A FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA ENQUANTO METODOLOGIA DE PESQUISA

15
A FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA ENQUANTO METODOLOGIA DE PESQUISA Regina Lúcia Meirelles Beghelli - UFJF 1 Resumo A fenomenologia-hermenêutica vista sob o olhar do hermeneuta francês Paul Ricoeur mostra-se enquanto um percurso interpretativo que pretende entender o humano a partir de sua condição de ser lançado no mundo, carregado de uma historicidade já que tem como possibilidade mais própria o “ser para a morte”, constituído ética, política, religiosa e esteticamente pela efetivação de valores e significados comuns à comunidade em que se percebe inserido. Assim, esse artigo se propõe a aclarar de que maneira sua proposta filosófica pode servir de apoio a um caminho metodológico efetivado em uma pesquisa desenvolvida em trabalhos de campo e apresentar as reflexões resultantes de tal procedimento. Em outras palavras, como a vivência de experiências que reconheço como devedoras do meu olhar pode se estruturar na forma de textos escritos e servir de base para a confecção de uma dissertação de mestrado. Abstract The French hermeneutic Paul Ricoeur has seem the phenomenology/hermeneutic such as an interpretative way that thinks about human being like a world throughing condition, full of historicism that show us his proprierty possibility “being to the death”, constituted ethics, politics, religious and aestheticly by the values and significations efectives that belong to the communities on which he is introduced. Thus, this article proposes itself to clarify how his philosophic purposes can be used as a methodologic way efectived in actios developed researche and to present the resultant reflexions in theses procedures. In others words, how the experiences’ liveliness as my owm pint of view indebted can be structured in the texts’ forms and be the basis to the cientific thesis. 1 Mestrado em Educação concluído em março de 2007

description

A fenomenologia-hermenêutica vista sob o olhar do hermeneuta francês Paul Ricoeur mostra-se enquanto um percurso interpretativo que pretende entender o humano a partir de sua condição de ser lançado no mundo, carregado de uma historicidade já que tem como possibilidade mais própria o “ser para a morte”, constituído ética, política, religiosa e esteticamente pela efetivação de valores e significados comuns à comunidade em que se percebe inserido. Assim, esse artigo se propõe a aclarar de que maneira sua proposta filosófica pode servir de apoio a um caminho metodológico efetivado em uma pesquisa desenvolvida em trabalhos de campo e apresentar as reflexões resultantes de tal procedimento. Em outras palavras, como a vivência de experiências que reconheço como devedoras do meu olhar pode se estruturar na forma de textos escritos e servir de base para a confecção de uma dissertação de mestrado.

Transcript of A FENOMENOLOGIA-HERMENÊUTICA ENQUANTO METODOLOGIA DE PESQUISA

  • A FENOMENOLOGIA-HERMENUTICA ENQUANTO

    METODOLOGIA DE PESQUISA

    Regina Lcia Meirelles Beghelli - UFJF1

    Resumo

    A fenomenologia-hermenutica vista sob o olhar do hermeneuta francs Paul Ricoeur mostra-se enquanto um percurso interpretativo que pretende entender o humano a partir de sua condio de ser lanado no mundo, carregado de uma historicidade j que tem como possibilidade mais prpria o ser para a morte, constitudo tica, poltica, religiosa e esteticamente pela efetivao de valores e significados comuns comunidade em que se percebe inserido. Assim, esse artigo se prope a aclarar de que maneira sua proposta filosfica pode servir de apoio a um caminho metodolgico efetivado em uma pesquisa desenvolvida em trabalhos de campo e apresentar as reflexes resultantes de tal

    procedimento. Em outras palavras, como a vivncia de experincias que reconheo como devedoras do meu olhar pode se estruturar na forma de textos escritos e servir de base para

    a confeco de uma dissertao de mestrado.

    Abstract

    The French hermeneutic Paul Ricoeur has seem the phenomenology/hermeneutic such as an interpretative way that thinks about human being like a world throughing condition, full of historicism that show us his proprierty possibility being to the death, constituted ethics, politics, religious and aestheticly by the values and significations efectives that belong to the communities on which he is introduced. Thus, this article proposes itself to clarify how his philosophic purposes can be used as a methodologic way efectived in actios developed researche and to present the resultant reflexions in theses procedures. In others words, how the experiences liveliness as my owm pint of view indebted can be structured in the texts forms and be the basis to the cientific thesis.

    1 Mestrado em Educao concludo em maro de 2007

  • 2

    Um Percurso

    O Homem s se reconhece enquanto tal porque se percebe inserido em uma comunidade esttico-tica.(NEVES, Joel)2

    Minha prtica profissional enquanto professora de lngua portuguesa em escolas de ensino fundamental e mdio incitou questes acerca da validade do meu fazer pedaggico no que eu creio ser seu carter mais prprio, qual seja, o de propiciar interferncias significativas para mediar a experincia do educando em relao a si mesmo, ao outro sociedade e ao mundo. Em outras palavras, contribuir para que ele se perceba e se afirme

    enquanto cidado crtico, social e politicamente referenciado. Foi ao experienciar algumas das obras de Paul Ricoeur que vislumbrei a

    possibilidade de vivenciar uma nova compreenso sobre as questes da Educao e os problemas inerentes sua prtica. Assim, percebi nelas, as obras, uma possibilidade de compartilhar significados pertinentes, de tal modo que esse autor foi se colocando como referencial terico deste projeto. Ele caracteriza sua tradio filosfica por trs vertentes: a filosofia reflexiva enquanto um retorno a si mesmo, que entende a compreenso de si como sujeito das operaes do conhecimento; a fenomenologia husserliana, principalmente na questo da intencionalidade e, de acordo com suas prprias palavras, a que deseja ser uma variante hermenutica dessa fenomenologia.(RICOEUR, 1989, p. 36)

    Sua inteno a de propiciar uma reflexo de carter fenomenolgico-hermenutico sobre o fazer filosfico de autores com quem estabelece um dilogo mais consistente. Assim, tambm eu vislumbrei na reflexo fenomenolgica-hermenutica um comportamento metodolgico que mostrou-se pertinente ao tipo de pesquisa que me propus a desenvolver. Foi-se colocando em mim, ento, o objetivo geral deste trabalho, qual seja, reconhecer as relaes professor-aluno como uma experincia fenomnica profcua de reflexes hermenuticas baseadas no pensamento de Paul Ricoeur em uma rede de referncias estabelecida com Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty.

    Para melhor entendimento de suas inferncias, necessrio se faz o aclaramento daqueles com quem compartilha suspeitas e elabora questionamentos.

    2 Citao selecionada em texto-aula produzido pelo responsvel pela disciplina de Esttica do curso de

    Filosofia da UFJF, Prof. Doutor Joel Neves, no primeiro semestre de 2003.

  • 3

    Comearemos, ento, por Edmund Husserl (1859 - 1938) que, na obra A Idia da Fenomenologia (1986) prope uma anlise da existncia humana a partir do fenmeno ou dado imediato, da coisa que aparece diante da conscincia aqui entendida como intuio originria e imediata do mundo vivido manifesto no experienciar humano. Toma-se conscincia de si no apenas ao nos apropriarmos do sentido j posto de algo, mas, sobretudo ao ter necessidade de algo, do mundo, do outro, do meio social como condio para a conservao vital. A partir dessa proposta, justo se faz dizer que caberia subjetividade humana, ento, conhecer e descrever o mundo das puras essncias contidas nos fenmenos. Para tanto, seria necessrio prescindir de todos os elementos referentes ao sujeito psicolgico, existncia individual e subjetividade emprica, procedimento chamado por Husserl (idem, ibidem) de reduo fenomenolgica.

    Mas urgente se faz observar que essas essncias no tm, aqui, o significado aristotlico enquanto qualidade inerente ao objeto que se constitui independente do olhar humano. Chegar s essncias do mundo pela reduo eidtica - eidos3, faz com que ele se mostre tal como . O termo mundo vivido ou mundo da vida, lebenswelt,4 deve ser

    entendido como o lugar no qual o homem pode se dizer pela percepo dos fenmenos que o afetam e o constituem. Todo o conhecimento humano, as cincias inclusive, s tem

    significado a partir do momento em que posso experienci-lo tendo como solo o mundo vivido.

    O que pretende a sua fenomenologia compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade, da concretude de estar no mundo com as coisas mesmas. O viver cotidiano visto como um acontecimento fenomenolgico; constitutivo do humano, a atestao da sua presena com e no mundo. Husserl (idem, ibidem) defende que a condio em que o homem se encontra -ser contingente- que pode revelar a verdade originria da existncia. E esta condio no outra coisa seno sua finitude ou facticidade. o encontrar-se na facticidade o ponto por onde, segundo as circunstncias e as possibilidades, a existncia se

    3 Eidos Este que um dos termos com que Plato indicava a idia e Aristteles a forma, usado na Filosofia

    contempornea, especialmente por Husserl, para indicar a essncia que se torna evidente mediante a reduo fenomenolgica.(ABBAGNANO, Nicola. 2000 p. 308) 4 Lebenswelt termo introduzido pelo pensamento husserliano, est a inclusa a idia de que o mundo no

    algo pronto, mas uma estrutura significativa somente enquanto vivido, enquanto particularizado e determinado pelas vivncias. (HUSSERL, Edmund. 1867)

  • 4

    abre. Abri-se o descobrimento do que facticamente possvel, numa situao em que j nos encontramos.

    Ricoeur bebe do pensamento husserliano principalmente na questo da conscincia enquanto intencionalidade. A afirmao de que toda conscincia conscincia de... nos direciona para a percepo de algo fundamentalmente situado, engajado no corpo (corporeidade) e no mundo. