi-vncia em circunstncias de trabalho poltico clan-destino. O termo tem conexes tanto polticascomo teatrais. Na terceira cena de A medida (Apedra), os quatro agitadores instruem o jovemcamarada a aproximar-se dos trabalhadores e aajud-los a reivindicar melhores condies de tra-balho (melhores sapatos, no caso). O sucesso damisso depende, contudo, da observao de umpreceito bsico: No ceda, porm, compaixo(1991, p.243). Os leitores da Potica de Aristtelessabem que a compaixo uma das duas emoesque compem o efeito da tragdia sobre o espec-tador, a catarse. Sabemos tambm que a crticade Brecht ao que ele denomina de dramaturgiaaristotlica aproxima as noes de catarse e deidentificao ou empatia, uma proximidade, aprincpio, bem pouco evidente no texto da Poti-ca. Identificar-se com o espetculo , segundoBrecht, reagir a ele de maneira exclusivamenteemocional, o que no deixaria margem ao desen-volvimento de uma postura crtica e reflexiva pe-rante os eventos apresentados.

    Em A medida, o comportamento do jo-vem camarada tem algo dessa empatia. Sua po-sio inicial tambm a de um observador e como tal que ele ser avaliado. Colocado diantedo sofrimento alheio, ele cede compaixo, sen-te pena dos trabalhadores e reage de modo ime-diato e irrefletido, colocando em risco o objeti-vo mais amplo de criar as condies para a

    erradicao da explorao. Em outras palavras,a pea se vale do personagem do jovem camara-da para estudar esse tipo de postura reguladapela empatia. Como indica Benjamin, o perso-nagem brechtiano no oferece um modelo decomportamento positivo ou negativo com oqual se possa identificar, mas instrumentos deanlise e de correo de uma postura social. Re-presentam, antes, tipos interessados na trans-formao social, ou a partir dos quais a transfor-mao social pode ser examinada do ponto devista de um tipo social existente (Benjamin,1974b, p.506-507).

    Nessa pea de aprendizagem, a posturados quatro agitadores que torna possvel a avali-ao da medida tomada. Eles apresentam os even-tos ocorridos, assumem os papis de si mesmose do jovem camarada, mas mantm uma posi-o distanciada dos eventos, sem confundir-secom eles, de modo que outros o coro, o parti-do, os espectadores possam formar uma opi-nio sobre o ocorrido. Durante a dcada de 1930,Brecht caracterizaria essa postura como sendo ado ator-demostrador (Brecht, 1968b): ele aqueleque no se confunde com seu personagem e nose deixa levar por suas emoes, mas assumeum posicionamento racional diante dele, de modoa atender funo maior de sua atuao: mos-trar o que est mostrando, de modo a impedir arecada do espetculo em ilusionismo. A postu-ra sbria , em suma, um posicionamento dis-tanciado perante os eventos apresentados, con-quistado e aperfeioado por meio do teatro.

    Se voltarmos, agora pela ltima vez, aospoemas, veremos que a sobriedade da linguagemtambm diz respeito a um distanciamento peran-te a cidade. No imperativo Apague os rastros,h o exerccio de certa postura de desapego quepropiciaria algo mais que o reconhecimento dascondies da clandestinidade impostas pelo tra-balho ilegal. Ali tambm h o ensinamento decondies de sobrevivncia que se opem critica-mente autoridade combatida pela mesma ilega-lidade. Nesse sentido, Brecht no escreveu umpoema sobre impossibilidade da experincia com-

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    partilhada na modernidade, muito menos sobreas condies gerais da vida na cidade grande. Domesmo modo que os poemas de Baudelaire nose limitam a registrar o declnio da experincia,mas se voltam contra ela, procurando dar o pesoda experincia ao mergulho na vivncia do cho-que, tambm os poemas de Brecht no se pres-tam a um lamento da distncia entre os homensou invocao salvadora de sua superao. Talesforo implicaria a perigosa vizinhana das ideo-logias idealizadoras da tradio ou do passado.Outros caminhos podem ser encontrados nessesmesmos comentrios de Benjamin. Nos poemasmencionados aqui, eles se encontram nesses vn-culos entre emigrao, clandestinidade eensinamento, e tambm esto presentes. no lti-mo poema desses comentrios, a Lenda dosurgimento do livro Taoteking no caminho deLaots para a emigrao: nesse poema, diz Ben-jamin conclusivo, o que aprendemos com a ama-bilidade e com a gentileza do sbio chins no um modo de superar a distncia entre os homens,mas de como tornar tal distncia mais viva.

    (Recebido para publicao em 15 de maio de 2011)(Aceito em 19 de julho de 2011)

    REFERNCIAS

    BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Ein Lyriker imZeitalter des Hochkapitalismus. Gesammelte Schriften I-2-3. Frankfurt am Main, 1974a. Trad. parcial brasileira: Obrasescolhidas III. Charles Baudelaire. Um lrico no auge docapitalismo. So Baulo, Brasiliense, 1991.

    ________. Kommentare zu Gedichen von Brecht. Zur formdes Kommentars. In: ______. Gesammelte Schriften II-2.Franjfurt am Main, 1974b.

    ________. Goethes Wahlverwandschaften. In: ______.Gesammelte Schriften I-1. Frankfurt am Main, 1974c. (BEN-JAMIN, Walter. Ensaios sobre Goethe. Trad. Sidney Camargoe Irene Aron So Paulo: Editora 34, 2010).

    ________. Carta a Gershom Scholem. Novos Estudos, SoPaulo, Cebrap, n.35, mar.,1992.

    BRECHT, Bertolt. Verwisch die Spuren. In: ______.Gesammelte Werke 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968a.= (BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Trad. Paulo CesarSouza. So Paulo: Editora 34, 2000).

    ________. Cena de rua. Modelo de uma cena do teatropico.In: _______. Gesammelte Werke, Frankfurt am Main,Suhrkamp, 1968b.

    ________. A deciso. Bertolt Brecht. Teatro completo. SoPaulo: Paz e Terra, 1991. v. 3,

    KRABIEL, Klaus Dieter. Die Massnahme. In: KNOPF, Jan(Hrsg.) Brecht-Handbuch 2. Stuttgart: Weimer: Metzler, 2001.

    LEHMANN, Hans Thies. Golpes de luz sobre o outro Brecht.In: BRECHT, Bertolt. Escritura poltica no texto teatral, SoPaulo: Perspectiva, 2009.

    MLLLER, Heiner. Fatzer Keuner. In: KOUDELA, Ingrid(Org.) Heiner Mller. O espanto no teatro. So Paulo: Pers-pectiva, 2003.

    PASTA JR., Jos Antnio. Trabalho de Brecht. So Paulo:Editora 34, 2010.

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    Luciano Gatti - Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Professor do Departamento de Filosofia da Uni-versidade Federal de So Paulo. Sua mais recente publicao: Constelaes. Crtica e verdade em Ben-jamin e Adorno (Loyola, 2009).

    URBAN EXPERIENCE IN BENJAMINS COMMENTSON BRECHT POEMS

    Luciano Gatti

    This paper discusses Walter Benjaminscomments on the poems of the cycle Handbook forcity dwellers by Bertolt Brecht, to discuss thespecificity of Brechtian lyricism in the more generaldebate about the Benjamins reflexions on modernurban lyricism. Benjamin takes up two critical issuesto the constitution of Brechts work : the sobriety oflanguage and teaching as a means of transmission ofthe urban and political experience. This link betweenexperience and transmission can not be reduced to theinstruction of conditions of survival in the big city, butit is constituted principally in learning a critical stancetowards the city. While communication betweenisolated individuals is poor, and political organizationapproaches the illegality, the poems aspire to theestablishment of a link between I and you througha poetic reflection of urban experience.

    KEYWORDS: Walter Benjamin, Bertolt Brecht, urbanlyrism, criticism, experience.

    LEXPRIENCE URBAINE DANS LES COMMENTAIRESDE BENJAMIN SUR LES POMES DE BRECHT

    Luciano Gatti

    Larticle traite des commentaires de WalterBenjamin sur les pomes du cycle Manuel pourhabitants des villes de Bertolt Brecht, pour discuterde la spcificit de la lyrique brechtienne dans le cadreplus gnral de la rflexion de Benjamin sur la lyriqueurbaine moderne. Benjamin reprend deux questionsessentielles la constitution de luvre de Brecht : lasobrit du langage et lenseignement comme moyende transmission de lexprience urbaine et politique.Ce lien entre lexprience et la transmission ne se li-mite pas lnonc des conditions de survie dans lesgrandes villes, mais suppose surtout lapprentissagedune attitude critique envers la ville. Alors que lacommunication entre les individus isols est prcaireet que lorganisation politique se rapproche delillgalit, les pomes aspirent ltablissement dunlien entre le moi et le toi grce une rflexionpotique de lexprience urbaine.

    MOTS-CLS: Walter Benjamin, Bertolt Brecht, lyriqueurbaine, critique, exprience.