A fé está despedaçada

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M aria Helena Chartuni, 68 anos, é uma artista contemporânea que recebeu a missão de restaurar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. A artista possui uma vasta experiência, seja em suas pinturas que geralmente criticam uma sociedade banalizada, ou em restauro capaz de resgatar todo o valor histórico empregado em uma obra de arte. Maria Helena é assim: uma mulher de fibra, inteligente e decidida, nada nela trai que foi uma futurista para seu tempo e que enfrentou inúmeros preconceitos para ser reconhe- cida em seu meio. Na entrevista a seguir a ex-restauradora do MASP fala emocionada sobre o trabalho que desenvolveu e ao mesmo tempo critica com ex- clusividade a antiga organização da Basílica do maior centro de peregrinação do país. Como aconteceu o desas- tre que quebrou a imagem de Nossa Senhora Apa- recida? Em 16 de maio deu uma tempestade muito grande e acabou a luz no vale do Para- íba inteiro. O rapaz que tinha deficiência mental aproveitou aquele momento e deu um soco no sacrário. Quando o guar- da se aproximou ele jogou a imagem no chão. A imagem é de terracota e tinha uma coroa pesada de ouro maciço que a princesa Isabel tinha dado, ajudando a imagem a espatifar. Pof, acabou. Existe alguma possibilida- de de acontecer um fato como este novamente? Entrevista MARIA HELENA CHARTUNI ESTEFANO PEREZ | LUCILENE OLIVEIRA A fé está despedaçada A artista plástica revela detalhes da restauração da imagem-símbolo do catolicismo no Brasil que foi quebrada em 200 pedaços após atentado em 16 de maio de 1978. veja/universidade cruzeiro do sul I 28 DE MAIO, 2011 I 17 Vamos passá-la em um moedor de carne e fazer uma nova com um molde.LUCILENE OLIVEIRA

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Maria Helena Chartuni, 68 anos, é uma artista contemporânea que recebeu a missão de

restaurar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. A artista possui uma vasta experiência, seja em suas pinturas que geralmente criticam uma sociedade banalizada, ou em restauro capaz de resgatar todo o valor histórico empregado em uma obra de arte. Maria Helena é assim: uma mulher de fibra, inteligente e decidida, nada nela trai que foi uma futurista para seu tempo e que enfrentou inúmeros preconceitos para ser reconhe-cida em seu meio. Na entrevista a seguir a ex-restauradora do MASP fala emocionada sobre o trabalho que desenvolveu e ao mesmo tempo critica com ex-clusividade a antiga organização da Basílica do maior centro de peregrinação do país.

Como aconteceu o desas-tre que quebrou a imagem de Nossa Senhora Apa-recida? Em 16 de maio deu uma tempestade muito grande e acabou a luz no vale do Para-íba inteiro. O rapaz que tinha deficiência mental aproveitou aquele momento e deu um soco no sacrário. Quando o guar-da se aproximou ele jogou a imagem no chão. A imagem é de terracota e tinha uma coroa pesada de ouro maciço que a princesa Isabel tinha dado, ajudando a imagem a espatifar. Pof, acabou.

Existe alguma possibilida-de de acontecer um fato como este novamente?

Entrevista MARIA HELENA CHARTUNIESTEFANO PEREZ | LUCILENE OLIVEIRA

A fé está despedaçadaA artista plástica revela detalhes da restauração da imagem-símbolo do catolicismo no Brasil que foi quebrada em 200 pedaços após atentado em 16 de maio de 1978.

veja/universidade cruzeiro do sul I 28 DE MAIO, 2011 I 17

“Vamos passá-la em um moedor de carne

e fazer uma nova com um molde.”

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“Adão e Evaveio antes ou depoisda idade da pedra?

Me massacraram nãosó as freiras, mas as

alunas também. Quando cheguei à

adolescência deixeia religião de lado até que chegoueste trabalho”

de coisas que fizemos hoje, ela está protegida. Foi construído o nicho da imagem com vidro antibala.

