A Falsa Eternidade e Noite - Carlos Drummond de Andrade

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A Falsa Eternidade

A Falsa EternidadeCarlos Drummond de Andrade

O verbo prorrogar entrou em pleno vigor, e no s se prorrogaram os mandatos como o vencimento de dvidas e dos compromissos de toda sorte. Tudo passou a existir alm do tempo estabelecido. Em conseqncia no havia mais tempo.

Ento suprimiram-se os relgios, as agendas e os calendrios. Foi eliminado o ensino de Histria para que Histria? Se tudo era a mesma coisa, sem perspectiva de mudana.

A durao normal da vida tambm foi prorrogada e, porque a morte deixasse de existir, proclamou-se que tudo entrava no regime de eternidade. A comeou a chover, e a eternidade se mostrou encharcada e lgubre. E o seria para sempre, mas no foi. Um mecnico que se entediava em demasia com a eternidade aqutica inventou um dispositivo para no se molhar. Causou a maior admirao e comeou a receber inmeras encomendas. A chuva foi neutralizada e, por falta de objetivo, cessou. Todas as formas de durao infinita foram cessando igualmente.

Certa manh, tornou-se irrefutvel que a vida voltara ao signo do provisrio e do contingente. Eram observados outra vez prazos, limites. Tudo refloresceu. O filsofo concluiu que no se deve plagiar a eternidade.

Contos Plausveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1233.

NoiteCarlos Drummond de Andrade

H tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumer-las. noite nascem as revolues tanto as que vo triunfar como as que s se realizam em pensamento, e so quase todas. Os revolucionrios viram-se, inquietos, na cama. E tambm os que se convertero, pela manh, a religies novas. E os amorosos. Anlises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite rica! A noite o tempo de no dormir; o de velar e procurar; de criar mundos.

Demtrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que no entrasse a luz. Luz no entrou. Demtrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosficos. A escurido era propcia a teorias polticas. Nenhum crtico foi mais perspicaz do que Demtrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantstica. Demtrio quis experimentar as sensaes de horror, xtase, humilhao, glria, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior fsico, no pde mais tir-la de si. o nico morto, conscientemente morto, de que j ouvi falar nesta vida. A noite fantstica.

Contos Plausveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240.

Riobaldo: O Jaguno-Filsofo"O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo.Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada no sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou co mestre - o senhor solte em minha frente uma idia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos. Amn!" pg. 8

"Como no ter Deus?! Com Deus existindo, tudo d esperana: sempre um milagre possvel, o mundo se resolve. Mas, se no tem Deus, h-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida burra. oaberto perigo das grandes e pequenas horas, no se podendo facilitar - todos contra os acasos.Tendo Deus, menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim d certo. (...) Deus existe mesmo quando no h. (...) Mas a gente quer Cu porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo." pg. 48

"A gente vive repetido, o repetido, e, escorregvel, num mim minuto, j est empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de l de tantos assombros... Um est sempre no escuro, s no ltimo derradeiro que clareiam a sala. Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia." pg 52

"[U]m rio sempre sem antiguidade." pg. 125

"[U]m amigo... que a gente seja, mas sem precisar de saber o por qu que ." pg. 155

"[E]u careo de que o bom seja bom e o rim rum, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como que posso com este mundo? A vida ingrata no macio de si; mas transtraz a esperana mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo muito misturado..." pg. 191-2.

"Tudo o que j foi, o comeo do que vai vir, toda a hora a gente est num cmpito. Eu penso assim, na paridade... Um sentir o do sentente, mas outro o do sentidor. O que eu quero, na palma da minha mo." pg. 273

"Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as rvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem gente; os em vir, tambm. S o poder do presente que furivel? No. Esse obedece igual - e o que ." pg. 301

"O senhor no pode estabelecer em sua idia a minha tristeza quinho. At os pssaros, consoante os lugares, vo sendo muito diferentes. Ou so os tempos, travessia da gente?" pg. 353

"Natureza da gente no cabe em nenhuma certeza." pg. 367

(excertos selecionados por Marco AntonioFrangiotti, de Rosa,J. G. (1988): Grande Serto: Veredas, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira)