A fabricação do teatro - questões e paradoxos - Josette Feral

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    Josette Fral - A Fabricao do Teatro: questes e paradoxosR. bras. est. pres., Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 566-581, maio/ago. 2013.Disponvel em:

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    ISSN 2237-2660

    A Fabricao do Teatro: questes e paradoxosJosette Fral

    Universit Paris 3 Sorbonne Nouvelle Paris, Frana

    RESUMO A Fabricao do Teatro: questes e paradoxos Este texto apresenta al-gumas questes relativas Gentica Teatral, se debruando, notadamente, sobre a anlisedos processos de criao. A autora prope o conceito de trao, mais do que o de brouillonadotado anteriormente, para melhorcompreender a anlise gentica da encenao. Esse tipode anlise toma em conta todo o processo anterior a apresentao. A reflexo problematizaos conceitos depractice as research e de art-based research como ferramentasque permitemum movimento para outros campos da gentica. E, ainda mais importante, o texto properestringir o domnio da ao da Gentica Teatral ao processo estrito de criao a fim de

    tornar a anlise mais eficaz e mais pertinente.Palavras-chave:Processos de Criao. Gentica Teatral. Traos. Arquivos. EncenaoTeatral.

    ABSTR ACT The Production of Theater: stakes and paradoxes This text presentsissues of Theatrical Genetics, in particular, in its relation with the analysis of living pro-cesses of creation. The text proposes the concept of trace in its production and disappear-ance, both typical of the theatrical process , in order to understand the genetic analysisof staging, taking into consideration the entire process prior to the presentation and, atthe same time, considering the presentation as part of this process. The text proposes torestrict the field of action of Theatrical Genetics to the analysis of creative processes only

    to better empower it.Keywords: Creative Processes. Theatrical Genetics. Traces. Archives. Theatrical Staging.

    RSUM La Fabrique de Thtre: enjeux et paradoxes Ce texte prsente quelquesquestions relatives la gntique thtrale portant, notamment, sur lanalyse des proces-sus de cration. Lauteur propose le concept de trace, plutt que celui de brouillon adoptantrieurement pour mieux comprendre lanalyse gntique de la mise en scne, analysequi prend en compte tout le processus antrieur la reprsentation. La rflexion mene iciouvre sur les concepts depractice as research et de art-based research comme outils permet-tant une excursion vers dautres champs de la gntique. Plus importan encore, le textepropose de restreindre le domaine daction de la gntique thtrale aux stricts processus

    de cration afin den rendre lanalyse plus eff icace et plus pertinente.Mots-cls: Processus de Cration. Gntique Thtrale. Traces. Archives. Mise en Scne.

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    Todo espetculo que estudado, a partir de uma anlise, cons-titui apenas um momento de um processo que dever ser incessante-mente reafirmado. Ele se encontra precisamente na interface entreas etapas passadas que podem ser objeto de um estudo sistemtico apartir de documentos existentes ou sesses de trabalho e a preservaoda obra como objeto vivo percebido pelo espectador. Por um lado, asobservaes se relacionam ao trabalho genealgico de preparao daobra (direo de atores, trabalho com aqueles que criam os elementossonoros ou plsticos, pesquisa feita pelo ator sobre a sua partitura,exploraes sobre o texto, o personagem, a narrativa; hesitaes, cor-

    tes, escolhas); por outro lado, elas procuram ref letir a experincia dosespectadores, especialmente no caso de certas formas participativas,nas quais essas reaes so constitutivas do espetculo.

    Uma vez que a necessidade da relao com a obra em processo reconhecida, como abordar o seu estudo? Qual a importnciaa ser dada ao campo gentico? Vinte anos mais tarde, diferenas seimpem e as questes metodolgicas ainda se colocam, mesmo sealguns avanos reais na rea podem ser registrados. Ns apresen-taremos alguns desses avanos e ressaltaremos algumas das novas

    questes dessa rea de pesquisa. Trata-se aqui mais de uma reflexoem progresso do que um percurso com respostas j elaboradas.

    Algumas Consideraes Preliminares

    As ref lexes que seguem me acompanham alm da pura anlisedos processos de criao ligados a um espetculo, a um artista oua uma esttica. Com efeito, o que importa nesse percurso, alm daobservao de fenmenos vindos da prtica (e observados em ensaios,por exemplo), a maneira de colocar indicadores nestes campos deestudo que so a gentica da encenao e, mais especificamente, o

    processo de criao? O que necessrio integrar a eles? O que precisaser excludo? Como navegar neles? Eu me esforarei para estabeleceruma diferena entre essas duas reas de pesquisa que certamenteapresentam ligaes, mas que no so, em minha opinio, inteira-mente sobreponveis1.

    Eu tentarei tratar, tambm, de maneira perifrica, a questo daprpria emergncia desse campo de estudo no panorama das pesqui-sas atuais sobre o teatro, e do que ele nos diz sobre as relaes entrepesquisa e prtica artstica, particularmente na rea de estudos que

    nossos colegas anglo-saxes denominam comopractice as researcheart-based research, duas expresses que no tm o mesmo significado.

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    Um Aleatrio Assumido Livremente

    A crtica gentica coloca como hiptese inicial, escreve Pierre-Marc de Biasi, que a obra [...] o efeito das suas metamorfoses econtm a memria da sua prpria gnese (De Biasi, 2000, p. 9). Elaseria, ento, fundada sobre a premissa de que a obra o efeito deum trabalho, e de um trabalho que deixa traos, resqucios que sedepositam na obrasob a forma do espetculo terminado e fora daobrasob a forma de documentos, rascunhos, anotaes, declaraesdiversas que constituem a memria da obra que est sendo criada.

    Pode-se dizer que todos esses traos constituem arquivos, oque uma questo interessante e cuja resposta no uma evidnciaabsoluta, sendo o estatuto do arquivo um estatuto bem especfico?

    Ora, e esta ser minha primeira observao, o estatuto dessestraos muda de acordo com as pocas. O que quero dizer com isso que o estudo dos traos de um espetculo no reflete uma preocupaoque seja prpria ou nica nossa poca. De fato, os vestgios das for-mas espetaculares existem desde a origem da arte e particularmenteda arte teatral. Esses vestgios (documentos, narrativas, arquivos,esboos, quadros, descries, procedimentos) so objeto de estudos

    h muito tempo, permitindo a anlise no somente de espetculospara restituir suas ideias, mas, tambm, observando o fazer do artista(em especial do cengrafo e do ator, ou mesmo do tcnico). Portanto, a performatividade da obra que objeto de anlise e, de maneiraperifrica, a sua fabricao. As anlises mostram que a fronteira en-tre a utilizao de traos para compreender melhor um espetculoterminado e para compreender melhor os processos de criao dessemesmo espetculo so bem estreitas, e a utilizao dos traos do es-petculo durante a criao, se no frequente, , ao menos, presente.

    Quando certos atores do sculo XIX se escondem na caixa doponto para apreender as tcnicas de jogo do ator, ns j estvamosdiante da observao de um processo de criao. A diferena maior,no entanto, que essa observao no tem por objetivo compreendero processo da criao da obra, mas poder fazer uso de uma tcnicade atuao e imit-la quando necessrio. Contanto que a observaodo nosso aspirante a ator na caixa do ponto seja registrada, escrita,contada, memorizada, ns poderamos dizer que ela deixa traos econstitui, sem sombra de dvida, o exemplo de uma forma rudimentarde investigao de um processo de criao.

    Pesquisadores estudam h tempos a natureza desses traosdeixados pelo espetculo e, antes dele, pelo processo de feitura do

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    espetculo. Ns os chamvamos em outros lugares de esboos(tex-tuais, visuais, sonoros), mas seria mais exato, penso, inclu-los hojesob uma denominao mais geral, que eu chamaria de traos.

    O ponto importante da nossa reflexo que os traos existeme que a imensa rede que eles constituem pode dar a impresso que aspremissas dos estudos genticos j esto colocadas h muito tempo.Em todo caso, essa rede pe em relevo o fato de que a utilizaode traosde espetculos para compreender melhor as obras umaconstante na crtica teatral desde as origens. Isso ressalta, tambm,caso necessrio, que o interesse pelos processos de criao no algo

    recente, mesmo se os sculos passados o designaram de outra forma.Temos a esse respeito quatro observaes.

    I

    Por que falar de traos ao invs de arquivos? Seria interessanteabordar a diferena entre trao e arquivo. Todo trao no neces-sariamente um arquivo? O arquivo possui uma histria remota, jque o conceito ocidental de arquivo surge nos Gregos h pelo menosvinte e seis ou vinte e sete sculos (conforme a palavraArkh). Todos

    os povos antigos minimamente civilizados possuam arquivos (osassrios, os chineses, os egpcios). Na Frana, os arquivos nacionaisforam criados a partir de 1789. Outros pases seguiram gradual-mente, o que no impedia a existncia de arquivos por toda partee h muito tempo (em castelos, nos tabelionatos, nos monastrios,nos tribunais). No Quebec, os arquivos nacionais datam apenas dosanos 1960. A histria sria, vista como uma disciplina baseada emarquivos, comeou logo depois. Michelet foi, sem dvida, um dosprimeiros a considerar a histria como cincia e no mais comoliteratura , particularmente, em funo dos arquivos. Ento, seria

    interessante estudar o que o conceito de arquivo traz para a pesqui-sa teatral como aprofundamento e legitimidade e, tambm, comoinstitucionalizao.

    O conceito de trao, por sua vez, mais recente. Ele parece maisleve tambm, mais difcil de definir. Ele de diferentes naturezas,tanto real quanto virtual. Ele data (no sentido moderno do termo) aFreud (os traos mnsicos), que buscou sua inspirao nos arquelogosque tinham legitimado a seriedade da sua rea de explorao por voltada metade do sculo XIX, procurando reunir os traos escritos da

    antiguidade (de onde vem a epigrafia e a Academia das Inscries).Foi, ento, se inspirando nos arquelogos e, mais precisamente, na

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    egiptologia, pela qual era apaixonado, que Freud utilizou a noode traos. Haveria um grande trabalho a realizar sobre essa questodo arquivo.

    A palavra trao, e o conceito que ela cobre, me parecem maisde acordo com os modos de trabalho atuais. Ela mltipla, poliss-mica, exprime bem a diversidade de natureza e de origem dos traospossveis. Eles podem ser, por exemplo, tanto sonoros quanto grfi-cos, tanto escritos quanto mnsicos, tanto virtuais quanto tangveis,refletindo a multiplicidade dos dados que podem ser reunidos emtorno da criao de um espetculo. O aspecto mais importante dessa

    classificao a possibilidade de se ter traos virtuais ou invisveisou, ainda, ausentes. Com efeito, esse um dos pontos fundamentais,me parece, que diferencia a gentica literria da gentica teatral.

    II

    Isso me leva a um segundo ponto importante, a natureza dessestraos fundamental. De fato, eles no tm a mesma importncia.Alguns projetos de cenrio de Pierre-Adrien Pris (1700-1800) e osesboos que Wilson realiza como croquis preliminares s suas criaes

    no tm nem a mesma densidade de informao nem o mesmo status,mesmo se os dois permitem uma melhor compreenso dos espetculosaos quais eles deram origem. Alguns desses traos so naturalmentemuito ricos em informao, outros so esboos que apontam emuma direo e pedem a criatividade da cena para serem seguidos.Eles sugerem futuros desenvolvimentos, deixam lugar evoluo dacriao ou ao imaginrio. Eu diria que alguns so saturadose estomais perto do espetculo terminado, ao passo que outros continuamlacunarese configuram pistas que os diferentes criadores do espetcu-lo so convidados a seguir ou pelas quais eles podem ser inspirados.

    Os traos mostram claramente as etapas de um processo e atraemoutros traos. Eles registram um percurso artstico, destacando umaetapa da criao da obra.

    III

    Meu terceiro ponto visa a destacar que, se outrora os traosno eram necessariamente destinados a serem preservados, hoje a

    fabricao de traos um sinal dos tempos que deve ser levado emconsiderao, pois ela pode influenciar sua anlise. Pois se antes

    era o acaso, a coleta, a pesquisa que nos permitia encontrar traosdo espetculo, reconstitu-los, criar dilogos entre eles, hoje em dia

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    esses traos so, s vezes, tornados pblicos bastante rpido, quandoeles no so publicados pouco tempo depois do espetculo ou at aomesmo tempo que as apresentaes: anotaes do diretor, cadernosdos assistentes2. s vezes, alguns detalhes podem at mesmo acom-panhar o programa do espetculo, revelando que o olhar se desvioudefinitivamente do espetculo para a obra em criao. Diretores,atores, assistentes de direo, criador de som ou criador de vdeo somais do que nunca levados no somente a preservar os traos dosseus trabalhos (por isso o conceito de esboo no me parece maisexato), mas a divulg-los. O mesmo acontece com os vdeos, que so

    integralmente acessveis.IV

    Ora, esses traos so problemticos na medida em que elesatenuam um fato importante, de que os traos teatrais no podemfuncionar realmente como esboos textuais. De fato, se os esboosso rasurados, se sobrepem, se substituem, se deslocam no texto,eles no apagam o texto de incio ou o texto final que continuainteiro e ileso; de modo contrrio, a Gentica Teatral se baseia no

    desaparecimento dos traos, traos ausentes, apagados, rasurados3

    .De fato, contrariamente aos esboos textuais, os esboos deteatro so fundamentalmente construdos sobre uma lacuna. E aobservao de Pierre-Marc de Biasi sobre a crtica gentica, men-cionada anteriormente, no me parece exata (a obra o efeito dassuas metamorfoses e contm a memria da sua prpria gnese (DeBiasi, 2000, p. 9)), a menos que o autor esteja falando, aqui, comoum psicanalista, de uma memria fragmentria, lacunar.

    Se a obra de fato o efeito de suas metamorfoses, ela nocontm, no entanto, toda a memria da sua prpria gnese, j que

    o espetculo se faz, claro, por caminhos explcitos e facilmenteregistrveis na obra terminada (gestual, cenografia, interpretao,figurinos, esboos), mas ele se faz, tambm, e, sobretudo, por elimi-nao, por supresso e atenuao (desaparecimento) dos traos. Damesma forma, com muita frequncia, o trabalho do diretor consisteem escolher entre aquilo que o ator prope. Ele retm, claro, masele tambm apaga muito, elimina, escolhe. Esse na verdade seupapel principal a fim de dar ao espetculo a eficcia e a esttica de-sejadas. Ento, as correes, as eliminaes, as supresses parecem

    to importantes a analisar quanto o que fica e o que permanece naobra final. assim que, em uma encenao de Urfaust,de Denis

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    Marleau, Andreas Yandl (2001) estudou os diferentes deslocamentosde um crnio que transitou em lugares diferentes do palco antes deser definitivamente retirado da encenao como acessrio. Ora, essasupresso me parece to eloquente quanto o surgimento, por sua vez,de outros elementos que foram privilegiados por Marleau para evocaros rituais satnicos no espetculo4; e a anlise gentica deveria levarisso em considerao.

    Esse um ponto importante e frequentemente negligenciado.Fazer a gnese de um espetculo implica em encontrar tambm suascorrees, suas supresses, os vazios deixados voluntariamente, os

    espaos em branco, como se pode fazer no estudo de um manuscri-to. Contrariamente gnese textual, a gentica da encenao teatralnormalmente no carrega o trao das suas correes nem das suaseliminaes. Elas esto apenas na memria dos atores e criadores enas gravaes de vdeo. Esto tambm nas anotaes dos observa-dores dos ensaios quando eles se do ao trabalho de anot-las. Maselas no aparecem mais regularmente nas anotaes dos tcnicos oudo diretor ou, ainda, do assistente. Ora, como no caso da filatelia,esses traos so como marcas d guaque aparecem por transparncia

    e deixam zonas translcidas atravs das quais passa a luz. Elas nospermitem ler o documento de uma outra maneira5.Ento possvel dizer que, se a gentica dos textos deixa um

    grande espao para o texto final, que no realmente alterado porela, mas esclarecido, a gentica teatral trabalha sobre traos virtuais,s vezes de memria, frequentemente ausentes. Ela est relacionada perda e pode conservar a falta, o esquecimento, o abandono.

    O Aleatrio da Notao

    Localizar a supresso dos traos justamente um dos modos de

    trabalho sobre os processos de criao. Mas, como? Segundo quaisprincpios, segundo qual regra observar esses traos, sabendo que impossvel identificar tudo. Pois nem toda supresso eloquente. svezes, algumas correes se devem insuficincia de uma proposta, sua ineficcia. Seria intil repertori-las para lhes dar um significado,que nem todas tm necessariamente da mesma forma, na gnese doespetculo.

    Claro, interessante, por exemplo, ouvir Mnouchkine dizer,sobre a criao de Les Atrides, que no incio dos ensaios o palco era

    abarrotado de elementos (ela fala, nessa ocasio, de um chafariz nomeio do palco), mas que pouco a pouco esses elementos, a partir da

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    manipulao dos atores, so progressivamente eliminados do palco.Tambm emocionante v-la em ao, no filmeAu Soleil mme lanuit, em uma luta para equilibrar o espao, procurando, aps muitastentativas, harmonizar a posio dos tapetes no espao de cena. Semdvida, para o estudo gentico, intil fazer o inventrio completodessas mudanas e basta lembrar dos detalhes importantes. Mas, mais do que instrutivo poder constatar que, nessa elaborao daobra, os muros continuam l, ainda mais fortes, mais slidos. Essasescolhas so ricas em significado, ao mesmo tempo para o espetculoe para o modo de criao do Thtre du Soleil. Isso significa que ocampo de anlise gentico no apenas o campo dos documentosarquivados visveis, mas, tambm, dos invisveis, apagados, que ape-nas a memria ou a observao podem identificar. Assim, realizaruma anlise gentica consiste tambm em fazer surgir correes,supresses, aquilo que considerado importante na gentica dostextos, mas que, frequentemente, se encontra distante na anlise daencenao teatral.

    Diga-se novamente que, atualmente, nada nos permite listar,ou mesmo registrar essas supresses, a no ser as gravaes em vdeo

    que, eventualmente, um pesquisador poderia assistir integralmente,ou os ensaios que ele poderia assistir.Acrescente-se ainda que, mesmo estando convencida da ne-

    cessidade de fazer aparecer, como uma marca dgua, ou como umpalimpsesto, as verses anteriores da obra, a escolha continua sendoum imperativo para o pesquisador. Ele deve eliminar algumas dassuas observaes, fazendo com que sua anlise gentica dependa in-teiramente de suas intuies e de suas escolhas. O aleatrio, emboramais explcito, continua assim no ncleo do trabalho, um aleatrio

    que depende do livre-arbtrio do pesquisador, da sua metodologia,de seus objetivos.

    Comeos pouco Definidos

    Essa questo coloca uma outra, muito importante. Uma questosobre a delimitao do campo, se no dos processos de criao, pelomenos da gentica e do que ela representa. Colocada de outra forma,a questo saber o que faz parte de um estudo gentico e, de maneirasecundria, onde se situa o incio da gnese, questo impossvel, esem dvida um pouco retrica, mas que permite medir o horizonte

    extremamente amplo da rea, hoje.

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    Na introduo do seu livro,Genses thtrales

    , Almuth Grsillon,Marie-Madeleine Mervant-Roux e Dominique Budor (2010), reivin-dicam um campo bastante amplo para o estudo gentico: a censurae as subvenes, as condies de produo (no plano econmico,comercial, institucional), os documentos jurdicos e financeiros, asencomendas, as amostras, as notas fiscais, os contratos, as folhas depagamento de salrio, a quantidade e a durao dos ensaios, a agenda,as turns e as eventuais retomadas do espetculo, necessariamente,fariam parte dessa rea de estudo.

    Nessa amplificao existe, de forma completamente legtima e

    compreensvel, j que todos esses aspectos intervm necessariamentena obra, uma viso um pouco abrangente demais na nossa opinio,na qual tudo ou quase tudo faria parte da anlise gentica6.

    Nossa reserva diante de uma amplificao vasta demais dosestudos genticos se baseia na observao de uma extrema diluiodo campo de pesquisa nesse setor e ao fato de que, visto por essengulo muito inclusivo, a Gentica Teatral se diferenciaria muitopouco das anlises j existentes h muito tempo. De fato, os estudoseconmicos, jurdicos, financeiros, dramatrgicos ou das condies

    de produo no so novos na rea do teatro. Eles demarcam o campoda pesquisa h muitos anos, mesmo se a especificidade dos estudosgenticos seria de fazer dialogar esses elementos com o objetivo deexplicar o processo de criao de uma obra. Mas tais afirmaes bas-tam para criar uma nova rea de especializao? Deve ser consideradoque talvez, sob esse ponto de vista, o campo da gentica perca a suarelevncia na tentativa de considerar tudo como uma contribuio criao7, mesmo se a transversalidade e a interdisciplinaridade dessasexploraes sejam certamente inovadoras.

    por essa razo que me parece necessrio, indispensvel mesmo,operar uma distino clara entre a anlise gentica no seu sentido maisgeral e unificador e a anlise dos processos de criao propriamenteditos, que estaria no ncleo do estudo gentico da encenao teatral.A anlise destes ltimos se apoiaria, prioritariamente, na observaopropriamente dita dos ensaios.

    Efetivamente, fundamental concentrar o campo de pesquisanosprocessos de criao stricto sensu e focar a observao nos ensaios enos documentos relacionados que levam criao de um espetculo,uma rea cujo desenvolvimento intimamente ligado ao trabalho dos

    artistas. Essas pesquisas requerem no apenas a presena nos ensaios,mas uma ateno constante construo da obra.

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    O que essas pesquisas refletem o aumento do interesse dospesquisadores pela fabricao dos espetculos, um interesse que jtinha comeado desde o final dos anos 1960, no momento em que osartistas de teatro abrem os bastidores e mostram como ofazer teatral uma parte integrante do espetculo. A fronteira entre o esboo e oespetculo era assim diluda, as primeiras tentativas, esboos, prepara-tivos, tornam-se, ento, parte integrante de um interesse generalizadopela fabricao da obra, revelando-a ao espectador.

    Pessoalmente, eu tenho tendncia a privilegiar de maneirabastante prxima osprocessos de criao, um campo de pesquisa quecertamente tem uma histria mais recente que a da gentica no seusentido mais amplo, um campo que ela parece querer adotar, masque me parece necessrio privilegiar. O surgimento desse interessena esfera crtica est, evidentemente, ligado evoluo das formascnicas contemporneas, que se tornaram mais complexas, conside-rando inteiramente como criadores, ao lado do duo autor-diretor, claro, os atores, mais do que nunca colaboradores da criao, mastambm os cengrafos e os criadores de som, vdeos, iluminao, osprofissionais da informtica, os tcnicos (como, por exemplo, no com-

    plexo trabalhoZulu Time, de Robert Lepage, ou na sua tetralogia deWagner noMetropolitan Operade Nova Iorque; ver, tambm, o sutilespetculo Is you me de Benot Lachambre, criado em colaboraocom Laurent Goldring, Hahn Rowe e Louise Lecavalier).

    Restringir a Extenso da rea

    Muitos elementos contribuem hoje para a disseminao do estu-do dos processos de criao como um campo de pesquisa autnomoe podem ser identificados na prpria evoluo do teatro.

    a) Por um lado, o fato de que os espetculos sejam consideradosatualmente como works in progress, mesmo se a palavra desapareceudos cartazes e que seja normal que as obras tenham diferentes versescom variantes, como fazem frequentemente Lepage ou Mouawad,Lemieux e Pilon, mas como faziam antes deles Wilson ou Sellars. Essaprtica, estabelecida desde ento, merece ser citada. Evidentemente,os espetculos no so mais apresentados como work in progress, masa ideia de que uma obra nunca terminada e que ela evolui segundoo ritmo das suas diferentes apresentaes faz parte dos costumes.Essa prtica favorece a promoo de estudos sobre os processos de

    mudanas e transformaes das obras.

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    b) Junte-se a isso o fato de que muitos espetculos, ou formasde dramaturgia, se constroem no palco, durante a apresentao;no apenas dramaturgias de palco, mas dramaturgias performativascomo faz, por exemplo, a companhia TG Stan. Essa forma de escritarelaciona diretamente, e sem passar pela fase comum dos ensaios,o trabalho de reflexo e anlise dos textos um trabalho que ante-cede a verdadeira criao em cena , ao momento da apresentao.Tratar-se-ia quase de um trabalho de criao ao vivo. O espetculo o processo. Torna-se difcil, assim, distinguir a obra em curso e aobra acabada.

    c) Assim, no surpreendente que muitas companhias tenhamadotado estruturas nas quais a posio do diretor se transformou eno se encontra mais no ncleo do processo cnico, ou mesmo, queele tenha simplesmente desaparecido. Estaramos assistindo a umdesaparecimento do diretor, um sculo e meio depois do seu surgi-mento? A questo interessante em si mesma, mas, tambm, peloque ela nos revela sobre os processos de criao. A observao dotrabalho torna-se, assim, a observao dos mltiplos colaboradoresde uma estrutura que se constri e se desconstri ao longo da criao,

    deixando o trabalho de anlise certamente mais difcil, mas permi-tindo a observao da cena sob um ngulo varivel, no polarizadopela personalidade de um diretor que centraliza a ateno.

    De fato, preciso constatar que, mesmo quando o lugar dodiretor continua existindo, as pessoas que esto sua volta atores,criadores de som e vdeo, cengrafos tm papis fundamentais nacriao. O que seria de Robert Lepage ou de Marianne Weems semas suas equipes de vdeo-artistas? Mnouchkine sem Jean-JacquesLemtre? Ivo van Hove sem seu cengrafo, Jan Versweyveld. Algunsdiretores dizem mesmo que os seus papis se resumem hoje a umtrabalho de montagem e organizao das cenas (Markus Ohrn). Essequestionamento sobre o lugar do diretor uma das mais importantestransformaes da nossa poca. Ele representado (ou talvez con-duzido?) de forma mais intensa por algumas companhias f lamengas(sobretudo TG Stan, mas, tambm, de Koe, em Berlim) cujo exemploparece inspirar outros (RaoulCollectif).

    d) Finalmente, uma dificuldade adicional na anlise dos proces-sos de criao: algumas companhias no ensaiam. TG Stantornouessa maneira de trabalho o seu modo de fazer. Acompanh-los em

    um trabalho sobre o processo de criao exige assim uma grandeadaptao da parte do pesquisador.

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    e) Em outro nvel de observao, a moda dosremak

    e ou dosreenactment (Abramovic, Wilson, The Living Theatre, Jan Fabre,Maguy Marin)8coloca uma questo interessante sobre os processosde criao. Assim, Einstein on the Beach, apresentado pela primeiravez em 1976, retomado em 2011, Lempereur de la perte, de Jan Fa-bre, montado em 1996, remontado em 2012 com um novo elenco,Parades and Changes, coreografia de Anne Halprin, criada em 1965, retomada por Anne Collod em 2008 e em 2013 com o ttulo deParades and Changes,Replay in Action, e, finalmente, May be, deMaguy Marin, apresentado pela primeira vez em 1981, retomado

    pela prpria artista em 2012. Os diretores retomam todos os seustrabalhos e, de preferncia, em srie: diversas obras de Maguy Marinesto em Paris neste outono, assim como de Jan Fabre: seis de Fabre,seis de Maguy Marin, quatro de Pierre Rigal. Os diretores se baseiamnos arquivos, nas gravaes, mas eles retomam, adaptam, modificam.Evidentemente, analisar essas modificaes interessante, mas ainda mais interessante o fato de poder acompanhar os ensaios e otrabalho de modificao feito com os atores9.

    f) Finalmente, na outra ponta do caminho, possvel que a

    presena do espectador seja uma parte constitutiva do processo decriao da obra, o espectador sendo uma parte indispensvel da obra.Sem ele, o espetculo no existe, no apenas no sentido ao qual PeterBrook se referia, falando da necessidade de um ator sobre um espaocnico e de um espectador que o observe para que haja teatro, mas nosentido que o espectador ativa o espetculo e o faz existir. Sem ele,no h nada para se ver. Eu penso na companhia Blast Theory, quefaz o espectador subir em uma bicicleta (Rider Spoke) ou seguir umavatarque ele acompanha pela tela do seu Ipodou Ipad(A Machineto See with, Can you See Me Now). Sem essa ativao, o espetculono acontece. No apenas a obra precisa do pblico, mas ela noexistiria sem o espectador que faz com que ela acontea. Eviden-temente, trata-se de uma experincia limite, mas que, no entanto,existe e que coloca questes interessantes anlise dos processos decriao. Como relatar essas experincias, no somente no plano dagestao do projeto, mas, mais ainda, quando a criao transborda eacontece no momento da apresentao? A problemtica empolgante.

    Existe assim, de uma parte, uma viso purista, de Gay Mc-Cauley (2008) que, muito antes de todo mundo, havia realizado um

    trabalho de leitura e decodificao sistemtica dos ensaios10

    . Essa a minha viso, mas, tambm, a de todos estes jovens pesquisadores

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    que acompanham os ensaios e colocam em evidncia os processosde criao. Entram nessa categoria os trabalhos de Fanny Le Borg-ne sobre Kentridge, Giulio Boato sobre Jan Fabre11, que podem serconhecidos neste nmero da revista, assim como os trabalhos de G.Girot e L. Guillot sobre Lauwers. O resultado dessas pesquisas revelador do trabalho real da criao.

    De outra parte, existe uma viso abrangente e que aumenta ocampo da gentica a todo processo. a viso de muitos pesquisado-res, sobretudo franceses (Gresillon, Mervant-Roux, Budor, Proust).

    Tanto em um caso quanto no outro, fica claro que essa in-clinao em direo ao processo o efeito de uma evoluo quasenatural de nossas prticas de pesquisadores. Nosso olhar mudou, um fato, e nossa poca se interessa profundamente pelos modos desurgimento da criao. Desse interesse nascem as pesquisas genticase sobre os processos de criao das quais estamos falando. No entan-to, eu continuo convencida de que o estudo dos processos de criaopropriamente ditos, estudos feitos em campo, , na minha opinio,o caminho privilegiado para se introduzir na criao e acompanharo percurso de um artista.

    De maneira ainda mais importante, me parece que falta algumacoisa nos estudos genticos muito amplos. Porque, nos processos decriao, no se trata somente de compreender melhor a abordagemde um artista e de uma obra, mas existe, alm disso, o interesse emse compreender os movimentos de criao, como a prtica funciona ecomo os artistas pensam a sua arte. No se trata somente de recons-truir os sistemas de pensamento e de criao a partir de metodologiasj comprovadas. Trata-se fundamentalmente de colocar-se em estadode aprendizagem, no qual o pesquisador renuncia a seus pontos de

    referncia habituais, a seus modos de conhecimento, tentando com-preender e funcionar de outra forma. Postura idealista, sem dvida.Provavelmente insustentvel. No entanto, uma postura que tentaser assumida no mundo anglo-saxnico, com o nome depractice asresearch ou art-based research, duas reas de investigao que noabrangem as mesmas realidades, mas que mereceriam ser expostas.

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    Notas1Os estudos nesses dois campos so numerosos. Citemos, a ttulo de exemplo, sem fazerdistino, os trabalhos de Thomasseau; Grsillon; Lger (2005), Proust (2006), Cvekic;De Keersmaeker (2012). Dito isso, muitos trabalhos anteriores j tinham sido feitos demaneira diferente: McAuley (2008); Mitter (1992), Letzercole (1992) Toporkov (2001).Mas, tambm, na Frana, Banu (1997) reeditado por Actes-Sud em uma verso revisada(2005), assim como Fral (2008).2Ver as anotaes de Yves Godin, cocriador com Pascal Rambert do espetculoMemento

    Mori (Gennevilliers, maro de 2013) e colaborador artstico, dispositivo cenogrfico eiluminao. Essas anotaes constavam no programa distribudo aos espectadores.Memento

    Moriltimo dia de ensaio. Medir o caminho percorrido desde as primeiras conversas com

    Pascal h um ano. Passar pela peneira do trabalho e da experincia no palco, o que restadas primeiras intenes, das primeiras instrues dadas? Ao que Memento Morid o seunome, hoje. Provavelmente simplesmente a uma passagem, instvel. Uma passagem incertaentre a matria e o imaterial, corpo se desmaterializando, halos famlicos e mveis, luzausente quase slida, compacta, apreensvel. Com os cinco performers, nessa forma emescrita instantnea, ns fabricamos vises, mais do que imagens. Nossas regras so mnimase complexas, passam muito pouco pela linguagem.Memento Morise construiu com baseem dramaturgias personalizadas. Radicalizar ainda mais a forma (Godin, 2013).3Sobre esse assunto, ver o que diz tambm Jean-Loup Rivire: O arquivo de teatro essencialmente lacunar. Sendo que, sem dvida, o arquivo de uma obra escrita ou pintada um acrscimo, o arquivo de teatro o resultado de uma subtrao. Ele perde necessariamenteo seu objeto, ele a sua ausncia, sendo que o arquivo de uma obra escrita, ao contrrio, aenvolve, a cobre, a intensifica [...] Face ao arquivo de teatro, temos um de menos e a partirdesse momento, necessrio imaginar um todo que, claro, absolutamente diferente edefinitivamente inacessvel (Rivire, 2010, p. 4).4Marleau foi interrogado sobre esse ponto.5Eu gostaria de lembrar que, para mim, esse interesse pelos processos de criao nasceude um choque, ocorrido em 1995, durante a visita da Schaubhne a Toronto e de um

    Master Class, conduzido por Andrea Breth, na poca diretora dessa importante instituio.Ela havia apresentado uma cena deA Gaivota (a cena na qual Treplev e Ninase separam,e que precede o suicdio de Treplev, quando ele compreende que Nina, mesmo infeliz,

    mesmo abandonada, nunca ser sua). A mesma cena, vista dois anos mais tarde em Berlim,apresentava escolhas artsticas completamente contrrias ao que havia sido construdo doisanos antes. De fato, no primeiro caso, os atores estavam prximos a ponto de poderem setocar: Treplev sentado na ponta de um div sobre o qual Macha estava deitada, seguravaforte a sua mo; no segundo caso, na verso final, dois anos mais tarde, o dilogo entre osdois personagens se desenvolvia distncia, separado por toda a extenso do palco. AndreaBreth tinha restitudo a distncia entre os dois personagens de maneira ao mesmo tempometonmica e metafrica, expressando assim o amor impossvel entre eles. Pareceu-me, napoca, que a eliminao de algumas escolhas no jogo ou na cenografia, se pudessem serestudadas, diria tanto sobre o processo artstico de um artista quanto os elementos quetinham sido mantidos e relacionados no palco.6

    Evidentemente que qualquer fator que tenha influncia sobre um espetculo podefazer parte de um estudo gentico se se tratar de um elemento importante. Assim, fcil

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    compreender que o preo dos tecidos pode influir de forma significativa na escolha dosfigurinos e, portanto, na esttica do conjunto, mas realmente necessrio classificar essaspesquisas como genticas? O mesmo acontece com as condies dos ensaios, que variamde pas para pas e que, necessariamente, tem suas consequncias sobre a gnese de umespetculo (planejamentos aleatrios, desistncias, ensaios fragmentados, atores trabalhandoem pequenos grupos nas cenas divididas). Da mesma forma, as condies de instalaono espao de apresentao, o pouco tempo que os atores e os criadores tm para adaptaro espao de ensaios ao palco, so fatores importantes que influenciam os processos demaneira incontestvel.7A questo pode parecer intil ou sem importncia, mas ela esconde uma interrogao real,sincera, com a qual ns nos confrontamos regularmente no Grupo de Trabalho que eu criei

    em 2004 na FIRT - Federao Internacional de Pesquisa em Teatro, sobre os processos decriao (e que eu codirijo h alguns anos com Sophie Proust). De fato, a cada ano chegamat ns propostas sobre assuntos que podem ser considerados um pouco perifricos squestes da gentica: a msica como princpio de estrutura do universo de criao de umdiretor, a memria individual como base de criao de obras sobre a ditadura na AmricaLatina; o direito de autor, o regime econmico que domina os ensaios; asFlash mobs comolugar de ressurgimento das comunidades de criao. Mesmo aceitas no Grupo de Trabalho,nem sempre ns nos convencemos de que essas propostas se tratem realmente de gentica,ainda que as concluses dos pesquisadores destinem-se a mostrar sistematicamente ainf luncia desses elementos sobre a criao de uma obra, prova de que seria convenientecriar uma definio rigorosa.8

    Einstein on the Beach, Apocalype Now, Antigone.9Ver de maneira mais precisa o acompanhamento do processo dessas modificaes, comoo fez Giulio Boato, observando a retomada do espetculo de Jan Fabre, em sua dissertaode mestrado(2012).10Para realizar essa tarefa, ela chegou a criar na Universidade de Sydney uma estruturaque permitia aos professores e aos estudantes acompanhar os trabalhos de companhias emresidncia, especialmente convidadas, e cujos contratos estabeleciam que elas poderiamocupar espaos da universidade em troca de um livre acesso dos estudantes aos ensaios.11Ver os textos neste nmero.

    Referncias

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    Josette Fral professora na Universit Paris 3 La Sorbonne Nouvelle, na Frana.

    Foi professora na Universit de Montreal em Quebec, no Canad. Foi presidenteda FIRT - Federao Internacional pela Pesquisa em Teatro. autora de inmeraspublicaes, sendo uma das pioneiras da Gentica Teatral. Publicou livros comoThorie et pratique: au-del des limites (2011),Mise en scne et jeu de lacteur, tomos1, 2 e 3 (1997, 1998, 2007), Trajectoires du Soleil (1998), Rencontres avec Ariane

    Mnouchkine(1995) e La culture contre lart(1991).E-mail: [email protected]

    Traduzido do original em francs por Andr Mubarack. Revisado por Gilberto Icle.

    Recebido em 20 de fevereiro de 2013

    Aprovado em 20 de abril de 2013