Foi atribuído a você a incumbência de restaurar a imagem após o inciden-te, qual foi a sua reação ao ver os pedaços da imagem? Todo mundo acha que foi uma reação mística, mas não foi de pânico. O pro-fessor Bardi diretor do MASP na época foi até Aparecida e quando ele voltou disse que eu iria restaurá-la rapidamente. O Arcebispo de Aparecida Dom Geraldo Morais Pereira chegou no dia seguinte com mais três ou quatro padre trazendo uma caixa de fórmica deste tama-nho (demonstrou a dimensão com as mãos) bem embalada e ao abrirem estava lá todos os pedaços; ai pronto eu esfriei.

Sabemos que foi um trabalho bastante criteriosoo restauro da imagem em algum momento achou que não conseguiria? Eu não achei nada senti medo, pânico, a responsabilidade era muito grande, ela estava em 200 pedaços aproveitáveis 165. Não era um restauro comum eu já tinha feito vários restauros, mas quando você tem uma peça que está todo mundo na expec-tativa - todo mundo ali de olho, a responsabilidade aumenta quando você acerta “maravilha” como aconteceu, mas e se você erra? (semblante de pânico).

Esse trabaho que você realizou envolvia a fé de milhares de pessoas. A sua fé também estava evolvida? Quando peguei este trabalho não foi como devo-ta foi como profissional. Eu tive grande dificuldade com a igreja católica na minha pré-adolescência porque eu estudei em colégio de freiras e era uma época de grande repressão

a sociedade era repressiva a religião era repressiva, e estu-do no colégio de freira não era uma coisa amigável. Os padres eram todos retirados e as freiras eram pior ainda como mulheres elas eram mais preconceituosas. Nós tínhamos aula de religião todos os dias e também tínha-mos aula de ciências, estáva-mos aprendendo a história de Adão e Eva e ao mesmo tempo que existia a idade da pedra. Eu perguntei Adão e Eva vio antes ou depois da idade da pedra? Me massacraram não só as freiras, mas as alunas também. Quando cheguei à adolescência deixei a religião de lado até que chegou este trabalho.

Qual a sensação que teve ao entregar a imagem restaurada? Foi um contejo líndissimo que começou na Av. Paulista e foi até Aparecida do Norte em um corredor humano de um lado para o outro. Os caminhonei-ros vinham do Rio de Janeiro e quando viam a imagem se ajoelhavam em cima das car-gas e rezavam. Essas cenas me marcaram muito.

Você é a única pessoa autoriza-da a fazer a limpeza da imagem. Por que foi atribuído a você esta responsabilidade? Eu propus que enquanto eu viver vou dar uma assistência gratuita a imagem e o Arcebispo Dom Gerldo assinou um documento me atribuíndo esta responsabi-lidade. Porque um ano depois do restauro fui procurada pelo reitor do santuário dizendo que o padre anterior mandou tirar uma fôrma que manchou toda a imagem e ele pintou com tinta automotiva. De fato tinha um milímetro de tinta em cima dela parecia uma imagem de gesso pintada. Eu não divulguei isso agora estou falando. E eu removi toda a tinta que estava em cima da imagem. Dez anos depois eu fui para Aparecida e a imagem parecia manchada como se fosse uma pele de onça toda pintada. De novo, tinham retirado a imgem para fazer um molde. Ali era uma festa. Agora eles entenderam que não pode dar para qualquer freirinha pegar uma escova de dente e aparecer na Rede Vida escovan-do a santa.

Além do restauro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, qual outro trabalho que foi mais significativo para você? Uma Madona (mãe com filho) das pílulas que está no MASP. Me pediram para fazer uma escul-tura de Madona porque iria ter uma reportagem para a Revista Cruzeiro. O professor Bardi pediu para que eu fizesse uma Madona moderna ele dizia: as antigas está me cansando. Tive a ideia de fazer uma mãe brasi-leira que olha para o outro lado praticamente rejeitando o filho e a oreula dela detrás fiz uma caixa de pílulas que naquela época se chamava Novolon. As pílulas anticoncepcionais tinham sido lançadas recen-

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temente. Quando a Madona das Pílulas foi divulgada ela foi alvo de muita polêmica, era muito novo e ousado para época. Lembro que uma vez veio um estrangeiro não lembro de qual país e o homem ficou revoltadíssimo de uma mulher ter este tipo de conceito.

Como surgiu a vontade de ser artista plástica? Quando se vem para este mundo Deus nos dá dons que temos que seguir e eu sempre tive um desejo muito forte de ser artista eu nem sabia o que era artista mas eu queria ser. Eu gostava de desenhar as minhas notas na escola as únicas que sempre foram muito altas era desenho e reli-gião. Naquela época foi uma luta para conseguir porque a mulher era que se tornava artista plástica era considerada uma qualquer. Para a sociedade a mu-lher tinha que casar, ter filho e acabou e eu nunca aceitei esse papel. Consi-dero que a minha geração foi pioneira que abriu as portas para as gerações posteriores. Foi muito complicado eu tive que enfrentar a minha família e a sociedade. Eu sabia que a mulher só alcançaria a total independência se ela tivesse a independência financeira. Eu comecei os meus estudos nos ateliês, porque naquela época só tinha a escola belas artes e eu não queria estudar na belas artes porque era muito acadêmico.

Você tem uma marca própria dentro da contemporaniedade? É como uma impressão digital, o artista tem que ter uma marca própria, por exemplo veja Van Gogh, não quero me comparar mas ele não precisa assinar em baixo para saber que aquela peça é de sua autoria.

O que evidencia nas suas obras que seria sua im-pressão digital? Minhas obras sempre teve uma linha social porque considero que tenho que dizer algumas coisas que afeta a sociedade de um modo geral. Porque uma arte decorativa apenas para combi-nar com o sofá de casa é inú-

til, tenho uma arma na mão e preciso usar bem.

O Professor Pedro Maria Bardi dizia que você consegue abor-dar o cotidiano de forma poética. Como você conheceu o profes-sor Bardi? Eu tinha ido levar uns quadros para um leilão, quando esta no começo da car-reira você faz qualquer coisa. O Professor Bardi estava lá ele viu os meu quadros e disse que queria conhecer meu ateliê, que não era um ateliê era um quarti-nho na casa dos meus pais.

Qual a importância do profes-soar na sua carreira? Uma pessoa fundamental na minha vida. Ele era um homem mui-to estourado,falava o que ele queria, era muito polêmico, mas extremamente inteligente, um gênio e ele tinha capacidade de ver 50, 60 anos na frente. Era uma pessoa rara. No dia que conheceu meu ateliê ele disse que me daria uma respos-ta sobre a exposição de Tóquio eu pensei que estava brincando

comigo, mas na outra semana ele me disse: eu preciso de três quadros seu aqui para a Bienal de Tóquio, foi uma surpresa. E foi o prof. Bardi que me enca-minhou para o restauro, porque para viver de arte precisa ter um certo nome, até lá precisa comer, pagar as contas. Eu precisava ter uma renda e ele me disse: porque você não faz restauro eu perguntei para ele: o que é restauro? Ele me orientou fez eu estudar com restaura-dores depois eu já estava tra-balhando eu fui para Londres em 75 para fazer um curso de especialização.

Qual a exposição mais importan-te para você? Duas foram impor-tantes para mim porque foram boas experiências, a da Alemanha e a de Verônia na Itália.

O Roberto Carlos inaugurou uma exposição de fotos que resumem momentos de sua carreira e o única peça de arte que tem é um de sua autoria. Quando você fez o objeto entitulado “díptico Roberto Carlos”? Eu fiz em 1966 e foi exposto em 67 aqui no Brasil as pessoas não entendiam o que era só o professor Bardi ele dizia que era uma coisa maravilhosa, eu falava imagina. Agora as pessoas estão começando a entender acho que o novo tem que levar um tempo certo para as pessoas entenderem.

Nós tivemos um festival de cinema brasileiro no CineSESC e você criou o troféu em um mode-lo que foi inovador para a época. Por que atribuiram a você está função? Foi logo depois do restauro de Nossa Senhora e as pessoas redes-cobrem o artista ai eu pensei comigo mesma quero fazer uma coisa diferente, não quero fazer este troféu comum. Usei um material transparente que é um poliéster porque o cinema e o filme é uma coisa transparente.

“Ali era uma festa,agora eles

entenderam que não pode

dar para qualquer freirinha pegar uma escova de

dente e aparecer na Rede Vida escovando a santa.”

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