A FAMÍLIA COM O ESPELHO

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UNIVERSIDADE DE SAO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CltNCIAS HUMANAS Departamento de Antropologia A FAMÍLIA COM O ESPELHO UM ESTUDO SOBRE A MORAL DOS POBRES NA PERIFERIA DE SÃO PAULO CYNTHIA ANDERSEN SARTJ TESE DE DOUTORAMENTO Orientadora: Profa. Ora. Maria Lúcia Aparecida Montes SAO PAULO 1 9 9 4 SIBLIOTE CA

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UNIVERSIDADE DE SAO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CltNCIAS HUMANAS

Departamento de Antropologia

A FAMÍLIA COM O ESPELHO UM ESTUDO SOBRE A MORAL DOS POBRES

NA PERIFERIA DE SÃO PAULO

CYNTHIA ANDERSEN SARTJ

TESE DE DOUTORAMENTO

Orientadora: Profa. Ora. Maria Lúcia Aparecida Montes

SAO PAULO

1 9 9 4

SIBLIOTE CA

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' A FAMILIA GO~O ESPELHO

UH ESTUDO SOBRE A MORAL DOS POBRES NA PERIFERIA DE SAO PAULO

Tese de Doutoramento Departamento de Antropologia

Cynthia Ande~sen Sarti

Faculdade de Filo~ofia, Letras e Ci~ncias Humanas Universidade de sao Paulo

I Orientadora: Prof. Ora. Maria Lúcia Aparecida Montes

Sao Paulo

1994

UJI!CAMJ' Bil:lli()teça IFCH

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Para meus pais, Gino e Sigrid,

e para ffi8Us filhos, Violeta e Júlio.

Page 4: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

INDICE

pág.

Introduçao: A Trajetória de uma Pesquisa, _______________ 1

O traba 1 h o de campo'--------------------7

A hora do ponto final _________________ 14

Cap~tulo 1: O Universo Pesquisado 18 -----------------O projeto de melhorar de vida _______________ 21

Capítulo Os Pobres nas Ci€>ncias Sociais Brasileiras ____ 31

O paradigma da produçao, _________________ 35

O paradigma da cul tura __________________ 44

Uns e ou tros ________________________ 48

V a 1 ores t rad i c i ona i s _____________________ 51

CapítUlo 3: A Família como Universo Moral ____________ _

Sonhos que nao se realizam'-----------------

Lugar de homem e lugar de mulher ___________ _

Deslocamentos das figuras masculinas e femininas ______ _

O lugar das crianças __________________ _

Màe sol te i r a _________________________ _

Relaçoes através das crianças _____________ _

/'1.3e e pai: n,as horils boas e ruins ••

P r-DJ e tos f ami 1 i ares ____________________ _

Del imi taçiw moral da idéia de faml 1 ia _______ ~

t I f '

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Capítulo 4: A Moral no Mundo do Trabalho. ___________ ll7

Pobres e trabalhadore5 _________________ 119

O trabalhador- como homem forte~ ____________ 122

O trabalhador- como pr-ovedor- ______________ 131

Trabalho feminino: doméstico e r-emuner-ado 136

Trabalho dos filhos 144

Tr-abalho como obr-igaçao entre ricos e pobr-es 148

Trabalho, desemprego e esmola 154

Capitulo s, Relaç6es entr-e Iguais 159

o vizinho como espelho 162

A sociabilidade local 165

Propr.ietár ;_·o X Favela do 167

Trabalhador X Bandido 174

Pobre X Mendigo e etc ... 184

Demarcaçào de fronteiras 186

Funçao ideológica da ambivaJ~ncia entre iguais ___ 193

Comentár-ios finais: O Br-asil como ele é _____________ 198

Bi bllog r-a f i a ------------------------------205

T _1

Page 6: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

AGRADECIMENTOS

A Carmen Barroso, que garantiu minha

orientanda, no doutorado do Departamento

USP.

entrada, como sua

de Sociologia da

Ao Departamento de Sociologia da USP, que me concedeu

uma bolsa da CAPES.

A Fundaçáo Ford/ANPDCS, pela bolsa de pesquisa que me

permitiu contratar- Roberto Catelli Jr, como assistente de

pesquisa.

A FAPESP, pela bolsa de doutorado.

A Fundaçao Carlos

pesquisadora, pelo apoio

pesquisa de campo.

Chagas, onde

institucional

trabalhei como

que viabilizou a

A Guillermo O'Donnell, que incentivou a arrancada deste

projeto.

Ao Kellogg Inst.itute, onde passei um semE?str-E> como

professora-visitante, o que me permitiu dar- impulso ao

trabalho sistemático de análise dos dados.

A

tarefa.

Thomas Skidmore, que ajudou decisivamente nesta

A Roberto Da Matta, pelo apoio e estimulo fundamentais.

A Maria Lúcia Aparecida Montes, que me acolheu de

braços abertos como sua orientanda no Departamento de

Antropologia, onde terminei o doutorado. Embora a

responsabilidade seja evidentemente minha, este trabalho nao

teria sido o mesmo sem suas observaçbes minuciosas, argutas

e precisas.

III

Page 7: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Aos

pesquisa,

famílias

moradores do Jardim das Camélias, onde fiz a

a Ver-a e José Nogueira Souza e às

Santos Melo, de Lurdes da Silva

particularmente

de Ana e Sergio

Gomes, de D. Jandira dos Santos e de Seu Severino Isidro.

A Maria Lygia Quartim de Moraes,

especial.

de maneira muito

A Narciso Coelho Netto, que me ajudou tanto com sua

escuta.

A meu irmao Gino A. Sarti e a Gilberto F. Vasconcellos.

A meus pals, Gino Sarti e Sigrid Andersen Sarti, entre

tantas coisas, pela ajuda financeira terminar o

trabalho.

A meus filhos, Violeta e J0lio, com quem, nas

infindáveis horas em casa. sentada em frente ao computador,

em melo a uma ba.-afunda de livros e papéis, compartilhel o

anseio cotidiano de ver este trabalho concluído: Mamãe.

falta muito?

l ',/

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Introduçào

' A TRAJETDRIA DE UMA PESQUISA

''Uma sociedade náo pode criar-se nem se recriar sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa de ideal. Essa

criaçào nao é para ela uma espécie de ato suplementar com o qual se

completaria a Sl mesma uma vez constituída; é o ato pelo qual ela se

faz e se refaz periodicamente."

Emile Ourkheim

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Até elabor-ar- a pr-oposta deste tr-abalho, meu tema de

estudo tinha sido a mulher- e a família, par-ticular-mente

entr-e os pobr-es da cidade de S.3o Paulo (Sar-ti, 1985a e

1992). Deste ponto de partida, fui chegando à for-mulaçao do

problema desta tese, por tr-ilhas que náo estavam previstas

em seu projeto inicial.

A análise das r-elaç6es familiares, sobretudo a partir

da mudança nos papéis familiares, inevitável diante da

cr-escente ~ncorporaçao da mulher ao mercado de trabalho eda

possibilidade de contracepçào cada ve2 mais assegurada,

evidenciou uma questao estrutural na família moderna, o

conflito entr-e, de um lado, a afirmaçao da individualidade,

uma possibi 1 idade do mundo moderno, onde a tr-adiçao vem

sendo abandonada como em nenhuma outra época da história,

transformando a intimidade (Giddens, 1993) - e, de outro, o

respeito és obrigaç6es e és responsabilidades próprias dos

vínculos familiares.L

Na fam.:í.lia pobre, este conflito, ainda que exista

porque os pobres fazem parte do mundo capitalista, moderno e

individualizado, aparece pouco acentuado pela precedência do

todo - a família sobre as partes - o individuo fazendo

1 O conflito entr-e família. e individualidade constituiu um problema fundamental nas análises sobr-e a identidade feminina. Essa discussao encontr-a-se nos trabalhos dE' Br-una Fr-anchetto E't. al. (1981), Eunice Dur-ham (1983), Danielle Ar-daillon e Ter-esa Calde-ira (1984) e tem sido uma questao central no trabalho de Mar-ia Lygia Quar-tim de Moraes (1985, 1989/90 e 1993). Retomei-a também, em ar-tigo recente (Sar-ti, 1994).

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com que as r-elaçbes familiar-es entr-e os pobres sigam um

padrao tradicional de autor-idade e hier-ar-quia.

Com a análise das relaçoes entr-e o homem e a mulher-,

que r-esultou em minha disser-taçao de mestr-ado, fui-me dando

conta dE> que a dificuldade de afir-maçào individual tanto

par-a o homem como, par-ticular-mente, par-a u. mulher-, que tem

uma pos_iç-a-o- SUbor-dinada na hierar-quia familiar-, er-a expressa

fundamentalmente como uma questao dee ordem mor-a 1 • Tal

dificuldade parecia manifestar-se como uma lncongruência em

seu universo moral, onde os elos de obrigaçbes em relaçao a

seus familiar-es deveriam prevalecer- sobre os pr-ojetos

individuais. Percebi, entao, que era necessário mudar o

r-efer-encial da análise, baseado numa possibilidade

genericamente atribuída à familia moderna, e per-guntar quais

sào os fundamentos que efetivamente estruturam as r-elaçbes

na família e definem o lugar de cada um no univer-so dos

pobr-es, segundo sua pr-ópria concepçào moral.

No projeto deste tr-abalho, perguntava que lugar ocupa

este código mor-al familiar~ hierárquico " patr-iarcal,

expresso nas r-elaçoes entr-e o homem e a mulher- e entre pais

e filhos (Sarti, 1985a), dentr-o do sistema mals amplo de

referinclas culturais dos pobres e, ainda, que relaçào tem

esta mor-alidade com sua posiçào estrutural de "pobres",

socialmente subordinados. Os "pobres" a que este tr-abalho se

~efe~e sào os destituídos dos instrumentos que confe~em

poder, rique2a e prestigio, bens supremos na soc1edade

Page 11: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

capitalista. O problema que me interessava investigar, e que

continuou interessando, era o alcance deste código moral

hierárquico como referência simbólica para os pobres

urbanos.

Partindo da família, procurei compreender com que

categorias morais os pobres organizam, interpretam e dao

sentido a seu lugar no mundo. Para isso, observei, ouvi e

entrevistei os moradores de um bairro da per-i feria de sao

Paulo sobre sua vida na família e no bairro, bem como sobr-e

sua concepçao do trabalho, como a refer~ncia mais geral que

projeta suas vidas para além desse circulo r-estrito de

relaçbes. As reflexoes desta pesquisa incidiram, assim,

sobre os valores expressos na sociabilidade local, isto é,

no próprio grupo de referência dos pobres, mostrando nào

apenas como se relacionam com os "iguais", mas r-evelando

igualmente, e em contr-apartida, sua concepçào da relaçào com

os "desiguais''. As r-elaçbes de parentesco for-am

necessar-iamente levadas em conta, como parte desta

sociabilidade. As relaçbes familiar-es, estabelecidas pela

dinâmica entre consanguinidade e afinidade~ fazem pender- a

balança or-a para um lado, o do núcleo conjugal, ora para o

outro, o do grupo consanguíneo, como um p'ndulo constante

(Héritier, 1975), o que torna a rede de parentesco decisiva

na dinâmica das relaçties familiares, sob~etudo num contexto

onde os vínculos conjugais sào tênues, como é o caso em

pauta.

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A pesquisa, que focalizou inicialmente a mo~alidade na

familia, estendeu-se também ao bai~~o e às ~elaçbes de

vizinhança pelas ca~acte~.i.sticas do bai~~o onde desenvolvi

meu t~abalho de campo, po~que nele, como nos ba~ ~~os da

pe~ife~ia em ge~al, os limites ent~e casa e ~ua sào tênues.

Quanto a questao do t~abalho, sua impo~tância na definição

dos papéis fami 1 ia~es pa~a os pobres t~ouxe esta questao

fatalmente pa~a a análise, ampliando uma pesquisa que, na

sua concepçào inicial, nao tinha uma idéia p~eci~a das

implicaçoes que o tema da família continha.

O desdob~amento da análise da familia pa~a as ~elaçbes

de vizinhança e para a concepçao que t"êm do t~abal ho os

mo~ado~es da pe~i feria foi mostrando como a moral idade na

qual se assentam as relaçbes familiares nào SE> limita ao

univE>~so da casa, mas se expande para fora, configurando um

sistema de valo~es que incide sobre seu modo de pensa~ o

mundo social e se coloca~ frentE> a ele. Ao perceber que o

mesmo pa~adigma mo~al se projetava para além do unive~so da

casa, foi se definindo mais precisamente o problema que se

tornou objeto deste trabalho. O estudo da mo~alidade dos

pob~es, expressa nas ~elaçbes que se criam em torno da

localidade onde habitam, configurou-se como um estudo da

construçao de sua identidade social, na medida em que- este

é o argumento central da tese - a auto-definiçào dos pob~es,

ou seJa, a definiçi3.o do lugar que ocupam no mundo social,

constrói-se dentro de uma concepç.3o da ordem social como

Page 13: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

or-dem mor-al .:;z

A r-ei]e>:ào deste tr-abalho é pr-oduto nao só de uma

pesquisa, mas de uma tr-ajetória de pesquisa, que começou com

um tr-abalho etnogr-áiico anterior, cujo primeir-o resultado

foi minha dissertaçao de mestr-ado. Esta trajetória tortuosa

revela que, durante a r-ealizaçào de uma pesquisa, nào apenas

se desvenda aos olhos do pesquisador- uma realidade e>:ter-na

que nào se conhecia, mas também uma pr-ofunda

tr-ansfor-maçao no olhar- do pesquisador- durante este processo,

que, neste caso, se desenr-olou da familia par-a o fundamento

da ordE?m social na perspectiva dos pobr-es, sem que o

mater-ial etnogr-áfico tivesse se modificado substancialmente.

A definiçào da familia como via de acesso ao pr-oblema

da mor-alidade, embora cor-responda uma trajetór-ia

individual de pesquisa, nào foi uma escolha arbitr-ária, nem

casual, mas se foi delineando na medida em que e>:pandia

minhas observaçóes para for-a do univer-so familiar,

revelando-se a impor-tância da família como referência

2 O estudo da. moral serâ aqu1 cons:ide>r.o~do antr-opologicamente, numa pe>rspectiva durkheimiana, no sentido de negar qualquer "essência" (bo.:~

ou má) à ordena.çao moral qu12 f«zem os pobr12s do mundo social, em f.:~vor

da. interpretaçao que os SUJeitos envolvidos fazem de sua experi~cia de vida, eqJressa em su«s normas e valores. Para Durkheirn, d sançao, contr<Ap.:~rtida negativa. do ato moral. náo r-esulta da natur-eza. intrínsec;. ao ato~ mas do f.o~to de que existe>rn normas sociais que prescrevem 5Ua condenaçao, o que torna intr-insecame>nte social e, portanto, relativo o fato moral, sua proposiçao básica (Durkheirn, 1924). Sua forrnulaçao da "solidariedade orgânica", que fundamenta a divisao social do trabalho, como um elo de car.iter moral que vincula e integra os indivíduo5 socialmente, fE>z deste autor um clássico, um ponto de par-tida, de uma ''sociologia mor-al'' (Durkheim, 1960).

,,

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simbólica para os pobres, d~ntro ~ fora da casa. A famllia,

pensada como uma ordem moral, constitui o espelho que

reflete a imagem com a qual ordenam e dáo sentido ao mundo

social.

O trabalho de campo

Meu convívio com o mundo dos pobres começou quando,

fazendo o mestrado em ciincias sociais, na época fim dos

anos 70 militante e agente do discurso fe>mini5ta,

identificada com ele, mas desconfiada de sua universalidade,

voltei meu interesse de pesquisa sobre a condiç~o feminina

para as mulheres de uma outra condiç~o social, diferente do

meu próprio grupo de referências, como defini na introduçao

de minha dissertaçao (Sarti, 1985a).

Desde entao, conheço e acompanho, de perto ou de longe,

algumas das famílias que moram no bairro onde fiz a

pesquisa. Vi alguns casarem, outros se 5epararem, alguns

morrerem, seus filhos crescerem, seus netos nascerem. Enfim,

como tudo que se v~ nos contatos longos que fazem parte da

nossa vida.

Fui-me dando conta de que algum;;.5 posturas na o

deliberadas permearam minha relaçàio com eles o tempo todo.

Page 15: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Acho que nunca fui considerada uma i gua 1. Sempre fui

di teren te. Todos sabem que moro 1 á no centro, 0 que, por

oposiç.3.o à periferia, sintetiza um e~xo de diferenciaçao

social básico. Eu estava neste conhecido terreno moved~ço

que caracteriza a posiçdo do antropólogo, de estar próximo,

pela situaçao de pesquisa, pela familiaridade que vai se

desenvolvendo, pelas aproximaçbes e preferências que vào se

estabelecendo com a convivência e, ao mesmo tempo, nào fazer

parte daquele grupo social.

Em conversa, sempre

muito. Queriam saber da

foram

minha

casamento, separaçào, trabalho,

pródigos. Conversávamos

vida, dos meus

casa, fam.ilia,

filhos,

minhas

opinides sobre fatos correntes, enfim, todos os temas que

eram objeto da minha própria investigaçào. Era frequente

devolverem-me a pergunta que eu lhes havia feito e foi dessa

troca que retirei a parte mais ri c a do material para

análise. Acho que era quando os entendia melhor, talvez

porque as definiçbes, opinibes e comentários surgiam clara e

espontaneamente por comparaçào, por contraste, permitindo

falar de uma mesma questào sob diversos ângulos. O discurso

flu.ia particularmente bem nestas ocasiOes de troca de

papéis, onde ambos, pesquisadora e pesquisado/a,

perguntavam, dando va2ào à curiosidade dos dois lados,

fazendo com que as diferenças e semelhanças aparecessem de

modo mais aberto.

tJ

Page 16: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

As maiores dificuldades de comunicaçao apareciam quando

nao er-a possível romper- a distância que me> confere a

identificaçao com ''eles'', diferente de ''nós''. Na favela isso

er-a mais comum, ou er-a mais comum que começasse assim,

por-que, por- r-azoes óbvias, uma vez que vivem sob a constante

ameaça de um possível despejo, me r-ecebiam com desconfiança.

Se> E'U na o chegasse intr-oduzida por alguém JVe eles

consider-assem com toda segur-ança como ''um de nós'', a tar-efa

de pesqulsa tornava-se uma missao imposslvel, Quando o

assistente de pesquisa e eu chegamos, apr-esentados por um

morador- que, depois per-cebemos, nao gozava de reputaçao

favor-ável, o máximo que conseguimos, numa situaçao tensa e

desagradável, foram r-espostas for-mais ao nosso roteir-o, que

se r-evelou, nessa hora, um instrumento inútil.

Como nor-malmente eu chegava nas casas através de algum

mor-ador local já conhecido, rar-amente havia desconfiança em

relaçao ~ minha pr-esença, como alguém que causaria danos ou

pr-oblemas às pessoas ou ao local. Houve frequentemente a

expectativa de que, com meus recursos, conferidos pela minha

escolar-idade, e todo o ''saber'' que ela implica em termos de

manejar a r-esoluçao de> pr-oblemas, meus contatos

profissionais minha pertinência ao "centr-o", eu os

ajudar-ia na resoluçao de problem.as locais ou pessoais.

Através destes pedidos, alguns explicitas, quando se tr-at.ava

de questoes coletivas, do bairr-o, outros suge~idos, quando

se tr-atava de questbes pessoais, foram insinuando p.ara mim a

Page 17: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

maneira como se relacionam com os "outros".

Houve momentos em que percebi, no contato inicial a

clara expectativa de que eu pudesse trazer melhorias ou

benefícios para suas vidas. Mas essa nao foi a tônica do

contato com a populaçao local. Ou a continuidade do contato

dissipando essa primeira abordagem, ou havia um

afastamento, na medida em que a expectativa era frustrada. A

impressao que me ficava de que a entrevista eca

sobr~tudo uma oportunidade singular em suas vidas, a

oportunidade de falar e, principalmente, de ser ouvido.

Frequentemente falavam com muito entusiasmo e respondiam

acuradamente, com o esmero de quem tlnha a satisfaçào de ser

perguntado, prova rara do reconhecimento de sua existência

por alguém que nao pertence a seu mundo.

Costumava

constrangi menta

avisar

em

da minha

chegar sem

ida, porque havia um

avisar e pegá-1 os

desprevenidos, com a casa suja e em desordem. Nao era tanto

o sentido da privacidade que estava em questào, mas o fato

de que a casa é uma extensào da pessoa, um valor através do

qual demonstram sua respeitabilidade. Poc isso, eca

importante, mais do que em outros grupos sociais, que ela

estivesse em ordem: fazia parte da tentativa de causar boa

imprE?ssdo. Com D convívio, entretanto, esses

constrangimentos foram desaparecendo, como me disse uma

mulher conhecida havia alguns anos: quE?ro que você chegue

na minha casa a qualq1.1er hora~ como se fosse a sua casa.

Page 18: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Para ela, era a generosidade de ter as portas abertas que

contava.

Inicialmente, cada detalhe do convívio envolvia alguma

tensáo, para que se assegurassem de por quê eu estava lá.

Com o tempo e o convivia, essa relaç~o ficava menos tensa,

sem necessidade de constantes testes e provas. O pesquisador

tem que lidar com os problemas de comunicaçao que enfrenta

qualquer pessoa estranha ao p&daço (Magnani, 1984) qu~

envolvem a possibilidade d~ uma linguagem comum

entender o que o outro quer dizer com seu gesto ou palavra e

para se fazer entender.

Escolher aquele local para a pesquisa foi considerado

muitas vezes uma forma de prestar atençao à sua populaçáo, o

que levava as pessoas a serem receptivas. Serem escolhidos

para a entrevisti3. era visto como uma deferi?'ncii3. de minha

parte. Retribuiam, entào, abrindo as portas de suas cdsas,

quando náo os segredos de suas almas. A escolha dos

entrevistados envolvia um certo cuidado de minha parte, para

n.3.o ferir suscetibilidades. Se, na prática do trabalho de

campo, os critérios de seleçáo da amostra em funçao do

problema estudado norteiam sem dúvida nossas escolhas, o que

conta decisivamente é a percepçao das circunstâncias locais.

Uma morado~a sugeriu-me que eu entrevistasse uma mulher que

morava na sua rua e justificou: Ela ~ muito boa pessoa. Essa

sugestao teve um duplo sentido: é necessário escolher quem

passe uma imagem positiva do bairro, porta-vozes

' ' .c c

Page 19: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

selecionados, como também significa que eu náo podia falar

com qualquer- pessoa. Os contatos com os que nào sao do

''mundo da ordem'' envolveram explicaçoes d~ que eu nao estav~

"tr.:undo" este mundo, em favor- dos que nao er-am consider-ados

respeitáveis no local, de que nào estava r-ompendo nenhum

pacto anterior. O mesmo acontecia em r-elaçào às facçbes

políticas e às dissensbes religiosas.

Havia per-manentemente um elemento de troca, um dar e

receber contínuos. A r-elaçáo dos moradores comigo e suas

atitudes em r-elaçi:io à minha presença no local ajudar-am-me

muito na compreensao de sua relaçáo com os ''outros'', os que

nào consideram como ''iguais''. Pude perceber, ao longo dos

diferentes momentos da pesquisa, mani festaç6es da

multiplicidade de posturas que tim em relaçào a ''eles''. Num

certo sentido, minha relaçao com eles sintetiza a

variabilidade das posturas com relaçáo aos ''outros''.

Havia subjacente uma defer~ncia pela ''cultura'' da qual

sou portadora. Os pobres demonstram um enorme r-espeito pela

"educaçào", que constitui um valor, mas, como todo valor, é

relativizada.~ Nào deixam de apontar limites, expressos numa

3 "Ter cultur-a", no universo do" pobres, segundo a análise de Élcio Verçosa ( 1985) em seu trabalho sobre as práticas pedagógicas e>scolares, diz-se de uma pessoa que domina uma significativa par-te deste acervo de dados em que consiste o conhecimento, dado pela escolaridade, alguém que t~m lf?ituroJ. No entanto, a boi! E>ducôlçiio envolve ainda incorporar ao procedimento os valores morais que caracterizam a boa conduta, o que a escola se esforçará também por fazer. Isto significa que uma pessoa pode "ter cultura", mas nao ser educada, introduzindo-se, assim, sempre pelo prisma moral, uma relativizaçáo de um dos bens que demarcam desigualdades sociais, a educaçáo.

j -,

Page 20: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

desconfiança: a sabedoria náo está só nos livros, mas na

prática de quem lida com a vida, na experiência, valor que

fala mais alto; uma mulher que, em sua própria definiçào, lê

e escreve ''muito pouco'', disse-me:

Eu acho que ler e escrevE?r é mui to bom, mas quando a pessoa sabe 1 E> r e na· o sabe se ded.i c ar a si próprio, náo adianta.

No meu ponto de vista é isso: nao ad.iant.:1 eu sabE?r }E?r mundos e fundos e náo saber resol\o'E'r problema nenhum.

Essa experiência é uma aprendizagem que só adquire quem

anda pelo mundo, porque:

O maior pro"fessor do ser humano é o mundo. É

quem nos ensina de tudo. Por mais que você aprendaJ você náo aprende 5E' você náo anda o mundo. Nuito eu andei e muito eu aprendi.

Como em qualquer coletividade humana, na afirmaçao de

sua identidade, desqualificam e zombam do diferente. Em sua

crença de que rico nao trabalha e de que quem tem leitura

nao conhece a vida, cri.;~;m a imagem do rico folg.;~;do e do

intelectual otário, frequentemente objeto de galhofa. Se

esta atitude corr-esponde a uma for-ma de auto-valorizaçao

defensiva, diante de bens a riqueza material e a educaçao

aos quais eles nao têm acesso, ela é a contrapartida de

1

Page 21: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

auto-afirmaçâo em face da crença discriminatória dos ricos

de que pobre é ignor~n te, atrasado, n~o quer saber de

trabalhar, nao tem moral. Estes mecanismos de relativiz~çáo

auto-afirmativa serao largamente comentados ao longo do

trabalho.

Sempre soube que tinham a meu respeito uma pos.<çao

clara, que quanto mais os conhecia, ma~s me conheciam

t~mbém; enfim, sempre tive presemte que se tratava de uma

r-elaçao. Fui aprendendo a con hec:é-1 os, diferenciá-los,

definir minhas própr-ias simpatias e desconfortos, e entender

sua atitude em relaçáo a mim; sua deferência, seu respeito,

sua generosidade; sua indiferença, sua hostilidade; como

buscavam se aproveitar de minha condiçáo social, muitas

vezes, depois entendi, naquilo que, para eles, é também

obrigaçcio em relaçâo aos pobres; ou a postura inversa, de

afirmaçáo de sua dignidade, autonomia e orgulho.

A hora do ponto final

Quando penso no que v~ e ouvi durante o trabalho de

campo, analisando as páginas e páginas de entrevistas

tr-anscr-itas e as observaçbes anotadas no diário de campo,

percorrendo as trilhas habituais do trabalho antropológico,

1_4

Page 22: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

familiares a qualquer pesquisador, lembro de im~diato, como

se visse um filme, de cada um dos entrevistados em sua

singularidade, na maneira como cada um nos acolheu, na

relaçào que foi possível estabelecer entre entrevistado-

entrevistador e que produziu aquele resultado particular,

nunca igual de uma entr-evista para outra, apesar dos

r-oteiros e técnicas dos qua~s nos mun.1mos para garantir

resultados. Nunca igual porque a entrevista é uma relaçao

humana, permeada por nossas paixoes e inseguranças,

produzida num dado momento, portanto única. A leitura de

todo o material e a lembrança da experiência de pesquisa.

vi'lida remete a esta singularidade e ao mesmo tempo aos

mecanismos subjacentes que cada caso particular evidenciou.

Qua11do percebi estas evidências, achei que tinha pistas que

me permitiam pôr um ponto final no trabalho de campo,

organizar o material, absorver e digerir- esta exper-iência e

pas!'>ar à análise. Quando isto aconteceu, além dos dados de

observaçào, anotados cuidadosamente ao sabor dos

acontPcimentos, eu tinha entr-evistado 27 homens e mulheres

de diferentes unidades domésticas e/ou familiar-es, com

g ravadnr, hora marcada e um roteiro básico, que foi se

modificando confor-me as alteraçôes na problemática da

pesquisa descr-itas anter-ior-mente. Neste periodo, de 1988-90,

contei com a valiosa colaboraçao do Roberto Catelli Júnior

para o trabalho de campo.

j c:·_ ~·

Page 23: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

i»~;-·

Estes dados se somaram ao material comparativo do

trabalho anterior, que consistJ.a no survey mencionado,

diário de campo e entrevistas gravadas (Sarti, 1985a) e,

ainda, às entrevistas feitas para outra pesquisa no mesmo

bairro, complementar em muitos sentidos a esta. Trata-se da

pesqu2sa coordenada por Roberto Da Matta, de março a maio de

1992, em colaboraçao com Marcos Lanna e de cujo trabalho de

campo participou também C e 1 este Da Ma t ta, como parte do

projeto conjunto CEBRAP/Kellogg Institute (Univerç,idade de

Notre Dame), sobre ''Politicas sociais para os pobres urbanos

na América Latina'', cuJOS resultados aparecem no trabalho de

Roberto Da Matta (1993bJ.

Concluído o trabalho de campo e tendo em màos os dados

analisados, a forma de exposiçào deste trabalho reproduziu a

trajetória da pesquisa, que se foi ampliando do espaço da

casa para as fronteiras do bairro, traçando um caminho

cumulativo que desencadeou a reflexao sobre a moralidade dos

pobre>s.

No primeiro capitulo, descrevo as car-acteristicas do

unive>rso onde fiz a pesquisa que sao significativas para os

problemas que serào discutidos na tese.

No segundo capítulo, comento o que dizem e a imagem que

fazem dos pobres as ciências sociais brasileiras, sem

pretender dar conta de toda esta literatura, mas apenas

situar meu trabalho em relaçáo às suas matrizes básicas de

Page 24: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

·,;­.;.·. _f_

análise.

No terceiro capitulo, a análise focaliza a família. O

argumento básico é que a noçao de "família" para os pobres

tem um fundamento h~erárquico e patriarcal e se constitui

através de um sistema de obrigaçbes morais, cujo sentido se

projeta para além da própria família.

No quarto capitulo, continuo a análise dos parâmetros

positivos através dos quais 05 pobr-PS constroem sua

moralidade, focalizando sua concepçào do trabalho. Procuro

demonstrar que o principio moral que fundamenta o valor do

trabalho para o homem, a mulher, a criança e o jovem se

insere dentro de uma lógica relaciona}, onde o trabalho

embora exercido individualmente, se projeta, para além de si

e do próprio trabalhador, no universo familiar e social,

passando pela ordem sobrenatural.

No quinto capítulo, analiso os desdobramentos desta

ordem moral fundada nos valores da família e do trabalho,

considerando os mecanismos de identificaçào e de

diferenciaçào dos qua~s os pobres lançam ma o para a

elaboraç.3o de sua identidade social, através da análise da

sociabilidade local, que reflete e se projeta para o plano

mais geral da sociedade.

Desta trajE>tória. que resultou numa pesquisa, fica a

tentativa de compreender o que tudo isso pode nos dizer

sobre a sociedade brasileira.

!

I \ I.

I

..' .. /

Page 25: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Capitulo 1

D UNIVERSO PESQUISADO

''Náo havendo assunto pequeno, mas pequeno investigador, cada aspecto da

cultura, cada ângulo da atividade humana, permite percentagem analítica

bem inferior a seu volume real.

Luis da Câmara Cascudo

J 8

Page 26: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Um desencanto fundamental marca os pobres urbanos em

Sao Paulo hoje, anos 90, retrato da derrocada da promessa de

felicidade que encerrava o crescimento industrial

econBmlco do pais, com o ''progresso'' que beneficiaria a

todos. Desencanto pelas suas experiências de vida e pelo que

devolvem a todo o pais como a imagem mais visível dessa

frustraçao. Suas vidas sào o resultado da industrializaçao e

da urbanizaçao do pais, a partir dos anos 50, e da migraçào

que fez parte deste processo, ''o sonho feliz de cidade''· a

promessa de dias melhores, que os trouxe para o Sul.

busc.=~ndo o Br.=~sil moderno, cuja síntese perfeita estava em

metrópoles como Sao Paulo. Sonho que forjou as periferi.=~s

pobres das cidades, obrigando sua populaçao a "chamar

depress.=~ de r-e.=~lid.=~de", nas palavr-as de Caetano Veloso, o

que se mostr-ou "o avesso do avesso" de seu sonho.

Como par-te do movimento mais amplo da expansao

econômica do país e da reor-denaçao social que dela decorreu,

este movimento de migraçáo deslocou-se para Sao Paulo

sobretudo nos eufóricos anos 60 e 70, nao apenas como

consequência da expansao da cidade de S.3o Paulo e intensa

urbanizaçào por que passava o pais, mas como resultado de um

processo de tr-ansformaçao do sistema econômico e social que

afetou tanto a cidade como o campo, r-edefinindo as relaçoes

_1'7

Page 27: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sociais em todo o pais, 4

Esta pesquisa desenvolvE>u-se em um desses muitos

bair-r-os que se expandir-am como consequência deste intenso

pr-ocesso de deslocamE>nto da populaçào tr-abalhadora do pais.

É consequência de um contato de mui tos anos. Como contei,

conheço desde 1979 alguns dos mor-adores da localidade, um

bairro em Sào Miguel Paulista, na Zona Leste da cidade de

Sào Paulo. De 1979 a 1981, fiz a pesquisa para minha

dissertaçào de mestrado sobre as mulher-es pobres ( Sarti,

1985a) Fora r-etornos esporádicos, volte i depois de alguns

anos, em 1988, par-a recomeçar o trabalho de campo. Desta

vez, para a tese de doutor-amento.

Em meu tr-abalho anterior, faço uma descriçào detalhada

do cotidiano do bairro, sua história e caracterizaçào sócio-

económica da populaçào (Sar-ti, 1985a) Pretendo aqui retomar

apenas algumas caracteristicas da populaçào 1 oca 1 , para

r-essaltar o impacto que me causou a volta ao bair-ro depois

de alguns poucos anos, permitindo ao leitor visualizar- a

quem se refer-e a reflexào que se segue.

4 Esta corr~nt~ migratória, como parte de um processo de âmbito n.-.cional, foi .-.nalis.-.da por Eunice Durhdm (1978), num tr<tb.-.lho clássico sobre os pobres e exemplar na tentativa de articular .-. pdrticular-id.-.de de seu lugar- soci.-.1 com a socied.-.de mais ampla, Quanto à e~pansào

específica d.-. cid.-.de de Sào P.-.ulo, a liter.-.tura é e~tensa. Sobre a formdçao d.t periferia de Sào P.-.ulo como uma s.-.:íd.-. p.-.ra o problem<~ d.-. habit.-.çao popular, dentro do processo de e~pansáo d.-. cid.-.de, ver- os tr-.-.b.-.lhos de Lúcio Kowarick (1979) e Nabil Bonduki (1983 e 1988).

Page 28: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O projeto de melhorar de vida

Como a maior- par-te dos pobr-es que vivem hoje em Sao

Paulo, a populaçao adulta do bair-r-o é, em sua maior-~a,

migr-ante, sobr-etudo nor-destina. Quanto mais aumenta a j idade, maior- a pr-obabilidade de que o morador- seja migrante.

As cr~anças e, hoje, também os adolescentes j~ sao em sua

grande maior-ia nascidos em S.3o Paulo, dada a diminuiçao do

movimento migratório. É:, portanto, um bair-ro de velhos e

adultos migrantes, mui tos de origem rural, e de jovens e

crianças nascidos e criados na cidade grande.

O bairro começou a se expandir efetivamente a partir

dos anos 70. Em 1980, ainda nao fazia dez anos que a gr-ande

maioria dos habitantes locais (92,1X) lá se havia instalado,

segundo o survey feito no bair-r-o, por- ocasiào da pesquis.3

para dissertaçao de mestrado, em col.3boraçào com Tereza

Caldeir-a analisados em nossos trabalhos anterior-es

(Caldeira, 1984 e Sarti, 1985a).

Neste retorno ao bairr-o, entrevistei muitos dos maridos

e filhos das mulheres entrevistadas antes. Voltei a outr-as

famílias que se haviam desfeito, outras em que os filhos

crescer-am e também foram entrevistados. No começo dos anos

80, a maior parte das mulher-es era migremte e tinha seus

filhos pequenos. Agora, retornando a estas famílias pude ver

os filhos criados em Sao Paulo, essa geraçao que cresceu na

Page 29: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

periferia urbana e comparar seus padróes de comportamento, a

permanência e a mudança. Alguns ainda est~o solteiros,

outros casados, como tantos, pela segunda OLI ma1s vezes. Há,

ainda, entre os entrev1stados màes solteiras, viúvas, com e

sem filhos, homens e mulheres em arranjos familiares

diversos e em diferentes posiçbes dentro do grupo familiar:

pai, mae, filho e filha. sao católicos ou pentecostais (de

diversos credos); de resto, seguem as outras conhecidas

características da populaçào da periferia, protissoes

desqualificadas, baixos rendimentos, instruçao baixa

(sobretudo os mais velhos)

No início dos anos 80, o bairro cor-respondia à franja

da cidade de Sào Paulo. Nos últimos anos, expandiu-se à sua

volta um aglomerado de casas construídas em terrenos

invadidos, a "favela", r-ealocando, portanto, a margem da

cidade. Alguns dos entrevistados moram nesta parte do bairro

que, como foi descrito, começou a se expandir nos anos 70;

vivem em casa própria com terreno próprio, ou casa alugada.

Outros moram na favela, em casa própria em terreno lnvadido.

Diante da favela contígua, a populaçao local pensa o

bairro hoje como um lugar intermediário, numa r-e laçao

segmentar e hierarquizada do espaço da cidade. Li c ia

Valladares (1991) comenta o processo de periferizaçao das

metrópoles brasileiras, que se consolida na década de 70,

deslocando a pobr-eza urbana das favelas para as margens das

cidades. Segundo esta autora, ''esta nova territorialidade da

,_.,-,

Page 30: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

pobreza colocou em evidência o chamado 'mor-ador da

periferia', em detrimento do 'favelado' reificado pela

teoria da marginalidade e até entao reconhecido como 0 pobre

por excelência" (p. 104) Por esta E>xpansao constante da

cidade, a emergência do "morador da periferia" como ume~

categoria que define o pobre nao substituiu, mas redefiniu o

sentido do termo ''favelado'', que passou a ser ''mais pobre''

do que o pobre I morador da perifer-ia, constituindo uma

importante referência para a diferenciaçao interna nesta

localidade.

Além da presença da favela, que deslocou o "pior lugar

da cidade" para além do bairro, redefinindo em termos

relativos a posiç.3o em que se vêem os moradores,

efetivamente ocorreram melhorias no local, relativamente ao

que era há 10 anos, sobr-etudo quanto à infra-estr-utur-a

urbana, bens de consumo coletivo e aos bens de consumo nas

casas, evidenciando que, apesar- da for-te recessao econômica,

a década de 80 nao foi assim táo ''perdida''.~ As máes nao se

preocupam tào angustiadamente com a volta de seus filhos e

filhas para casa, depois da escola noturna. Há luz nas ruas.

Uma ocasiào, num dia de muito calor, com minha Lhegada

5 A idéia dos anos 80 como uma ~década perdida" apar~c~ numa linha de pesquisas sobre os pobrt~s que analisa a relaçáo entre trabalho, pobrt~2d \ e família. Ver os trabalhos de Juare2 B. Lopes e Andrea Gottscha.lk (1990) e o de Vera. da Silva Telles (1992). Para uma rela.tiviza.çao desta idéia, v~r os artigos de M. Conceição Tavares (1991) eM. Lygia Quartim de Moraes (1993) e, ainda, a análise de Vilmar Fada (1992) sobre a conjuntura. social brasileira.

Page 31: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

impr-evista, a pessoa que eu visitava fez filho comprar-

r-efriger-ante par-a me ofer-ecer- na Pawar~a próxima,

possibilidade antes inexistente. Aço~;Jue, far-mácla,

super-mer-cado estào agor-a a seu a l c a" ::;:o sem grandes

deslocamentos. Abr-iram-se novas vias de a·::esso ao bair-ro,

onde os car-r-os e ônibus circulam sobre asfalto e os

pedestres andam sobre calçadas, r-empena:: o confinamento I

tantas vezes antes expresso numa sensaçào Q= fim de linha ...

As possibilidades de consumo se ampli.;;r-a:r"! r-elativamente

ao que era antes pela pr-ópr-ia expansao üa sociE>dadE> de

consumo quE>, num mE>canismo de "particioc.ç:ao excludente",

r-eser-va uma fatia de seu mercado à populaça:: de baixa r-enda

e, como ar-gumenta Eunice Dur-ham (1984b), esses novos padr-bes

dE> consumo sào vividos pela populaçào pobr=, especialmente a

de origem r-ur-al, como melhor-ia de vida. Esta percepçao

situa-.sE> mais amplamente dentro da per-spe::-:iva de vida dos

morador-es da per-ifer-ia ur-bana, cuja exis7.êr.cia é motivada

por este pr-ojeto de melhorar de vida, qu= envolve o grupo

familiar- em seu conjunto (Durham, 1988)

Se o desemprego e situaçDes imprevistas levam 05

projetos familiares a serem constantemen~e refeitos, se os

filhos na o esta o estudando como desejável s~

sacrificios com os quais nao se contava poae~ estar em curso

dentro das inúmeras "estratégias de s~:Jr-eviví?ncia" dos

pobr-es urbanos, descritas pela~ ciência: sociais (Bilac,

1978, Macedo, 1979' Woortmann, 1984}' bair-ro obteve

24

Page 32: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

visiveis melhorias quanto a bens de consumo coletivo, como

resultado do impacto de lutas sociais de bairro nesta década

em que novos atores políticos entraram em cena.

Neste bairro, particularmente, serviços públicos como

um Posto de Saúde (estadual) e uma creche (municipal) foram

instalados a p.;~rtir de movimentos femininas. A press.áo da

populaçào local junto aos órgàos públicos efetivamente teve

efeito favorável à inst.3laçâo desses serviços, num momento -

começo dos anos 80 - em que est.;~s questbes ocupavam a agenda

politica. Aliás, entre os ganhos da década de 80 está

lndiscutivelmente experie;ncia democrática vivida nas

diversas instâncias da vida política do pais, que fez

aumentar o poder de pressao da populaçao pobre das

periferias urbanas.

As mudanças ocorridas na regiào confirmam a idéia,

expressa por seus moradores, da transformaç.áo da periferia

como um processo constante, tanto no espaço físico que se

expande, como na perspectiva de seus habitantes de melhorar

progressivamente sua vida, continuando este projeto familiar

que se iniciou desde o momento em que eles, ou seus pais,

resolveram migrar.

A expectativa de melhorar de vida está relacionada à

condiçào de migrante, constituindo o Jeitmotiv de migrar. Em

termos de suas histórias familiares, os moradores deste

bairro falam da percepçao de uma mobilidade social em

·,: I

I

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I ' ' I' ,, '

Page 33: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

r-elaçao à geraçào que os precedeu, no sentido de que tiveram

acesso a r-ecursos inexistentes em seus locais de or-igem,

sobr-etudo no que se r-efer-e às oportunidades de tr-abalho, de

consumo e de educaçao par-a seus filhos encontr-adas na

cidade. Seguindo o padrao t.ipico da localidade, o de ter

origem migrante e viver a expansào familiar em Sao Paula,

uma das entrevistadas, nascida em Alagoas, conta que diz

para as filhas, nascidas e criadas em sao Paulo:

1'1esmo com a vida que a gente leva, é bem melhor do q1..1e aquela \<'ida que eu levei,, porque eu tinha tanta vontade de estudar, era c:urios.:< em mui tas coisas e nao consegui •• _

Além de aparecer nas famílias pobres de origem rural,

essa idéia de uma mobilidade em r-elaçao às opor-tunidades

apresentadas às geraçbes anter-iores surge também entre as

famílias paulistanas, na medida em que SE' associa às

possibilidades do meio ur-bano.

Nao há dúvida de que se tr-ata de uma melhoria relativa.

Sabe-se que as possibilidades de melhorar de vida esbarraram

nos limites da r-ecessáo econ3mica, agravada desde o inicio

dos anos 80. As conjunturas de recessao, no entanto 1 apenas

acentuam, muitas vezes gr-avemente, o que é a instabilidade

estrutur-al do emprego par-a os pobres.

I

Page 34: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Se, hoje, a populaçào das periferias urbanas conta com

água, luz, esgoto e asfalto em um n~mero cada vez ma~or de

suas casas e suas ruas~ também afetam estes moradores, como

todo pobre urbano, o desemprego e a diminuiçao do valor real

dos salários, com a consequente diminuiçao da renda familiar

- o que obriga a incorporar as màes e os filhos à força de

trabalho em momentos nao desejados, sacrificando os cuidados

maternos e contrariando, assim, valores que lhes sáo caros -

~lém O~s constantes ameaças de violencia que pairam sobre

seu cotidiano.

As dificuldades encontradas na cidade para estudar

desencorajam o projeto de ascensáo social através da

educaçáo. Como raramente os migrantes vindos da zona rural

dominam a leitura e a escrita, pensadas como o instrumento

de adequaçao aos códigos urbanos, esta esperança é

depositada nos seus f i 1 hos, como, entre tantos outros,

mostrou recentemente M. Cristina Costa I 1993 I. As

dificuldades enfrentadas na cidade, onde se integram como

pobres, o desencanto das promessas nao cumpridas pela cidade

grande, levam à idealizaçao do passado e à constr-uçao do

sonho de voltar para o Norte. 0

Esta pesquisa refere-se, por--tanto, a um segmento da

popu 1 açao que v i v e num bair-ro da periferia de S.3.o Paul o,

6 M. Cristina Costa (1993) fala analogamente da re-construçao mitica da ''comunidade rural'' entre os bóias-frias, migrantes que vivem nas periferias urbanas do interior paulista.

Page 35: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

situddO numa das ~egioes mais pobres da cidade. Os moradores

deste bairro definem-se como pobres e trabalhadores, em

oposiçao aos ricos, categoria que engloba diferenciaçoes

tais como os patroes, os que moram no centro, os estudados e

que, por fim, se refere propriamente ao padrao de consumo

que lhes é negado. Diferenciam-se, entretanto, de outros

pobres, por terem casa própria. Pode ser um barraco, mas é

seu ba~~aco. sao proprietários, o que ni:i.o quer dizer

necessariamente estabilidade econ6mica, mas é a marca de uma

importante distinçao simbólica, realizaçao de um valor

social, tipicamente burguês, por eles comparti 1 h a do, de

acordo com o mundo regido pela lógica do mercado, mas cujo

significado náo se esgota ai.

Foi a possibi 1 idade de comprar um terreno e levantar um

cômodo o que levou os mig~antes, nos eufóricos anos 60 e 70,

a estes bair~os longinquos, sem infra-est~utu~a urbana e sem

certificado legal de propriedade dos te~renos que, por essas

razOes, tinham preço acessível. Perseguiam a realizaç.3o do

sonho da casa próp~ia 1 o conhecido projeto que, junto à

criaçao de uma familia uma vez que casa e f ami 1 i a sã. o

p~ojetos que só fazem sentido quando combinados um ao outro

(Woortmann, 1982 e Sarti, 1985a) constitui um projeto

cent~al da existência dos trabalhadores que se estabeleceram

na cidade- (Durham, 1978, Macedo, 1979, Caldeira, 1984 e

Costa, 1993) e que os diferencia de outros pobres, os que

ndo tem nada, os pobres mesmo.

I'

,, 1:' 11,

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Page 36: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Ainda que os pob~es estejam em toda a parte nas g~andes

cidades, concentram-se em sua p-r•t-r•·, c·• nd ..- ... c- _...,. , .... a o um espaço

p~óprio, reconhecido como o seu lugar nas cidades. onde se

pode observar e identificar mais claramente sua maneira de

viver, diferente dos moradores das regióes centrais. Como já

demonstrou a literatura sobre os pobres urbanos, o local de

mo~adia, através das ~elaç6es sociais que nele se

de>senvol vem, constitui a base de uma identidade cal e> ti v a

(Magnani, 1984, Caldeira, 1984, Zaluar, 1985, Durh~m, 1988).

Os migrante>s que vivem nas per-ife~ias ur-banas sào um

grupo social com fronte>iras imprecisas, ao contrário dos

gr-upos étnicos que, ao chegarem no novo lugar de moradia, se

e>struturam em torno de uma identidade comum, construída com

elementos que já traziam em sua bagagem. Essa identidade

cria-se, para os migrantes, na pe~iferia, lugar dos pobres

na cidade, que v~eram de muitos pontos diferentes,

comportando muita heteroge>neidade, mas const~uindo uma

referência básica comum em to~no de seu local de moradia.

Quando seus problemas de adaptaçào na cidade já estao

relativamente assentados, os migrantes en f ~en tam, como I ,, ' qualquer nativo da cidade, o problema de serem pobres e sua

origem, embora ma~que sua existência, passa a ser secundária

diante do fato de que o que conta agora é o que a cidade

lhes ofer-ece.

Se acentuei o impacto das mudanças e melhorias na vida ;I··

' i

dos moradores das pe~i ferias u~banas é porque me pa~E>CE'

Page 37: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

importante para sua deiiniçáo de pobres no mundo urbano,

particularmente na cidade de sao Paulo, já que esta

defin1çao comporta uma ambiguidade: vivem num dos pólos ma1s

modernos e desenvolvidos do pais e ne 1 e traba 1 ham, sendo,

portanto, cotidianamente defrontados com as possibilidades

deste mundo, sem que, entretanto, a elas tenham acesso

precisamente por serem pobres. Nesta ambiguidade, neste

querer e nao poder, os pobres estruturam sua identidade

social e constróem seus valores, procurando retraduzir ern

seus próprios termos o sentido de um mundo que lhes promete

o que nào lhes dá.

-·::u

Page 38: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Capitulo 2

A

OS POBRES NAS CIENCIAS SOCIAIS

BRI">SILEIRI">S

''Para afirmar ou negar uma tese, a história do homem encarrega-se de comprovaçoes

inesgotáveis".

Luis da Câmara Cascudo

Page 39: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Muitas coisas foram dit's e esCrl.t's ~ a sobre os pobres e

muitas categorias usadas para dE>fini-los, cada uma

correspondendo a uma maneira de vê-los. Ressaltarei, no

entanto, apenas os aspectos que me parecem relE>vantes para a

discussao de como os pobres constróem e fundamentam seu

lugar no mundo social. Como disse na Introduçao, esta

revisa o da 1 i teratur-a na o pr-etende absolutamente ser

exaustiva e muito menos fazer justiça à cantribuiçáo de

todos os trabalhos aqui mencionados. Pretendo intr-oduzir as

vis6es que compartilho e aquelas às quais me contraponho,

I

I para que, através da análise dos dados desta pesquisa,

f i quem evidenciadas as semelhanças e diferenças dE'StE'

trabalho com relaçào à literatura comentada.

Percebe-se uma identificaçao constrastiva nas

diferentes imagens que se construiu dos pobres, tornando-os

um "outro", que muitas vezes diz mais de quem fala do que de

quem se fala, como uma projeçáo negativa.

Na análise dos pobres na literatura brasileira, Alfredo

Bosi (1982), comentando Vidas Secas de Graciliano Ramos,

destacou o olhar crit1co do autor que, ao descrever a

"carência" do iletrado, denunciou o "vazio", o "oco" do

discurso do letrado, instrumento de sua dominaçào. Ao

descrever o migrante, falou do outro, que o oprime. Partindo

da idéia da carência, o autor construiu uma visáo do

migrante nordestino onde estava pressuposta a modéstia de

sua vida simbólica, a partir da modéstia de seus meios de

Page 40: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

vida. Este roman~e, escr'to em 1937, antec'p · · ,_ ... .... ou uma v~sao

critica do pobre, a partir da denúncia dos instrumentos de

dominaçao da sociedade de classes, que teve ampla

repercussào nas ciências sociais, sobretudo nos anos 60 e

70, no pais já industrializado e politicamente marcado pelo

golpe de 1964.

O pressuposto da falta estava implícito numa visio do

pobre marcada pela critica da sociedade, que me parece ser

ainda a t8nica na literatura. Falou-se mais da pobreza do

que do pobre; ao se denunciar o sistema, elidiu-se o

sujeito. Se a carência material nào é mais suficiente como

critério de definiçào do que é ser- pobre, pela critica

amplamente di fundida aos 1 imites da perspectiva puramente

econômica, há hoje uma tendência a considerar a pobreza

como ctusência de direitos, ou seja, na relaç:ào entre a

pobreza e a cidadania, como é o caso do trabalho de Vera da

Silva Telles (1992). Assim, mudou-se o eixo de definiç.=::i.o da

condiçao socictl dos pobres, mas se manteve a falta como

referência, apesar das críticas neste sentido feitas por

Éder Sctder e M. Célia Paoli (1986), para quem a literatura

mais recente sobre as "classes populares" insurgiu-se contra

a produçáo acadêmica forjada a partir de uma representaçao

negativa dos pobres, incapazes de se pensarem

homogeneamente, como "classe". A meu ver, esta representaç.3o

negativa ainda se mantém, em outro referencial. Se antes o

refer-encial de f a 1 ta na a na 1 i se dos "pobres" estava na

.:;. ~·.

Page 41: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

"consciência de classe", agora encontra-se na noçao de

"cidadania".

Na visao sociológica sobre os pobres, sobr-etudo a

partir dos anos 60, p!'"evaleceu esta tendência a defini-los

por- uma negatividade 1 como o avesso do que deveria ser.

Ali ás, esta per-spectiva do "deve!'" ser-" marcou

significativamente esta literatura. Com uma ênfase oca

econômica, ora política, definiu-se a condiçáo social dos

pobres a partir da exploraçào do tr-abalho pElo capital e,

mais recentemente, pela ausência de reconhecimento de seus

direitos de cidadania. Nesta perspectiva, o r-esultado acaba

sendo a desatençào pal'"a a vida social e simbólica dos pobres

no que ela representa enquanto positividade concreta, a

partir da qual se define o horizonte de sua atuaçào no mundo

social e a possibilidade de transposiçào desta atuaçào para

o planp propriamente politico. 7

7 No que se refere a sao Paulo, cabe ress~lt~r, como exceçao, o trabalho de Antonio Cândido (1987) sobre o "caipira.'', publicado originalmente em 1964 e o de Eunice Durham {1978) sobre o "migra,nte". Nào por acaso, estes trabalhos nao foram discutidos pela literatura que os sucedeu, na medida de suas significativas contribuiçoes. Ambos exemplificam uma perspectiva de análise na qua,l a experiência de vida, do pobre aparece enquanto uma, dimensáo positiva,, ou seJa,, retratando-o como ele é, nao como o avesso do que deveria ser.

Page 42: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O paradigma da produçao

As ciPncias sociais brasileiras, sobretudo a part~r dos

anos 70, focalizaram os pobres a partir de seu lugar na

produçao, sem considerar as implicaçOes da peculiaridade na

qual se construiu este lugar no Brasi 1 Nào se t amou como

problema o fato de que, num pais considerado, nos tempos

coloniais, o ''berço da preguiça'', onde o ócio era tido como

marca de prestigio (Araújo, 1993) 1 construiu-se uma ética do

trabalho a partir de uma experiência histórica familista e

escravocrata, distante daquela fundada no valor protestante

do trabalho como atividade, em s~, redentora, analisada no

estudo clássico de Max Weber (1967).

Os pobres foram erigidos em categoria sociológica como

''os trabalhadores'' e o foco voltou-se para a ''razào prática''

reificada e nào tomada, ela mesma, como uma forma de

simbolizaçao, como tao bem apontou Marshall Sahlins (1979)

que os levava à (in)satisfaçào de suas necessidades. Em sua

análise dos discursos sobre os pobres no Brasil, elaborados

desde a virada do século XX, Licia Valladares (1991) mostrou .~ ,, '

como, na medida em que a explicaçào da pobreza social passou

a ser posta no sistema e nâo mais no individuo, os pobres

deixar-am de ser os "vadios", par-a se tornarem os

"desempregados" ou "subempregados", "marginais". Quando, na

cr-itica ao dualismo e à idéia de marginalidade, as cii?ncias

sociais dos anos 70, passaram identificar qualquer

Page 43: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

atividade económic:a como trabalho, sem distinçáo entre o

mercado formal e informal, ambos considerados como parte da

divisao social de trabalho, desfez-se a oposiçao "pobre"

(antes, o "marginal") versus "trabalhador", com a

consequente identificaçao destes dois termos. Os pobres,

categoria estigmatizada como "classe perigosa" pelos grupos

dominantes, passaram a ser definidos e identificados nas

ci~ncias sociais como os ''trabalhadores''.

A partir dos anos 70, esta identificaçao foi reforçada

pela per-cepçao dos pobres enquanto sujei tos poli. tic•s. fà,

pobreza como problema social levou a uma reflexào critica ~~

sociedade e, nesta per-spectiva, os pobres foram pensados

como os agentes da transformaçáo social, a partir da noçao

de classe. Identificados com "os trabalhadores", os pobres

passaram a constituir a "classe trabalhadora", sendo, entào,

definidos fundamentalmente por sua forma de inserçao na

produçào. O trabalho, concebido como o eixo de definiçao

social dos sujeitos, constituiu a principal categoria

através da qual foram pensados os pobres nas ciências

sociais brasileiras nos anos 70. 8

8 A preocupaçáo com os pobres enquanto sujeitos políticos estendeu-se aos anos 80 com a ênfase nos movimentos sociais que surgiram nesta década, deslocando-se das fábricas para os locais de moradia. O interesse surgiu diante da emergé'ncia de novos atores politicos, cuJa açào nào tem mais como substrato apenas a inserçáo na produção, mas o chamado mundo da reproduçao. Ver o artigo de Eunice Durham (1984b).

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I

1.

Page 44: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O trabalho tornou-se, assim, uma categoria essencial de

análise no Brasil que se modernizava, depois do boom

industrial dos anos 60. Para as ciências sociais

brasileiras, nos anos 70, a preocupaçào fundamental era o

projeto de democratizaçào do país, sintetizado no seu acesso

modernidade. Os pobres urbanos eram, entao, os

trabalhadores deste país que se modernizava.

Dentro do mesmo paradigma, foi também a referência ao

trabalho que legitimou a volta do interesse pela temática

das relaçbes familiares nos anos 70. Seguindo a ótica da

produçao, a família tornou-se objeto de estudo a partir da

análise de sua funcionalidade para o capital, como unidade

de reproduçào da força de trabalho.<;> De acordo com a mesma

tendência, a análise da força de trabalho feminina, a partir

da posiçào da mulher na sociedade de classes, introduziu o

tema da mulher nas ciências sociais. "'-':• Os estudos sobre

mulher e família, entretanto, mostrando as diferentes formas

de inserçào de todos os membros da família no mercado de

trabalho, contribuiu ao mesmo tempo para ampliar a noçao de

"trabalhador", articulando-a aos papéis familiares e

introduzindo a noçào de divisao sexual do tr-abalho (Pena,

9 Ver a oportuna critica de Eunice Durham (1980) à ótica da produçao. 10 Ver os trabalhos pioneiro> dP Maria Moraes (1976) e Heleieth Saffiotti (1976) como casos exemplares. Para uma critica da abordagem marxista, ypr o artigo de Verena Stolcke (1980). Valéria Pena (1980a) P meu trabalho anterior (Sarti, 1985b) fazPm, entre outros, a resenha desta literatura.

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I

Page 45: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

1980a e 1981, Hirata e Humphrey, 1983, Sarti, 1985b). Foi

neste contexto que se desenvolveu nas c:.ié'nc.ias sociais a

reflexào sobre a família entre os pobres.

A tendência a pensar os pobres .:~ parti r da produçao

revel ou a concepçào do home>m como homo economi cus, própria

de uma perspectiva sociológica, de inspiraçáo marxista. Os

pobres, nesta perspectiva, foram identificados

essencialmente como destitu.idos de meios materiais,

vendedores de força de trabalho, aqueles para quem o

problema de sua se r-esume sobrevivência

mater-ial, portadores iner-tes de uma ''razào prática" que

explicava seus atos: corporificando a carência material, I !o

foram mecanicamente destituídos de recursos simbólicos (como

se ti opulência no mundo capitalista cor-respondesse r~que:za

simbólica). I I

A 1 óg i c a capitalista, enquanto razào prática,

entretanto, nao esgota a análise dos trabalhadores pobres,

mesmo em suas relaçbes de trabalho. Como argumentarei

adiante, o mundo do trabalho no Brasil constituiu-se dentro

de um universo social onde as relaçbes capitalistas se

entrecruzam com os traços escravistas e clientelistas de

nossa formaçáo histórica. Esta característica do trabalho no

8r03.sil reflete-se na identidade entr-e pobre e trabalhador,

reconhecida pela literatura. o que esta literatur-a

pr-odutivista nao diz é que esta identidade, na qual se

reconhecem os trabalhadores 1 implica que sua concepçao do

Page 46: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

trabalho envolve referências di versas das que constituem a

lógica mercantil do mundo capitalista.

Os pobres foram pensados, nessa perspectiva

produtivista, a parti~ de uma vis~o instrumental na qual no

entanto, eles própr-ios na o se reconhecem, o que foi

considerado marca de sua ''alienaç~o'' ou ''falsa consci~ncia''.

Em outras palavras, os pobres for-am pensados como se sua

identidade social tosse ou devesse ser construída

exclusivamente, ou em última instância, a partir de sua

determinaçao de classe, ou, de um outro ponto de vista, como

se suas açbes fossem ou devessem ser motivadas pelo

interesse em satisfazer suas necessidades materiais, uma vez

que eles for-am definidos por esta car-ência básica.

Embora sinteses corr-am sempre o risco de borr-ar

diferenças importantes, eu incluiria nesta cor-rente

produtivista, de um lado, a já mencionada tendªncia a pensar

os pobres predominantemente em sua relaçào com o trabalho,

numa r-eduçao que, além de fazer do trabalho o tema mais

"legitimo" de estudo sobr-e os pobres, torna a força de

trabalho o instrumento, por excelência, de identiticaçào do

pobre como sujeito social De outro lado, a ótica da

produçao está presente, ainda, em pesquisas sobre a familia

trabalhador-a, náo apenas nas que a pensaram enquanto

"reproduç.3.o da força dE> tr.;~.balho", l.l. m.;~.s também naquE> 1 as

11 O trab;dho dP Ana Maria Qui~oga Fausto Neto (1982) é E'~C'mpl~r dessa 1 in h a.

11

I! I I

Page 47: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

que analisaram partir de suas "estratégias de

sobrevivência". Estas acabaram também reduz .indo a fam.ilia a

um "arranjo" para a sobrevivência mater-ial 1 concebendo a

fam.ilia como uma unidade de consumo, o que remete ao

processo de produçao num sentido mais amplo.

As pE?squisas sobre "estratégias de sobr-evivência"

surgiram em fins dos anos 70, influenciadas pela critica de

Eunice Dur-ham (1980) à abordagem mar~ista que tendia a

conceber a família como instância ideológica, mera

reprodutora de relaçbes sociais de dominaçào, sobr-etudo

através de sua funçao de socializaçào. Ainda que tenham

representado um importante avanço em relaçào às análises

anteriores, no sentido de tratar a familia como uma esfera

social que tem dinâmica própria e nao apenas "traduz"

mecanismos sociais que lhe sao externos, conforme assinalou

Valéria Pena (1980b), as pesquisas que analisaram a família

a partir de suas ''estratégias de sobrevivência'' continuaram

situando-se dentro do paradigma da produçao, entendida como

processo amplo, determinante em última instância, enquanto a

dimensao simbólica, incorporada à análise, continuou tendo

um estatuto teórico subordinado, mantendo a perspectiva de

uma funcionalidade utilitária para a familia. 1 ~

12 Os trabalhos de Elisabeth Bilac (1978) e Carmen C. Macedo (1979) ilustram os avanços dessa perspectiva, ao dar autonomia teórica à questao da família, deo;crevendo com originalidade o modo de vida das famílias trabalhadoras, mas mantendo-se dentro de uma lógica da razao prática onde a família tem fundamentalmente um papel instrumental de "sobrevivência".

40

Page 48: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Licia Valladares (1991) analisou o discurso (médico-

higienista, juridico-pol.itico) sobre o pobre que se elabora

na virada do século XX, com base na contraposiçáo entre

"trabalhador" "vadio". o pobre é identificado com o

''vadio'' e esta categoria remete justamente ao mundo do nào-

trabalho: qu&>m nào trabalhasse em fábrica ou oficinas de

artesaos ou nos serviços públicos, enfim, no mercado de

trabalho formal, era "vadio". o pobre ou "vadio" era

precisamente aquelt:? que nào se havia integrado ao

assalariamento, a ordem industrial que começava a se

instituir. Da m&>sma forma, nos anos 50 e 60, a partir de um

novo discurso, o do cientista social, esta contraposiçào se

fará em termos

"subempregados":

"Central do sistema de indivíduos (Valladares,

de "trabalhadores" X "desempregados"

era a discussào absorver parcial enquanto força

1991, p. 98)

sobre a capacidade ou integralmente os

de trabalho."

A pobreza d&>ixava, assim, de ser vista em termos

morals, como prova de uma natureza ruim de sujeitos que náo

queriam trabalhar; a realidade do pais, a partir dos anos

50, er-a a de um crescimento ur-bano onde a expansao do

emprego se mostrava insuficiente para absorver sua

populaçao, sobretudo em face da intensa migr-açao. Ninguém

mais deixava de trabalhar, por vontade própria. O sistema

4.1

Page 49: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

produtivo é que era incapaz de absorver a populaçao:

''passou-se a considerar a pobreza fenômeno de natureza estrutural Que esfera individual'' (Valladares, 1991,

enquanto escapava p. 98).

um da

"Vadios", "favelados", "marginais", "subempregados",

''populaçio de baixa renda'' e ''morador da periferia'' sao as

muita~ designaçbes dos pobres, acordo com as

transformaçbes ocorridas no processo produtivo e na dinâmica

da urbanizaçào e da expans.3o do mercado de trabalho urbano

do pais. A mudança fundamental dá-se, como observou Licia

Valladares, quando se introduz a palavra trabalhador para

denominar aqueles que exercem atividades de natureza

intermitente e esporádica. A economia urbana nào absorve

todos em trabalhos formais, nao dá emprego, mas propicia

trabalho e o "trabalho informal" é também parte da divisao

social do trabalho. Acabaram-se os ''marginais''.

Uma linha recente de pesquisas desenvolveu-se no final

da década de 80, a chamada "década perdida", buscando

analisar os efeitos da pauperizaçao que se instaurou nao

apenas nos lugares onde esteve sempre presente, mas nos

pólos mais dinâmicos da economia brasileira, como é o caso

da Regiào Metropolitana de sao Paulo, como efeito da

recessào do inicio dos anos 80. Ressaltando a importância da

familia como lugar- onde "se combinam e se socializam" os

42

Page 50: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

efeitos da pobreza (Lopes e Gottschalk, 1990) ' essa

tend~ncia centra suas análises na relaçào entre pobreza e

familia. Por ma1s que tenham sido discutidos os limites da

renda como critério exclusivo para se determinar os níveis

de pobreza, a delimitaçao da pobreza permanece uma questào

relativa à sobreviv~ncia material, definida a partir de

dados sócio-econômicos, e o eixo da análise volta-se para os

arranjos familiares (da ''unidade doméstica'' necessariamente,

neste tipo de análise) feitos para responder às adversidades

do mercado de trabalho nas diferentes conjunturas

econômicas. Estes trabalhos, por considerarem uma definiçao

da pobreza a partir de uma lógica econômica, parecem deixar

escapar outras questbes que emergiram nesta década,

tornando-a nào tao "perdida", como argumentei no capitulo

anterior, se outros referenciais que náo as "linhas de

pobreza", forem considerados, fazendo pobreza uma

categoria menos estanque e a visáo desta década menos

apocal.iptica.

A pobreza é uma categoria relativa. Qualquer tentativa

de confiná-la a um ún1co eixo de classificaçáo~ ou a um

único registro, reduz seu significado social e simbólico.

Apesar das conhecidas criticas ao componente reificador da

noç~o de ''cultura da pobreza'' de Oscar Lewis, cabe lembrar a

importância de sua adverténcia de que

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Page 51: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

''la cultura de la pobreza en las naciones modernas no es sólo una cuestión de privaciones econ6micas, de desorganización o carencia de algo. Es también algo positivo y ofrece algunas recompensas sin las cuales los pobres dificilmente podrian sobrevivir." (Lewis, 1975, p. XLV-XLVI).

A pobrezii tem, portanto, uma dimensào social e

simbólica que define os ''pobres''. Dissociando-se da carênciii

material o critério exclusivo pelo qual ela se delimita, é

possivel defini-la por eixos distintos, como pretendo

demonstrar.

O paradigma da cultura

Uma outra concepçâo dos pobres urbanos privilegiou a

cultura enquanto componente simbólico da açao humana,

inclusive do trabalho, visto numa outru perspectiva, nao

mais como c.J.tegoria exclusiva determinante do ser social.

Desenvolveu-se principalmente através de análises

etnográficas, destacando a existência de um modo de vida (ou

práticas) e de representaçóes próprias das camadas

populares. Essa tendência, produzida nos marcos da

antropologia, cor-respondeu a uma valorizaç~o da diversidade

cultural, pressupondo a unidade entre açao e simbolizaçáo

humanas. Contrapunha-se às análises que, utilizando-si? do

conceito de ideologia, criavam uma oposiç~o entre práticas

f.l.4

Page 52: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sociais e seus iundamentos simbólicos, gerando noçó~s como

''ialsa consciência'' ou ''alienaçào''. 13 Os temas privilegiados

for rim trln to o cotidirlno, o trrlbalho, a familirl, a

sexualidade, as relaçbes de ginero, o lazer, quanto o poder,

a viol~ncia ou a experi~ncia politica. 14 Essa 1 inha de

pesquisas situou-se como uma alternativa a essa literatura

obcecada pelo diagnóstico, preocupada em ''medir'' se o pobre

é "alienado" ou "consciente", como bem ressaltou Alba Zaluar

(1985).

PodE>-sE? dizE'r que afirmaçào de uma diversidade

cultural, cujo fundamento na o está exclusivamente na

determinaçào de classe, polemizou, entao, com duas

vertentes: a que ressaltava a "integraçào" dos pobres,

"diagnosticada" na medida em que estes operavam com as

categorias da ideologia capitalista dominante, de onde se

inieria a "triunfo da ideologia burguesa". 1 i!l E, ainda, a

segunda vertente da obsessao pelo diagnóstico sintetizada no

13 Ver a crítica de Eunice Durham (1984a) às implicaçbes do uso do conceito de ideologia, sobretudo em dois aspectos que interessam a este trabalho criticar: o pressuposto da determinaçao do econômico e a oposiçao entre práticas e representaçOes. 14 Tendo mais uma vez presente a simpliiicaçáo implicita em sinteses, que desconsideram a diversidade existente sob out~os te~mos de comparaçi:io, podemos ag~upar nessa tendência a privilegiar o componente simbólico da açao humana~ contrapondo-se à ótica da produção, os seguintes trabalhos sobre os pobres urbanos: Salem (1981), Lopes (s/d), Montes (1983), Maqnani (1984), Caldeira (1984), Zaluar (1985), Sarti (1985,.), Duarte (1986) e Dur-ham (1984a e 1988), entre outros. As dife~enças entre estes trabalhos, relevantes para este estudo, serao comentadas ao lonqo da análise. 15 t o caso do trabalho de Janice Perlman (1977) que, por sua vez, se desenvolve em contraposiçao à teol"ia da ''marginalidade".

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Page 53: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

pressuposto de uma homogeneidade necessária dos

trabalhadores, fundamento de uma ''consciincia de classe'' ou,

pelo menos, de uma noçào mais universalizante de direitos (e

a surpresa diante da heterogeneidade encontrada! ),16 Nestes

dois casos, como é a impressào em parte significativa da

literatura sobre os pobres, parece que está impl i c i ta a

idéia de que os pobres pensam "errado", porque na o

compartilham com o pesquisador a visào critica da sociedade.

Cabe aqu1 lembrar os comentários de Maria Lúcia Montes

(1981) sobre a critica ao discurso populista como produtor

de um ''efeito de manipulaç.3o'':

esta

''Nào por acaso a idéia de manipulaçào vai de par com uma concepçào da 'consciência· (do ouvinte, naturalmente), que, ignorante, quando nao alienada ou mistificada, por graus sucessivos, poderá a um certo momento alcançar sua forma adequada, como consciªncia de classe' por exemplo, que atinge 'verdadeiramente' o real, coincidindo com esse ·real'. 'Real' que, na verdade, frequentemente nao tem outra substância senao a realidade de uma teoria, enunciada por aquele que 'sabe' à revelia daquele que nao­sabe' embora em seu beneficio." (p. 62)

Ao se pensar a diversidade cultural como alternativa a

postura teórica, a dificuldade está no clássico

16 O trabalho de Celso Frederico (1979) é e~emplar dessa tendéncia. Ver as criticas de Ec!er Sader e M. Célia Paoli (1986). Alba Zaluar (1985) mostrou, em sua revisáo do que dizem as teorias sociais sobre os pobres, como o processo de construçáo de atores politicos entre os trabalhadores urbanos é visto pela literatura, a partir de uma comparaçao negativ~ com a classe organizada.

Page 54: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

p~oblema dos estudos ant~opológicos em sociedades complexas,

ou seja, o de situa~ a pa~ticula~idade do fenômeno estudado

com ~e laçao ao todo mais amplo do qual faz pa~te. Há o

conhecido Já tào comentado ~isca se conceber

autonomamente a cul tu~a, ou seja, deixando de considerar

que, para se entender o significado mais amplo dos fenómenos

que expressam os valores, normas e idéias que estruturam e

dào sentido às expe~iências vividas pelos homens, nas

sociedades chamadas complexas, é necessá~io vê-los em sua

relaçao com as estrutu~as mais amplas de dominaçáo que

constituem esta sociedade, buscando as nuances, os matizes e

as especificidades que dào significado a esta relaçao, sem

reduzi-la à mera ~eproduçào ou t~ansformaçáo da dominaçào.

Em sua ~evisào dos conceitos de cultu~a e ideologia,

Maria LUcia Montes (1983) sintetiza os dois lados da questáo

quando faz a critica à abo~dagem de inspiraçào marxista que

reduz os fenômenos culturais à sua dimensao de instrumentos

da dominaçào, à sua funcionalidade pa~a o poder, e ao mesmo

tempo aponta os limites de um certo tipo de abo~dagem

antropológica, que, embora analise os fenômenos culturais em

sua dimensao de ordem simbólica, negligencia a dimensào

política destes fenômenos, autonomizando-os e esquecendo-se

que, em se tratando de "cultura dos pobres", estes sao pa~te

da sociedade mais ampla onde, precisamente, se inco~por.3m

como "pobres",

47

Page 55: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Uns e outros

Se os pob~es nào sào o homo econom.icus típico do

sistema capitalista e tampouco formam uma cultu~a

inteir-amente autônoma, no sentido de que tem uma

especificidade, uma diversidade, e sáo, ao mesmo tempo,

parte subo~dinada um todo mais amplo, mantém-se a

indagaçao sobr-e como v i vem e pensam os pobr-es. O pr-imei r-o

passo par-a buscar- essa r-esposta ser-á a tentativa de quebr-ar-

a polar-izaçào "nós" e "eles" e pensar- que se "nós" e

''eles'' oper-amos com as mesmas categorias, isso está muito

longe de significar- apenas o tr-iunfo da ideologia burguesa.

Contr-apo~ uma "cultur-a autônoma" à "cultura integrada" (e,

po~tanto, "alienada") é virar- o ar-gumento pelo avesso. A

afir-maçao da diversidade cultural implica a análise política

do jogo das r e 1 açc:Jes de força, porque neste jogo nào se é,

po~ definiçào, nem autônomo, nem dominado (ou integ~ado) em

termos absolutos.~ 7

A visào dos pobr-es como homo econom.icus ou, mesmo, como

por-tadores de uma cultur-a autônoma repr-oduz na análise a

polar-idade socialmente instituida entr-e ''nós'' e ''eles''. Há o

risco de que essa lógica de difer-enciaçáo, presente na visào

17 Análoga à suposiçáo de uma pr-oduçáo cultu~al "autônom,;;" é a do "homem como sujeito da história", for-mulaçbes que> partem de eixos teór-icos distintos- o da cultura e o da ideologia- mas que se equivalem, na sua p~etensao (onipotente ou ing~nua?) de afir-mar a autonomia e o cont~ole

dos sujeitos sobre a produçao de sua vida.

t.I.E~

Page 56: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

das ci@ncias sociais sobre os pobres, pensados como grupo

subalterno que se diferencia dos dominantes, seja porque

foram exclusivamente vistos como trabalhadores "classe"

portadora de um projeto de transformaçào seja porque

foram vistos como parte de um outro universo cultural

"autônomos" acabe se revertendo no avesso das

representaçOes das elites brasileiras que ainda definem os

pobres como a "classe perigosa", de onde emana todo o

mal social (a sujeira, a doença o cr-ime) Estas

nitidamente constr-óem o "mau pobr-e"j na outra versào, há a

idealizaçào do "bom pobre", como um "bom selvagem" nào

conspur-cado por um univer-so cultural que nao é reconhecido

como seu.

As análises de José M. de Carvalho (1987) e Sidney

Chalhoub (1986) mostram como a visào dos pobres como a

"classe perigosa" manifestou-se no Bre~sil, através dos

legisladores, revelando que, na virada do século, ser pobre

tornava o individuo automaticamente perigoso à sociedade. A

pesquisa de A. Flávio Pierucci (1987) sobre as bases da

"nova direita" mostra como esta vis.3.o ainda repercute

vivamente no imaginário das camadas médias e altas da cidade

de Sào Paulo,

particularmente

que

a

identifica nos

violência, a

pobres o mal social,

degradaçào moral a

promiscuidade sexual. É uma oposiçáo análoga àquela entre

t~abalhado~ e vadio, típica da virada do século, que subjaz

à atitude tao habitual do policial que p~ende o sujeito sem

Page 57: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

cart&ira de trabalho, com toda a violência implicita neste

ato.

Houve uma espécie de círculo vicioso na ~magem dos

pobres nas ciências soc~a~s: ou foram desqualificados

(alienados, massa amorfa) ou glorificados, numa tentativa

algo ingênua de contrapor~e à sua identificaçao, por parte

das elites, com a "classe perigosa"; assim, o pobre (tal

como o negro) passou a ser detentor de uma virtuosidade, um

saber ou uma sensualidade que escapavam aos outros humanos,

o que acaba redundando num preconceito social (ou racial) às

avessas.

Em poucas palavras, os estudos sobre pobreza

constituíram-se como crítica da sociedade brasileira. Como

consequência, a visào do pobre que se construiu está numa

relaçào simétrica e inversa à visao da sociedade brasileira.

Num movimento pendular, o que define o "bom pobre" é .a má

consci~ncia d.a sociedade internalizada pelos pesquisadores;

inversamente, o "mau pobre" (alienado~) é produto da boa

consciência (crítica!) de si.

Se os pobres sao parte de um sistema mais amplo, o

processo de diferenciaçao social torna-se l..lffi problema em si.

A polarizaçào passa a ser pensada como uma lógica social à

qual "eles", como "nós", estamos expostos; dependendo da

perspectiva de quem fala, define-se quem sao ''nós'' e ''eles''.

Assim, a lógica da identificaçào e da diferenciaçao torna-se

'

Page 58: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

o problema a ser discutido, na medida em que constitui o

própr-io fundamento do p~ocesso de constr-uçao de identidades

sociais, concebido em te~mos ~elacionais, como a~gumenta~ei

no capítulo 5.

Fica a pergunta que p~ecisa ser constantemente ~efeita:

quem é o outr-o de quem? Afinal, quem sao "uns" e "outr-os"?

Valores tradicionais

Ar-ticulando-se o lugar- dos pobr-es à totalidade da qual

fazem parte, sur-gem outros problemas diretamente

r-elacionados a esta pesquisa. Refir-o-me em particular à

questao dos valores tradicionais a eles associados, que foi

analisada na literatura sobretudo como uma her-ança rur-al.~e

Em oposiçao a esta idéia, nas ci~ncias sociais brasileir-as

dos anos 70, tornou-se difícil dizer- que o universo de

valores dos pobres urbanos se fundamenta em elementos

tradicionais, diante do abrangente projeto de modernizaçao

em cur-so no pais, no qual embarcaram triunfalistas as

ciências sociais e onde os pobres urbanos enquanto "os

18 Essas idéias for~m elaboradas inicialmente para apresentaçâo na XVII Reuniáo Anual da ANPOCS, em Caxambu, em outubro de 1993, resultando no texto in ti tu lado "O primado do mundo da casa para os pobr-es", discutido no Seminário Temático "A constr-uçáo do pablico e do privado na familia'', coor-denado por Par-ry Scott.

Page 59: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

trabalhadores'', ''a classe operária'' eram ponta de lança,

Aos valores tradicionais associavam-se idéias as de

fatt~lismo, passividade e conformismo, cuja expressao mais

clara, na literatura sobre os pobres, estava na noçao de

"culturt~ da pobreza" de Oscar Lewis (1975). Pela já tao

comentada reificaçao contida nesta concepçào dos sistemas

cu 1 turais, onde os v a 1 ores se apresentam carregados de um

substrato inerte e permt~nente, as ci~ncias sociais navegavam

em sentido oposto, buscando explicar a dinâmica social, onde

pudessem vislumbrar o potencial político dos pobres.

Nos anos 50 e 60 ,' acumu 1 ou-se mui ta e r i c a informaçào

etnográfica sobre os pobres, suas formas de organizaçao

social e seus valores (tradicionais) através dos chamados

estudos de comunidade, que analisavam pequenos núcleos de

populaçào, tomados como totalidades isoladas, às quais foram

aplicados métodos de investigaçào etnográfica clássicos.~~ o

problema modificou-se quando se tratou de analisar as

populaçbes pobres integrando-as à "sociedade", aquelas que

povoavam as cidades, sobretudo através da migraçao, como

parte do processo ma~s amplo de expansào econômica do pais a

partir dos anos 50, marcado pelas novas oportunid.;odes

propiciadas pela industrializaç.3.o e a urbanizaçao.

19 A critica ,;; estes estudos é conhecida. Como sintetizou Antônio Cândido (1987), "em seu corte descritivo mais frequente", parecem "comprometer no pesquisador o senso dos problemas" (p. 20).

52

I '

Page 60: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Uma das preocupaçbes das ciências sociais dos anos 60 e

70 foi mostrar a exploraçào a que a já consolidada expansao

capitalista, nos moldes em que se deu no Brasil, havia

submetido as populaçoes trabalhadoras. Esta pre%upaçao

relacionava-se com o projeto de democratizaçâo da sociedade

e do Estado no Brasil, voltado para as condi çbes de

integraçao desta sociedade modernidade, expressa no

desenvolvimento urbano-industrial.

O livro de Janice Perlman I 1977) é exemplar desta

perspectiva, contribuindo para destruir o mito da

marginalidade ao permitir pensar os pobres como parte

constituinte e necessár-ia deste processo de expansào

econômica, na forma como aconteceu no pais e, ao mesmo

tempo, dando subsidias para pensar o lugar dos pobres - nao

os "marginais", mas os "integr-ados" e necessários ao padrao

de acu_mulaçào que se estabelecia no Brasil.~<:,

Os pad r-óes de comportamento urbanos explicavam as

práticas e r-epr-esentaçbes dos pobr-es, que povoavam

principalmente as favelas. Na tem ta ti v a de deslocar a

20 Os comentários de Fernando H. Cardoso no prefácio ao livro de Janic~ Perlman sintetizam as preocupaçbes que marcaram as ciências sociais dos anos 70, no que se refere aos pobres. Tratava-se de "mostrar que o favelado nao é politic<o e economicamente marginal, mas sim um ser socialmente reprimido e explorado" (p. 14). A superaçao da teoria da marginalidade associa-se às críticas pioneiras feitas na década. de 70 por Maria Célia Paoli (1974) e Lú.cio Kowarick (1977). Klaas Woortmann (1987), tendo já como pressuposta a superaçao deste paradigma sociológico, discute, entretanto, a questao da auto­lme~gem do pobre como "marginal", "aqueles com quem "ninguém se importa''', o que chama de "marginalidade subjetiva''.

I

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Page 61: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

explicaçào da dicotomia rural-urbano e na critic:!3 ao

dualismo dos ''dois Brasis'', os traços culturais que marcavam

os pobres eram interpretados como retraduçoes, respostas

"adeqJ.Jadas" exploraçao a que se submetiam enquanto

trabalhadores na nova ordem urbano-capitalista, tendo como

eixo de explicaçáo a relaçao capital-trabalho. Criticava-se

o ranço evolucionista impl.icito na idéia de uma

"sobrevivência" de um passado rural, argumentando que os

valores tradicionais náo encontravam suporte no novo

ambiente urbano. O Brasil nao era dual, mas desigualmente

integrado ao capitalismo.21 Nesta perspectiva, Ruth Cardoso

(1978) declarava:

"Recusamos 1 portanto, qua 1 quer pretensáo de identificar sobrevivências do mundo r-ur-al entr-e esta populaçào de urbanizaçào r-ecente. Valor-es e nor-mas de compor-tamento nào se perpetuam senáo pela sua pr-ópr-ia renovaçáo". (p. 39)

Estava impl.icito neste pr-ojeto modernizante o desejo de

livrar o pa.is dos seus tr-aços arcaicos, pensados como marcas

inelutáveis do conservadorismo e do autoritarismo de nossas

instituiçbes; com isso, toda a expectativa de mudança, no

sentido da democratizaçáo das r-elaçbes sociais, passava pela

necessária integraçao ao pólo moderno do pa.is. O ideal

21 A cri ti c a à razão dualista de Fr-ancisco de Oliveira. (1977) marcou a r-eflexáo desta época.

Page 62: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

modernizante que marca as ciªncias sociais brasileiras, na

recusa a tomar como problema a análise dos traços ''arcaicos''

que- marcam nosso sistema simbólico, remete-nos à indagaçào

de Rober-to Da Matta (1978)

"Ser-emos um povo contraditório, incapaz de reconhecer nossos niveis de irracionalidade; ou uma sociedade que privilegia alguns dos seus aspectos e os toma como veículos para a construçao de sua auto-r-epresentaçào?" ( p. 143)

Estudos mais recentes que incorporam e ressaltam os

valores tradicionais como marcas dos pobres urbanos vao

além do eixo explicativo da relaçào capital-trabalho. Ao

contrário de Ruth Cardoso (1978), Alba Zaluar (1985)

acredita que a ética do trabal~o, para os trabalhadores

urbanos que estuda, nao advém do valor moral da atividade em

si, mas do papel de provedor da familia que tem o

tr-abalhador, configurando, portanto,

provedor''. Em seguida, argumenta que o "ethos" masculino, a ~ ----~--

moral do homem,

''torna qualquer ferida na dignidade do trabalhador dificil de ser aceita'' e ''clama pela democratizaçào das relaçbes de trabalho'' (p. 145)

A sugestiva formulaçao de Alba Zaluar da "ética do

provedor'' dos trabalhadores urbanos aponta para importantes

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Page 63: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

implicações na sua concepçào das ~elaçbes de trabalho, como

discutirei adiante. Embora nào use esses termos, a autora

mostra que essas relaçbes têm como r-eferência um código

hier-árquico e relaciona}, que, no entanto, nao se coaduna

com a idéia de "democratizaçào das r-elaçbes de tr-abalho",

pelo menos nào sem a explicitaçào das difer-enças entre a

concepçao hier-ár-quica implícita na "mor-al de homem" e os

valor-es igualitários pr-essupostos na noçáo

''democr-atizaçào das relaçbes de trabalho''.

Luis Fernando Duar-te I 19861 explica os valor-es

hier-ár-quicos dos pobr-es em termos da oposiçào entre

individualismo-hier-ar-quia, proposta na análise de Louis

Dumont. Por- mais ricas que possam ser- as possibilidades

contidas nas formulaçbes de Louis Dumont, a afir-maçào do

padrao cultur-al fundamentalmente hier-ár-quico dos pobr-es

urbanos a f i r-maçào com a qua 1 con cardo nao se sustenta

apenas por sua proposta teórica, sem uma r-eferência à nossa

complexa for-maça.o histórica.

O trabalho de Eunice Durham 119781 contribui par-a

analisar esta questao. A autora mostrou como a migr-açào,

enquanto um processo de integr-açào dos trabalhador-es rurais

ao sistema urbano-industrial, se deu pela mobilizaçào de

recur-sos pr-ovenientes dos grupos de r-el.;~çcies pr-imárias do

migrante, particular-mente o grupo doméstico e a família,

esta última sendo a instituiçao que se propbe a inter-pr-etar

Page 64: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

e t~aduzi~ o mundo urbano para o migrante recém-chegado.;;:::;:;:

Ao mesmo tempo, esta populaçao analisada po~ Eunice Durham,

cuja possibilidade de mig~a~ é dada pela ~ede família~ e que

chega a Sâo Paulo t~azendo em sua bagagem t~aços rurais,

t~adicionais, patriarcais, todos esses "ais" ta o

"inadequados" ao gosto das modernas cif:ncias sociais da

época, vem para integrar--se ao Bras i 1 moder-no, CLij a síntese

perfeita se encontra na cidade de Sâo Paulo. Como as

ciências sociais, o migrante queria ser moder-no,

alimentando-se com a idéia de mi?lhor.ar de v.ida que motivou

seu árduo deslocamento.

No entrecruzamento de um processo de determinaçbes

muito mais amplas, mas viabilizado pela rede familiar, deu-

se a vinda e o estabelecimento dos pobres/migrantes na

cidade de sao Paulo. Neste processo de muitas faces, que

escapa a sE'U controle, os pobres sao expulsos de seu lugar

de origem, conseguem se deslocar graças à rede de obrigaçbes

com seus pares, baseada num padr-ào tradicional dE' relaçbes,

mas se alimentam da promessa de felicidade no moderno mundo

urbano. Enredados nos fios que os unem a seus iguais,

desejam também "subir na vida", ancorando-se no valor

individualista da mobilidade social, virtual idade dos

sistemas capitalistas. Assim, funda-se a ambiguidade que

22 O trabalho de Maria Cristina S. Costa (1993), cuja pesquisa foi feita em fins dos anos 80, confir-ma a análise de Eunice Du~ham sobre a importância da rede de par-entesco para a integração no meio urbano.

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Page 65: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

marca os pobres urbanos, revelando uma identidad~ social

híbrida, mesclada em sistemas de valores distintos, que nao

foram por eles elaborados, mas que sao próprios da

complexidade do meio urbano onde se integrar-am como

"pobres".

A incorporaçào de novos padrbes de comportamento nao

está, assim, associada à negaçio dos padrbes tradicionais,

pela sua ressonã.ncia no meio ur-bano, onde continuam a ser

suporte de relaçbes soc1ais. Na tentativa de realizar seus

planos e satisfazer suas necessidades e aspiraçbes, os

pobres na cidade continuam recorrendo à r-ede de relaçoes

pessoais que se mantém atuantes no meio urbano. Nao sào

sobrevivências do mundo rural, mas parte estruturante das

relaçbes sociais também na cidade. Como demonstrou' Eunice

Durham ( 1978) ,

"Nào é per-sonalista, tradicionais ativamente de e impessoais,

por- ser- por-tador- de uma cultura nem por conservar padrbes de conduta que o migrante nào participa for-mas de associaçào especializadas de cunho reivindicativo.''

Os padr-bes que se "r-evo 1 vem em torno de r-elaçoes

pessoais" e que autora reluta em aceitar como

''tradicionais'', quando me parece que de fato cor-r-espondem a

padr-bes tradicionais de relaçbes sociais,

Page 66: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

''constituem, na verdade, o ~nico modo através do qual o migr<õ~nte consegue desviar para si alguns dos recursos existentes, dadas as características da ordem institucional vigente.'' (p. 221)

Embora o trabalho seja o instrumento de integraçào no

meio urbano, a migraçào a que sào lançados os pobres náo se

viabiliza, nem se sustenta enquanto processo social sem esta

rede de relaç6es que se estabelece entre os pobres, com base

na família e na localidade. A migração constitui, assim, um

processo privado no sentido de ser assegurada por um sistema

de lealdades pessoais e familiares.

Reduzindo o projeto de ascensào social do migrante a um

"projeto de> consumo", Eunice Durham (1978) atribui a

importância da família à sua posiçào como unidade de>

consumo, e>m contraposiçáo ao caráter individual da

participaçào no mercado de trabalho. Com ~sso, l_iJJJ_j,j;._a as

possibilidades contidas no traço fundamental que seu próprio

estudo revelou: a importância da famí 1 ia _par: a os ~FI~!:-~?

urbanos como componente estrutural de seu l __ U_Q_~r no mundo

social. A autora observa, sem,. contudo, atribuir a esta

obser-vaçáo o poder-

contido, que

explicativo 1 que me I

parece nela

"esta importância é tanto maior- porquanto não existem outras instituiç6es que realizem de modo eficaz esta mediaçào do individuo com a sociedade mais ampla." (Durham, 1978, p. 220)

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Page 67: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

As implicaçóes desta afi~maçao me~ecem ~eflexao. A

importância da família par-a os pobr-es está ~elacionada às

características de nossas instituiçbes públicas incapazes de

substituir as funçbes privadas da família, 2 "" Num país onde

os recursos de sob~evivências sào privados, dada a

precariedade de serviços públicos de educaçào, saúde,

ampar-o à velhice e à infância, somados

fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como

instrumentos de mediaçào entre o indivíduo e a sociedade,

enfim, diante da ausência de instituiçbes públicas eficazes,

como salientou Eunice Durham, o processo de adaptaçào ao

meio urbano e a vida cotidiana dos pob~es, inclusive dos

nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família.

Suas relaçbes fundam-se, portanto, num código de lealdades e

de obrigaçbes mútuas e reciprocas, próprio das ~elaçbes

familiares, que viabilizam e moldam seu modo de vida também

na cidade, fazendo da família e do código de ~eciprocidade

nela implícito um valor pa~a os pob~es.~4

23 Ess,; questáo foi retomada recentemente por Vera da Silva Telles (1992), afirmando que

''Mais do que apego a tradiçbes persistentes, a valorizaç~o

da familia soldada por suas hierarquias internas, traduz o fato mui to concreto dE> que a sobrevivência se ancor-a nos recur-sos pessoais e nas ener-gias morais que ela é capaz de mobilizar." (p. 320)

24 Na afirmaçao do caráter estrutural de aspectos ni:i.o-capitalistas da realidade brasileira, Marcos Lanna (1994) analisa as relaçbes de troca num município nor-destino (Rio Grande do No de), utilizando-se também da noçao de recipr-ocidade como um princípio estrutural.

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Page 68: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A família nao é apenas o elo afetivo mais forte dos

pobres, o núcleo da sua sobreviv~ncia material e espiritual,

o instrumento através do qual viabilizam seu modo dE? vida,

mas é o próprio substrato de sua identidade social. Em

poucas palavras, a família constitui uma questào ontológica

para os pobres. Sua importância nao é funcional, seu valor

nao é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade

de ser social e serve de parâmetro moral para sua explicaçào

do mundo, ---···

A análise rlesta pesquisa incide sobre a família e o

trabalho, temas caros aos que pensam a existência dos pobres

a parti r de suas condiçties materiais. A idéia de manter

esses temas e nao focalizar outros, nao tào diretamente

ligados à existência material, tem por objetivo mostrar que

é possível ver essas questties sobre outro prisma, porque

mesmo os níveis mais elementares das necessidades materiais

(a ''infra-estrutura'') sao estruturados dentro de uma

situaçao simbólica. Como argumentou Marshall Sahlins (1979),

a razào prática constitui ela mesma uma razào simbólica, mas

nao a única razào que move os homens, mesmo nas modernas

sociedades capitalistas.

A intençào deste trabalho é recolocar em outro eixo a

análise dos valores ''tradicionais'' dos pobres, considerando-

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os como componentes estruturais da ordem moral com a qual

representam o mundo social do qual fazem parte, no contexto ! :

Page 69: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

particular de um dos redutos mais modernos do país, a cidade

de S.3o Paulo, onde, portanto, se manifesta agudamente a

ambiguidade de uma sociedade onde convivem o ''moderno'' e o

".;~.rc.;~.ico".

Procurarei, ainda, dissociar do pensamento conservador

a abordagem que analisa os padrbes "tradicionais" da

sociedade brasileira, manifestos em seus diferentes

segmentos sociais. Esta associaçào, instituída no pensamento

soc::ial brasileiro, tem como contrapartida a dinâmica da

''modernizaçào'' como condiçào para a mudança social, deixando

de ver que este processo, assim concebido, pressupbe elites

modernizantes, ''iluminadas'', as que ''sabem'' e em nome deste

"saber" agem no suposto beneficio dos que nao "sabem",

reforçando os mecanismos excludentes na sociedade

brasileira.

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Page 70: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Capitulo 3

' A FAMILIA CDMD UNIVERSO MORAL

''Nunca um costume é indefensável, inferior e bastardo, para quem o segue.''

Luis da C~mara Cascudo

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63

Page 71: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Nos anos 60, um casa 1 recém-casado migrou de A 1 agoas

para Sào Paulo. Nos primeiros meses, como tantos, instalou-

se na casa do i r-mào do mar ido. Logo os dois conseguir-am

emprego, ele~ como mar-marista, pr-ofissao que e~er-ceu ao

longo desses anos como empregado ou fazendo b i c os por conta;

e ela como tecelà, profissào que abandonou quando nasceu a

primeira filha, voltando trabalhar, como cozinheira,

quando a filha mais velha pode cuidar do irmáo mais novo,

reproduzindo a traje;otória intermitente típica do trabalho

feminino remunerado. HoJe, com 51 anos, o pai já nào

tr-aba 1 h a mais regu 1 armente porque está doente. Tem cirrose

hepática. O casal tem sete filhos. Os dois homens sào os

menores e náo trabed ham. Todos os f i 1 hos estudam. A f i 1 ha

mais nova, com 18 anos, cuidava dos irmàos e do sobrinho,

filho de uma irmà solteira que saiu de casa, e fazia a maior

parte do trabalho doméstico, enquanto as outras irmàs

revezam com a má e os momentos de emprego e desemprego, até

que, estrategicamente, engravidou do namorado e teve que se

casar, indo morar com o marido na casa do sogro: ~

Se n2io Tosse assim_, eu nunca ia conseguir casar.

A filha mais velha casou-se como manda o figurino,

formou um n0cleo independente e teve duas filhas. A que já

tinha um filho saiu de casa e mora atualmente com o

64

Page 72: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

namorado, deixando o filho na casa da máe.

Segundo o relato da mae, confirmado pelas filhas, uma

das brigas familiares foi deflagrada pelo fato da filha ma~s

velha, ainda solteira, estar conversando com um rapaz no

portao. O pai começou a espancá-la, acusando-a de s&m-

vergonha, A ma e e as outras filhas, todas crescidds,

acudiram, segurando o pai e espancando-o até &i& se render.

Semelhantemente, em outra ocasiao, o pai pegou um facào

- o mesmo facáo com que as filhas viram tantas vezes sua màe

ameaçada e vs;oio na di reçáo de uma das f i 1 h as. A mae

interferiu e, junto com as filhas, conseguiu dominá-lo e

tirar-lhe o facáo, que passou para a mào das mulheres da

casa, simbolizando o momento de inversào na vida desta

família. Quem manda aqui agora somos nós, diz a m.3e. Com as

f i 1 h as já crescidas e traba 1 hando, na o prec;i samos mais dei e.

Atr.:~vés de uma aliança com as f i 1 has, a màe reverteu

sua posiçáo na família, destituindo o pai de seu lugar. Náo

aceitam mais seu dinheiro. Ele paga, no entanto, o que come.

A acei t.:~çào de sua presença na famí 1 ia, entre as mui tas

razOes - afinal ele está doente e elas cuidam dele - envolve

a exibiçáo cotidiana a seus próprios olhos de sua derrocada,

ou melhor, de sua desonra. 2 ~ Com o dinheiro que ganha com os

25 Como arqumt>ntou Julian resposta ofensiva nao E.>stá ofendido a presenciá-lo. honra" {p. 17).

Pitt-Rivers (1988), apE>nas no ato em si, "Senti r-sE> ofendi do,

nos códigos mas no fato

É' a pedra

de honra, a de obrigar o de toque da

Page 73: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

bicos que ainda consegue fazer-, ele continua bebendo até

cai~. A mae, com as filhas, apossou-se da casa, cujo terreno

o casal adquiriu quando o bair~o era ainda quase mato;

a~~umam e planejam ~eformas, com seus p~óp~ios recursos,

dispensando o pai. Diz a mae:

ELI lutei tanto, construi aqui lo, dei t.:.nto ... tijolinho por tiJolinho., e agora deix.:.r assim? N.3o .• é cov.:.rdi.:.. Eu vou lutar, eLI quero ver de nós do;zs quem pode mais.

Sonhos que nao se realizam

O significado da 1 uta que se travou dent~o desta

familia nao se esgota em dizer que se tratou de uma evidente

~evolta cont~a a auto~idade patriarcal. Se a explosao da

revolta cont~a a auto~idade desmedida do pai, na atitude de

entrentamento das mulheres nesta familia, reverteLl de fato

sua posiçào, o que se depreende da nova situaçao

estabelecida? As mulhe~es sào ou to~na~am-se "centrais" nas

tami 1 ias pobres? As mulheres sao ou tornaram-se "chefes-de-

familia''? Vamos devagar.

O episódio ~evela que o pai, ao longo da vida familiar,

abusou das prerrogativas de sua posiçáo de autoridade, sem

66

Page 74: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

cumprir com os deveres em relaçao à família que cor-respondem

a esta posiçáo. O dinheiro que ganhava nao era suficiente

para manter sua família e ele sempre bebeu. Diante das

frustraçoes e da viol?ncia de que foram objeto, as mulheres,

como esposa e filhas (assim como os filhos homens que

for-a deste episódio específico), r-ever-teram a estavam

situaçào familiar, respondendo com uma violí?ncia quase

sempr-e muda, que passou a fazer- parte da linguagem através

da qual a família se comunica, uma linguagem cir-cular e

reiterativa da própria violência.

As mulheres revoltaram-se contra uma autoridade

desmedida que tornou ilegítima a obediência. A "boa"

obediência, afinal, implica a "boa" autoridade, que, como

define Maria Lúcia Montes ( 1983) ' SE? caracteriza por

concentrar todos os seus valores positivos no "termo médio".

A revel ta deu-se dentro de um univer-so de valores em que a

quei~a se dirige à "má" autoridade que abusa de seus

direi tos e descuida de seus deveres. N.3.o se obedece a uma

autoridade que nao se reconhece como legítima. A autoridade

que abusa de suas prerrogativas ''se reproduz como qualidade

negativa ou gera seu complemento antagônico no pelo da

obedi~ncia", tornando-se "incapaz de se impor- pelo respeito

às virtudes necessár-ias que devem acompanhá-I a." (Montes,

1983, p. 334) Por este caminho, efetivamente redefiniu-se a

posiçéo das mulher~s naquela familia, desautor-izando o pai.

A autoridade pate~na perdeu sua força simbólica, incapaz de

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Page 75: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

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mobiliza~ os elementos morais necessários à obediência,

abalando a base de sustentaçào dos padrties patriarcais em

que se baseia a família pobre urbana. Mas há, ao mesmo

tempo, um ~essentimento, que denota expectativas frust~adas.

Nào precisam mais dele, mas tole~am sua presença

"desnecessária". Ou p~ecisam desta presença, mesmo que nào

seja como elas pensam que deveria ser?

Na resposta das mulheres desta família, vítimas de uma

viol'ªncia qua!:õe !:õempr"'e física, está a "desvalorizaçào" do

homE>m que> nào rE>spondeu às expectativas depositadas nele,

afi~mando sua capacidade de ''sobreviver'' sem elE>, à custa de

reitera~ uma impotência da qual ele nao consegue escapar.

Quais sào, entao, as expectativas da mulher, e do homem em

relaçào a si mesmo, que o homem pobre nào consegue cumprir?

Antonio Cândido (1987), em sua análise da "família

caipi~a" com seus valores tradicionais " padrbes

patriarcais, ass~m como em seu estudo sobre a família

b~asileira (Candido, 1951) ' argumenta que estes padrbes

pe~dem sentido com a urbanizaçào e modernizaçao do país. Nem

todas as análises indicam este caminho. Estudos recentes

sobre os pob~es urbanos mostram, ao contrário, a fo~ça

simbólica destes padrbes ainda hoje, reafi~mando a

auto~ idade masculina pelo papel central do homem como

mediaçao com o mundo externo, e f~agilizando socialmente a

família onde nào há um homem "provedor", de teto, alimento e

6f.)

Page 76: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

respeito.:z6

Quando suger-i uma entr-evista com um homem nascido no

Plaui, cr-iado pelos compadres do pai, desde que sua mae

arrumou outro amante e me 1 argou com esse casal que me

criou, ele nao só aceitou prontamente a sugestao, como me

convidou para um almoço:

Venha um prazE?r., vai encher

conversar, conversar é comigo mesmo. @

mas vem cE?do e de e5tómago vazio. Você o estômago é aqui na minha casa.

Ele teve 24 filhos, mas cr-iou apenas 11' os que

viver-am. É atualmente casado pela segunda vez com uma mulher-

trinta anos mais nova. Começamos a entrevista (gravada).

Ele, na vagareza de quem relata um grande feito, contava-nos

sua vida, e estava entusiasmadissimo por poder contá-1 a.

Naquele momento, seus gestos, a inflexao da sua voz, sua

postura corporal tinham uma altivez singular. Falava dos

dois prazeres de sua vida, dança e mulher:

Dançar, eu dançava muito ••. e mulher, 5abe como é que é, né?

26 A importância do homem como "provedor" da família, no sentido econOmico e mooa.l (de teto, alimento e respeito) aparece nos tril.b,dhos de Del mil. P. Neves (1984), luis Fernando D. DuartE' (1986), Alba Zaluar (1985), em meu trabalho anterior (Sarti, 1985a) e no de M, Cr-istina Costa (1993).

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Page 77: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Dizia que mulher é a maior graça que Deus pôs n.a terra,

orgulhoso de sua virilidade, reafirmada por sua disposJ.çdo

par~ trabalhar. Contava que dançava a noite inteira,

e de manha estava lá, ó, pronto para trabalhar.

Perder meu compromisso por Nunc.a.' Por caLJsa de cansaço? Eu era cansaço.

causa de farra? na o sabi .a o qt.Je

Relatava, com a precisao das datas que se atribuem aos

grandes fatos históricos, cada um dos trabalhos que fez

antes de chegar a Sào Paulo:

No dia trabalhar no

21 de maio de plantio de fumo ( ••

1955, . )

comecE? i a

No d.ia 21 de junho do mesmo ano terminamos a_quele serviço pesado.

Falava de quando ainda levava vida de peáo sozinho no

mundo, ressaltando em tom grandi loquente os valores morais

que o sustentaram nas adversidades de sua vida, a coragem, a

honra e a fé em De1..1s:

Nunc.a tive medo dE? n.ada n.a vida.

70

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Page 78: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Eu fui E>mbora de casa e eu disse aos mE>us pais: Eu vou embora~ se e>t.J estiver na pior. esqueç.a o seu filho,, eu nào volto. Tem gente que sai de casa em busca de aventura e encontra a desaventur.:~ e volta correndo para casa, ndo enfrenta.' Eu fui o contrário: E?U parti para a aven t1..1ra, para c.asa,

encontrei a des.aventura~

enfrentei, no duro. m.:~s nao vol te.i

Dentro de mim eu dizia: confio em Det.ts que isso passa.

O estilo grandiloquente do diSCLtrso deste homem, a

afirmaçào da "moral de homem", fala das expectativas que

t~m os homens em r-elaçào a seu próprio desempenho, numa

tentativa de manter a auto-imagem diante das fr-ustr-açbes. A

forma nar-r-ativa do r-elato deste homem, r-essaltando sempre

suas qualidades mor-ais enquanto falava de sua vida de peao,

dos pagamentos que lhe foram prometidos e nao feitos, dos

filhos perdidos por falta de assistªncia médica, relaciona-

se às características do discurso "popular" destacadas por

Maria Lúcia Montes (19831 sua análise dos dramas

representados nos circos-teatros na periferia de sao Paulo.

No discurso dos atores e do público, segundo a autora, a

ficçao se separ-ava da realidade por um "fio tênue que se

esgarçava e acabava por náo mais distingui-los,''

"Quase como se narrar a experiªncia vivida conferisse ao real um 'efeito suplementar de real1dade', ao ser traduzido numa forma que enfim lhe conferia a desejada e merecida dignidade, para além da banalidade prosaica do quotidiano sem relevo" (p. 184).

71

Page 79: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Ele é funcionário pUblico desde quando chegou em Sào

Paulo em 1963, trabalhando como garagista. Era o seu dia de

folga. Sentou-se devagar e altivo em sua poltrona, feita de

uma imitaçao de couro, rasgada e queboada, apoiada num

tijolo. Lembrei-me das observaçbes de C~mara Cascudo (1987),

sobre autoridade e pressa, em que diz que socialmente a

lentidcio é dignificante a velocidade inversamente

proporcional à hierarquia, fazendo com que os subalternos

transitem "na ligeireza dos movimentos a prontidào da

obedifncia, disciplina, submissào''. A vagareza do pai, que

naqueles gestos reafirmava sua autoridade sobre a familia,

foi complementada pelo gesto do filho mais novo que,

prontamente, sem quE' qualquer palavra lhe fosse dirigida,

veio trazer os chinelos e colocou-os nos pés do pai, num

gesto desta etiqueta ti pica do cotidiano das famílias

pobres, que chamo de patriarcal, porque reitera a hierarquia

entre o homem e a mulher, entre os adultos e as crianças e

reafirma essas fronteiras a cada gesto, mostrando ao mesmo

tempo convençbes tradicionais, pouco ligadas ao utilitarismo

urbano.

Sua mulher e as filhas nao se sentaram à mesa para

comer; como é de hábito, vjo comendo, beliscando a comida

enquanto cozinham ou fazem seu prato e comem sem se sentar à

mesa; servem o marido e os filhos, estes sim sentados à

mesa. Os agregados, aqueles que de alguma maneira estao numa

situaçâo de favor ou de hierarquia, como os recém-chegados à

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Page 80: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

cidade, tampouco comem à mesa, ajeitam-se sentando no braço

de alguma poltrona, em algum banco ou cadeira, o prato fundo

de comida no colo, a colher- na máo.

Sentar- à mesa, dentr-o da etiqueta dos pobres, é um

hábito que r-esponde às hierarquias que dividem seu mundo

simbólico, sendo r-eser-vado ao homem, às crianças pequenas e

às visitas de honra. O fato das cr-ianças estarem incluidas

liga-se à sua importância como depositárias das expectativas

familiares. Nestas r-egras implicitas na convivência

cotidiana percebe-se a demar-caçao da hier-ar-quia familiar,

reafirmando as fronteiras entre o masculino e o feminino e

conferindo ao homem um lugar de autoridade na familia que

ele, trabalhador e pobre, náo encontra no mundo da rua.

As dificuldades encontradas para manter o padrao de

desempenho que se espera do homem na familia pobre, por sua

condiç.3o de trabalhador e pobre, faz com que a dimensao da

pobreza no contexto familiar apareça mais explicitamente no

discur-so masculino, já que os homens se sentem os

responsáveis pelos rendimentos familiares. É sobre ele que

recai mais forte o peso do fracasso. É o homem quem falta

com sua obrigaçdo quando o dinheiro nao dá. Assim, é quE? na

tentativa de "conferir dignidade ao cotidiano sem rE?levo"

destacam-se as qualidades morais que sustE?ntam o homem que é

homem nas situaçbes de dificuldade, estruturais em suas

vidas.

Page 81: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Em contrapartida, a mulher, em seu desempenho como boa

dona-de-casa, faz com que apesar d& pouco~ o dinhe,iro dê.

Isto implica em controlar o pouco dinheiro recebido pelos

que trabalham na família, priorizando os gastos (com a

alimentaçào em primeiro lugar) e driblando as despesas. Na

prioridade da alimentaçao entre os gastos, os que trabalham

devem comer mais do que os outros adu 1 tos, e os homens,

trabalhadores/provedores, comem mais que as mulheres:

vai

Os

Eu quero que ele (o marido) c:oma~

trabalhar • ..::7

papéis familiar-es complementam-se

porquE> e 1 e

para r-ealizar

aquilo que importa para os pobres, repar-tir o pouco que têm.

Isto, entr-etanto, nào se limita à família. Na mesma medida

em que a alimentaçào é a prioridade dos gastos familiares,

oferecer comida é também um valor fundamental, fazendo os

pobres pródigos em oferec?-la.

Quando fui visitar uma família, onde a mae idosa é

separada, os filhos que moravam com ela estavam

desempregados naquele momento, todos vivendo com

aposentador-ia da màe, que nào chegava nem a um salário

minimo. Excepcionalmente, fizemos uma entrevista com um dos

27 Sobre as práticas alimentares, ver, além de Antonio Cândido 0987), Woortmann ( 1986).

74

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Page 82: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

filhos no fim da manha (foi o horário sugerido para que eu

pudesse ver a filha casada, que morava longe e estaria lá

naquele momento). A mae ofereceu-nos café e suco de laranja

e desculpou-se insistentemente porque 0 suco estava ra:im.

Era o almoço que faltava. Falou de como o dinheiro nao dava

nem para comprar comida: A g~nte traz .as compras n.a mdo, ndo

precisa nem s.acola. E me dizia: Vocé deve estar morrendo de

tom~~ Era sua nao apenas a fome, mas a privaçao da

satisfaçao de me oferecer comida. N.3o ter o que comer, a

fome, significa nào apenas a brutal privaçao material, mas a

pr i vaçao da sa ti sfaçao de dar de comer, rea 1 i za çào de um

valor moral, deste repartir o pouco que se tem. Porque, na

falta de riqueza material para repo3rtir, como diz Maria

Lúcia Montes (1981), o que conta é

"a generosidade que reparte o liberalidade que nao mede o

pouco que tem, a sacrifício ou as

despesas para as ocasibes especiais, comemoraçbes de alegria e luto, nascimento, aniversário, casamento, morte.'' (p. 69)

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Page 83: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Lugar de homem e lugar de mulher

Quem casa, quer casa. Comecemos por aí. Com o

casamento, o ideal é a formaçao de um núcleo independente,

porque uma família precisa de uma casa, aliás, condiçao para

viabilizar uma família:

Eu acho que quando a a g~n t~ na o t~m cabeça·' familia, sabe?

gente na o tE>m uma casa. às vezes_, nem para a

Tendo a familia, tudo, n&?

uma casa, a gente dá para o marido, para

mais atençâo para f.ilho_, enfim .• em

A casa é onde realizam o projeto de ter uma familia,

per-mitindo, como obser-va Klaas Woor-tmann (1982), a

r-ealizaçao dos papéis centr-ais na organizaçáo familiar, o de

pai de família e de m.3e/dona-de-casa. Este padrá.o ideal

pressupde o papel masculino de prover teto e alimento, do

qual se orgulham os homens:

O dever do homem é trabalhar, dinheiro em casa ~ ser um pai df? fam.ília respeito na casa dele ••• tendo moral.

trazer o para dar

Assim, para constituir a "boa" autoridade, digna da

obediência que lhe cor-responde, náo basta ao homem pegar e

76

Page 84: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

botar comida dentro de casa e falar que manda, Para mandar,

tem que ter caráter_, moral. Assim, o homem quando bebe,

perdl? a moral dentro de casa. Nao consequt? mais dar ordens.

Como sintetizou Maria Cristina Costa (1993) em consonânc~a

com a argumentaçao deste trabalho, o ganho e a honra

mesclam-se para compor a autoridade paterna. Numa relaç.3o

complementar, para as mulheres o papel da dona-de-casa é

fonte de igual sentimento de dignidade pessoa 1, como

comentarei no pr-óximo capítulo na análise do tr-abalho

doméstico.

A casa é, ainda, um espaço de liberdade, no sentido de

11ue nela, contraposta ao mundo da rua, seio donos de si:

aqui eu mando.:ze

O fato do homem ser- identificado com a figura da

autor-idade, no entanto, náo significa que a mulher- seja

privada de autoridade. Existe uma divisao complementar de

autoridades entre o homem e a mulher na familia que

cor-responde à difer-enciaçéo entr-e casa e familia. A casa é

identificada com a mulher e a família com o homem. Casa E'

família, como o homem e a mulher, constituem um par

complementar, mas hierárquico. A família compreende a casa,

a casa E>Stá, portanto, contida na família:

28 Sobre a casa neste bairro, ver Caldeira (1986); sobre o significado da casa em relaçáo à família, ver Woortmann (1982) e Sarti (1985a). Dentro de uma análise do uso e da interpretaçáo do espaço urbano, Lucrécia D'Alessio Ferrara (1993) focaliza a casa em bairros da periferia de Sao Paulo.

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Page 85: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Náo adianta ter uma casa superbonitona f? nao ter uniiio na familia. tünha casa é pobre, mas nâo a trocaria por nt:nhuma outra st: ndo pudesse viver com minha fami 1 i a

Que adianta uma casa onde nao falta nada, mas tem soliddo?

Em consonância com a precedência do homem sobre a

mulher e da f amí 1 i a sobre a casa, o homem é considerado o

chefe da fami.lia e a mulher a chefe da casa. Esta divisào

complementar permite, entáo, a realizaçào das diferentes

funçbes da autoridade na familia. O homem corporifica a

idéia de autoridade, enquanto mediaçao da familia com o

mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela

respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma

entidade moral positiva, na medida em que ele garante o

respeito. Ele, portanto, responde pela familia. Cabe à

mulher outra importante dimensáo da autoridade, manter a

unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que

tudo esteja em seu lugar. É a patroa, designaçao que revela

o mesmo padráo de relaçóes hierárquicas na familia e no

trabalho.

A distribuiçào da autoridade na família fundamenta-se,

assim, nos papéis diferenciados do homem e da mulher na

f;;;mília. A autoridade feminina vincula-se à valorizaçào da

màe, num universo simbólico onde a maternidade faz da

mulher, mulher, tornando-a reconhecida como tal, sen~o ela

será uma potencialidade, algo que nâo se completou (Sarti,

I:

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Page 86: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

-----

1985a).z~ Outro importante fundamento da autoridade da

mulher está no controle do dinheiro, que nào tem relaçào com

sua capacidade individual de ganhar dinheiro, mas é uma

atribuiçào de seu papel de dona-de-casa (Zaluar, 1985)

A diferenciaçao entre um papel interno feminino e outro

masculino relacionado com o mundo de fora foi assim expressa

por uma mulher casada:

Eu acho que o homem tem que entrar com tudo em casa e a mulher saber controlar. (Nininha)

Comentando as desavenças de sua vizinha depois que

ficou viúva, outra moradora concluiu: nâo tinha mais homE>m

para controlar, Analisando as diferentes percepçOes da casa

pelo homem e pela mulher, Parry Scott (1990) observou o

mesmo padrào, mostrando que no discu,.-so masculino a casa

deve esta,.- sob controle, enquanto as mulheres ativamente

controlam a casa.

Quando nào é possive1 ter uma casa, comprada, cedida ou

alugada, formando um núcleo independente para a realizaçào

das dife,.-entes atribuiçbes do homem e da mulhe,.-, a rede

familiar se mantém na cena cotidiana. O novo casal fica na

casa dos pais de um dos cônjuges, criando uma situaçào

29 O trabalho de Tania Dauster (1983) mostra a estigmatizaçáo da mulher sem filhos, comparada à "figueira. do inferno", árvore sem frutos.

Page 87: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sempr-e concebida como prov~sór;a, porqu~, ~ h · 1 ... ... "" ~=' ar r~ v e morar

na casa dos outros, como expressou a mulher- que ficou alguns

meses na casa do cunhado quando chegou a São Paulo,

Nestes casos, a tend~ncia, pelo menos no primeiro

casamento, onde as expectativas de realização do padr-ào

ideal sào maiores, é que fiquem na casa dos pais do marido,

respondendo à atr-ibuiçào masculina de prover teto.~0 Nos

casos em que isto não é possivel, a solidariedade familiar

leva o novo casal a ficar na casa da mulher. Essa tendência

observa-se sobr-etudo nas unibes subsequentes à primeira,

quando s0

a mulher separ-adafvinculêt a seu gr-upo de origem e

poder-á manter este vinculo mE>smo com a nova unL3o, para

estar perto da rede de apoio a seus filhos.

Embora quem case queira casa, os vínculos com a rede

familiar mais ampla nio se desfazem com o casamento, pelas

obrigaçbes que continuam existindo em relação aos familiares

e que nio se rompem necessariamente, mas sào refeitas em

outros termos, sobretudo diante da instabilidade dos

casamentos entre os pobres, dificultando a realizaçao do

padrào conjugaJ.31

30 Contr<~riando, portanto, a tendência à uxor-ilocalida.de (ou seja, a residência do novo casal junto ao grupo famÍl{a-r da esposa), observada em trabalhos que> enfatizam a "centralidade" da mulher na família (Woortmann, 1987}. 31 Acredito que, na sociedade brasileira, mesmo nas camadas médias e> altas, em funçáo de uma dinâmica distinta que náo cabe aqui tratar, tampouco a família existe como família conjugal.

80

Page 88: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A família ultrapassa os limites da casa, envolvendo a

~ede de parentesco mais ampla, sob~etudo quando se f~ust~am

as expectativas de se te~ uma casa, onde ~ealiza~ os papéis

masculinos femininos. Nestes casos, comuns ent~e os

pob~es, pelas dificuldades de atualizar o padrao conjugal de

fami 1 ia, ~essal ta a impo~tância da di ferenciaçao entre a

casa e a família para se entender a dinâmica das ~elaçbes

familia~es . .:5z

As famílias pob~es dificilmente passam pelos ciclos de

desenvolvimento do g~upo doméstico, sob~etudo pela fase de

c~iaçao dos filhos, sem ~uptu~as (Neves, 1984' Fonseca,

1987, Scott, 1990) ' o que implica em alteraçbes muito

frequentes nas unidades domésticas. As dificuldades

enfrentadas pa~a ~ealizaçao dos papéis familiares no núcleo

conjugal, diante de unibes instáveis e empregos ince~tos,

levam a desencadea~em-se a~ranjos que envolvem a rede de

parentesco como um todo, para viabiliza~ a exist~ncia da

família, tal como a concebem.

A literatu~a sob~e famílias pobres no s~asil confi~ma a

possibilidade de se estabelece~ uma relaçao ent~e as

condiçbes sócio-econômicas e a estabilidade familiar, no

sentido dos ciclos de vida familia~ se desenvolve~em sem

32 A importância desta distinçáo foi enfatizada por Meyer Fortes (1971), ao analisar os ciclos de desenvolvimento do grupo doméstico; ver também sobre a importância de-sta distinçáo para analisar as relaçOes familiares: Durham (1983), Fonseca (1987) e Woortmann (1982 e 1987).

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Page 89: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

rupturas (Agie~, 1988 e 1990). Os trabalhos de Carmen Cini~a

Macedo (1979) e de Elizabeth D. Bilac (1978) indicam que, em

g~LIPOS de ope~á~ios economicamente mais estáveis, há maior-

possibilidade de r-ealizaçao do padrào de complementar-idade

de papéis sexuais no núcleo doméstico. A liter-atur-a mostr-a,

em contrapa~tida, a relaçào entre pobreza e chefia feminina

(Bar-roso, 1978 e Castro, 1989). Jsto significa dizer- que as

fam.ilias desfeitas sao mais pobres e, num circulo vicioso,

as famílias mais pobres desfazem-se mais facilmente.

Pesquisas demonstram como a pobreza afeta

primordialmente o papel de provedor do homem na familia

(Montali, 1991, Telles, 1992 I • JU.3.rez Lopes e Andréa

Gottschalk (1990) mostram que "as famílias chefiadas por

homens, em particular as muito jovens com filhos, parecem

ser especialmente sensiveis à recessao e à recuperaçào

econômicas".

A vulnerabilidade da família pobre, quando centrada no

pai/pr-ovedor, ajuda a explicar a frequência de rupturas

conjugais, diante de tantas expectativas nào cumpridas, para

o homem, que se sente fr.acassado, e para a mulher, que v?

r-olar- por- água abaixo suas chances de ter al gt.1ma coisa

através do projeto do casamento (Rodrigues, 1978, Salem,

1981 e sa~ti, 1985a)

Como o outro lado da moeda, Jua~ez B. Lopes e And~ea

Gottschalk (1990) mostram que 8S famílias chefiadas por

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Page 90: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

mulheres estao numa situaçào estruturalmente mais prec~ria,

mais independentes de variaçôes conjunturais, quando

comparadas com a si tua.çao das i amí 1 i as pobres, equi v a 1 entes

no ciclo familiar, que tem chefe masculino presente, dadas

as diferenças nas formas de inserçào da mulher no mercado de

trabalh0.:3:3

Se a vulnerabilidade da mulher está em ter sua relaçào

com o mundo externo mediada pelo homem, f r agi 1 izando-a em

far::e deste mundo que, por sua vez, reproduz e reitera as

diferenciaçoes sexuais, o status central do homem na

família, como trabalhador/provedor, torna-o tambPm

vulnerável, porque o faz dependente de condiçbes externas

cujas determinaçOes escapam a seu controle. Este fato torna-

se particularmente grave no caso da populaçào pobre, exposta

à instabilidade estrutural do mercado de trabalho que a

absorve.

33 A estruturaçáo do mercado de trabalho a partir da diYisáo sexual do trabalho, afetando toda sua composição, salários, qualificaçào, formas de inserçáo, alocação em momentos de cr-ise, etc ... , tem sido objeto de uma importante linha de pesquisas. Ver para refer~ntias: Bruschini, (1985), Hirata e Humphrey (1983 e 1984), Telles (1992) e Sarti (1985b), entre outros.

83

Page 91: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Deslocamentos das figuras masculinas e femininas

Nos casos em que a mulhEC>r- .;~;ssume a r-esponsabilid.;~;de

econômica da fami lia, ocorr-em modi fi caçOes importantes no

jogo de relaçbes de autoridade e efetiv.;~;mEmte a mulher pode

assumir o papel masculino de ''chefe'' (de autoridade)

de f in i r-se como ta 1 • A auto r- idade mas cu 1 in a é seguramente

abalada se o homem nao garante o teto e o alimento da

familia, funçbes masculinas, por-que o pape.!. de provedor a

r-eforça de manEC>ira decisiva. Entretanto, a desmoralizaçáo

ocorrida pela perda da autoridade que o papel de provedor

atribui ao homem, abalando a base do respeite que lhe devem

seus familiares, significa uma perda para a familia como

totalidade, que tende a buscar uma compensaç:ao pela

substi tuiç.3o da figura masculina de autoridade em outros

homens d.a rede fami 1 i ar.

Cumprir o papel masculino de provedor nao configura, de

fato, um pr-oblema para a mulher, acostumada a trabalhar,

sobretudo quando tem precisao; para ela, o problema está em

manter a dimensao do respeito conferida pela presença

masculina. Quando as mulheres sustentam economicamente suas i' '

unidades domésticas, podem continuar- designando, em algum

nivel, um ''chefe'' masculino. Isto significa que, mesmo nos

casos em que a mu 1 her assume o pape 1 de provedora, a

identificaçào do homem com a autoridade moral, a que confere

respeitabilidade à família, nào necessariamente se altera.

Page 92: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Os diversos aspectos em que o homem sua

autor-idade, garantindo os recursos materiais, o respE'ito e a

proteçao da família, enquanto provedor e mediador- com o

mundo externo, podem estar a l ceados em diferentes figuras

masculinas. Isso acontece particularmente nos casos de

separaçao conjugal e de novos casamentos, onde o novo marido

nao necessariamente ocupa o lugar masculino em r-elaçao aos

f i 1 hos de sua mulher-. Os frequentes casos de separ-açào e a

frequente ocorr~nci.a de gravidez entre as adolescentes

CUJO filho tende a ficar na casa dos avós, que o cr~am com

ou sem a mae leva a uma divisào dos papéis masculinos e

femininos entre diversos homens e mulheres na rede familiar,

deixando de se concentrar no n~cleo conjugal.

A sob~evivência dos g~upos domésticos das mulhe~es

"chefes de família" é possibilitada pela mobilizaçao

cotidiana de uma rede família~ que ultrapassa os limites das

casas. Nestes deslocamentos, o filho mais velho se destaca

como aquele que cumpre o papel de chefe da familia. Sào os

casos que Tania Salem (1981) apropriadamente chamou de

''filhos eleitos''. O trabalho de Michel Agier- (1988, 1990),

feito em Salvador-, e o de Claudia Fonseca (1987), feito em

Porto Alegre, demonstram o mesmo padrao, que fa2 lembrar- as

obser-vaçties de Fr-ançoise Héritier (1975} sobre a estreita

dependência entre laços consangu.ineos e laços conjugais em

qualquer sociedade. Segundo esta autora, há uma r-elaçao

pendular- e inversa entre esses dois termos, onde ao

Page 93: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

enfraquecimento um tipo d" v.inc:ulo corresponde o

fortalecimento do outro.

Tal como acontece o deslocamento dos papéis masculinos,

os papéis femininos, na impossibilidade de serem exercidos

pela màe-esposa-dona-de-casa, sao igualmente transferidos

para outras mulheres da fam.ilia, de fora ou dentro da

unidade doméstica. O exerc.icio dos papéis sexuais, nos casos

em que se desfaz a relaçao conjugal, passa para a rede

familiar mais ampla, mantendo o

complementaridade de papéis, transferidos

núcleo conjugal. Nestes casos, além

principio da

do para fora

dos familia,..-es

consanguineos, tem um papel importante a instituiçáo do

compddrio.

A rivalidade entre consanguineos e afins, ,..-essaltada

por Claudia Fonseca (1987), embora exista, nâo impede a

solidariedade nesta rede onde se deslocam os papéis. As

relaçbes entrecruzam-se, fazendo com que as regras de

obrigaçào prevaleçam sobre a rivalidade referida e levdndo à

cooperaçào. Assim, a avó paterna pode cuidar dos netos,

enqudnto a ex-nora trabalha. Neste caso, o cruzamento dá-se

também pelo principio da diferenciaçao de gênero (ou sexual)

e a rede feminina alterna-se no cuidado das crianças.

Nos casos de viuvez ou separaçáo sem nova uniáo, a máe

torna-se a figura aglutinadora do que resta da família, e

sua casa acaba sendo o lugar para onde acorrem os f i 1 hos

86

Page 94: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

nas si tuaçôes de desampar-o (desemprego, separaçóes

conjugais, etc.). Sendo o ponto de refer-ência par-a toda a

família, à mae é devido um respeito particular, sobr-etudo se

ela tiver uma idade mais avançada, que tem o sentido de uma

retr-ibuiçào do filho à màe que o criou, como no belo r-elato

de Richard Hoggart (1973) sobr-e o respeito à mae nas class~~

trabalhadoras inglesas.

Se a comunicaçao dentro da rede de par-entesco revela o

papel crucial da màe, conforme obser-va Woortmann (1987),

isto nao significa "centralidade" da mulher na fam.i.lia, mas

o cumprimento de seu papel sexual, de mantenedora da unidade

familiar, numa estrutura que nao exclui o papel complementar

masculino, deslocado para outros homens que nao o pai.

Dent~o deste unive~so simbólico, ~essu~ge ent~e os

pobr-es ur-banos a clássica figura do "irmao da mae".

Sobretudo nos momentos do ciclo de vida em que o pai da

mulher já tem uma idade avançada e náo tem mais condiçbes de

da I'" apoio, o irmào surge como a figura masculina mais

provável de ocupar o lugar- da autoridade masculina, mediando

a relaçào da mul hei'" com o mundo exte~no e garantindo a

r-espei tabi 1 idade de seus consanguineos. Woor-tmann ( 1987) e

Fonseca (1987) ~econhecem também obrigaç6es do ir-mao de uma

mulher par-a com ela, como uma espécie de substituto do

mar ido, assumindo par-te das responsabilidades masculinas

quando a mulher- é abandonada.

D7

Page 95: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Nas famílias que cumpriram sem rupturas os ciclos de

desenvolvimento da vida familiar, o pai tem um papel central

dent~o de uma relaçao complementar e hie~á~quica com a

mulher, concentrados no núcleo conjugal, ainda que esta

si tua:çao na o exclua a transferência de atribuiçbes à ~ede

mais ampla, em pa~ticula~, quando a mie trabalha fora; nas

famílias desfeitas e refeitas, os ar~anjos deslocam-se mais

intensamente do núcleo conjugal/doméstico pi:!~a a rede ma~s

ampla, sobretudo para a familia consanguinea da mulher.

Esse deslocamento de papéis familiares nao significa

uma nova estrutura, mas r-esponde aos pr-incipias estruturais

que definem a família entre os pobres, a hierar-quia

homem/mulher e a diferenciaçao de papéis sexua~s com a

divisao de autoridades que a acompanha.

Na o é, portanto, necessariamente o controle dos

recursos internos do grupo doméstico que fundamenta a

autoridade do homem, mas sim seu papel de intermediário

entre a familia e o mundo externo, em seu papel de guardiio

da respeitabilidade familiar. o fundamento deste lugar

masculino está numa representaçao social dos sexos, que

identifica o homem como a autoridade moral da família

p~r-ante o mundo ex terno. Di 2 respeito à ordem mora 1 que

organiza a família, portanto, a uma razao simbólica, usando

a formulaçao de Marshall Sahlins (1979), que se reatualiza

nos diversos arranjas feitos pelas famílias com seus parcos

recursos.

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Page 96: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O papel fundamental da mulher na casa dá-se, portanto,

dentro de uma estrutura fami 1 i ar onde o homem é essencial

para a própria concepçao do que é a família, porque a

família é pensada como uma ordem moral, onde o homem

representa a autoridade. Mesmo quando ele ndo provê a

família, sua presença ''desnecessária'', continua necessária.

A autoridade na família, fundada na complementaridade

hierárquica entre o homem e a mulher, entretanto, nao se

realiza obrigatoriamente nas figuras do pai e da mae.

Diante das frequentes rupturas dos vínculos conjugais e da

instabilidade do trabalho que assegura o lugar do provedor,

a família busca atualizar os papéis que a estruturam,

através da rede familiar mais ampla.

A família pobre nao se constitui como um núcleo, mas

como uma rede, com ramificaçties que envolvem a rede de

parentesco

obrigaçties

como um todo, configurando uma trama de

morais que enreda, num duplo sentido, ao

dificultar a individualizaç.3o e, ao mesmo tempo, viabilizar

a existência dos indivíduos enquanto apoio e sustentaçao

básicos.

Esta rede que constitui a famí 1 ia pobre, através da

qual as relaçbes familiares se atualizam, permite

relativizar o sentido do papel central das mulheres na

família, reiteradamente destacado na literatura sociológica

e antropológica sobre as famílias pobres no Brasil (Barroso,

1978, Figueir-edo, 1980, Neves, 1984, Woortmann, 1987,

El9

Page 97: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Castro, 1989, Scott, 1990). Nao se trata de contrapor norma~

"patriarcais" e práticas "matrifocais", como propoe

Woortmann (1987), na medida em que as práticas se definem

articuladas a normas e valores sociais. A prática contém em

si a norma, em sua forma positiva ou como transgressào. Pela

forte demarcaçào de gênero e pelas dificuldades de

realizaçào do modelo nuclear, nào necessariamente as figuras

masculinas e femininas sao depositadas no par pai/marido e

mae/esposa, mas sao transferidos para outros membros da rede

familiar, reproduzindo esta estrutura hierárquica básica. 34

AntJ.·gamente era o homem que mandava na casa, disse uma

mulher, casada pela terceira vez, com um filho de cada

uni.3.o,

só que de uns tempos para mais é a mulher ••• nao sei

cá·' quem está mandando se é Tal ta de trabalho.,

ou silo os homens mesmo que es tao mui to acomodados ••• agora tem ••• como diz? Os direitos sa·o iguais .•• mesmo a mulher que nào trabalha, ela tem mais poder do que antes~ na o sei o que está acontecendo com as geraçDes de agora.. os homens na o está querendo mui ta responsabi 1 idade.. eles esta o deixando tudo nas c: os tas das mui heres. E eles sabem que as mulheres vao a luta e tem homem que num tá nem ai.

34 Sobre o caráter- hierárquico brasileira., ver- a. discussâo de Roberto Da. Ma.tta. (1987).

e patriarcal da Angela Mendes de

famíliA Almeida.

na soci~d.:ade

(1987) e de

90

Page 98: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Antigamente aparece aqui como um tempo idealizado, em

que as mulheres nào tinham sobre suas costas o peso da

responsabilidade da família que, sua representaçao,

envolve a complementaridade entre o homem e a mulher. Esta

situaçao de uns tempos para c~ envolve uma permanente

ambivalência, em face das expectativas fr-ustradas, dos

ar-ranjos compensatór-ios e dos benefícios impr-evistos que

podem advir- das novas situaçbes criadas. Assim é que se os

direitos sao igua~-s e a mLilhE'r hoje tem mais:. poder, isto é

vivido de forma ambivalente, nào necessar-iamente como uma

reversao dos papéis familiares, mas como uma r-eafirmaçào do

fracasso masculino, diante das dificuldades do homem de

exercer um papel onde estao depositadas as expectativas

familiares, seja poc ra2bes que lhe escapam, tal ta de

traba I ho, ou por r-a26es que 1 h e di 2em respeito, porque es ti:io

acomodados mesmo, sobr-e as quais ele tem uma

responsabilidade moral

As expectativas frustradas instauram um mecanismo, do

qual os homens e as mulheres sao cúmplices sem o saber

necessariamente, que reiter-a as atribuiçbes masculinas e

femininas, ainda que dificilmente sejam cumpr-idas nos

arranjos cotidianos. Ambos, homens mulheres, acabam

enredados neste emaranhado de expectativas que nào conseguem

responder. Ele, fracassado, tem no a 1 co o 1 i smo o desafogo a

seu alcance e ela se frustra por nao poder ter o homem e a

situaçao familiar esperados. Diante do homem que representa

91

Page 99: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

a autoridade e que nào cumpre o papel esperado- infiel, que

bebe, que nao traz dinheiro para casa a mu 1 her acaba

tendo um acentuado papel ativo nas decisoes familiares, sem

que, no sentido inve~so, o homem tenha modificado seus

papéis familiares. Diante dele, que socialmente tem sobre

ela uma autoridade que nào se justifica a seus olhos, ela

exibe sua disposiç.3o de se virar, de nao precisar mais dele,

como uma vingança, ~eíterando o fracasso dele e a frustraçao

de ambos.

O lugar das cr1anças~

Quem casa, quer casa, mas nao apenas isso. O projeto do

casamento, onde está implicita a constítuiçào de uma

família, é indissociado da idéia de ter filhos (Sarti,

1985a). ~ inconcebível formar uma família sem o desejo de

ter filhos. A idéia de família compbe-se, entao, de três

peças: o casamento (o homem e a mu 1 h e r-) a casa e os

f i 1 hos.

A pessoa que na o tem filho, na o tem v .i da. Família ~em f .i 1 ho_~ eu acho que é um fruto ~em

v a 1 ar. É umiil .3rvore que morreu E' que na o tem fruto nenhum. 56 eles dois ali numa casa qLie nem duas estacas. 56 come E' bebe, trabalha E' dorme, pra que? E eles fizeram esse lar para que?

Page 100: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Depois que você tE>m um filho, você luta por algum obJetivo.

,q minha tia sofre por nao ter Llm filho para cuidar d&la.

Entre as relaçbes familiares, é sem dúvida a relaçào

entre pais e filhos que estabelece o vínculo mais forte,

onde as obrigaçbes morais atuam de forma mais significativa.

Se, na perspectiva dos pais, os filhos sáo essenciais para

dar sentido a seu projeto de casam~nto, "fertilizando-o",

para náo serem uma árvore seca e outras tantas metáforas que

exemplificam a analogia da família com a natureza, dos

filhos é esperada uma retribuiçao, que existe enquanto

compromisso moral:

Eu aprendi isso do meL/ avô e eu acho que dá resultados: criar elas sem esperar recompensa, porque se elas (as filhas) fizerem algo para m.1m, que seja por elas., de agradecimento por elas mesmo, delas ver meu esforço para com elas •••

Retribui-se moralmente, se a mae ou o pa.l· vier a

precisar, ou sendo um bom fi 1 ho, isto é, honesto,

trabalhador: eu já acho um grande beneficio •.•

Isto é o que se espera dos filhos adultos; das crianças

espera-se que obedeçam simplesmente. Há uma forte hierarquia

entre pais e filhos, e a educaçao é concebida como o

Page 101: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

exercicio unilateral da autoridade.~~ As crianças gozam, no

entanto, de certas regalias. Comem à mesa e, junto com os

trabalhadores, tem prioridade na distribuiçao da comida. O

valor dado ao filho na familia aparece na prodigalidade com

que comemoram seu primeiro aniversário.~6 As crianças vao

perdendo suas rega 1 ias, conforme estejam em condiçbes de

repartir as obrigaçbes familiares, assemelhando-se ao

estatuto dos outros familiar-es. Pode-se dizer que o que

de f in e a criança, entre os pobres, é que ainda na o

participam das obrigaçbes familiares, nào trabalham, nem se

ocupam das atividades domésticas, etapa CUJO inicio depende

das condiçbes de vida familiares, tornando difícil delimitar

a "infância" entre os pobres. A regra é que as crianças

desde muito cedo, com 6 ou 7 anos, tenham atribuiçbes dentro

da família (Dauster, 1992} . Seus inúmeros Jogos e

brincadeiras alternam-se com as frequentes atribuiçbes que

1 hes sao designadas' como ~r até a venda, dar recados,

buscar auxílio.

35 Na forma como sáo tratadas as crianças aparece a reproduçao do padráo unilateral de exercício da autoridade que as instituiçoes públicas reservam aos pobres, seus pais, evidenciando a relaç~o entre a educaçio e o e~erc.icio de uma cidadania democrática. Maria Lygia Quartim de Moraes (1993) desenvolve este problema, ressaltando a importância da "boa infância para o futuro cidadão", mostrando que as raízes da privaçio que dificulta o exercício da cidadania estao longe de serem materiais e que, quando as carênciais básicas começam no plano afetivo, dificilmente os projetos de democratizaçao, por melhor intencionados que sejam, conseguem romper as resistências. 36 Esta comemoraçao parece-mt:> também associada ao sucesso da sobrevivência da criança, numa populaçao ainda marcada pela ocon··ência de mortes prematuras.

Page 102: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Uma das delimitaçbes do que é ser criança diz respeito

a uma mudança no exerci cio unilateral da autor-idade.

Crianças sao aqueles que podem levar surra, E>m comparaçao

com os ;avens, que já tem condiçbes de reaçao, tal como

aconteceu na família em que as filhas crescidas fizer-am uma

aliança com a màe contr-a a autoridade desmedida do pai. Uma

dessas filhas, uma .;ovem de 19 a;nos, assim expressou essa

diferença de condiçbes:

Nas crianças sim, vez em quando_~ agora jovens se trata cansei en tizaçao •••

vamos dar umas palmiôdas de com jovens niiio é assim,

com conversa, com

Filhos, como o casamento, significam responsabilidade,

uma categoria moral que se opbe, para os pobres, à de

vaidade. Uma mulher cuja filha engravidou, solteira e com 16

anos. argumentou que sua filha deveria ter o filho, e nào

abortar, par .a aprender o que é a vidiô.

Os f i 1 hos d.3o à mulher e ao homem um estatuto de

maioridade, devendo torná-los responsáveis pelo próprio

destino, o que implica idealmente em se desvincular- da

familia de origem e constituir novo núcleo familiar. O filho

pode, entao, tornar-se um instr-umento para esta

desvinculaçào.

Page 103: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Uma mulhe~ hoje casada, com um filhinha de cinco anos,

contava-me que quando morreu sua máe, o pai ~euniu todos os

filhos pa~a comunica~ quem i~ia~ a partir daquele momento,

tic:r=~r como donr=~-de-casa. O lugar coube a ela, filha mais

velha. Além deste papel, ela e o pai tornaram-se os

principais arr~mas financeiros da familia. Segundo

r-elata:

Eu precisava fazer alguma coisa da minha l/ida .• . 1 eu queria casar ••. Ai falei com meu pai .• ele me achava muito nova para casar e eu praticamente era o braço direito dele •••

SE>U

Como, já estava cansada de trabalhar para a família,

resolveu sair com o namorado e ir para um motel:

Vou ver se eu arrumo uma barriga e ver se eu caso rápido.

Apesa~ da relutância do namorado, que temia pela reaçáo

do pai, ela conseguiu seu intento. Engravidou e o pai teve

que aceita r que e 1 a dever i a se casar, c r i ando seu núc 1 e o

independente. Subsumida por sua posiç.3.o essencial na

hierarquia familiar e em sua divisáo de trabalho, ela náo

estava designada para casar. Assim, o sentido de

responsabilidade implicito em ter filhos leva as mulheres a

utilizarem deliberadamente a gravidez como um instrumento

Page 104: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

par-a a independência de sua fam.i.lia de or-igem e/ou, diante

de um noivo hesitante em casar-, par-a for-çá-lo a assumir a

respons.ab.i 1 i da de.

Màe solteira

Na per-spectiva de que o filho é uma respon:..abilidade

dos pais, quando o homem nào assume sud par-te, cabe à mulher

assumi-la sozinha. A .ace.i t.açao da màe sol te ir-a envolve

nuances impor-tantes. Ela é, em pr-imeir-o lugar, vítima de um

s.afado, que náo assume as consequê:ncias dos seus atos, um

homem que nao é digno de respeito, acusaçào que compor-ta uma

ambiguidade, na medida em que, ao mesmo tempo, ninguém pode

obrigar ninguém a casar. Assim, diz o pai de filhos homens

ao pai de filhas mulheres:

CLJida do teu capim, que eu vou sol ta r meus cabritos.

Nao observei nenhum caso em que a mae solteir-a fosse

deliber-adamente expulsa de casa. A cr-iança é normalmente

incorporada ao núcleo familiar da mae. Ela errou, mas seu

erro maior to~- confiar no sa t.ado, opinou outro pai de

famí 1 ia. Se errou, pode 1 he ser dada a chance de reparaçao.

~7

7!

Page 105: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Ter- o filho e conseguir- criá-lo transforma-se, entao, na

pr-ova de um valor- associado à coragem de quem enfrenta as

consequências dos seus atos: sou muito mulher para criar meu

filho, um código de honr-a feminino.

Neste pr-isma, condena-se o aborto, considerado vaidade,

em opa si çào à responsa.b.i 1 idade:

A pessoa ter aborto_. tudo bem, ma;. se a pessoa é sadia e tem c,ap,acida.de dE? tra.b,alh,ar_. eu a.cho que ndo precisa fazer aborto ( ••• ) por que nao evita também? Eu acho que uma mde que desfaz de um filho nao é uma mde.

Para você sustentar ter um homem a de trabalhar. c.;;p,acidadE? de filho.

seu lado. Eu acho

trabalhar,

seu filho, nao precisa se É só você ter c,apacidade que a pessoa que tem

tem capacidade de ter um

A vaidade, implicando numa individualidade tida como

.irresponsável, porque nega os preceitos de obr-igaçào moral

em r-elaçao a seus iguais, opbe-se também à necessidade, cujo

caráter involuntário desculpa e justifica um ato moralmente

condenado. Assim, o aborto por nF?cessidade torna-se

compreensivel e moralmente aceito:

De um filho só. acho abor-to). ,:;gora, quando a filho;. •••

que nao precisa (fazer pessoa tem cinco. seis

S'F:

Page 106: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A capacidade de tr-abalho tor-na-se o meio através do

qual a mulher- pode reparar seu erro, mostrando que é digna

do respe.i to conter- ido ao homem neste código moral. o

tr-abalho para sustentar o f.ilho r-edime a mulher-, qLlE' se

tor-na a mae/pr-ovedor-a. Subor-dinado à mater-nidade, o tr-abalho

conter-e à mulher- a mesma autonomia mor-al que é r-econhecida

no homem/tr-abalhador-/pr-ovedor. Ela trabalha e sustenta sua

prole como for-ma de reparaçao do erro de ter uma vida sexual

sem um parceiro fixo que legitime SE'L! lugar de mulher-,

passando a perna por cima de todo mundo que falou dela e

mostrando que n.ao precisa de ninguém para c: r i ar os f i 1 hos

dela, como disse, nao à toa, o irmao de uma mulher solteira

que teve dois filhos com dois homens diferentes, este ''irmào

da màe'', guardiào da respeitabilidade de seus consanguineos.

Assim, a autonomia moral da mulher/màe solteir-a tem como

condiçào necessária que ela trabalhe e prove que é muito

mulher para c: r i .ar seLJ f i 1 ho, condi çao necessár-ia mas nào

suficiente, uma vez que sua independência econômica

depende, para se consolidar como r-espeitabilidade mor-al, do

apoio e da gar-antia de seus familiares.

Nesta perspectiva moral, o ''dir-eito'' ao prazer sexual

implica o "dever-" de assumir- as consequên c i as, a

possibilidade do filho, que é colocado como uma

inevitabilidade da vida sexual, fazendo com que a r-epr-oduçáo

legitime moralmente a sexualidade. Uma mulher- que estava

naquele momento na terceira uniào conjugal argumentou que

Page 107: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

uma mae que nao tem capacidade de assumir um filho~ f?nt.#io n.3o tE?m capacidadE? de estar namorando e estar arrumando homem. Eu acho que para ter capacidade de arrumar um homem~ tem capacidade de sustentar o filho que vem pela frente, porque tudo o que você fa:z, sempre tem que aparecer uma coise~

para voe? sacrificar sua vi da.

Relaçbes através das crianças

Pa~a entende~ o luga~ das c~ianças nas famílias pob~es

é, mais uma vez, necessá~io dife~encia~ as famílias que

cumpri~am as etapas do seu desenvolvimento sem rupturas,

onde os filhos tendem a se~ mante~ no mesmo núcleo familiar,

e as que se desfizeram neste caminho, alte~ando a ordenaçào

da ~elaçào conjugal e a ~elaçào entre pais e filhos.

Nos casos de instabilidade familia~, po~ separaçbes e

mo~tes, aliada à instabilidade econômica est~utu~a1 e ao

fato de que nào existem instituiçbes pUblicas que substituam

de forma eficaz as funçbes familiares, as c~ianças passam a

nào ser uma responsabilidade exclusiva da mae ou do pai, mas

de toda a rede de sociabilidade em que a família está

envolvida. Claudia Fonseca ( s/d) argumenta que há uma

coletivizaçao das responsabilidades pelas crianças dent~o do

g~upo de parentesco, ca~acte~izando uma "circulaçào de

c~ianças'' (Fonseca, 1985). Esta prática popula~ insc~eve-se

100

Page 108: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

dent~o da lógica de obrigaçbes mo~ais que caracteriza a ~ede

de parentesco entre os pobres. Constitui, segundo Claudia

Fonseca (s/d), um

''diviso~ de águas ent~e aqueles individuas em ascensào que de fato adotam valores de classe média e aqueles que, apesar de uma existencia um tanto quanto mais confortável, permanecem ligados á cultura popular.''

Em novas unibes conjugais, quando há filhos de unibes

anteriores, os direitos e deveres entre pais e filhos no

grupo doméstico ficam abalados, na medida em que os filhos

náo sao do mesmo pai e da mesma mae, levando a ampliar esta

~ede para fora deste núcleo. Nesta situaçáo os conflitos

entre os filhos e o novo cônjuge podem levar a mulher a

optar por dar para criar seus filhos, ou algum deles, ainda

que tempora~iamente.

A criança será confiada a outra mulher, normalmente da

~ede consanguinea da màe. Nas familias desfeitas, por morte

ou separaçào, no momento de expansao e criaçào dos filhos,

ocorrem rE?arranjos no sentido de garantir o amparo

financE?iro e o cuidado das crianças. Embora se conte

fundamentalmente com a rede consanguinea, as crianças podem

ser recebidas por nào-paren tes, dentro do grupo de

referência dos pais. Foi um dos casos que acompanhei, onde

um casal com tris filhos, moradores da favela local, cr1am

10.1.

Page 109: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

um menino, cuja mae mor-reu e o pai deSapar-eceu. A r-ota

alternativa para este menino fica clara na advertencia:

Ou voe€/ seguinte: eu .ap.arecer

se te

comporta? ou coloco na

do contrtlrio., FEBE/'1 até teu

O impor-tante a r-essalta r é que este na o é um caminho

sem volta, mas uma das possibilidades, a menos de~ejével,

dentro desta cir-culaçao das crianças.~ 7

Nos casos de separ-açàa, pode haver pr-efer"ência da máe

pelo novo companheir-o, prevalecendo o laço conjugal,

circunstancialmente mais forte que o vinculo mie-filhos. Uma

nova uniao tem implicaçoes na relação da màe com os filhos

da uniào anterior- que expressam o conflito entre

conjugalidade e maternidade (tào claramente revelado no

diálogo abaixo entre uma mulher já separada e sua màe, que

argumenta em termos da retribuiçào possível). Dadas as

dificuldades que enfrenta uma mulher pobre para criar seus

filhos, a tendência será lançar mào de so1uçbes temporárias

para contornar a situaçao, entre as quais está

possibilidade de que os filhos fiquem com o pai. Entre os

casos que acampem hei, dois homens, casados novamente,

37 Ver o trabalho de Cláudia Fonseca (1986) sobre a inter-naçii;o dos pobres como parte do contexto de circu1açio de crianças, onde o sentido da internaçáo, associada aos estigmas da pobreza, é r-e-elaborado quando se torna uma alter-nativa concreta em suas vidas.

:to.::.::

Page 110: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

ficaram com os filhos da uniáo anterior.

Ele (o marJ'do) não queria se separar de mim~ porquE? elE? falou que se um dia a gentE? se separasse_, ele nao largava da menina, que ele ia carregar a menina com ele.

Eu falei: "ent.iio vocé' va.i passar por cima do meu túmulo~ porque a menina de mim vocé nao tira".

E a minha m.iie: "O que? Hoje em dia., brigar por c..=wsa de filho nao vale a p&na, porque depois que eles cresce, eles dá um pontapé no traseiro da gentE?.

Eu faleJ·: "éi, mi:if?.' P senhora pode pensar o que a senhora quiser. mas eu penso do meu jeito. Eu acho que desde o mome>nto que a ge>nte pôs filho no mundo. a gente> tem que cuidar dele. Se tiver que passar fome., vai passar fome_, mas eu dar meus filho para alguém, isso jamais vou fazer."

A instabilidade familiar, embora seja um fator

importante, na o esgota o significado da circulaçao de

crianças, que pode acontecer mesmo em familias que nio se

romperam. Claudia Fonseca mostra como a máe que dá para

seu filho ou filha, pode exigir retribuiçao,

considerando que, ao darem seus filhos "sacrificaram suas

prerrogativas maternas em beneficio destes'': deram aos pais

adotivos uma criança. A criança aparece como dádiva, o que

estabelece a possibilidade de reivindicar retribuiçao. Nao

constituindo uma adoçao, ou seJa, a transferência total e

permanente dos di rei tos sobre a c r i an ça, a c i r cu 1 açao de

crianças é uma forma de transferência parcial e temporária,

tosterage, que abre espaço para relaçoes de obrigaçào entre

.1(1~

Page 111: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

os pais biológicos e adotivos. Instaura-se um jogo que

envolve manipulaçào por parte da màe biológica que dEu seu

filho, como sacrifício materno. Ao mesmo tempo, a

adotiva tem a expectativa de alguma retribuiçào (que pode

ser um pagamento) pelos cuidados prestados (Fonseca, 1986 e

s/d).

A adoçao representa quebra deste jogo, pela

transfer@ncia total dos direitos e deveres sobre a criança

adotada. Dá-se sob o signo da lei, enquanto a circulaçao de

crianças acontece no registro das obrigaçOes morais que

caracterizam

reiterando o

pobres.

as práticas

primado dos

populares (Fonseca, 1985) '

costumes sobre a lei para os

A circulaçào de crianças, como padrào legitimo de

relaçào com os filhos, pode ser- inter-pretada como um padrào

cultural que permite uma soluçao conciliatória entre o valor

da maternidade e as dificuldades concr-etas de criar os

filhos, levando as maes a na o se desligarem deles, mas

manter-em o vínculo através de uma circulaçao tempor-ária.

Assim, mantêm-se os vínculos sangue, aos de

criaçáo, ambos definindo os laços de parentesco, atualizando

o padrao de incorporaçào de agregados que tradicionalmente

caracteriza a família brasileira (Freyre, 1980). Através das

crianças, reafirmam-se, ao mesmo tempo, os vinculas com seu

grupo de referência.

J (14

Page 112: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

/'1.3e e Pa:i: nas horas boas e ruins .••

A prática de adoçbes informais e temporárias acaba

relativizando as noçbes de pai e mãe, o que implica numa

elasticidade no uso dessas categorias. As crianças chamam de

"pai" e "m.=ie" aqueles que CLJidam deles. A pessoa que cuida

sente-se no direito legítimo de ser assim chamada e

reivindica esta nomeaçào. O avS, quando mora com os filhos

de suas filhas solteiras, é invariavelmente o pai, assim

como o marido da ma e pode também ass1m ser chamado,

sobretudo quando o genitor- (pai biológico) nào tem ma1s

contato sistemático com os filhos.

Um dos homens entrevistados, casado pela segunda vez,

está entre os dois mencionados que moram com os três filhos

do seu primeiro casamento, os três do primeiro casamento da

mulher e um filho desta segunda uni.3o. A mae biológica das

cr-ianças trabalha fora e mora na casa contígua à dele, com

entrada pelo r-ua de tr-ás. Segundo seu relato, e>le e a

segunda mulher sao os que cvidam e os f i 1 hos do primei r o

casamento chamam a sua segunda mulher de mae, e a mae

biológica pelo nome próprio. Desta situaçào~ ele disse ter

uma teor.ia:

J. (l ~'

Page 113: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

11.3e é a que cuida deles ( .... ) n.3o aquela qLie viv~ pelo mundo. talvez na sua vaidade_. ou talvez na sua necessidad~_. nao assista o seLI crescimento~ o seu desenvolvimento. Entaa eLJ acho que máE? é aqu&la que realmente zela pela criança.

As categor-ias pai e mae, desvinculando-se da or-igem

biológica, r-etorçam os vínculos de criaçao. Assim comE>ntou

um homE'm dE' 24 anos, quE' tE'm um ir-m.sio adotivo e cuja mulher-

tem filhos de outr-o casamento:

Quando ele (o irmao adotivo) tinha mais ou menos uns dr:?z .anos. minha máe contou toda a história para ele .• apresentou a miie dele, a av6 dele, a familia ••• toda a famil.ia e ele náo se importou com nada. Ele falou: esse é meu lar, esses siio m~us pais' .. E está até hoje com minha mcie, reconhece como miie .• gosta dela ••• tudo ••• até hoje.

E sobr-e a filha de sua mulher:

Eu acho que todo mundo tem que saber a verdade. Se um di a.. • • se eu conheço o pai dei a, SE?

ele aparecer di :zen do que é o pai .• espero que ela julgar quem j.á tenha idade suf.iciente para

realmente é o pai. Ni!io pelo fato de pelo carinho, pelo amor, por estar horas boas e ruins •••

fecundar, junto •••

m~s

nas

Diante do fato cultur-al de que o cuidado da criança é

preferencialmente confiado " ma e " " sua r-ede de

sociabilidade, torna-se evidentemente mais fácil desvincula~

J. o.:.'

Page 114: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

a categoria p.ai de sua origem biológica de sangue. Mesmo {

assim, embora o gen i to r (pai biológico) na o c r i e a c r i ança

e, por- isso, nao mereça o afeto e a designaçào de pai, p;:.•i

n~·--:-- estar junto, nas horas boas t? ru.ins, nào se desfaz a

imagem idealizada de um pai de sangut?. Confirmando o

habitual desconfor-to diante de situaç6es formalizadas, que

caracteriza 05 pobres, uma mulher casada, comentou as

soluçbes para os casos de separaç~o conjugal, argumentando

que, ao contrário do C/LI& diz a lei, quando o~ filhos são

pequenos, é melhor nao verem o pa~, em lugar- de verem em

dias mar-cados. Em sua opiniao, é ruim para a criança ver que

o pai não volta para casa, nao está portanto, nas horas boas

e ruins. Os filhos devem, entao, ver o pai quando crescer-em,

se, por iniciativa própr-ia, quiser-em saber do pai, porque o

quE' conta é quem está junto.

No caso da máe, o v.inculo biológico nao perde sua força

simbólica. Chamar- várias mulheres de máe náo exclui

idealizaçào do laço biológico mae-filho. O trabalho de

Fonseca (s/d) mostra como mesmo nos casos em que a criança é

cuidada por outras que nao sua biológica~ esta é

reconhecida e reivindica o status de verdadeira mde. f1iiie

também é quem cr-iou, mas a verdadeira mae é uma só.

A coexist'l?ncia das categor-ias de sangue e de criaçao,

como parte do sistema de parentesco dos pobres, permite a

manipulaçâo, sobr-etudo entr-e as mulher-es, de demandas sobre

a criança, ou o seu uso como instrumento de outras demandas.

J07

Page 115: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Cada parte reivindica de acordo com os direi tos que sua

posiçào de ma e qLie c r i ou ou de verdade i r a m.Eie lhe

confere, dando express~o a inúmeros conflitos e rivalidades.

Sào particularmente marcantes os casos de avós que

criam os filhos de suas filhas sol te iras, onde o s.:.ngue se

sobrepbe à cri01çáo, conferindo à avó um poder de manipulaçào

singular, porque se inscreve na relaçâo hierárquica entre

màe e filha. A pertinência ao mesmo grupo de sangue, pela

linhagem, e seu estatuto de poder sobre a filha levam a avó

a ''apropriar-se'' da criança, que a chama de màe, enquanto a

mae biológica é chamada pelo nome próprio, sendo privada de

seu lugar de mae. Nos casos observados, a filha acaba saindo

de casa e deixando o filho, porqLIE> nao tenho condiçoes de

criá-lo, o que configura uma maneira indireta de expulsar de

casa a mâe solteira, opçâo sempre negada no discurso.

Embora a r-ede de parentesco possa ser caracter-izada

pela indiferenciaçâo entr-e parentes de sangue e de criaçdo e

o tr-atamento dado aos filhos de criaçao crianças dadas

para criar tenda também a ser indiferenciado, isso na o

quer dizer que esta distinçâo nao seja manipulada nos

conflitos, fazendo com que nem sempre as crianças que n~o

fazem parte do núcleo original sejam tratadas da mesma

maneira. Isto pode acontecer em relaç:âo o os fi 1 hos de

criaçi:w, mas aparece particularmente em relaçao aos filhob

de unioes anterior-es do cônjuge:

lOt

Page 116: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Ninguém quer criar filho de> outro homem, dar comida a filho de ninguém, depois ficar jogando na cara da mulher. Arruma uma briguinha assim e joga na cara da mulher •••

Quanto às ob~igaçbes mo~ais dos filhos com relaçDes aos

pais, os pais que criam e cuidam sao merecedores de profunda

retribui çao, sendo um sinal de ingra.tidào o na o

reconhecimento desta contrapartida.

Dentro das possibilidades com as quais conta uma mulher

que engravida e que, na sua concepçào, nâo tem condi çbes de

cr~ar o filho está o aborto, nem sempre moralmente aceito,

ainda que se justifique por necessidade, como foi comentado.

Em funçi:i.o desta interdiçao moral, dar os filhos para criar é

uma alternativa aceitável dentro de seus códigos morais, nào

sendo necessariamente expressao de um desafeto:

De repente, uma f ami 1 i a que cuidar bem •••

voe~ pode até achar uma que i r a_. que você saiba

pessoa .• que va~·

As adoçties temporárias, ou a circulaçao de crianças,

criam uma forma de apego, uma afetividade distinta das

relaçóes estáveis e duradouras. O sentimento de uma mae ao

d.ar seu fi 1 ho par .a criar, como uma questao de ordem

sociológica, diz respeito a um padréo cultural onde as

crianças fazem parte da rede de relaçties que marca o mundo

dos pobres, constituindo "dádivas", como observou Claudia

Page 117: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Fonseca {s/d). Assim, criar ou dar uma criança n.:io é apenas

uma questao de possibilidades materiais, mas se inscreve

dentro do padrào de relaçbes que os pobres desenvolvem entre

si, caracterizadas por um dar, receber retribuir

continuas.

Projetos familiares

O casamento é o projeto inicial através do qual começa

a se constituir a familia. É por intermédio do casamento que

sào formulados os projetos de melhorar de vida, nunca

concebidos individualmente, mas em termos da

complementaridade entre o homem a mulher. Se a mulher

deposita no homem/marido suas expectativas de ter alguma

coisa na vida e interpbe entre ela e o mLtndo a figura

masculina, a contrapartida aparece claramente no discurso

dos homens, para quem:

A gente sozinho nLmca consegue nada. TE>m que haver uniao, porque se eu lutar sozinha_, eu niio vou conseguir nada. Nesmo que ela nao trabalhe, mas ela ••• economizando a gente chega lá !f aonde a gente quer chegar, porque estando os dois é mais fácil, né? Um é bem mais difici1, porqLie nao tem aquela re5ponsabi 1 idade que tE>m dE>pois de casado. A maioria dos casal ai só tem as coisa dG>pois quG> casa. N<=io se_i se é prag.:;_, o que é_, se é descaraçao mesmo do homem. Nas o cara só consegue as coisa mesmo quando casa. A.i consegue progredir.

11(1

Page 118: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Esse projeto tem época certa:

casar Já tinha mocidade, já dava para aquietar. Eu já tinha namorado demais, já

que dava aprove.itado minha v.ida o

e me t.1"nha para

aproveitar .•. , já estava para casar .•. para cuidar da minha vida.

ter alguém

O casamento para o homem significa parar de zoar. Esse

tempo de zoeira é época boa, etapa necessária para aquisiç:.3o

do código masculino de sociabilidade. Transitar no mundo da

rua é parte do processo de tornar-se homem. 1sto se d~ nos

bares, no bairro ou nas redondezas. Essa etapa, no entanto,

tem limites. Ficar nessa nao leva a nada. Depois de se

divertir, fi> preciso aquietar. É quando o homem começa a

pensar em namorar para casar, em ter uma responsabilidade na

vida. O casamento passa a ter contornos de um projeto, com

véu e grinalda ou simplesmente juntando os trapinhos. Nào dá

mais para sair na sexta-feira e s6 voltar na segunda. Começa

a se delinE?ar, com matizes e nuances, a imagem do homem de

respeito, o pai dE? familia.

SE?m a fam.i.lia, os rendimentos do trabalho masculino

desperdiçam-se naquilo que nao leva a nada. Sem os papéis

familiares que conferem sentido ao desempenho masculino no

mundo do trabalho, a própria atividade de trabalhar náo faz

sentido; ao mesmo tempo em que a expectativa depositada no

homem de ser o provedor familiar, como foi mencionado, o

coloca continuamente diante da possibilidade do ''fracasso''.

.l J. j

Page 119: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

o casamento legal o religioso considerados

moral mente super i ores à uni ao consensua 1 conferindo maior

respeitabilidade ao casal e legitimidade ao lugar de marJdo

e de esposa. A pr-imeira uniao conjugal é sempre pensada e

idealizada como uma uniáo referendada pela lei de Deus e dos

homens, enquanto as unibes subsequentes se constituem como

unibes consensuais, fazendo do divórcio um recurso raramente

utilizado entre os pobres.

Do ponto de vista da família de origem, há o momento de

casar-,

porque náo pega bem a gente passar toda uma vid.a solteira dentro de casa_, dando trabalho para o pai e para a má e. Porque, por mais que a gen ti? seja o que a gente i#> (todo o rendimento do seu trabalho vai par-a "dentro de casa"), eles sE?mpre acham que a gente es. t~ dando trabalho_, na o é mes.mo? Principalmente, quando estáo caindo para a idade •.• eles querem mais. é ficar s.o2inhos., porque eles .id cr~·aram a gente né? Já te2 de tudo pela gente e agora. . • de repente a gente f i c a velho e em ve2 de casar e procurar o rumo da gente ••• a gente f~·ca dentro arrumando mais trabalho para eles. Est~ errado, né?

Nesta casa, duas das filhas sao maes solteir-as, cuJos

filhos sao cr-iados poc sua familia, situaçao que se

contr-apbe à for-mulaçao do pr-ojeto de melhorar de vida. Em

que consiste, afinal, este projeto?

A populaçao pobre que vive em sao Paulo tem todas as

aspiraçbes que a cidade lhe apresenta e que a televisao

1.1 ::::·

Page 120: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

estimula e unifo~miza; esta exposta à individualizaçào que a

cidade impôe, at~avés do tr-abalho e do consumo. O jovem

pobr-e ur-bano tem planos de melhorar de vl.da, como seus pais

que mlgr-ar-am; mas estes planos se formulam dentro de um

univer-so de valor-es onde as obr-igaçbes mor-ais sao

fundamentais, por-que sua existência está ancor-ada nesta

mor-alidade.

A elabor-açào de pr-ojetos individuais pa~a melhorar de

vida, atr-avés do tr-abalho, esbar-r-a nos obstáculos do próprio

sistema onde se localizam como pobres e torna-se

particular-mente problemática diante das obr-igaçbes morais em

relaçào a seus familiares DL! a seus iguais com os quais

obtêm os recursos para viver. Assim, as projetos, onde a

idéia de melhorar de vl.da está sempr-e presente, sao

formulados como projetos familiares. N&lhorar de v.id.a é ve~

a família progredir. O trabalho é concebido dentro desta

lógica familiar, constituindo o instrumento que viabiliza o

p~ojeto familiar e nao individual, embo~a esta atividade

seja realizada individualmente.

11C

I' r

Page 121: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Delimitaçao moral da família

A familia, par-a os pobr-es, associa-se àqueles em quem

se pode confiar. Sua delimitaçao nao se vincula à

per-tinência a um gr-upo genealógico e a extensao vertical do

par-e.>ntesco restr-inge-se àqueles com quem convivem ou

conviver-am, r-ar-amente passando dos avós. O uso do sobrenome

para delimitar o grupo familiar a que se pertence, recur-so

utilizado pelas familias dos gr-upos dominantes brasileiros

par-a per-petuar o status (e poder) conferido pelo nome de

familia, é pouco significativo entre os pobres. Como nao há

status ou poder a ser- transmitido, o que define a extens~o

da familia entr-e os pobr-es é a rede de obrigaçóes que se

estabelece: \'.;i;:,_,_-, da familia aqueles com quem se pode contar,

isto quer- dizer, aqueles que retribuem ao que se dá,

aqueles, portanto, para com quem se tem ob,-igaçdes. sao

essas r-edes de obr-igaçóes que delimitam os vinculas, fazendo

com que as rel açóes de afeto se desenrolem dentro da

din~mica das relaçbes descritas neste capitLtlo.

A noçao de família defint--se, assim, em torno de um

P.ixo moral. Suas fronteiras sociológicas sao traçadas a

partir- de um principio da obrigaçáo moral, que fundamenta a

familia, estruturando suas relaçbes. Dispor-se às obrigaçbes

mor-ais é o que define a pertinência ao grupo familiar. A

argumentaçao deste trabalho vai de encontro à de Klaas

Woortmann ( 1987), par-a quem, sendo necessário um vinculo

Page 122: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

mais preciso que o de Siingue para demarcar quem é parente ou

náo entre os pobres, a noçào de obrigiiç~o torna-se central à

idéia de parentesco, sobrepondo-se aos laços de sangue. Esta

d~mensao moral do parentesco, a mesma que indiferencia os

filhos de sangue e de criaç~o, delimita também sua extens~o

horizontal. Como afirma Klaas Woortmann (1987), a relaçao

entre pais e filhos constitui o único grupo em que as

obrigaçoes s.3o dadas, que na o 51? escolhen. As outras

relaçbes podem ser seletivas, dependendo se

estabeleçam as obrigaçDes mútuas dentro

de

da

como

rede de

sociabilidade. Nào há relaçbes com parentes de sangue, se

com eles ndo for possível dar, receber e retribuir.

As retribuiçbes que se esperam nas relaçbes entre os

pobres nao.sãoimediata~ Por isso, é necessário confiar. Como

salientou Klaas Woortmann (1987), "o fato importante é a

aus?ncia de cálculo de dívida explícito" ( p. 197)

precisamente a falta de interesse que marca as relaçbes

familiares, na medida em que o interesse constitui uma

categoria fundamentalmente individualista, em oposiçao à

noçao de necessidade, utilizada pelos pobres como critério

para a definir a obrigaçao de ajuda. A pessoa ajuda quem tem

precis~o, na certeza de que será ajudada quando chegar a sua

hora. Nao se trata, portanto, de um dar e receber imediatos,

mas de uma cadeia difusa de obrigaçbes morais, em que se dá,

na certeza de que de algum lugar virá a retribuiçáo, tendo

na crença em Deus a garantia de continuidade da cadeia: Deus

Page 123: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

provê. Em última instância, essa mor-alidade está ancorada,

entao, numa ordem sobrenatural.

Concluindo este capítulo, a família inter-essa

argumentaçào deste trabalho enquanto um tipo de r-elação,

onde as obr-igaçcies mora~s sao a base fundamental. A familia

como ordem moral, fundada num dar, receber e retribuir

contínuos, torna-se uma refer?ncia simbólica fundamental,

através da qual traduzem o mundo social, or-ientando e

atr-ibuindo significado a suas r-elaçbes dentro e for-a de

casa.

Page 124: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Capitulo 4

A MORAL NO MUNDD DD TRABALHO

"Dá tanto quanto r-ecebes, tudo estar-á mui to bem".

Provérbio maori, citado por Marcel Mauss

Page 125: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A 1 i ter-atura sobre os pobres urbanos já demonstrou a

heterogeneidade dos moradores da per i feria e dos subúrbios

no que se refere à sua inserçao no mercado de trabalho,

contraposta à relativa uniformidade de seus rendimentos e

seu modo de vida, e ressaltou a importância do local de

moradia como base de uma identidade coletiva (Magnani, 1984,

Caldeira, 1984, Sarti, 1985a, Zaluar, 1985 e Ourham, 1988).

Os moradores do bairro em que pesquisei reproduzem esta

heterogeneidade, trabalhando na indústria, no comércio ou no

setor de serviços, e apresentam também uma significativa

homogeneidade no que se refere nào só aos baixos

rendimentos, mas à sua qualificaçào. A predominância é de

trabalhadores assalariados nào-especializados e, entre os

autônomos, os nào-especializados sào também a maioria. Sua

renda média nào passa de dois salários minimos, segundo o

survey feito em 1980 no bairro.~~ Refi r o-me neste capí tu 1 o,

portanto, ao sentido do trabalho para os trabalhadores

"desqualificados", formalmente vinculados em sua maioria ao

mercado de trabalho, embora haja também entre eles os que

vivem de bi5cate, sentido apreendido no discL!rso sobre o

trabalho que realizam, quase sempre fora do espaço do bairro

onde pesquisa foi feita. São traba;lhadores que se

38 ~ porc~ntaq~m d~ assalariados não-~specializados era de 70~ em 1980 e de prestadores de serviços igualme-nte não-especializados, incluindo o serviço doméstico, era de 14%, compondo nitidamente um qu~dro de trabalhadores niw-especializados no bairro (84%) • ainda que a maioria esteja formalmente ligada ao mercado de trabalho.

118

Page 126: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

representam pela clara definiçao de um deles sobre si mesmo~

Eu na o tenho nada, eu tenho só a saLlde e a dispos.i.çilo para trabalhar.

Pobres ~ rrabalhadares

A identidade masculina, na faml.lia e fora dela,

associa-se diretamente ao valor do trabalho, nao apenas para

os pobres. O trabalho é muito mais que o instrumento da

sobrevivência material, mas constitui o substrato da

identidade masculina, forjando um jeito de ser homem. É

condiçao de sua autonomia moral, ou seja, da afirmaçao

positiva de si, que lhe permite dizer: eu sou.

Na auto-imagem dos homens, moradores da periferia, a

identidade de trabalhador confunde-se com a de pobre.

Definem-se como pobres ~ trabalhadores, sendo as duas

categorias igualmente importantes para sua localizaçao no

mundo social. Partindo da identificaçao destas duas

categorias, procurei entender o sentido particular do

trabalho para os pobres. A identidade de pobre carrega a

conotaçao negativa que o termo encerra em si:

e-

l.l9

Page 127: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Tem a que 1 a f rase 1 á, que quando a pessoa é pobre, pé rapado., nao presta. Entao~ a gente tem que mostrar para as pe>ssoas ricas .• que nE>m no caso da gente ser um emprE>gado, que a gente é pobrE>, mas a gente é honesto. a gente quer vencer, entao a 9ente tem qLie mostrar qLie a gE>n te também somos gente igual a eles.

Pobre, categor-ia car-r-egada de conotaçbes mor-a~s, nâo

diz respeito apenas às desigualdades sociais, mas, sendo

r-elativizada pelo prisma moral, é

aqw::la pessoa pobre de espírito. Aquela pessoa que ela ca.i num buraco, em vez dela tentar subir, ela cava um buraquinho para descer, descer, descer •••

É através do tr-abalho, então, que demonstram não ser-em

pobres, atr-avés de sua hones ti dad&, sua di sposi çdo de

vencer, tor-nando-se por estes atr-ibutos morais, iguais a

eles. Vencer aqui náo significa necessariamente ascender

socialmente, mas se afirmar pelo valor positivo do trabalho.

Ao lado da negatividade contida na noçao de ser pobre, a

noção de ser trabalhador dá ao pobre uma dimensâo positiva,

inscrita no significado moral atribuído ao trabalho,

partir de uma concepçâo da ordem do mundo que r-e-qualifica

as relaçbes de trabalho sob o capital. Se ele se localiza

como pobre no mundo social, não se considera pobre de

espi r i to, porque tem os valores morais que 1 h e permitem,

quando cair no buraco, se levantar. E através do trabalho

que realizam esta disposiçdo de se levantar. O valor moral

120

Page 128: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

atribuído ao trabalho compensa as desigualdades socialmente

dadas, na medida em que é construido dentro de outro

r-eferencial simbólico, diferente daquele que o

''desqualifica'' socialmente.

Neste capitulo, pr-etendo tratar- do universo do

trabalho, procurando entender em que se fundamenta a ética

pela qual ele é regido e que, nao apenas legitima e

justifica a submissáo à disciplina do trabalho, mas atribui

um sentido positivo à exist~ncia dos pobres e trabalhadores.

É precisamente esta ética que fundamenta a imbricaçáo destas

duas categorias no universo simbólico dos pobres, embora

distintas da definiçào delas apresentadas, como mencionei no

capitulo dois, que se baseia numa concepçao sociológica do

trabalho, a priori, onde o que se acentua é a "exploraç.3o",

que é o resultado da forma como ele é organizado na

sociedade capitalista, limitando a esta ótica o sentido do

trabalho, Mesmo quando se considera a concepç.3o que dele

fazem os próprios trabalhadore5, os que assim se designam,

tomando sua "exper-iªncia" como irredutível, isto náo quer

dizer que a ótica que reduz o trabalho à sua exploraçao

deixe de informar- a leitura.

121

Page 129: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O trabalhador como homem fort~

Os pobres evidentemente avaliam o trabalho pelo

critér-io fundamental do salár-io, Uma ocupaçào melhor-

remunerada será sem dúvida valor-izada. Mas o valor- do

dinheiro, que é próprio da sociedade capitalista enquanto

seu "bem supremo", é relativizado pelo valor- moral do

trabalho. Exceto para aqueles que se engajaram no pr-ojeto

pr-opr-iamente de ascensao social antes mencionado, rompendo

os vinculas com seu grupo de referência e norteando sua vida

pelo pr-incipio da "r-azao prática", o valor- do trabalho se

define dentro de uma lógica em que conta nao apenas o

cálculo econéimico, mas o benefício moral que retiram desta

atividade. o trabalho vale n.3.o só poc seu rendimento

econômico, mas por seu r-endimento moral, a afirmaçao, par-a o

home~, de sua identidade masculina de hom~m forte para

trabalhar,·~•

A retraduçao do valor do trabalho sob o capital, que o

torna dignific:ante, faz-se através da honra, ou seja, do

direito ao orgulho de si mesmo, como define Pitt-Rivers

(1988). A honra, entre os pobres, nao estando associada à

posiçao social, vincula-se à vir-tude moral, enquanto

39 Esta positividade> do trabalho, que> e>xiste> no universo simbólico dos morador-es da per-ifer-ia de Sao Paulo, é ressaltada, no plano do ester-eótipos, nos sambas, se>gundo José Paulo Paes (1981) "diferencialmente paulistas", de Adonir-an Barbosa, que r-etratam o mundo suburbano do trabalho.

122

Page 130: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

afirmaçào de si em face do olhar dos outros, sendo o

trabalho um dos instrumentos fundamentais desta afirmaçao

pessoal e social. No que se refere ao trabalho, a honra pode

estar contida no fato de se tE-r uma prof.iss~o, reproduzindo

em sua aspi raçào o orgulho das corporaçbes de o f .i. cio pré~

capitalistas; em trabalhar por conta própria, sem precisar

ter um che>fe> nas costas da ge>nte, reafirmando seus anseios

de autonomia através do trabalho; ou, em face dos trabalhos

''desqua 1 i f i cados" que têm a seu a 1 cance, traduzem-nos como

tr.:Jbalho d1.1ro, serviço pE?sado que exige qualidades morais

como a corggem, a força e a di sposi çao.

Esta disposiçao para o tr-abalho, este ser pau para toda

obra, que caracteriza os pobres (ou os trabalhadores que se

ocupam de atividades socialmente desqualificadas), é vivida

como uma qua 1 idade positiva, uma dá di v a, que compensa as

desigualdades sociais. Ela é mesmo percebida como uma

vantagem relativa, levando os pobres a considerarem que, em

última instância, o rico depende mais do pobre do que o

inverso, porque o pobre, embora niio tenha nada tem saúde e

esta disposiçao para trabalhar, capacidade da qual ninguém o

priva, porque é concebida como dada por Deus:

Quando Deus d~

precisa .• a coragem_. serviço.

à gente tudo a disposiçao,

o a

que a gente

gente faz o

Page 131: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A potencialidade para trabalhar, transformada em

mercadoria a ser vendida em troca do salãrio no sistema

capitalista de produçao~ que corresponde, na análise de

Marx, à noçao de "força de trabalho", é, para os

traba 1 hadores, a sua di spos.i çiio e força, concebidas como

dádivas divinas, como fazendo parte da ordem da natureza. A

dispos.içao para o trabalho, jà em SÍ uma graça, é

complementada por outra graça, a da boa vontadf: para

aprender. Como me disse uma mulher:

R: Se os pobres tiver uma lavour.:o. tiver uma condiç.i:io de viver, eles t.ambém nao vai depender tanto dos ricos, tanto qucmto os ricos precisa da gente. Uma comparaçao: voei? precisa de um vestido para fazer. Você náo sabe fazE>r ~ agora eu sei fazer. Se você nao vir ni mim para m.im fazer o vest.ido para voe~, voe~ nâo vai vestir aquele vestido. Uma que voe~ niio sabe fazer_, e eu sei fazer. Voe~ tem o dinheiro_. E>LI nao te>nho o dinhe>iro_. mas eu sei fazer. A.í é onde E>stá_, entendeu?

P: Entào o ~~co tem o dinhei~o, mas

R: Nas na o tem boa vontade de aprender, de fazer que o pobre faz.

Esta disposiç.3o é vivida como o fundamento de sua

autonomia. Pa~a tê-la, no entanto, é preciso saúde, um valo~

~elacionado ao t~abalho. o co~po é o inst~umento do

t~abalho, nào apenas pa~a sobrevive~, mas para mostra~-se

forte. Também a saúde tem um valo~ mor-al O tr-aba 1 h o de

Ma~ia C~istina Costa (1993), analisando o univer-so simbólico

1.24

Page 132: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

no qual se insc~eve o t~abalho entre os cortadores de cana

que entrevistou na periferia de Ribeirao Preto, mostra

como, em sua concepçào, sobressai a exigência de f es orço

fi.sico e de disposic;:ao, portanto, de sa1..íde, para que o ganho

possa satisfazer as necessidades familiares, de um lado e

para que, de outro lado, suado e exausto depois de uma

jornada, possa dizer: É trabalho de gente forte (cf. Costa,

1993, p. 133). 40

Mesmo nào tendo nada, ele tem sal..lde e disposJ.·ça·o par.:o

trabalhar. Assim, a saúde, sendo uma condiçào o

trabalho, faz com que aquele que, no registro do poder~ é

fraco e pobre, torne-se forte e rico:

"É r-ico e forte por-que assim, manter a r-iqueza moral de familia." (Costa, 1993, p.

tem saúde e de trabalhador 125)

pode, e pai

A dimensao moral da capacidade f.í.sica do trabalhador-,

corporificada na noçao de saúde, foi também sugerida e

analisada por Luis Fernando Duarte (1986) Ele mostra que a

capacidade moral se associa às categor-ias de

respcmsabi 1 idade, obri gaçao, vontade e corag&m, enquanto a

40 Semelhantemente aos moradores da periferia de Sao Paulo, no discurso dos trabalhadores entrevistados por M. Cristina Costa (1993), o trabalho é avaliado ora pelos critérios da ordem econômic,;, capitalista, onde o que conta é o salário, ora por critérios de ordem moral, onde o que imporia é a hon~a do trabalhador.

I /

Page 133: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

capacidade física a categor-ias tais como res.i.sténcia, força

e disposiç.tio, "que irào servir a idéias ou compor- locuçbes

físico-morais" (p. 257).

O trabalho, conferindo di gn.i da de ao pobre enquanto

fundamento de sua autonomia mor-a 1, legitimH sua

reivindicaç:ào de rG?speito, dentro da mesma lógica em que o

trabalhador reivindica o respeito de seus fami 1 i ares e

garante, como c:hede-da-famJ.lia~ a respeitabilidade de seus

familiares. o trabalhador- dá seu suor e r-eclama a

contrapartida do respeito, o que se traduz na exigência do

reconhecimento de que ele faz a par-te que lhe cabe. A

dignidade do esforço implícito no trabalho possibilita

inverter o rito de autoridade de que fala Da Matta (1978) e,

do legitimo lugar de trabalhador, que reconhece a honra de

sua condiçáo e reivindica a contrapartida do reconhecimento

desta honr-a, o pobr-e pode virar o jogo e dizer o seu "Você

sabe com quem está falando?".

Esta dimensào positiva do trabalho, misturando

fundamentos morais e religiosos aos econômicos, constrói a

auto-imagem do trabalhador e, legitimando um lugar de

respeitabilidade, ar-ticula-se também na dimensào política,

ao definir os limites da autoridade legitima nas relaç:Oes de

trabalho, da ''boa autoridade'' que leva à ''boa obediªncia'' e,

assim, qualificar o que se torna abuso da autoridad~, quando

126

Page 134: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

l., ..

a dignidad& do trabalhador náo é respeitada. 4 ~

A noçào de dignidade se funda num principio de

obrigaçOes nas relaçdes de trabalho, onde a assimetria nao é

posta em questao. Nào se trata do principio igualitário que

se expressa na lei, mas de um principio relacional, de

obrigaçdE?s (como na família), onde cada um tem uma parte a

cumprir. Os pobres e trabalhadorE?s fazem sua exig'ência de

respeito náo como cidadáos, mas como seres humanos que sào

fi lhos de Deus, ancorando-se numa ordem da natureza,

legitimada de uma perspectiva sobrenatural, e nào na lógica

da vida pública, para estabelecer os parâmetros onde a

dignidade do trabalhador é ferida. Nesta concepçáo, é a

honra que está em questáo e nao o direito fundado na noçào

de cidadania, dois referenciais distintos, mas que SE?

entrecruzam quando, em nome da honra, que lhe confere o fato

de ser- pobre, trabalhador e filho de Deus, abre-se a

possibilidade do trabalhador reivindicar um direito, que

embora nao deixe de ser concebido dentro de uma tradiçi:io

hierárquica, pode resultar efetivamente, por linhas tortas,

em uma conquista no plano da cidadania.

Pitt-Rivers (1988} mostra em seu estudo sobre a honr-a

que esta se coloca em oposiça.o ao principio da cidadania,

41 Lals Abramo (1986 ~ 1988) int~rpr-~ta o s~ntido das gn•ves de 1978 como uma ~xigência de resgate da dignidade do trabalhador-, numa conjuntur-a especifica onde a violência nas relaçbes de trabalho chegou a um ponto e~tr-emo. Ainda que sua análise se refir-a a Psta conjuntura específica, suas conclusóes sobre o compor-tamento dos grevistas par-ecem­me r-emeter a traços estruturais de sua concepçao do trabalho e de sua auto-imagem como trabalhador-es.

127

Page 135: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

definindo-se enquanto um código em conflito oom a

legalidade. Se o código de honra é um valor aristocrático, 0

pr-incipio da honr-a na o se r-estr-inge aos ar-istocratas,

manifestando-se em diferentes épocas históricas, em

diferentes espaços sociais, de acordo com as tradiçties

cultur-ais particulares a cada época e espaço, tendo em comum

a contraposiçáo à lei. Assim, os aristocratas desprezaram as

leis, porque se consideravam "acima" dela, enquanto os

"marginais", mesmo "fora" da lei, a substituem por seus

próprios princ.í.pios de honra. Quanto à importância do

principio da honra entre os pobres, é no primado dos

costumes sobre lei, fundado no reconhecimento da

desigual da de reproduz ida na 1 e i que favorece os r i r:os, que

se pode entendê-la. Mesmo porque, a lei é para ele>s, os

outros, que pertencem ao mundo dos poderosos:

Porque no Bras i 1 só tem JLIS ti ça, para P.P.: preto e pobre. Porque Br.ssi 1 também é preto. É a mesma dois.

só tem poli c ia br.:mco pobre no .Justiça p.sra os

No mundo dos pobres, a "1 e i justa" vem antes de Deus

que dos homens. ~ a justiça divina que os iguala enquanto

f i 1 hos de Deus.

Para os trabalhadores que se ocupam de profissbes

socialmente desqualificadas, a ascensao social através do

trabalho, possibilitando a aquisiçàio dos bens supremos da

128

Page 136: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sociedade capitalista, riqueza, prestigio e poder, embora

nào esteja fora de cogitaçáo, pelo menos como aspiraçào, nào

se constitui como o centro de suas refer~ncias simbólicas.

Os pobres, sem dúvida, aprendem em casa e na escol a que é

através de seu trabalho e esforço que o indivíduo deve achar

seu lugar no mundo social (Verçosa, 1985) esta moral que

anima o trabalho sob o capital, criando a possibilidade de

mobilidade social no mundo moderno. Fazem destas liçoes,

entretanto, uma leitura própria, a partir do valor moral que

atribuem ao trabalho. O trabalho nao é pensado somente como

instrumento par-a ascender socialmente; se buscam aumentar

seus ganhos, fazem-no dentr-o do projeto coletivo de melhorar

de v:ida, concebido dentro da lógica de obrigaçbes entre os

familiares e nào apenas em função dos preceitos da ra:zao

prática. o projeto de ascensào, quando concebido pelo

principio individualista da razão prática, faz romper as

fronteiras do mundo dos pobr-es, nào pelo ganho mais elevado,

mas porque rompe a cadeia de obrigaçóes entre os iguais,

configurando nào um projeto de melhorar de vida, mas um

projeto de subir na vida.

O estudo de Klaas Woortmann (1984) mostra como as

est~atégias individuais de entrada no mercado de trabalho de

cada um dos membros da família (formuladas, evidentemente, a

partir das possibilidades do mercado) obedecem a um projeto

coletivo da família. Estas estratégias, que respondem aos

papéis familiares, como mostrou o autor, nao visam apenas a

129

Page 137: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sobrevivi?ncia, náo sao só economicamente determinadas por

motivos pragmáticos. Ao contrário, as ''escolhas'', para viver

e sobreviver, sào fundadas numa moralidade que envolve

obrigaçbes mútuas. Sào elas que permitem ao jovem dar, se

nào inteiro, pelo menos, uma boa parte dos seus rendimentos

à màe para cobrir os gastos da família, privando-se, nào sem

conflitos, do dinheiro que ganhou individualmente. s~~ elas

também que fazem o homl:õ"m entregar à sua mulher seu salário

inteiro (ou quase), orgulhoso de cumprir o papel masculino

de pôr dinh~.iro d~ntro d~ casa. Em relaç:ao à família, o

trabalho é parte de um compromisso de troca moral.

Como a realidade social nào é univoca e a dominaçáo nào

é absoluta, os individuas estao expostos a referências

di versas, di f iceis de compatibi 1 izar, fazendo com que os

sistemas simbólicos comportem sempre alguma ambiguidade e os

valores se apresentem aos individuas de uma forma

frequentemente conflitiva. No caso dos pobres, essa

ambiguidade se expressa no fato de que seus valores morais

sáo constr-uidos em conflito com o que o mundo capitalista

lhes ofer-ece como possibilidades, que n.Qo deixam, no

entanto, de fazer- parte de seu univer-so simbólico. A for-ma

como avaliam o trabalho encerr-a esta ambiguidade, traduzida

numa reavaliaçao do mundo do tr-abalho sob o capital, a

partir- de uma concepç:ao da or-denaç:ào do mundo na qual

constr-oem um sentido positivo par-a seu trabalho, afir-mando­

se perante si e os outros. Para eles, seu trabalho tem

13(1

Page 138: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

qualidades, definidas em termos morais, ainda que

socialmente seja "desqualificado" ou ''n~o-qualificado'' e

dificilmente sustente as aspirações que o mundo capitalista

oferece.

O valor moral do trabalho, com o beneficio que dele

decorre, nao se inscreve, entao, apenas dentro da lógica do

cálculo econômico do mercado. Através do trabalho, os pobres

constroem uma idéia de autonomia moral~ atualizando valores

masculinos como a disposiçao e a força (nào só física, mas

moral), que fazem do homem, homem.

O trabalhador como provedor

Na moral do homem, ser homE>m fortE' para trabalhar é

condiçao necessária, mas nao suficiente para a afirmaçao de

sua virilidade. Um homem, para ser homem, precisa também de

uma familia. A categoria pai de familia complementa a auto-

imagem masculina. A moral do homem~ que tem torça e

di sposi çào para trabalhar, articu 1 a-se à moral do provedor,

que traz dinhe.iro para dentro de casa, imbricando-se para

definir a autoridade masculina e entrelaçando o sentido do

trabalho à familia.

131

Page 139: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

o tr·a.ba 1 ho é o instrumento que viabiliza vida

familiar. Trabalhar para si aparece, tanto p.:~r-a o homem como

para a mulher, como uma atividadE? sem razao d8 ser. o

tr-abalho, para ambos, é concebido como parte complementar

das atríbuiçbes familiares, dentro da lógica de obrigaçdes

que c.ar-acter-iza as relaçdes na fam.ilia. Ao lado da

real izaçáo de sua dl.'spos.içdo de homem forte para trabalhar,

o sentido do trabalho para o homem está na possibilidade de,

através dele, cumprir o papel familiar de provedor. Este

papel atribui um significado singular ao trabalho, associado

ao destino de seus rendimentos: prover a família.

No caso da mulher, a idéia de trabcdhar para os outros

(para a fam.ilia) contr-ibui para a valori:zaçao do trabalho

doméstico e I he dá o sentido necessário para SUo

identificaçào com essa atividade, como contrapartida da

a ti v idade masculina de provedor. No caso do homem, o "bom

trabalhador", além de ser aquele que tem disposiçào para

trabalhar, é sobretudo o "bom provedor". Importa que ele

trag.a d.inhei ro para dentro de casa, como exprimem as

mulheres sobre seus maridos. Assim o "bom marido" é sempre ~·

descrito como aquele que trabalha, ni:io joga e nao bebe.

Embora o jogo e a bebida sejam definidos como a transgressao

exemplar às regras fami 1 i ares, incansavelmente reiterados

como tal, sua condenaçao recai sobre o fato de que essas

atividades significam desvio do dinheiro, rompendo os

preceitos de seu papel de provedor. Se ele bebe e joga, mas

Page 140: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

trabalha e traz dinheiro para casa, a reprovaç:ào se

relativiza. Nessa lógica, como serâ comentado no próximo

capitulo, relativiza-se também o valor moral do bandido, que

passa a ser- menos bandido se o dinheiro (conseguido por

meios ilicitos) for para dentro de casa, porque a moral do

trabalho se entrelaça com a moral da família.

A traduçao da ética do trabalho como "etica do

provedor" pelos pobres urbanos no Brasil foi proposta e

analisada por Alba Zaluar (1985), acentuando a ambiguidade

de sua concepçao do trabalho. Privados do orgulho próprio

dos membros das corporaçbes de oficio pré-capitalistas, da

satisfaçao moral que traz a concepçáo religiosa do trabalho

como um valor em si, própria do capitalismo em sua versao

puritana, e de salârios condignos que pudessem lhes dar-

alguma satisfaçáo material, os trabalhadores pobres do

Bras i 1, segundo esta autora, oscilam entre "a visão

escravista do trabalho como sinal negativo, mais disseminada

entre os jovens, e a concepçào do trabalho como valor mor-al,

sustentada pelos pais de familia e suas mulher-es." A autora

ar-gumenta que

"neste último caso ( ••• ),o trabalho tem seu valor­moral vinculado ao status do trabalhador como ''ganha-pào'' do grupo doméstico e nào à execuçio da atividade propriamente dita. ( ••. ) Nào é, portanto, uma ética do tr-abalho, mas uma ética do provedor, que leva os membros da familia a finalmente aceitarem a disciplina do trabalho. 1f;_

assim que o tr-abalhador pobre alcança a redenção moral e, portanto, a dignidade pessoal'' (p. 120-1)

133

Page 141: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Difer""entemente de Alba Zaluar, o que pr""etendo

argumentar é que a "ética do provedor""" nào se contrapbe à

"ética do trabalho" mas só faz sentido em funç~o do modo

particular"" como é formulada a ética do tr""abalho pelos

trabalhadores pobres, a partir, precisamente, de uma

concepçào do trabalho e das r""elaçbes de trabalho que nào é

resultado da pura lógica econômica, mas em que os elementos

econômicos se articulam aos morais, atribuindo à atividade

em si um valor. Formulada dentro de uma moral que náo é

protestante, esta concepçào tem igualmente um fundamento

religioso, que nào se esgota na relaçâo direta com Deus,

mas, sendo de or-igem católica, se caracteri2a pelas

mediaçóes, que tem na idéia de Deus o grande provedor-, a

fonte originár-ia que alimenta esta cadeia de relaçóes, que

sáo fundamentalmente de obr-igaçào mor-al. E pr-ecisamente na

medida em que o tr-abalho viabili2a relaç6es fundamentais

para a existência dos pobres, como as da familia, ''provendo-

as" de sentido, ao mesmo tempo em Ql1E' estas relaçbes

''provêem'' o sentido do trabalho, que se constrói uma ''ética

do trabalho".

Essa lógica da ''casa'', na expressio de Roberto Da Matta

(1985), que impr-egna o trabalho, esclarece os diferentes

significados que tem o trabalho r-emunerado do homem e da

mulher-. Dentro desta lógica, analisada no capítulo anterior,

prevalecem as diferenças de giner-o. Assim como o tr-abalho do

''provedor'' é um atributo masculino, o trabalho feminino tem

134

Page 142: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sua significaça.o referida ao lugar da mulher no universo

familiar. Esta concepçào diferenciada do trabalho, quando

feito por homens, mulheres ou crianças, alimenta-se

reciprocamente no mercado de trabalho, na medida em que este

diferencia a força de trabalho a partir de uma lógica

familiar, onde o homem é o trabalhador principal e provedor,

enquanto a mulher e os jovens sào trabalhadores secundários.

Essa lógica que informa a divisao sexual do mercado de

trabalho é uma questáo central na literatura sobre o

trabalho feminino que se desenvolveu nos últimos vinte

anos,4~ sob o impacto do movimento feminista como seu

parâmetro simbólico, muitas vezes borrando diferenças

significativas na conceçao do trabalho para as mulheres de

diferentes condiçbes sociais, ou minimizando o sentido

dessas diferenças, ao uniformizar o trabalho feminino

remunerado enquanto afirmaçáo da individualidade da mulher.

42 Ver (1992),

Pena Sarti

( 19BOa e (198Sb),

1981), Hirata (1984), entre tantos outros.

Bruschini (198~), Telles

135

Page 143: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Trabalho feminino: dom~stico e remunerado

Neste entrelaçamento do trabalho com a familia, apar~c~

a mesma positividade do trabalho no discurso das mulh~res,

mas, neste caso, tendo como foco o trabalho doméstico que,

muito além do sentido concreto de lavar, passar, cozinhar,

limpar e arrumar, significa, junto com a mater-nidade, 0

substrato fundamental da construçào da identidade feminina,

definindo um d" mulher sempre enredado "m

intermináveis

jeito

lides domésticas, neste mundo social

fortemente r-ecortado pela diferenciaçào de gªnero.

Através do trabalho doméstico, e o esmero com que é

feito, realizam-se valores morais fundamentais dos pobres

r-elacionados ao espaço da casa, sobretudo a limpe:za, como

tªm acentuado vários estudos sobre os pobres (Macedo, 1979,

Caldeira, 1984, Da Matta, 1993b). A área da co:zinha, como e

o que comer, a preparaçào e a distr-ibuiçào dos alimentos,

dominio feminino, envolvem um cuidado especial com relaç~o

ao que constitui um valor fundamental, a comida, através da

qual nào apenas se alimenta, mas também se expressa a

generosidade de alimentar os outros,

capitulo anterior.

como mencionei no

Uma mu 1 her casada, de 25 anos, com ti 1 hos pequenos,

disse que, se ficasse rica, entre suas aspiraçóes nào se

incluia ter uma empregada doméstica, porque o trabalho

136

Page 144: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

doméstico é "sua" atividade, com a qual na o SÓ

identifica, mas se confunde:

Eu gosto da minh.::~ casa, E'U gosto de fazt:r a faxina E' limpar E' v&r que eu limpt:i, que fiCDLl limpinho que eu gostei df? por aquilo al.i, aquilo lá !. .. 1

E acrescentou:

Nas E'U queria as mode>rnidade ~:letrBn.ica~

se

Nesse depoimento está contido todo o sentido subjetivo

do trabalho doméstico: ele pode ser objetivamente

facilitado, sao bem-vindos os aparelhos eletrodomésticos,

mas no\io pode ser um trabalho substituído, porque é uma

atividade que nao é considerada "trabalho", mas parte do ser

mulher, da qual ela retira a satisfaçao de ver a tarefa que

1 he c;abe bem feita - a casa limpa " arrumada nos pequenos

detalhes, os filhos bem vestidos, a familia alimentada

dando-lhe um sentido de dignidade.

Quanto ao trabalho remunerado da mulher, por mais

secundário que seja seu lugar na familia, o fato é que ela

frequentemente traba 1 ha, ainda que intermitentemente,

dividindo com os filhos as entradas e saidas do mercado de

trabalho, de acordo com as necessidades e possibilidades da

fam.ilia. 43 Diante do fato histórico de que a mulher pobre

43 O caráter intermitente do trabalho feminino remunerado por Alba Zaluar (1985) e em meu trabalho anterior (1985a).

foi comenta do

(

I I

137

Page 145: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

sempre trabalhou remuneradamente, o trabalho feminino

inscreve-se na lógica de obrigaçóes familiares e é motivado

por ela, nào necessariamente rompendo seus preceitos e nio

obrigatoriamente configurando um meio de affrmaçào

individual para a mulher. O trabalho da mulher pobre nào

constitui uma situaçao nova que forçosamente abale os

fundamentos patriarcais da familia pobre, porque nào

desestrutura o lugar de autoridade do homem, que pode se

manter, sendo, inclusive, transfe~ido para outros homens da

rede familiar, como foi argumentado no capitulo anterior. 44

A entrada no mercado de trabalho é um fenómeno social

novo para as mulheres de camadas médias e altas,

profissionais de alta qualificaçao, fatia do mercado antes

primordialmente preenchida homens. Se a baixa

qualificaçao, baixa remuneraçào e sobrecarga de tarefas

domésticas/remuneradas fazem o trabalho remunerado pouco

gratificante e cansativo, o sentido do trabalho feminino

subordinado às obr igaçdes f ami 1 i ares, que vem em prime i r o

lugar para a mulher, pode, por esta mesma razào, justificar

esta atividade e levar à gratificaçao de saber que, pelo seu

trabalho, a mulher verá seus filhos vestidos, a comida na

mesa, a família bem alimentada. O trabalho pode lhe trazer

também a satisfaçào de ter algum dinhEirinho se>u, parco que

44 A pesquisa de Claudia Fonseca (1987) confirma esta visão, ao mostrilr que o emprego remunerado nao muda o status da mulher dentro da casa. Meu argumento é que nao muda necessariamente, porque mantt>m a estrutura da família, como procurei demonstrar anteriormente.

Page 146: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

seja, afir-mando em algum nivel sua individualidade, mesmo

que seus rendimentos nao se destinem para s~ mesma, uma vez

que esta individualidade n.:io deixa de ser r-eferida

família. Ou, ainda, o trabalho pode lhe pr-oporcionar a

gr-a ti f i caçao de> pelo menos, sai r de casa, uma a ti v idade que

a r-etira do confinamento doméstico:

Só de pegar aquele ônibus e ver todo aquele movimento, toda aquE'la gE'nte passando •••

No discurso masculino, aparece o outro lado da mesma

moeda. Um homem casado de 27 anos, num depoimento exemplar,

confirma a posiçao masculina como o pr-ovedor principal

qu.ando o marido tem candiçóes, nao digo de dar tudo •• - - e,

em contr-apartida, a da mulher prior-itariamente como esposa,

mae e dona-de-casa - pela certo me>smo, a mulher niio deveria

ir trabalhar. E ainda, assinala a sobr-ecar-ga de trabalho

doméstico e remunerado como um ponto desfavor-ável ao

trabalho feminino, assim como a desqualificaçào social de

seu trabalho que nao compensa os sacrificios, um serviço que

maltrata, a conduçâo lotada ...

Quanto a mulher trabalhar .• nao tem n~?nhuma di terença,, desdE' quE' seja necessário. PorqUE' quando o mar i do tem condi çOes, ndo digo de dar tudo.. porque quem mr? dera poder dar tudo quE? a mulher queira, né? Agora, quando D mar.idD tem cond.i çOes de manter casa 1 nâo passar tal ta, acho que ela deve ma.is É' estar e>sperando p&lo marido, ofe>rr?ce>ndo aos filhos melhor atenção •••

139

Page 147: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Expbe claramente suas razOes:

DE>pois, E?u acho que sE?ria muito duro sE? .• no meu CiiSO, vamos supor., amanha eu não tivesse a minha mulher, e eu ter que trabalhar o dia inteiro e depois chegar aqui e ter que 1 a v ar, passar. limpar e cozinhar •••

E as razOes que supbe serem dela:

E geralmente a mulher que trabalha, além dela assumir um serviço fora .• ela ainda tem o lar pela frente> .... mesmo que tenha um pouquinho de gjudil do marido, m.;s náo IP- como .; mulhEPr.

A náo ser que fosse uma fam.i 1 i a bem conceituada .• que tivesse uma empregada para fazer tudo, nff>? Até par.a cuid.ar dos filhos e till ••• e ela tivesse um cargo ••• que n.fio foSSE' um serviço muito chocante, um serviço quE maltrata... a.i seria uma boa .... porque a.i ela t.inha chances de exercer uma bela funçiio para ajudar a sociedadE? ••• Nas, para E?la pegar uma conduçao lotada, sem chances de ter um carro para se conduz i r ao serviço, para chegar 1~ e dar murro em ponta de faca, ou 1 a v ar 1 ouça.. • OLJ se>r uma empregada na casa dos outros, e d&pois ainda vir para fazer o dela. • • se torna mui to d&sgas tan t& ..

Além disso, há a privaçào dos cuidados maternos que o

trabalho feminino implica:

Tem mui tas fam.i 1 ias que, por causa da grande nEcEssidade.. a mulher sai para trabalhar, para aJudar, E' esses f i 1 hos f i caro desvi rtLJados, Jogados na rua, começam a aprender o que nâo devem

Assim, o trabalho da mulher está subsumido no

desempenho do papel de mae/esposa/dona-de-casa: que seja

140

Page 148: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

meio periodo, que seja em casa, que na.o afaste a mae das

crianças, reiterando a associaçao entre trabalho feminino e

desordem familiar.

Por outro lado, se é preferível que a mulher nao

trabalhe, por todas as razOes expostas, no discurso

feminino, aparece outra dimensáo:

como,

Tem homem que num tá ne>m a .i f Para ele tanto faz, e>le>s nao vao e>squentar a cabeça se está tal tando uma roupa para um fi ho., um sapato.. uma comida. Agora a mulher., ni:io. A mulher vê que está faltando isso., ela vai fazer ualquer coisa, &la aceita qualqLJer batente. O hom m nao, ele só quer trabalhar s& E>i& estive>r ga hando bem ••• ; e a mulher aceita, por qualquer co sa.

Este depoimento citado no c pitulo anterior, mostra

compartilhando com o homem mesma moral do trabalho

como honra, é outra a disposiçiio d mulher para o trabalho,

porque se vincula a seu papel f a i lia r, a face feminina

desta moral do trabalho. 4 e O que f z a mulher forte para o

trabalho é saber o que e>stá taltan o dentro de> casa. Assim,

se a mulher- tem disposiç.#o para 1cei ta r qLJédquE'r batente,

sobretudo quando o homem nâo tá ntm ai, na o é porque e 1 a

I 45 Estou tentanto demonstrar neste trabJlho que eJ:iste uma moral dos pobres, compartilhada por homens e mulhe~es. Isto significa argumentar que nao existe uma moral feminina, uma pfrticularidade na forma como a mulher constrói suas categorias morais seu senso de justiça, como propóe Carol Gilligan (1982), mas uma mo .al recortada pelas diferenças complementares de gªnero.

I' I

141

Page 149: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

~ '

aguenta traba 1 ho duro ou serviço pr:sado, v a 1 ores mas cu 1 i nos 1

mas porque o significado de seu trabalho remunerado é

mediado pelo seu papel de mae e dona-de-casa, para suprir o

que ela sabe que está f a 1 tando, por cai sas pelas quais o

homem nao vai esquentar a cabe-ça. Dentro de um mesmo código

moral, complemEmtar no que se refere aos sexos, as

difer-enças na concepçao do que é trabalho de homem e de

mulher respondem aos papéis que cada um tem na família, que

os fazem, à sua maneira, igualmente fortes para o trabalho.

Da mesma forma, diante do significado distinto que tem

o trabalho masculino e o feminino, o desemprego afeta

diferentemente o homem e a mulher com relaçào à família.

Para a mulher, quando tem Llm homem dentro de casa, deixar de

trabalhar temporariamente, sobretudo quando outras pessoas

da familia podem fazê-lo em seu lugar, configurando a

tr.ajetór-ia intermitente que caracteriza o trabalho feminino,

pode significar uma forma de aliviá-la da sobrecarga de

tarefas. Lembro-me de uma mulher que, ao ser despedida de

seu tr-abalho, me disse:

Agora, por uns tE>mpos, posso cuidar mE'lhor da casa E' da famllia.

A mulher tem uma identidade familiar que a SLtstenta

moralmente quando ela esta desempregada; o que a molesta sao

os transtornos que esta situaçáo possa causar no desenrolar

14C

Page 150: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

da vida cotidiana da familia, podendo ser graves. Para 0

homem, a perda o atinge naquilo que faz do homem, homem,

privando-o das referências fundamentais de sua identidade

social, a de trabalhador/provedor/pai-de-família. A ausência

do provedor-masculino significa uma perda moral que atinge

todo o grupo familiar, que fica sem sua base de sustentaçao,

como argumentei no capitulo anterior.

No caso da mae solteira, ou da mulher .abandonada pelo

marido, o sentido do desemprego aproxima-se daquele que tem

para o homem. Para ela,o trabalho remunerado adquire um

sentido particular de honra, portanto, de afirmaçào de si

enquanto individuo, porque, através do trabalho, ela tem a

oportunidade de repara'}t o ato c:ondenaçlo ou readquirir seu

orgulho e amor próprio, ao provar q1..1e pode criar o filho:

Para você sustentar seu f.ilho .• nao precisa se ter um homem a seu lado. É só voe~ ter capacidade de trabalhar. ( ••• ) Eu acho que a pessoa que tem capacidade de trabalhar, tem capacidade de ter um fi 1 ho.

Sobretudo na ausência do homem/provedor, que faz o

sentido do trabalho feminino assemelhar-se ao do masculino,

o trabalho configura a potencialidade de realizaçao

individual, tanto para o homem como para a mulher. Mas, como

foi argumentado no capitulo sobre a família, desde que

subordinada ao univer-so familiar relaciona} (das

143

Page 151: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

"pessoas") que referenda, sustenta e apóia as real izaçóes

individuais, para que se tornem moralmente legitimas e

socialmentE> aceitéveis (Da Matta, 1978 e 1987). Mais uma

vez, aparecem os limites da suposta matrifocalidade dos

pobres, quE> nao deixa de ser referida a uma estrutura

patriarcal.

Trabalho dos filhos

A associaçao do trabalho com o mundo da ordem,

tornando-o fonte de superioridade moral, 1 eva também à

valorizaçao do trabalho dos filhos. Como o do homem e da

mulher, o trabalho dos filhos faz parte do compromisso moral

entre as pessoas na família. Tânia Dauster (1992) analisou

este . compromisso como parte de um sistema relacional de

ajuda e troca dentro da família: aos pais cabe o papel de

dar casa e comida, o que implica em retribuiç6es por parte

dos filhos. Seu trabalho ou sua ajuda sao, assim, uma forma

de retribuiçao.

Do ponto de vista dos pais, o trabalho dos filhos tem

também o sentido de uma proteçào contra os riscos e os

descaminhos do mundo da rua, onde se sofre a inflllência de

gente ruim e se anda em má companhii!<, suscitando os

fantasmas da droga e da criminal idade (Dauster, 1992,

Madeira, 1993 e Telles, 1992).

l44

Page 152: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Pela mesma lógica, quando as maes trabalham fora de

casa, a creche é vista positivamente, mas enquanto um ma 1

menor, porque garante que as crianças pequenas nio estejam

largadas na rua, ainda que o cuidado profissional nunca se>.fa

igual ao de> mae e o ideal seja estar em casa. Quando,

entretanto, a "r-ua" refere-se ao espaço "familiarizado" do

bairro, muda sua conotaçào. Se, por- oposição à casa, a rua é

genericamente o espaço da desordem, ela se torna, quando

circunscrita à localidade onde circula a vizinhança, um

lugar de tr-abalho, pr-incipalmente par-a as crianças que aí

vào apr-endendo a trabalhar-, pois é onde se sabe quem e onde

se precisa dos serviços que elas fazem, como o carreto, o

cuidar- de crianças menor-es, as ajudas domésticas, no caso

das meninas.

É importante, neste sentido, a distinçào entre o

trabalho infantil (até 14 anos) e o tr-abalho do adolescente

(15-17 anos), ambos agr-egados na categoria tr-abalho do

"menor", como chama a atençao Fel.ic:ia Madeira (1993),

sobretudo diante do fato de que a grande maioria dos

"menores trabalhadores" tem entre 15 e 17 anos de idade.

Este tipo de agr-egaçào tende a "superestimar o tr-abalho

propriamente infantil'' (Madeira, 1993, p. 79).

o trabalho

r-edondezas

familiares,

da

sem

das crianças é,

casa, r-elacionado

horár-io fixo,

em geral. feito nas

com as atividades

na o apr-esentando

incompatibilidades com a frequência à escola, porque é feito

Page 153: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

fora do horário escolar. Aliás, neste bairro, onde existe

uma instituiçao pública de ensino de lQ grau, a frequ~ncia à

escola é muito valorizada, antes de mais nada, pelo valor

atribuído à educ .... çào como marca de distinçao. Uma famili.;t

cujos filhos nào frequentdm escola é vista como socialmente

inferior. Pol"" outro lado, ter os filhos na escola também

pode ser uma fol""ma de mdnter as crianças fora da rua,

evitando as m.t.s .influências, ainda que reconheçam que, na

escola, embora exista um controle, por parte dos professores

e funcionários, há também o risco destas influ~ncias

negativas, sobretudo na hora da saída.

O trabalho do jovem, no entanto, tem diferenciações. ~

mais formalizado (Madeira, 1993), já que entra num outro

circuito das obrigaçbes familiares, mais próximo ao dos

adu 1 tas, carrespondendo a um papel comparti 1 h a do pela ma e,

no sentido de ser "secundário" em relaçao ao do provedor

principal, e parte fundamental das obrigaçbes familiares.

Do ponto de vista do jovem, muitas sào as razOes pelas

quais a entrada no mercado de trabalho que pode ou nào ter

como consequ'ê'ncia o abandono dos estudas pode ser

formulada como uma escolha. Trabalhar, mesmo sendo parte de

sua obrigaçáo de filho/a, nâo deixa de significar a

afirmaçào de sua individualidade, ao abrir a possibilidade

de conquistar um espaço de liberdade (Madeira, 1993), na

tentativa de ter acesso a bens de consumo e a padrties de

comportamento que definem as marcas do jovem urbano: t"ênis,

146

Page 154: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

jeans, jaquetas, som, etc ••• :

Eu vou andar feito m,;doqueiro? Eu ndo.1 Vau trabalhar também

O trabalho infantil nas famílias pobres cor-responde,

entao, a um padrao cultural no qual sao socializadas as

crianças, nào se opondo necessariamente à escola, mas

devendo complementá-la (Dauster, 1992). 4 = No que se refere à

possibilidade de compatibilizar trabalho e escola, para o

jovem, Felicia Madeira (1993) destaca a complexidade da

questao, que deve ser considerada nào pela perspectiva

reducionista de "denúncia do trabalho infantil no contexto

da exploraçào social do trabalho", mas pelas dificuldades

inerentes ao próprio sistema escolar inadequado para sua

clientela, que atende ao aluno "ideal" e nào ao aluno

"real".

V@-se, assim, que fechando o circulo do valor do

trabalho referido à família para os pobres, o trabalho dos

filhos crianças e jovens faz parte do próprio processo

de sua socializaçi;i;o como pobres urbanos, em famílias onde

dar, receber e retribuir constituem as regras básicas de

suas relaçbes.

46 Assim, Tânia Dauster observou, em seu estudo feito no Rio de que a criança das camadas populares se auto-define como "trabalhadora" e "estudante" (Dauster,1992).

Janeiro, "pobre",

147

Page 155: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Trabalho como obrigação entre ricos e pobres

Até agora falamos do valor do trabalho para os pobres

e de sua estreita relaçáo com os valores familiares e com a

noçiio de "honra", que lhe servem de parâmetro moral. Na

maneira como os pobres concebem náo apenas o valor do

trabalho, mas seu lugar de trab-alhadores no mundo social,

podemos prosseyLlir analisando a articulaçao de elementos

morais e religiosos aos econômicos, através da qual

retraduzem em seus próprios termos as rel açóes de trabalho

sob o capital.

Segundo o relato dos moradores, sempre váo existir

ricos e pobres, a pobreza náo podE? acabar:

Todo mundo rico, n.3o dá.9 "e>les" vao achar ruim, porque ndo tem pobre para cuidar "delE'S".

E, como vimos, nas representaçbes dos pobres, os ricos

na o sabem fazer o que o pobre faz, trabalhar, mas,

sobretudo, dispor-se a trabalhar, o que coloca o numa

posiçào de vantagem relativa fr-ente aos ricos, a de ter

recebido como dádiva a disposiçâo para o trabalho. Aos ricos

cabe dar trabalho, em troca de ser cuidado pelo trabalho dos

outr-os, os pobres, fazendo do empregado alguém que "cuida"

de seu patrao, n.l.tida traduçà.o do trabalho em termos da

148

Page 156: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

;;;.

familia. Afinal, nao é a noç:ao de "cuidar", através do seu

trabalho, como se faz com um filho, que leva a empregada

doméstica a empenhar-sE? arduamente em sua atividade para

ver, orgulhosa, seu patrào sair com a camisa impecavelmente

passada? Ou, também fora do âmbito doméstico, que faz o

operário orgulhar-se do bom produto da fábrica onde

trabalha?

Entre ricos e pobres existe, no entanto, uma igualdade

ma~s fundamental, no outro mundo, no reino de Deus, já que

somos todos fi 1 hos de Deus, fazendo com quee a ordem

sobrenatural seja, para os pobres, parte constituinte de sua

ordenaçao do mundo. Assim disse ter respondido uma mulher a

uma afronta que lhe foi dirigida por uma rica:

Escuta aqui, só porque a s~nhora tem um sitio, t~m uma casinha ai de campo .• a senhora vai pJ.sar nos pobres? A senhora niio vai pisar nao, porque a senhora, quando morrer, vai para o me>smo buraco q1..1f? @U for. A s~nhora vai para debaixo dos sete palmos igualzinho que eu t'or.

Nào apenas a morte iguala os homens no outro mundo,

pela mediaçào do sobrenatural. Mesmo neste mundo em que

vivemos, irremediavelmente desigual, porque ancorado numa

ordem "natural", a igualdade e>:iste no plano moral, dentro

da gente, como definiu uma mulher. Uma vez que as qualidades

morais sao o parâmetro a parti~ do qual se aval iam as

pessoas, dentro de uma escala de valores que nao tem

149

Page 157: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

relaçao com a posiçao que estas pessoas ocupam na sociedade,

~elativizam-se as desigualdades nesta concepçào da ordem

social. Como obse~vou Maria Lúcia Montes em sua anâlise das

representaçóes sobre a sociedade e o poder entre as classes

populares, vistas através das suas formas de lazer:

''Do ponto de vista das qualidades morais dos individuas, nenhuma diferença existe com relaçào às posiçbes de dominaçao ou subordinaçao, nenhuma distinçaa com relaçao ao gozo da riqueza, do prestigio e da poder. Mais vale um amigo pobre e leal que outro rico e desleal, mais vale a modéstia do pobre que a vaidade do rico, pois a "boa" riqueza é também modesta. Desse ponto de vista, dissolvem-se as diferenças sociais para que se afirme, em seu lugar, a igualdade moral de todos as individues, divididos segundo o vicio e a virtude, independentemente de sua pasiçao social. A equidade e a equanimidade nao conhecem tais distinçbes." {Montes, 1983, p. 333)

.Se a sociedade é desigualmente recortada entre pobres e

ricos, ainda que esta desigualdade seja dissolvida no plano

mora 1 , construindo uma igualdade que se completa pela

promessa de redençao no outro mundo, a fronteira que

ultl'"apassa os limites do tolerâvel é a pobr&:za indigna - a

miséria - sintetizada na fome:

Essa pobreza que eu estou dizendo é passar fume mesmo.

Page 158: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A fome faz, diferentemente da pobreza, a miséria. P;~;r;~;

evitou·· este mal maior-, que está além do moralmente

suportável, é necessár-ia a obedi~ncia ao que concebem como

um código de obr-igaçbes entre os desiguais, os ricos e

pobres, que pode assim ser resumido: eles (os nao-iguais,

que detém r-iqueza, prestígio ou poder} t"êm que dar- aos

pobres a opor-tunidade de trabalho, e os pobr-es tem que

trabalhar. O governo nao deve dar nada, mas tem a obrigaçao

de retribuir os impostos pagos, a tr-avés dos ser-viços

públicos. Os r-icos os que detém os meios de pr-oduçào

devem pr-over o tr-abalho, par-a que os pobres atualizem sua

disposiç~o para trabalhar-, inser-indo o trabalho num univer-so

dE' obr-igaçties onde o esforço legitima a oportunidade de

trabalhar que é conferida ao pobre. Entre tantos exemplos,

c i ta o r-e 1 ata de uma mulher, sobre os presentes de na ta 1

r-ecebidos da patroa, quando trabalhou coma empregada

doméstica:

Eles vieram de carro aqui, despeJaram aí quE! nem Papai Noel. Eu me sentia bem com aquilo .• sabe? Porque eu sabia que ela estava dando, mas também era o esforço do meu trabalho, porque também, se eu nao est.ivesse trabalhando lá e cumprindo com meu:; deveres .• ela nao .i. a fazer .isso ...

Ou ainda, o depoimento de outr-a mulher-,

Page 159: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Pobre nao quer ganhar nada assim, eu peolo menos, eu náo QLiero qL1e ninguém chegue aqLii e fale para mim: E'U vou te dar cem milhbes! Eu quero que me dé oportunidade, um emprego. um meio de estudar. um meio de eLJ trabalhar, de E?LI consegLlir.

Estes depoimentos falam do esforço do trabalho como um

valor moral, que faz o trabalhador merecer o pagamento como

recompensa, mas este esforço nao f a~ sentido em si, senáo

dentro de uma lógica que é mediada pela relaçáo, através da

qual se reafirmam as obrigaçóes de dar e receber, fazendo do

ato de r-eceber a contrapartida do ato de dar e tornando o

ato de receber sem dar moralmente inaceitável, humilhando e

interiorizando quem o pratica. Só é moralmente legitimo

receber quando se dá e - a contrapartida - quando se recebe,

é necessário retribuir. Através de seu trabalho, o pobre dá

o que tem: a disposiçáo ~e trabalhar que traz consigo, como

dádiva divina, e que, por isso, ninguém lhe tira.

Se o esforço no tra,bal ho e a promessa de redençáo que

dele advém caracterizam a ética do trabalho entre os pobres,

tal como na moral capitalista protestante descrita por Max

Weber (1967), o que diferencia a moral dos pobres na

periferia de Sào Paulo é que este esforço é r-e-significado a

partir da ~nfase na relaçao, que ultrapassa o individuo, e

dentro da qual o trabalho faz sentido: • honra do

trabalhador nao está apenas no exercicio da atividade em si,

mas no fato dele estar cumprindo o que para ele é uma

obrigaçao dentro de uma relação. O trabalho é, entao, re-

Page 160: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

significado em termos r-elacionais: o tr-abalhador dá,

trabalhando ( eu se>rvi ço) 1 e r-ecebe, ganhando seu

salârio. esta mora] quando r-etraduzida em ter-mos

relacionais 1 que atribui sentido à atividade de trabalhar- e

submeter-se à disciplina do trabalho.

P: Voce ia ajudar os pobres, se você pudesse mudar o Br-asil?

R: Eu ajudaria trabalhar .• um salário honesto, um bom salário. Dar eu nao i.a dar. Na minha opiniBo~ eu i.:< procurar ajudar: tem que trabalhar.. você vai trabalhar aqui, vai ter um cargo, e a p&ssoa m&rece. Se ela nao merE'ce, ai dou um cargo mais baixo. A.í vai trabalhar, ter Llm

salário, ter uma vida melhor. Porque, através do trab.alho vem o s.alário e através do salário melhores condiçdes de vida.

A ascensao através do trabalho tem sentido moral quando

o individuo merece, pelo seu E'S forço, portanto, como

recompensa. O mérito do individuo nào se esgota, entr-etanto,

em si mesmo, mas só existe enquanto tal na medida em que ter

uma vida melhor é uma aspiraçào projetada par-a além de si,

na familia e na vida social, o que justifica~ legitima e faz

o sentido de todo seu esforço, através do qual r-eafirma sua

honra.

Page 161: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Trabalho, desemprego e esmola

O valor- atr-ibuído ao tr-abalho, dentr-o da mor-al dos

pobr-es, qualifica a esmola, num determinado plano, como um

ato condenável, expondo quem o pr-atica a uma humilhaçào, nào

apenas porque quem pede nao trabalhe, seja vagabundo,

maloqueiro, designaçOes que se contrapOem ao valor do

tr-abalho. Há uma condenaçao da esmola por- parte dos pobres,

implicita na oposiçào entre o mendigo e o trabalhador,

enquanto categorias morais, cujo sentido remete à

complexidade das r-efer'ências que. compbem sua ética. Ruth

Cardoso (1978) atribui a condenaçao da esmola à negaçao do

valor- do trabalho, cujo fundamento nao é problematizado em

sua análise:

"Nào sem r-azao, o único mendigo que vive nesta favela é muito mal visto pelos demais. Apesar- de ser operário de construçào civil, depois de suas horas de trabalho, sai com a família para pedir- esmolas. Com este expediente consegue melhorar- sensivelmente sua renda mas, como nega, na prática, o valor- do trabalho, é desprezado por aqueles que nao o reconhecem como um igual, isto é, como trabalhador." (p. 40)

Retornamos ao fundamento da ética do trabalho para os

pobr-es, a partir de obrigaçbes morais que só fazem sentido

enquanto relações. O principio de dar e receber-, no qual se

154

Page 162: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

-- ----------.................... .._

funda o trabalho, é negado pela esmola. Neste prisma, pedir

esmo 1 a hum i 1 h a porque quem o faz, recebe sem dar, sem 0

esforço valorizado, ao contrário da empregada doméstica que ,j mt=>rec:e receber presentes em retribuiçao ao cumprimento do

seu dever de trabalhar. A esmola humilha sobretudo quando se

como expediente extra, par-a complementar os

rendimentos, tirando proveito para si, enganando os outros;

mas humilha também, por outro lado, porque pedir se coloca

em oposiçào à honr-a que vem junto com a obrigaçii.o de dar,

negando portanto o valor da generosidade. O mendigo que pede

submete-se à humilhaçao de receber sem dar. O ato de pedir

esmola priva o pobre da oportunidade de dar o que ele tem

para dar, sua disposiçdo de trabalhar, atributo que legitima

recebe~ em troca, honrando e nào humilhando.

Esta disposiçdo para o t~abalho, sendo o fundamento do

direito do pobre, faz com que, t~abalhando, possa plei~ea~

receber em retribuiçào, o salário e o rEPspeito que lhe sao

devidos. Dai a ilegitimidade do desemprego, que representa

nào apenas p~ivaçao mate~ial, mas sobretudo mora 1 • o

desemp~ego tem o sentido de uma humilhaçào, ao pr-iva~ o

trabalhado~ de sua possibilidade de recebe~, mas da c

também. Iniciando a cadeia de obrigaçbes entre os desiguais,

os pobres mencionam sistematicamente que a principal

ob~igaçào dos de cima, é dar trabalho ao pobre,

to~nando as categorias pobre~ trabalhador indiss·ociéveis em

15~·

Page 163: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

l

sua auto-imagem. Mas quando náo há trabalho, senao

desemprego, rompe-se a cadeia de obrigaç6es que o trabalho

estabelece. É entao que as obrigaçbes que caracterizam o

universo mor-al dos pobres atualizam-se, através da esmola,

em outro plano, menos imediato, porque seu sentido passa

pelo sobrenatural. Na cadeia das obrigaçbes de dar, receber

e retribuir, que nào é imediata, se falta trabalho, DE?us,

que é pai, provê, através da esmola.

Na articulaçáo do trabalho com o desemprego, que

caracteriza dos pobres, ocorre uma r e-

elaboraçáo do sentido da esmola, que complementa o valor do

trabalho, sem negá-lo, mas co-existindo com ele. Na sucessâo

continua de dar e receber, se o trabalho lhes é negado, de

algum lado hâo de vir os recursos para viverem e, assim,

fazem valer a virtude católica/medieval da caridade. ''Dando

aos pobres, empresta-se a Deus", o que torna legitima a

esmola, mesmo porque, quando náo se tem trabalho para fazer,

pedir é melhor que rDLJbar.

A negaçao do principio individualista próprio da lógica

capitalista de mercado está em que, em qualquer esfera de

sua atuaçao social, na casa e fora dela, o mundo é traduzido

pelos pobres em termo~ de uma troca, onde se dá e se recebe,

'

156

Page 164: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

através de relaçbes de obrigaçào moral.~7

Ao referir-se aos "trabalhadores pobres", as ciências

sociais englobaram a categoria pobrE> na de trabal hc.dor,

desconsiderando que a auto-imagem de pobr&s e traba,J hadores

envolve um modo particular de se colocar no mundo social.

Elidindo o conectivo, deixou-se de ver que o universo do

traba 1 h o para os pobres se constitui na ar ti cu 1 açao dessas

duas categorias, que requalificam a moral do trabalho.

Ao contrário do que acentua a literatura sociológica,

marcada pela "ex pl oraçao" do trabalho como categor-ia de

análise, que deixa escapar a re-elaboraçao do seu sentido

pelo pr-óprio trabalhador, par-a os pobres, o univer-so do

trabalho, enquanto dimensao positiva nao pode ser entendido,

em seu valor moral, sem a intermediaçào da ordem

sobrenatural, sendo Deus o grande pai/provedor. Isto

significa levar às últimas consequências a moral do provedor

que, tendo como modelo as relaçbes de obrigaçbes próprias do

universo familiar, atribui significado próprio ao mundo do

trabalho, nesta busca incessante, que é de todos os homens e

47 No que se refere aos problemas sociais, manifesta-se a mesma concepçáo moral. Por exemplo, quanto ao problema habitacional, afir-mam que o governo, protetor e benfeitor, tem a obrigação de resolver a questao da moradia dos pobres, mas náo deve dar casa aos pobres, e sim pr-opiciar--lhes condiçbes para que possam compr-t~r o terreno e construir (através de diversos expedientes, como a utili1açiio de terrenos da prefeitura, financiamento do seu pagamento, etc ••• ), fazendo com que eles ta.mhém possam dar alguma coisa pelo que tem. Niio é à toa, que ao lado de garantir trabalho, as principais "ohrigaçbes" do governo em relaçáo aos pobres refer-em-se à moradia e à saúde, em consonância com os valores da família e do trabalho aqui descritos.

Page 165: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

mulheres, de pensar a realidade vivida a partir da exigência

de que a vida faça sentido.

158

Page 166: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Capítulo 5

"' RELAÇDES ENTRE IGUAIS

''O vizinho é o real imediato''

Luis da Câmara Cascudo

"Essas contr-adiçbes sáo, talvez, necessárias para reconciliar o mundo em

que vivemos com nossos sonhos, nosso ideal com as aspiraçbes frustradas. É a

'funçáo' do ambiguo.''

Julian Pitt-Rivers

Page 167: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

A importância do contraste para demar~ar fronteiras

sociais é uma questao central para os estudos sobre

identidades sociais. Por definiçao, as fronteiras existem em

relaç:ao um "outro", implicando necessariamente numa

relaçao. A divisao fundamental das classes sociais que marca

a sociedade capitalista, envolvendo poder, prestigio e

riqueza, é entrecortada por outras tantas fronteiras que

relativizam esta divisao e pesam decisivamente na definiç:ào

dos individuas como sujeitos sociais.

Essas fronte i r as f i cam particularmente c 1 aras quando

nos referimos aos grupos étnicos. A noçao de "identidade\

contrastiva" tornou-se bâsica para se pensar i

a identificaça~

étnica, em contraposiçao à primazia que se dava aos traços

culturais (e, antes, raciais) como marcas de identidade (cf.

Oliveira, R.C. 1976, Cunha, 1986 e Da Matta, 1993a). Darci

Ribeiro (1986) ressalta o caráter relacional das etnias, que

possibilita a preservaçào das identidades étnicas, apesar

das transformaçbes de seu patrimônio cultural. Para ele, as

etnias sao "categorias relacionais entre agrupamentos

humanos, compostas antes de representaçbes reciprocas e de

lealdades morais do que de especificidades culturais e

raciais" (p. 446). Assim, segundo este autor, o problema

indigena no Bras i 1 só existe quando os .indios entram em

contato com os nào-indios, os brancos.

A analogia com os grupos étnicos faz sentido para

ressaltar o carâter dinâmico das identidades sociais,

160

Page 168: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

definidas (e redefinidas) em funçáo das relaçóes a que os

individues estáo expostos. Os estudos sobre identidades

étnicas, para além de sua especificidade, demonstram como o

caráter contrastivo e relaciona! na definiç~o do ''nós'' - por

oposiçáo aos "outros" está na base da própria construçáo

(e preservaçáo) de identidades sociais. Sobre esta base

estrutural que define pares de oposiçbes estabelece-se

uma dinãimica que recria identidades sociais, sem

necessariamente esfac~lar o sentido do grupo reelaborado por

seus membros precisamente para responder às novas situaçties

com que se defrontam.

Em poucas palavras, identidades sociais sao, por

definição, identidades em movimento, definidas e redefinidas

por constrastes. Este cap.itulo trata da forma como opera

esta lógica contrastiva na trama da sociabilidade local,

para, neste contexto, recuperar uma outra dimensáo da moral

dos pobres. A partir da localizaçáo básica como pobres e

trabalhadores no mundo social, categorias, elas mesmas,

definidas por oposiçáo aos ricos e patrdes, pretendo

discutir como os moradores da periferia constroem fronteiras

simbólicas de diferenciaçáo entre si e que sentido tem esta

construção. Para isso, focalizo as relaçóes de vizinh~nç~,

aquelas entre os que se consideram iguais.

Enquanto os capítulos anteriores se referem ao processo

de elaboraçào da identidade social dos pobres a partir de

seus parâmetros morais positivos - a familia e o trabalho -

:1.61

Page 169: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

neste capitulo, at~avés da ~eferªncia à sociabilidade local~

procu~arei completa~ a análise deste processo, visto pelo

avesso, por seus pa~âmetros morais negativos, identificados

at~avés desses "out~os" que se reproduzem dent~o das

frontei~as do próprio bairro e que permitem a afirmaçao

contrastiva do ''nós''.

O vizinho como espelho

Câmara Cascudo (1971) supSs que em cidade grande n~o há

vizinho. Segundo seu estudo, na colonizaçao br-asileir-a, a

pecuár-ia e a cultur-a da cana-de-açúcar- for-am fontes de

aproximaçao entre os trabalhador-es: "o escr-avo negr-o possuía

seu vizinho de senzala, como o trabalhador de jornal no seu

casebr-e." A cidade prossegue o autor- ataca de fr-ente

esses mecanismos de solidar-iedade rural, como a usina de

açúcar os enfr-aquece e asfixia. Cascudo, evocando

nostalgicamente as relaçbes solidár-ias de vizinhança, supbe

haver na cidade gr-ande substituiç.3o infalivel do

solidarismo r-ura 1 , da casa, dos sentimentos, pelo

solidarismo econSmico de classes. O vizinho passa a ser- o

companheiro do sindicato, ou o correligionár-io de partido

politico, sócio do clube. Uma solidariedade de r-ua, m@eting,

diz ele (p. 26).

162

Page 170: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Ora, é precisamente a perspectiva da construç~o d~

identidades sociais que torna possivel rever a posiç~o de

Câmara Cascudo, Nesta perspectiva, pode-se entender a

preservação de valores "tradicionais" entre os migrantes

pobres da cidade, que os conservaram na medida em que

puderam re-elaborá-los, pelo sentido que tªm como suporte de

relaçbes sociais também no novo contexto urbano, como é o

caso dos valores que articulam o sentido da família e do

trabalho, como foi demonstrado nos capítulos anteriores.

Ao contrário da suposiçào de Cascudo, para o morador da

periferia, dentro desta continuidade histórica onde o mundo

urbano está impregnado de relaçóes tradicionais nào

inteiramente rompidas, mas refeitas para se adequarem à nova

ordem, o vizinho é mui to mais do que alguém que mora ao

lado, porque ele continua presente como "sucursal da casa".

Dentro da lógica de que parente é alguém em quem se

confia, o vizinho é como um parente:

Nós temos nossos vizinhos aqui~ tem essa turminha aqui. Eu acho que praticamente é uma tamilia~ porque quando a gente precisa, ele está ali,: quando ele precisa da gente~ nós esta mos juntos, entt:io eu acho que a fam.ília ••• é isso a.í.

Dada a sociabilidade concentrada no local de moradia na

cidade de Si10 Paulo, há, entre os pobres da periferia, uma

tendªncia a estreitar os laços com a rede de vizinhança, em

16:.

Page 171: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

det~imento dos parentes de sangue, exceto se estes tsmbém se

concent~a~em na localidade, compartilhando a vida cotidiana.

O que define que um vizinho possa ser mais impo~tante que um

pa~ente é a ccmfi.,.nçd.

Mais remotamente, pode-se também estender a confiança

aos colegas dE? trabalho, para quem tem uma situaçào

profissional mais estável. O compad~io tem o sentido de

legitimar esta ~ede de relaç6es, reforçando vinculas jâ

e><istentes ou buscando ampliá-los através deste parentesco

espiritual. Os amigos tornam-se padrinhos e é nessa traduçào

da relaçào de amizade em termos da famllia, através do

compadrio, que os laços entre amigos se consolidam. Em

qualquer caso, o que importa é que as relaç6es sao

traduzidas em te~mos da familia, ou seja, em termos de

obrigaçties morais.

Ao responderem aos vinculas fundamentais de obrigaçdes

morais que caracterizam a sociabilidade dos pobres, na

familia e fo~a dela, os vizinhos tornam-se amigos. A amizade

é entao um vinculo moral do mesmo tipo que os da familia,

fazendo com que na cidade possa se tornar mais importante do

que os elos de sangue.

Como seu igual, o vizinho torna-se seu espelho, o

''real-imediato'' que serve de par~metro para a elaboraçào de

sua identidade social. Neste

caracteriza a elaboraçào

jogo de

identidades

espelhos

sociais,

que

'

l64

Page 172: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

ambivalência dos moradores em relaçao a seus pares,

permeando as relaçoes de vizinhança. Num processo que nào é

unívoco, solidariedade e rivalidade caminham juntas.

A sociabilidade local

Dentro dos limites das suas possibilidades, os

moradores gostam do bairro onde vivem. Se pudessem,

evidentemente, gostariam de morar num bairro melhor, mais

central. Mas lá pelo menos podem realizar o sonho que vem

junto com o casamento e os filhos, ter sua própria casa.

Como disseram dois homens, que moram com suas familias no

bairro desde que o lugar começou a se expandir, na década de

setenta~

é da casa para o serviço_, do serviço para casa •.• nao posso dizer mal da Vila. A única coisa de bem que eu tenho a dizer é que aqui que eu consegui o meu pedacinho de chao. E estou muito satisfeito, muito feliz por isso.

Eu gostei porque aqui que nós comr:çamos tudo. ELI nunca tive casa. A primeira casa que E'LI t.ive foi essa aqui, en ta o a gente tem mui to amor aqLii, que foi a primeira casa que nós conseguimos. Ai. eu gosto muito da Vila.

16'5

Page 173: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Saem pouco de casa e do bairro. NJ:io gosta de aborrecer

n.inguém. Visitam par~ntes no fim de? sem,;.na, convive?m com os

vizinhos. Essa convivência é parte necessária da

soci.;.bilidade local. De resto, participam dos ritos

religiosos e das redes de lazer locais (Montes, 1983 e

Magnani, 1984).

Todo lugar qui? t?u moro .• e>u gosto. ( ••• ) Eu nao st?i o que se passa na casa do vizinho. Nao vou na casa de irm.3o, n.3o vou na casa di? ninguém. Tenho minha casa_, nao gosto de aborre>ct?r ninguém e também nao gosto dt? ser aborr&cido ••• Nao gosto qu& ninguém m& p&rturb&.

Eu sou um cara que>, no sábado que eu tenho folga, e>u nao saio do portao para fora_, e>LJ nao sou um home>m de> e>star em boteco, DL~ de> estar de port.a de vizinho e tal ••• entao e>u sempre tenho alguma coisa para fazer dentro df? casa ••• nao saio para lLtgar nl?nhum. E quando do domingo, também, tirando a minha ida à Igre>ja, também nào. Depois da Igreja, a gente ajuda a velha um pouco no almoço ••• Depois do almoço, tira aquela 'pest.ana', ve um pouquinho de tele>viJ;;ao & já prepara o material de briga para o OLdro dia •••

Reclamar- do vizinho é parte da lógica intrínseca ao

discurso local. Como seu espe?lho, a identificaçào positiva

ou negativa com o vizinho serve de constante parâmetro para

sua identidade de homem de bem. Os homens delimitam a área

de sua sociabilidade no bairro, enquanto as mulheres se

re?lacionam com a vizinhança fundamentalmente em torno das

atividades domésticas, seu descanso e do cuidada das

crianças. Uma mulher na rua, sem motivo que justifique sua

Page 174: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

aus'ência de casa, nào é vis.ta com bons olhos. O espaço da

rua é um espaço masculino, área de sociabilidade dos homens • cuja delimitaçàio os faz reconhecidos e legitimados entre

seus iguais. Esta delimitaçào implica em hierarquias

internas ao bairro, que refletem e reproduzem a

hierarquizaçao de seu universo simbólico, definindo os eixos

de identificaçáo e diferenciaçào dos moradores.

Proprietário X Favelado

Um dos eixos de distinçàio, o que se estabelece entre os

propri&tários e os fav&lados, responde à hierarquizaçáo

social do espaço fisico/geográfico do bairro. Há três áreas

distintas. Na rua principal, a avfiiilnid.a, parte mais elevada

do bairro, lá fiiilm cima como dizem, onde passam os ônibus, até

há pouco tempo o único acesso ao bairro par-a quem vinha de

fora, estáo as melhor-es casas, revelando um nivel de renda

mais alto que o resto dos moradores e, sobretudo, casas

construi das em terrenos legalizados, com escritura de

propriedade. Descendo as encostas, fica a área intermediária

que cor-responde à maioria das casas, constru.idas em lotes

demarcados, legalmente adquiridos, mas cuja situaçao legal

167

Page 175: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

nao está resolvida. 48 Terminado o declive, sobre o qual foi

edificado o bairro, chega-se à favela que o circunda, onde

os moradores invadiram os terrenos e construiram suas casas,

sem propriedade legal do terreno. A favela fica, entao, 1~

embaixo, sendo necessário d~sc~r para nela chegar, tornando

a geografia local conforme com a hierarquia social.

Ainda que existam diferenças materiais entre as casas,

o peso da distinçao é simbólico; sF?r favE?lado cor-responde a

uma condiçáo social inferior, da qual os que moram no bairro

precisam reiteradamente se diferenciar. Justamente porque as

distinçbes entre iguais sao sutis, elas precisam estar

nitidamente demarcadas através de categorias morais. A

favela, que se expandiu nos últimos anos ao redor do bairro,

corporifica todos ·os desvios temidos: violé'ncia,

promiscuidade sexual e a droga, ainda que os moradores do

bairro declarem repetidamente que

nao qLJer dizer que na favela nao tem pessoas direi tas.

A regiáo invadida, embora seja chamada de favela pelos

habitantes da regiào original do bairro, é referida por seus

48 Essa án•a se caracteriza pela grilagem de> teorras. Ver o trabalho de Teresa Caldeira (1984) a este respeito e especificamente para a questão das disputas legais dos terrenos nesta região, ver a análise de James Holston (1991).

162

Page 176: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

habitantes por um nome próprio diferente Cã. 02s.::.;r>õça0 do

bairro, o que revela a conotaçao pejar-atir-a ::w:- termo

favela encerra, implicando lugar de maloau:;.1~=- ~~:.:"Ido o

peso desta diferenciaçao social, os morao::o-==: =.êi -favela

internalizam os estigmas que lhes sao a~~::~=:s. como

mostra o discurso de duas mulheres, a priaeir= ---r= e mae

de uma mae solteira e a segunda, mae solteira:

Os avtros, ali de cim.a, sáo tudr;; ~r.=.:..~r=:: com aqLii embaixo ••• principalmente coa; ii~ ..uo=.-rr~d.S que mor.am aqui; .ach.am que náo prestai!< üa~ ~ com r,ap,az ••• (Nininha)

Meu pai foi e pfE'diu para hos~ ~a Aparecida que ajudasse ele, para ele. Nem que fosse aqui na Vi 1 a; a.í nós niio

que arrumas~ ;.o: -~

uma favela; ~-= ~..J.~J~CL

queria ficar, ~ :;cs já estava tudo moça e nào queri.a ficar E'1r _;~·-=--à.

A insistê'ncia na diferenciaçào aparece n= :=::.s-''""50 dos

que moram lá em cima:

Somos pobres_. mas nao somos favE,;,ii::!::S_

Na favela, dentro da mesma lógica, O">.h'?-""SE:

Sou favelado, mas pelo menos naç ~ ~JIO da ponte.

j 69

-----.

Page 177: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Náo entrevistei alguém que morasse debai)(o da ponte.

mas seguramente encontraria algum referencial negativo, na

medida em que esta é a lógica social de identificaçao e

difer-enciaçilo, caracteristica deste processo de construçao

de identidades sociais por contrastes e

negativas.

As casas na favela pouco se diferenciam das casas do

resto do bairro, pelo menos em termos do que ali se almeja

como moradia, na medida em que as casas na favela mais

ainda estào constantemente inacabadas, fazendo a vida dos

moradores ser permanentemente acompanhada do projeto de

melhorar as condiçbes de moradia. Quando a regiii,o foi

invadida, a demarc::açao dos lotes foi controlada pelos

pr-imeiros invasores, sob as ordens inequivocas de quem viria

a ser depois o presidente da Associaçào dos Moradores do

local. Eleito pela populaçao, ele tornou-se uma espi!?cie de

''dono'' da favela, ou seja, o ''protetor-'' da populaçào local

contra ameaças, sobretudo de despejos, proteçao e)(erci~a com

a ambivalência de quem e)(erce a autoridade, legitimada pela

sua coragE?m, mas tambi!?m pela for-ça, garantida pelo uso de

armas. Na obediência dos mor-adores da favela esté implícito

o medo, em face do desamparo em que vivem. Tr-ata-se,

portanto, de uma pr-oteçao dE· bandido, enquanto "defensor da

inviolabilidade do territór-io que ocupa" (Zaluar, 1985, p.

138 I.

1.70

Page 178: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Quando a á~ea começou a se~ invadida, o "dono da

favela" tentou garantir uma marca de distinçáo para aquela

favela, ''proibindo'' a construçao de barracos de madeira que,

por oposiç:ao às construçOes de tijolos, sao um sinal de

inferioridade social. Ele conta:

D~i .aqu~le grito: ".aquel~ quE? fiz~r um barraco de madeira, eLI derrubo~" Eu falei por tal .ar.~. ~ o grito SOOLJ forte na mente de c.ada um, que todo mundo se corrigiu s~m ~u fazer nada. ( ••• ) Has foi uma coisa que eu acho que estava no instinto de cada um mE?smo; e o ún1.co que tentou fazer barraco de ma dei r a apanhou aqui.. na o de mim, mas da turma ali ••• e foi embora.

O grito soou forte porque, de fato, populaçào da

favela quer dar ao local um marca de distinçào, mas sabe

também que, se nào se corrigir, a correçào será imposta pelo

"dono da favela", cujo dominio soa tanto mais forte quanto

mais se sabe que a questào, no 1 imite, pode ser reso 1 vida

pelo uso de armas, ameaça que paira sempre no ar.

Na favela, há um arruamento distinto, precar-iamente

demar-cado e as condiçbes de infr-a-estrutur-a urbana nào sao

as mesmas, embora haja água encanada, esgoto e luz elétrica.

A favela, entr-etanto, nao cor-responde necessariamente a umd

mor-adia considerada pr-ovisória. Ao invadir um terreno, o

171

Page 179: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

p~ojeto é legalizá-lo, at~avés da comp~a daquele te~~eno.4•

Diante da ~egiáo desocupada, as familias invadi~am a á~ea e

imediatamente const~uiram um cômodo para se apossarem do

terreno invadido antes que alguém lançasse mao dele

ce~cando-o, dentro de uma prévia combinaçao, com as familias

invasoras, do que seria a delimitaçao da área. A situaçao é

de competiçáo, quem chegar primeiro, leva.

Invadido o terreno e levantado o cômodo, o próximo

passo é, na medida do possível, tornar a casa o mais

arrumada possível. Cuidam da casa para legitimar a ocupaçáo

do solo e justificar a meta de transformá-lo em sua

propriedade, tendo como modelo de organizaçao interna e de

construçao as casas do resto do bairro, das quais procuram

se indiferenciar. Como definiu uma moradora, criticando os

que venderam os terrenos invadidos: a pessoa tem que ser

como ~1m proprietário e isto significa construir e arrumar a

casa~ como estratégia para aquisiçao definitiva da

propriedade. Invadir o terreno náo é, entao, necessariamente

pensado como uma soluçao p~ovisó~ia, mas como uma estratégia

ao alcance desses moradores da periferia para aquisiçao do

49 t em torno da compra legítima dos terrenos invadidos que muitos dos habitantes locais estavam articulados aos movimentos sociais dos favelados que, por sua vez, se caracterizam por difE>rentes estratégias. Por esta razao, declararam se-r preferível invadir terrenos da pr-efeitura, onde há maiores chances de r-esoluçào do problema da co111pr-a do terr-eno.

17:

Page 180: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

terreno e real i zaçio do eterno projeto da casa pr6pr ia. e o

Por isso, os moradores da favela t~m em relaçio à sua casa 0

mesmo cuidado que teriam se fossem proprietários de fato. o

cuidado é pensado como um argumento em favor do "direi to"

sobre aquele terreno, além evidentemente da imagem de gente

de respeito.

Essa demarcação da casa, na busca de uma legitimidade

para a condição de favelado, aparece nitidamente em uma das

casas, que segue tipicamente este padrao. Construída num

terreno invadido e cercado por arame farpado até cerca de um

metro de altura, a casa tem um portao de madeira com esta

mesma altura, enfim, baixo e fácil de pular, Este portao, no

entanto, fica constantemente trancado por um cadeado,

expediente inútil do ponto de vista da segurança, mas

simbolicamente eficaz, ao delimitar o espaço, legitimando o

direito do morador sobre ele, reafirmado pelo esmero com que

se organiza a casa e se escolhe, dentro do padrào das

moradias populares, o material de construçào e os móveis.

50 O que nao exclui invadida, que se opbe de rf!spei to.

outras estratégias, ao projeto familiar

como de se

a de "ve>nder" a áre>a estabelecer como gente

173

Page 181: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Trabalhador X Bandido

O peso negativo atr-ibuído ao favelado aproxima esta

categoria da de bandido, como integrantes do mundo da

desordem. Através da descriçào dos bares locais, fica claro

como opera a distinçào entre trabalhadorEPs (= pais dE>

família) e bandidos, porque é nestes espaços do bairro que

está materializada esta distinçao, que se entrecruza com a

distinçào entre proprietário e favelado.~:~_

Há dois tipos de bar&s no bairro: as VE'ndas onde se

encontra de tudo para comprar alimentos, material de

limpeza, material escolar, etc. (no fim-de-semana alguns

vendem bebida alcoólica) e que sào frequentados por

homens, mulheres e crianças; e os bares em que se vende

estritamente bebida alcoólica tira-gostos, onde

geralmente estao espalhadas mesas para jogo de baralho ou

para sinuca. Sào fundamentalmente um espaço masculino. Estes

últimos estio hierarquizados em duas categorias, baseadas

numa divisào moral, que mostra mais uma vez o forte

entrelaçamento da família e do trabalho como referfncias do

mundo da or-dem. Uma é a dos bares frequentados pelos pais de

família, trabalhadores, na chegada do trabalho, nos fins de

semana, dias de folga, onde o clima

51 Particularmente nesta parte colaboraçao de Roberto Catelli Jr., do bairro.

da pesquisa, que frequentou

maJ.·s social,

foi fundamental os espaços masculinos

174

Page 182: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

1 oca l izados 1 á l?m cima, na área do bairro que, como j a foi

descrito, corresponde às melhores moradias. O outro tipo de

ba~ masculino é aquele onde se ~eúnem os bandidos ou

ma 1 oquei ros, situados 1 á embaixo, isto é, na favela.e2

Nestes, passa-se droga. É preciso garantir que nao haja

dedo-duro. Isto delimita a clientela, que deve estar sob

controle de quem comanda a atividade ilegal. Dado o negOcio,

é preciso garantir, se nao a aceita.çáo, pelo menos a

cumplicidade dos presentes. sao, por isso, bares f&chados.

Como sintetizou um homem de 24 anos, nascido e criado em sao

Paulo, frequentador das duas categorias de bar:

As pessoas que freque>ntam o bar aqui de cima sao pessoas mais de fami li a, sâo pessoas mais responsáveis, trabalhadores ••• E o bar lá de baixo nao, sâo ma.is bandidos, jogadores, traf.icantes ••• essas coisas todas ••• , entao tem bastante diferença. Et diferentE> o r:: lima ••• pelas pessoas e outra, pelas conversas e pelas transaçóes que voe~ V€. No bar lá de baixo, as vezes, voce está no bar e voce v~ o cara passando, vendendo.. de tudo ••• transaçbes assim. É: tudo mais livre, entendeLI? Nais livre ••• Lá., vamos dizer assim, sào mais eles que mandam • ••

A distinçào entre a imagem do trabalhador e do bandido

constitui uma referência moral básica é enquanto

construçào negativa da identidade do trabalhador que

interessa aqui analisar o identidade de

52 Os bares como espaço social assemelham-se às analisadas por Elliot Liebow (s/d), como o mundo da contraposto ao mundo da casa/trabalho/ordem.

bandido. A

5 trE>P t rornPrs, rua/desordem,

l '" . ; ~·

Page 183: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

importante dimensao simbólica desta oposiçào foi acentuada

por Alba Zaluar (1985).~ 3 Esta autora ressalta a importância

das relaçoes entre trabalhadores e bandidos, nào só para a

construçao da identidade do trabalhador. Sua análise

focaliza também o que essas relaç:Oes dizem a respeito das

representaçóes dos pobres sobre o crime, a justiça, o poder

e a desigualdade social, mostrando a relatividade da noçáo

de "crime", pela ausê'ncia de critérios universalistas na

definiçao de "justiça", o que impóe consequentemente uma

complexidade e uma ambigu~dade na própria definiçào de

bandido.

Nem todos os que transgridem as regras do trabalho e da

fami 1 ia sao considerados bandidos. H~ nuances. Roubos e

furtos eventuais nao sào suficientes para delimitar uma

ruptura das fronteiras com o mundo da ordem. Estes

expedientes, assim como o mundo dos bar&s, fazem o bébado, o

malandro, o vagabundo, enfim, os que nào querem saber de

responsabi 1 idade e negam, assim, o valor do trabalho,

considerado coisa de otário. O problema está nao somente em

conseguir dinheiro sem se submeter à disciplina do trabalho,

mas também em nào se importar com o destino do dinheiro, o

que significa náo levá-lo para casa como "bom provedor" •

desconsiderar o projeto familiar, pensar apenas no momento,

53 A identidade constrastiva do "trabalhador" e/ou "homem de bem", com base na construção de referªncias negativas, aparece ainda nos trabalhos de Ruth Cardoso (1978) e de Tereza Caldeira (1984), sendo reafirmada por Vera S. Telles (1992).

J76

Page 184: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

como mostra o comentário de um morador:

Quando o cara está com dinht:iro mesmo . .. D

nt:góci o dt:lt:s é gasta r, o negócio deles é o momento, 56 tE?m momento. Pegou um dinheiro E' é gastar E' pronto. Quanto acabou. aí eles procuram mais •••

Dentro desta perspectiva, um homem que consegue

dinheiro por meios suspeitos, mas usa este dinheiro para

sustentar a casa e a familia, é visto com alguma tolerância,

considerado mal encaminhado, mas nao alguém que tenha uma

natureza ruim. Este homem é reprovado em seu comportamento

avesso ao trabalho na mesma medida em que se reprova o

trabalhador que nao traz s&u salário para dentro de casa,

avesso, portanto, à família.

A ruptura com o mundo do trabalho e da família,

significando a passagem para o "outro lado", vincula-se ao

crime organizado e ao tráfico de drogas, implicando em uso

de armas de fogo (Zaluar, 1985). E esta passagem que define

o bandido, também chamado de marginal, e que faz os bares lá

embaixo serem locais fechados. Seguindo a definiç.3.o captada

por- Alba Zaluar,

''a imagem do bandido constrói-se com da arma e a opçao pelo tráfico, ou pelo como meio de vida." (Zaluar, 1985, p. 149)

a posse assalto

177

Page 185: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Esta delimitaçào da fronteira do mundo da ordem e da

transgressào, embora tenha contornos n.itidos, é também

matizada no dia-a-dia, na o obstante necessidade de

enfatizar as diferenças para construir a imagem do homem de

bem:

As pessoas daqLii olhar dl? cima tem um deles, eles saem, lugar ••• falam que se misturar.

dJ.. ferente. Se chegar um ~mbora, vao para outro marginal, saem, nao querem

O fato é que os trabalhadores e os bandidos sao parte

integrante da sociabilidade local. Criam-se necessariamente

regras de convivência entre os moradores do bairro e os

bandidos, envolvendo sempre rel açóes tensas, com base no

medo de quem se sabe ameaçado, no limite, por armas de fogo.

Porque, se os bandidos podem ser os filhos mal encaminhados

de alguma vizinha que a redondeza viu crescer, o que envolve

algum respeito pelas obrigaçóes que norteiam as relaç6es

locais, bandido é também gente rLJim, atributo que pode ser

visto como consequªncia de uma revolta contra suas condiçbes

de vida, mas também pode também se c considerado uma

qualidade inata, posto que julgam que percepçao da

injustiça e do desigualdade social náo implica

necessariamente em escolher o caminho do crime como meio de

vida, uma vez que nem todos o fazem.

178

Page 186: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Quando se atravessa fronteira para o crime

organizado, a norma em situaçbes limite deixa de ser 0

respeito às obrigaçbes que ordenam o convívio entre os

moradores locais. Assim, se band.ido respeita trabalhador,

como mostra z.;duar ( 1985), e se "matar quem náo está na

guerra é considerado perversidade'' (p. 143), os limites até

onde impera este tao comentado código de honra dos fora da

lei sào frágeis e a populaçao local vive sob o signo do medo

d~ bandido, ainda que saiba que pode ser por ele protegida,

diante da desproteçao que caracteriza sua existência social.

Em relaçao às ameaças de fora, sobretudo a violência

policial, os bandidos locais protegem a localidade, como é o

caso do ''dono da favela'', que protege os moradores contra

eventuais ameaças de despejo ou novas invasbes. Entretanto,

a ambivalência da relaçáo dos moradores com os b.andidos

locai~ está em que, ultrapassando a fronteira do mundo do

trabalho, que o situa no mundo do tráfico, do assalto

organizado como meio-de-vida e do uso de armas de fogo, o

bandido rompe, no limite, com o código moral que delimita as

obrigaçbes com a populaçao local.

Bandido respeita trabalhador sim, mas em

circunstâncias que náo ameacem seu n~gócio, o que significa

"sua vida e liberdade", como diz um documento do Comande

179

Page 187: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Vermelho.e 4 Se esta ameaça existir, o bandido atua dentro de

uma lógica de poder, de quem detém, no limite, o controle da

situaçao pela posse de ar-mas, podendo r-omper- com qualquer-

cr-itério de obrigaçao moral. Ambas as partes sabem que as

armas de fogo (que uma das partes detém) podem ser postas em

açào, se alguma desavença eclodir. Dai que a regra básica

para os moradores locais, é ndo se meter com os negócios dos

bandidos, fazer vista gr-ossa, ndo dedodurar. Outra regra é

precisamente não acentuar a distinçào:

Voe@ náo pode Claro, ele nao vai

chamar um bandido de bandido. gostar. Tem que tratar assim .•

encarar de pessoa para pessoa.

A "proteç.3.o" dos bandidos, que é real diante da

desproteçào dos moradores da periferia, sobretudo das

favelas (uma vez que a lei protege os ricos e discrimina os

pobres), inscreve~se ainda dentro da lógica da disputa entre

gangs ou disputa em face de alguma ameaça externa, ou seja,

a policia, ainda que possam efetivamente trazer beneficios a

seus protegidos, nào só no que se r-efere ~ sua segu,.-ança,

mas também ~s suas condiçbes de vida. Nesta lógica, a honra

54 Entre "As 12 regras do bom bandido", documento encontrado E>m poder de um preso foragido do Instituto Penal Milton Dias Mor-eira, no Rio de Janeiro e publicado pelo jornalista Carlos Amorin em seu livro sobre o Comando Vermelho, está uma r-egra que ilustra meu argumento sobr-e a ambivalência da "proteçâ.o" dos bandidos: "Respeitar mulher, crianças e indefesos, mas ab,.-ir máo deste respeito quando sua vida ou liberdade estiverem em jogo" (Amorin, 1993).

1 !..-.-", '-"·'

Page 188: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

do bandido fica comprovada pela sua capacidade de defender a

área onde atua, incluindo seus moradores, por ser corajoso e

destemido a ponto de enfrentar as ameaças externas. Por

estas qualidades, ele é admirado e reconhecido como uma

autoridade legitima dentro da localidade; mas a ambiguidade

permanece, em face de uma admiraçao que se mistura com 0

medo, porque, nesta afirmaçao da honra do bandido, pode nao

prevalecer o respeito â vida do morador local, mas a

demonstraçao de sua força a qualquer preço, o que faz o

bandido perverso.

A relaçao do bandido com os moradores locais é marcada,

assim, pela ambivalência: se, no limite da afirmaçào de seu

poder, ele mata quem ameace sua vida e sua liberdade, ele

também protege os moradores, salvaguardando os valores de

seu grupo, como a honra feminina, a proteçao das crianças e

o respeito pelos indefesos, mostrando uma generosidade e um

desprendimento em relaçao ao dinheiro que justificam

moralmente seu poder e a posse do dinheiro.

Quando prevalece o interesse individual em detrimento

dos deveres da ''boa autoridade'', rompe-se drasticamente com

as obrigaçóes morais em relaçao a seu grupo e o que conta é

"levar- vantagem". É nesta lógica que se inscreve o

comportamento do pr-esidente da associaçao dos mor-adores da

favela que cobr-ava uma taxa para redistribuir os tickets de

leite distribuidos gratuitamente à populaç.3.o pelo gover-no.

Foi denunciado por um dos moradores da favela e pr-eso.

J81

i

~

Page 189: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Um morador, sintetizando a hierarquização moral do

bairro expressa nos bar~s locais, resume como se dá no

cotidiano a convivência entr!? os trabalhadores e os

marginais, revelando a tensao permanente que per-meia esta

relação que nao podem evitar, mesmo para quem dribla esta

convivência, pela sua própria localizaçao na fronteira

destes dois mundos. Esta é uma habilidade que nao se

encontra nos trabalhadorEs, pai!; dfE' fam.Llia, estes que nao

querem se misturar e nao sabem encarar de pessoa para

pessoa:

Eu acho que~ do jeito qLie vocé' trata uma pessoa, voe: e náo pode trata r todas. Suponhamos ••• dEntro da soci~dade existEm vários tipos de pessoas. Voc'ê chega num bar, vocé' E?ncontra um trabalhador, um pai de familia, está lá simpl&sm&nte. Chego<.• do s&rviço_, &stá lá tomando uma pinguinha, vai para casa tomar um banho, Jantar e cama ••• no outro dia tem mais serviço. Entao.. vocé': "Como é que está, o serviço, a familia ••• "

Você encontra um colega jovem também: "Sábado eu sai .• curt.i parêl caramba ".

E às vezes você chega 1 á e encontra um malandro., que aqui tem mui to também... Ai o papo Já é diferente ••• entao ••• eu, pelo menos, me sinto na necessJ.·dade de ter assunto para conversar com todo tipo de pessoas_. seja malandro, seja bom, seja ruim, sabe... para que todo mundo também te aceite, do mesmo jeito que você acE?i ta todo mundo. Entao., às vezes., eu chego num bar e tem um malimdro. tem uns batuques~ tudo bem. a gente vai lá, f.ic,a ali de lado e tal. O cara vem trocar umas idéias diferentes.. vamos ver o que é... Ou, dr=> repente: NJio., nao dá para mim, estou fora ••.

182

Page 190: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Agora_, também você nao vai chegar numa favela E> já: "Di.' como é qui? é7" IH o cara pensa QLIE> ou é louco 01.1 entá·o- •• tem alguma co.isa a Ve>rf f1as se você ficar na sua, n.iio prestar muita atenção neles •.• Porque o olhar o olhar fala muito .• sabe? Entào~ se você nao prestar mui ta atençao, ficar esperto para qualquer outro tipo de pessoa q<.1e se aproximar de você_, mas manter sempre o olhar mais baixo, mais calmo., ficar sossegado ••• você pode entrar, você pode sair, em qualquer tipo de favela.

Ao se entrar no mundo do crime, rompendo com o valor

positivo do traba;lho e da fam.ilia ~ um caminho sem volta~

ainda que se mantenham as obrigaçbes morais que unem os

bandidos a seu grupo de origem e, acima de tudo, definem o

universo de referências culturais do qual é originário, a

realidade é que a fronteira foi atravessada, e os resultados

se tornam imprevisíveis. E como se, navegando num mesmo

barco, estivessem, de um lado, os que, buscando atribuir às

suas vidas um sentido, numa sociedade injusta e

irremediavelmente desigual, pautam sua conduta pelo valor

positivo da fam.ília honesta e do trabalho honrado por eles

recriado e, do outro lado, estivessem os que romperam essas

fronteiras, descrentes de qualquer sentido neste mundo onde

se sentem lesados e do qual buscam tira~ o máximo proveito,

dentr-o de uma lógica simétrica e inversa, pela qual se

sentem no direito de privar os outros na mesma medida em que

se sentem p~ivados, negando qualquer possibilidade de

arbitrio da lei.

Page 191: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Pobre x I'IIMld.i go e etc~ . ~

O mendigo, tào próximo ao trabalhador, é uma das

categorias que diferenci~ e contrasta, das qua1s os pobres

lançam mào constantemente para se afirmarem como

traba 1 hadores, portanto, homens de b&m. Já foi comenta da a

distinçao entre trabalhadores e mendigos no capitulo

anterior, na discussao sobre o valor do trabalho. Há,

contudo, outros eixos de distinçào, como aquele entre o

pobre e o mendigo, que se dá sobretudo em torno da casa, Já

foi amplamente comentada nos estudos sobre os pobres

urbanos, a importância da casa como referência básica de sua

identidade social (Dur-ham, 1978, Woortmann, 1982, e 1986,

Sarti, 1985a) e, associada a este valor, a importância da

limpeza da casa (MaG<>do, 1979, Caldeira, 1984 e Da Matta,

1993b). Daí o valor atribuído também ao trabalho doméstico e

à mulher- em seu papel de dona-de-casa que faz a casa estar

l.impa e arrumada. Este é um dos valores manipulados para

definir o mendigo, aquele que é relaxado, porco, desle.ix.ado,

os que anda de qualquer Jeito.. deixa a casa de qualquer

jeito. A importância da or-dem e da limpeza diz respeito nào

apenas à casa, mas também ao corpo.

Assim, na (des)ordem da casa ou do corpo está uma das

marcas dos mendigos, definidos como aqueles que só vivem se

queixando da v.ida, aludindo à moral segundo a qual o esfor-ço

e o empenho justificam o que se tem. Mendigos sào também 1

184

' L

Page 192: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

como já foi visto, os que pedem esmola. Recebem de g~aça sem

a dignidade de dar algo em troca, colocando-se, assim, no

lugar de pobres mesmo. Ao contr-ár-io dos que legitimamente

recebem: no traba 1 ho, onde dou ser ... u: ço, nos ser-v i ços de

saúde, porque pago INPS •••

Os moradores locais utilizam-se dos sinais diacriticos,

próp~ios do mundo social do qual fazem pa~te, par-a

diferenciarem-se entre si, através de distinçties que podem

se r-eproduzir em qualquer instância na vida local.

Embora na vida cotidiana os costumes prevaleçam sobre

regras formalizadas e haja uma grande flexibilidade nas

normas de convivência fazendo, por- exemplo, com que as

crianças circulem entre unidades familiares distintas ou as

unibes consensuais sejam aceitas sem problemas nos

momentos de conflito ou em situaçbes-limite oper-a um

mecanismo, que se reproduz tanto no nivel privado quanto no

público, graças ao qual se recorre às regras morais

socialmente dominantes para formular acusaçbes fazendo

pesar a preminência do vinculo de sangue, e a maior-

respeitabilidade do casamento legal, em face das unloes

consensuais. Como disse um homem sobre os conflitos de sua

lrma, màe solteira, com o atual parceiro:

Arruma uma briguinha ass.im e E>lP Já fica jogando na cara •••

185

Page 193: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

O que, na vida do dia-a-dia, comporta tolerância,

envolve manipulaçao, em situaç6es de conflito, para afirmar

quem é gente de respeito, tornando "menos" quem na o segue

essas regrais morais. Assim é que a categoria amigado, em

opasiç~o à de casado, demarca uma fronteira, apesar de sua

aceitaçao na prática, porque o casamento legal torna as

pessoas mais respeitáveis, como foi comentado no capitulo 3.

Por estes mecanismos simbólicos, o sujeito reafirma-se

moralmente como homem de bem, diante de si mesmo, perante

seus iguais e aqueles que lhe sào superiores na hierarquia

social. Nesta lógica, a manipulaçáo das distinçbes raciais

pode igualmente ser utilizada, reiterando o preconceito e os

estereótipos socialmente existentes.

Demarcação das fronteiras

O espaço fisico da cidade materializa as hierarquias do

mundo social e a sua utilizaçao responde à condiç~o social

dos seus habitantes: na "per-ifer-ia" estao nao apenas os

bairr-os pobres, mas os bairros dos pobres. Os mor-adores da

periferia cr-iam uma identidade que só faz sentido por

contraste, compartilhando este espaço geográfico e social

como seu local de moradia, em oposiç.3o an centro. Morar no

bairro cria um recorte, delimitando uma identidade social,

l86

Page 194: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

qu~ s~ manifesta na segm~ntaçáo de s~us mo~ado~es, ainda que

esta ~ep~oduza uma lógica social que ultrapassa os limit~s

da localidad~. Desta man~ira, m~smo que os pobres estejam em

toda a parte nas cidades, é na periferia que se observa e se

identifica mais claramente sua maneira de viver. Ai é que se

de f in e seu pedaço, como analisou José Guilherme Magnani

( 1984) ; esse é o seu lugar na cidade de sao Paulo.

Entretanto, compartilhar este espaço na cidade nao é o que

os faz pobres, mas é por serem pobres que o compartilham. O

que faz, entâo, de quem se diz pobre, pobre? Aonde se

encontra o fundamento de sua identidade de pobres?

Segundo a concepçào de quem assim se designa e assim é

designado, ser pobre, para além da evidência de ser

destituído de riqueza, poder e prestigio, é uma condiçào

social que se define pela adesao a um código moral distinto

daquele que norteia a lógica do mercado, dominante na

sociedade capitalista, criando outras referências positivas

para quem é visto como destituído, pelo prisma da sociedade

mais ampla. Através dos valores do trabalho e da fam.ilia,

criam, como fronteira do mundo dos pobres e trabalhadores, a

adesao a um código de obrigaçbes morais que delimita seu

grupo de refer~ncia, r::omo uma familia. A percepçâo dos

obstáculos por eles enfrentados na sociedade capitalista

reforça a retraduç.3.o da ordem social por valores não-

capitalistas, na afirmaçao de uma outra ordem moral, na qual

sua existência faça sentido.

187

Page 195: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Como a familia se delimita por obrigaçóes morais que

unem seus membros, como uma forma de solidariedade orgânica

no sentido durkheimiano, a identidade dos pobr-es se

estabelece também por um referencial moral. A questao de ser

ou nao ser pobre inscreve-se num código de reciprocidadE'

permeado por obrigaçbes morais. Quebrá-lo significa romper

com o grupo de origem, deixando de ''ser pobre'', o que náo

resulta necessariamente do fato de que adquirir recursos

materiais ou superar os limites das "linhas de pobreza"

definidas nos gráficos dos indicadores sociais. Um individuo

ou uma família podem elevar seus rendimentos e manterem-se

pobres, o que significa manter seus laços de obr-igaç6es

reciprocas com seus iguais.

Através de sua moralidade, 05 pob~es atualizam os

critérios relativos que definem a pobreza na sociedade

medieval, comentados por Da Matta (1993b), que implicam

conotaçbes positivas e negativas. A pobreza semp~e foi signo

de carê:ncias de várias ordens, mas era também signo de

virtude, como no caso do renunciante que se priva das coisas

deste mundo em nome de algum valor moral. É este valor que

está na base da exigê:ncia da generosidade como qualidade

moral que legitima a posse da riqueza material, da modéstia

par-a quem tem prestigio e da bondade para quem tem poder­

(Montes, 1983)

Como a pobr-eza no mundo moderno é definida

essencialmente por- um cr-itério político e econômico os

188

Page 196: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

pobres sáo os carentes de riqueza material e de poder -, é

no plano moral que se estabelece a igualdade e onde os

pobres podem mesmo ser "superiores". Através de suas

virtudes morais, tornam-se ricos, e os ricos - pelo critério

econômico e político- podem ser privados de riqueza moral,

portanto, de virtude, concepçao que se relaciona com a

profunda religiosidade popular.

Assim, os projetos de melhorar de vida que motivam sua

existência, sao formulados dentro dos limites do código de

obrigaçóes reciprocas entre iguais, que os mantém ''iguais''

em relaçáo a seu grupo de referência. Ascender socialmente

significa uma forma de ruptura com a reciprocidade entre

iguais. Assim, vêem-se diante do conflito entre "ascender",

que implica em se retirar de

obrigaçóes reciprocas dentro

seu meio

das quais

social,

formulam

e as

seus

projetos de vida. Alba Zaluar (1985) comenta, neste mesmo

sentido, que sáo muito mal vistos os que se colocam como

"superiores", que falam num tom que implica alguma

desigualdade entre os interlocutores. Ser "igual" refere-se

ao tratamento dado ''aos outros, sem procurar mandar, dominar

ou afirmar a sua superioridade." (p. 124)

A solidariedade, construída num contexto de carência

ou, num outro refe~encial, de desigualdade, leva Alba Zaluar

(1985) a mencionar a importância da inveja como um

dispositivo da sociabilidade local do conjunto habitacional

que estudou:

189

Page 197: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

;;_-

''Se todos criticam publicamente a inveja, muitos parecem participar de seus dispositivos psicológicos, tornando-a eficaz e c r i ando a necessidade de proteger-se contra ela, Surgida da hierarquia social que cria a desigualdade entre as classes, a homogeneidade dentro da classe é também uma experlencla de controle rígido e conflitos intensos." (p. 125-26)

O projeto de melhorar de vida, implícito na estratégia

do casamento, representa precisamente uma aliança, no

sentido antropológico clássico, para obter recursos de

complementaridade que permitam realizá-lo; mas este projeto

se distingue do projeto de subir na vida, que representa a

ruptura com seu grupo de origem. O projeto de m12lhorar de

vida e o projeto de subir na vida distinguem-se como um

divisor de águas, onde está em questào a adesáo a novos

valores que rompem o principio da reciprocidade, fundamento

de sua pertinência a seu grupo social de origem.

O projeto de melhorar de vida é formulado pelos pobres

dentro da perspectiva relaciona! de suas aç6es e escolhas.

Luis Fernando D. Duarte (1986) destacou o mesmo recorte, ao

diferenciar o projeto de melhorar de vida - constituindo, em

sua definiçáo, um projeto de ''estabilizaçáo'' que os mantém

nos 1 imites de seu gr-upo de referªncia, e o projeto de

ascensào social, que significa uma ruptura com este grupo.

Neste sentido, Conrad Kottak (1967), em seu estudo sobre uma

comunidade pesqueira no nordeste do Brasil, refere-se à

ambivalªncia com que os pobres encaram as relaçbes de

parentesco 5 que fazem parte de suas vidas e das quais

190

Page 198: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

necessitam, mas que constituem uma ameaç:il. e um frei;; aos

empreendedores mais ambiciosos, pr-ecisamente corou;; a

per-spectiva de "ascender-" configur-a uma r-uptura co~ os

valor-es familiar-es.

A for-ça simbólica da delimitaçào dos "iguais' e:'tr-E os

pobr-es tr-ansparece nos episódios que se suceoe~ar à

publicaçao e ao sucesso do livr-o de Carolina Maria o: J~s,

Quar-to de Despeio. Trata-se de um livr-o de alguém que ja náo

é mais um "igual". Carlos Vogt (1983), em sua aná.lis2 ce:ste

livro, ressalta esta questao, ao comentar cu e a

possibilidade de ter sua exper-iência traduzida nwr. :.1.v:ro-

portanto escrita retira Carolina do unl.versc de

referências culturais dos seus lgual.s e a coloca n:::;.;;-r.ro

lugar. Com esta experiência, ela deixa de fazer par~e ce seu

grupo de origem e torna-se uma outra coisa, "a!"""::.is~c;". O

livro constitui, entao, "o ponto de estranhamen-c::: ~tre

Carolina e os favelados", porque

"de um lado, a autora pertence ao mundo que r.a"""rõi e cujo conteúdo de fome e privaç:ào compartil~.a =:ur. o me~o social em que vive."

Mas, do outro lado,

"ao tr-ansfor-mar a exper-iência r-eal da miséria na experiência linguistica do diár-io, acaba PC.- s.2

distingui r- de si mesma e por apresenta- a escritura como uma for-ma de experimentaçao s==~4: nova ( ... )"

1 ,...., •

"'-

Page 199: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

E o autor conclui, assim, que

"o diário de Carolina ao mesmo t~mpo ~m que se cola à realidade que mimetiza, constitui uma vingança em relaç~o a ela.'' (p. 210)

O episódio, relatado por Carlos Vogt, de que os

vizinhos de Carolina Maria de Jesus lhe atiraram pedras

quando ela deixou a favela, depois que enr.icou com o sucesso

de venda de seu livro, pode ser explicado por este

afastamento que o livro significou em relaçào a seu grupo de

referência. Isto foi interpretado por seus iguais nào só

como uma ruptura, mas como uma "traiçào", por ela ter-se

utilizado de uma forma de expressao, a escrita, que nao lhes

é própria; em contrapartida, negaram-lhe a pertinência a

este grupo, como uma maneira de puni-la.

Romper com as regras de reciprocidade significa,

portanto, excluir-se do mundo dos pobres. é quando se

enrica, ainda que isto possa acontecer num terreno ambíguo,

diante das antigas lealdades. A fronteira se rompe quando se

enrica sem ajudar os outros, seja por meios lícitos ou

ilicitos, uma vez que a riqueza sem generosidade nào é

moralmente legítima, envolvendo perda da confiança,

pressuposto básico das regras de reciprocidade. Rompe-se com

este mundo pela quebra das obrigaçbes morais, tornando

ambivalente a relaçào com quem enrJ.·cou negando as virtudes

morais de seu grupo de origem, sendo a inveja parte desta

ambival~ncia, porque, na perspectiva do valor do dinheiro,

19.2

Page 200: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

que náo é negado, quem saiu do "mundo dos pobr-es" foi bem

sucedido.

Funçào ideológica da ambival$ncia entre os iguais

Os mor-adores da per-ifer-ia, na hibridez de sua

identidade social, vivem muito próximos aos beneficios do

mundo urbano/capitalista, aos quais, entretanto, náo têm

acesso. Pela sua pr-ópria presença neste espaço, entretanto,

estao expostos às aspiraçdes e aos anseios que o meio urbano

cria, ainda que sejam insatisfeitos e frustrados. Têm o

querer e a amb:içiio descritos por uma mulher-, ao falar- de sua

chegada a Sao Paulo, vinda da roça:

A gente chegou aqui e era tudo diferente. Televisáo é uma co.1sa que aqui todo mundo QLJer ter; vocé vai n.:< casa de um, ele vi? que o outro tem... e ele também quer ter. Lá o pesso~l é acomodado naquilo ••• df? v.ivf?r Sf?mprf? naqu:ilo •.. ntmca faz forç~ df? ir m~.is para lá. As pf?ssoas sdo simplf?s, simplf?s df? tudo. Náo tf?m f?SSf?

quf?rf?r • •• f? 55~ ambi çdo •• •

Sào a per-ifer-ia, mas de Sao Paulo, o pólo moder-no de.

economia brasileira, sua identidade compor-ta esta

complexidade. Estar- na capital de Sao Paulo, a aspir-açào do

migrante, nao os retir-a da condiçâo de pobrf?s, mas faz deles

iil ,,

I

' ,, 'I

:i

: ''

19::,

Page 201: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

os "pobres da cidade". Essa inacessibilidade ao que lhe está

tào próximo reforça a afirmaçao de outros valores,

contraposiçao aos que lhe sao inatingíveis, que passam a nao

ser formulados expressamente como desejáveis, ainda que nao

deixem necessariamente de sê-lo - nisto está a ambiguidade -

reafirmando um mundo próprio por eles valorizado, no qual se

reconhecem e sáo reconhecidos.

Vimos, nos capitulas anteriores, como o trabalho e a

família constituem as referências básicas através dds quais

os pobres constróem sua identidade social positiva. sao

pólos positivos que diferenciam os pobres e trabalhador&s de

outros "pobres", que m&recem o nome de pobre mesmo.

Neste processo relaciona! que constitui a construçào da

identidade social dos pobres, onde há identificaç~o pela

necessidade de afirmaçao de um grupo de referência e

diferenciaçao pela necessidade do contraste para sua

definiçao positiva a constante oposiçao, o contraste a

que nos referimos, opera como um mecanismo estrutural. Nào

sao, entretanto, os termos que se opbem, é a oposiçao que

define os termos. Nao é o bandido que se opóe ao trabalhador

(Zaluar, 1985), o marginal ao homem de bem (Caldeira. 1986),

a pLI t.a à mulher honesta ( Sarti, 1985a) , mas é a oposi çào que

precede e define os termos, porque a oposiçaa é constituinte

deste processo relaciona! de construçao identidades

sociais. Esta formulaçào diz respeito a uma análise

estrutural.

.194

Page 202: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Levi-Strauo;;o;; definiu a lógica de oposiçOes como uma

característica (universal) do pensamento humano, um

"pr-incipio estrutural", que precede a linguagem o

pensamento, como sua condição de possibilidade; é, segundo

este autor-, atr-avés de pares de oposiçbes que se organiza o

pensamento humano. Foi com base neste pr-incípio que Levi-

Strauss deu a e~traordinária reviravolta na interpretaçao

sobre o totemismo (Levi-Strauss, 1986). Esta lógica de

opos~çOes, na medida em que organiza as representaçbes,

define simultaneamente as relaçbes entre os homens, porque

representação e açào humanas não se separam.ee

Tendo sido demonstrado que há uma pluralidade de

referências que delimitam a identidade social dos pobres

urbanos - o que é reconhecido nos trabalhos sobre os pobres

urbanos de modo geral (Caldeira, 1984, Agier, 1988, Zaluar,

1985) -, o que procurei demonstrar é que há, entretanto, uma

lógica de classificação. As várias categorias através das

quais os pobres se diferenciam não cor-respondem a uma visào

fragmentada do mundo (Caldeira, 1984)' mas são elXOS

55 O pr-incipio d~ uma lógica relaciona! que precede os termos apar~ce

também em Marx (1946), expresso na teoria do valor, em sua definiçao do que é a mercadoria. Para Marx, as mercadorias silo os objetos que tem valor náo apenas de uso, mas também de troca. Sio objetos de troca que, enquanto tais, encerram uma relaçio prévia, que precisamente os define como "mercador-ias". Opera também nesta explicaçao um principio estrutural, em que a relaçáo de troca subjaz ao objeto, sendo sua propriedade intrinseca. Assim, as mercadorias ni:to sio trocáveis porque sio iguais, mas o que as faz iguais é o fato d~ serem trocáveis. Isto significa que a relaçáo d~ troca antecede e faz a equivalência dos termos.

195

Page 203: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

classificatórios distintos que respondem a uma mesma lógica

de classificaçao do mundo, uma lógica de oposiç:bes,

correspondendo, assim, a um mecanismo estrutural de

constr-uçao de suas r-epr-esentaçbes e de sua identidade

social. Esta lógica de oposiçbes que preside as r-elaçoes

entr-e os iguais, embora seja pr-ópria do processo de

construçao de identidades sociais, nao sendo específica dos

pobr-es, transiorma-se num mecanismo que procura responder à

sua situaçao específica na sociedade desigual onde vivem.

Este processo, no caso dos pobres, r-eflete, assim, a

ambiguidade do sistema de valor-es de uma sociedade que nao

realiza sua pr-omessa básica de igualdade. Há solidar-iedade,

um sentimento fundado numa identidade de si tuaçào, que se

manifesta fundamentalmente atr-avés do valor- da

r-eciprocidade. Mas há também uma ambivalência como par-te do

pr-oce.sso de identificaçào social numa sociedade desigual,

porque, se este processo é contrastivo e relaciona}, por

definiçào, tr-ansforma-se, numa sociedade como a capitalista,

igualitária em seus valores e desigual em sua morfologia~

num mecanismo ideológico de compensaçao das desigualdades

que é ~ep~oduzido nas diversas categorias através das quais

os pobr-es se diferenciam entres~. O pr-ocesso relacional de

construçao de sua identidade social opera, entào, como

ideologia noçào que, em sua própria for-mulaçao, envolve

r e l açbes de poder num mecanismo de relativi:zaçao e de

compensaçao por sua localizaçao como "pobres" no mundo

Page 204: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

ca.pi ta 1 i s ta.

No mesmo registro em que se manifesta a solidariedade~

há também rivalidade e, com ela, aspir-açao se

diferenciar-, sendo "mais". As clivagens que dividem os

individuas na sociedade mais ampla sáo manipuladas entr-e os

"iguais", sobretudo nos momentos de conflito, enquanto

categorias morais que relativizam o lugar do sujeito em face

de um outro, seu igual reproduzindo as hierarquias sociais

numa rel açao simétrica e inversa à posiçáo que os pobres

ocupam na sociedade, num movimento cir-cular e reiterativo

desta posiç.3o.

1.97

Page 205: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

Comentários finais

D BRASIL cano ELE ~

"Nada do que existe, cultur-almente, é contemporâneo".

Luis da Câmara Cascudo

198

Page 206: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

a família como simbólica significa

privilegiar a ordem mor-al sobre a or-dem legal~ a palavra

empenhada sobre o contrato escrito, o costume sobre a lei, 0

código de honra sobre as exig~ncias dos direitos universais

de cidadania, julgando e avaliando o mundo social com base

em critérios pessoais, de onde decorre a dificuldade de

estabelecer critérios morais universalistas.

Este universo moral é consti tuido por uma cadeia de

relaçbes sociais, inter-mediadas pela ordem da natureza e do

sobrenatural, fazendo com que a reciprocidade que o ordena,

tal como a definiu Marcel Mauss (1974), enquanto um sistema

constituído por três obrigaçbes fundamentais dar, receber

e retr-ibuir- nao seja imediata. O dar- e o receber, no

universo simbólico dos pobres, envolvem vida dos

indivíduos em sua totalidade, constituindo o que Mauss

chamou de sistema de prestaçbes totais. Deus aparece como a

entidade moral que comanda o mundo, restaurando a justiça

numa ordem injusta (Deus provP e Deus castiga) e a igualdade

num mundo desigual (Somos todos fi 1 hos de Deus), seja

através dos padres católicos, dos pastores pentecostais, dos

guias espíritas ou da umbanda ou dos orixás nos terreiros de

candomblé ...

Se, como espero ter demonstrado neste trabalho, é uma

ordem moral que articula o sentido do universo social para

os pobres, é a especificidade desta ordenaçao do mundo

social em termos de obrigaçbes morais que orienta suas açbes

.

I

Page 207: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

em qualquer plano da vida soçial. A família, com seus

códigos de obrigaçbes, é um~ linguagem através da qual

traduzem o mundo e, sendo assim, suas possibilidades de

negociaçáo de atuaçao no mundo social passam pelos

caminhos onde é possível falar- essa linguagem. Et, assim,

esta especificidade que define o horizonte de sua açáo

política. Ainda que, na per-spectiva da democracia almejada,

fundada no principio universalista da cidadania que iguala,

o apego à moral familiar- e a insistincia na hier-ar-quia sejam

aspectos indesejáveis, que fundamentam modos de agir

personalistas e r-elaçbes clientelistas, negar sua

impor-tância como traduçao do mundo social é falar- um idioma

incompreensível.

Em sua análise sobre a discursa populista como um

discurso "popular", no sentido de que nele o "povo" se

reconhece e se identifica, Maria Lúcia Montes (1981) atribui

sua eficácia precisamente aos elementos "populares" que este

discurso é capaz de articular. Os fundamentos deste discurso

estao, segundo sua análise, na reduçào do universo social,

particularmente das diferenças sociais de riqueza,

prestigio e poder- na sociedade- ao universo moral, de modo

que as questbes sociais só se tornem pensáveis em ter-mos

éticos. (p. 68) Assim, a eficácia do discurso populista esté

em que se articula na esfer-a dos valores morais.

Dizer que a reciprocidade se estruturou como o código,

por excelência, de percepção, ordenação e tr-adução do mundo,

Page 208: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

na casa e fora dela, como um principio "sócio-lógico" (Da

Matta, 1978), nao significa reificar a reciprocidade como um

código dos pobres, torná-la componente de uma espécie de

''cultura da pobreza'' ou danaçào cultural Significa, antes,

acentuar que a reciprocidade é o fundamento da ordem social

para os pobres porque as relaçbes sociais na sociedade

brasileira estao estruturadas de modo a fazer valer este

principio como organizador de sua percepçào do mundo. Esta

marca das sociedades tradicionais, o código da

reciprocidade, nào é, entào, uma "sobrevivência", mas um

traço que existe e persiste pelas próprias caracteristicas

da sociedade onde se inserem como pobres. ~. portanto, um

dado estrutural.

O uni verso simbó 1 i co dos pobres ref 1 e te e devolve a

imagem da sociedade onde vivem. Seguindo as trilhas

sugeridas por Câmara Cascudo, de que nada do que existe

culturalmente é contemporâneo, as raizes desta mentalidade

popular devem ser buscadas na maneira como se constituiu o

espaço público no Brasil.

Os estudos históricos encarregaram-se de demonstrar, no

plano institucional, assim como, e sobretudo, no plano dos

valores e das práticas sociais, a continuidade de traços da

sociedade urbana colonial na moderna sociedade brasileira

(Araujo, 1993) e a permanência do espírito e do estilo

imperiais na constituiçào da ordem republicana no Brasil, em

fins do século XIX e no começo do sécLllo XX (Carvalho,

201

Page 209: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

1987, Chaloub, 1986 e Boschi 1 1991) - O quP int~ressa,

par-ticular-mente par-a se entender- como se forjou a auto-

imagem dos pobres e trabalhadores no Br-asil é r-essalta r- a

ar-ticulaçao da or-dem capitalista à or-dem escravocr-ata do

tr-abalho e patriarcal da fam.ilia, imbricaç.3o que tem sido

reiteradamente ressaltada como marcas da formaçáo histórica

da sociedade brasileira, desde Gilberto Freyre ( 1980) '

passando por Sergio Buarque de Holanda (1963) e pelos

trabalhos de Robe~to da Matta, que formulou esta questâo

como o ''dilema brasileiro'' (1978, 1985, 1987 e 1993a). Os

ecos desta formaçao social ressoam ainda hoje entre os

pobres em sao Paulo. Como bem colocou Manuela Carneiro da

Cunha (1985) a respeito da vinculação pessoal do liberto e

do seu patrono, ao analisar as dimensóes ideológicas da

alforria no Brasil:

''O paternalismo que Gilberto Freyre descreveu, e que foi tao contestado posteriormente, teve uma existência real e até crucial. O que evidencia, porém, nao é a benignidade da escravidáo no Brasil, mas a forma brasileira, feita de favores, lealdades pessoais, clientelismos, de constituiçao de camadas dependentes." (p. 11)

Sem negar que tenha existido uma política de alforria,

Manuela Carneiro da Cunha (1985) mostra como esta política

se assentou em um sistema de convivê'ncias paternalistas,

sendo um processo de caréter eminentemente privado. Assim,

Page 210: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

"nao se emer-gia livr-e da escr.:wid;3o, mas dependenteu, sendo

esta sujeiç.3o nao apenas "cr-uamente politica e

policialesca", como, ''mais sutilmente, ideológica" (Cunha,

1985, p. 11).

Como argumentei no capitulo 4' a afir-maçao da

individualidade, que se dá atr-avés do tr-abalho, tanto para o

homem corno par-a a mulher (par-ti cu 1 ar-mEm te par-a a

solteir-a e a mulher abandonada), ocorre, dentr-o desta ordem

social e moral, de tal forma que o individuo emer-ge, mas nao (

dependente da rede que o sustenta e ''individualizado'' e sim

legitima seu processo de individuaçao, o que se evidencia

tanto na relaçbes entre iguais quanto entre desiguais.

Roberto Da Matta I 1987) afirma, a respeito do universo

relaciona! que marca a sociedade brasileira, que uma rede de

relaç6es que ampare e suporte é condiç.3o para que

experiências individualizantes sejam levadas a efeito.

O indivíduo constitui-se, entáo, na mesma medida em que

reafirma as hierarquias. As r-aizes dessa estranha

imbricaçao, no entanto, antecedem o século XIX e o fim da

escravidào, aparecendo já no século XVIII, como r-evela a

análise de Maria Lúcia Montes (1992) sobr-e o episódio da

Inconfidência Mineira, onde o valor- da individualidade, que

se buscava afirma~ na ressonância do imaginário das Luzes,

se pe~de, dissolvido em "intrincadas redes de r"elaçbes".

GFaças a elas, segundo sua argumentação, para os poderosos

da terra, atenua-se a severidade da Coroa, quando nao se

2t)3

Page 211: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

dissipa o pr6prio crim~, reservando-se apenas a Tiradent~~ d

puniçào da morte exemplar:

"A individualidade, com suas aliciantes promessas de liberdade, autonomia e igualdade, transformadas em pesadelo, será assumida por um só - Tiradentes sob o signo do que a isola e, ao mesmo tempo, a sacraliza: a loucura." (p. 43)

Nos meandros destes caminhos paradoxais que constituem

a realidade deste pais, com a qual é preciso lidar para

modificá-la, pode-se entender a sociedade brasileira pelo

lado de dentro, interpretando sem a lamentaçêo de qu~ este

país nêo é como "deveria ser". Os valores "tradicionais"

persistem nao porque "ainda n.3.o chegamos lá", mas porque

eles têm um sentido estrutural numa sociedade onde a esfera

pública nào atua de forma a substituir o padrao de relaçOes

personalizadas, numa sociedade, enfim, onde a casa está

também na rua (Da Matta, 1978 e 198 5 ) • Nào mais como

dualismo, mas como uma retraduçào do mundo capitalista em

termos das relaçóes de reciprocidade, o que nem sequer se

configura como dilema entre o moderno e o arcaico, porque

estas duas ordens constituem, na sua articulaçào, uma forma

de ser.

Page 212: A FAMÍLIA COM O ESPELHO

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'* 1 Agradeço a bibliografia.

Ma~ia da Graça Cama~go Vieira a orientaçao na organizaçao da

As datas entre parênteses trabalho e aquelas entre colchetes

correspondem à ediçao referem-se à publicaçao

utilizada o~iginal.

para o

20~

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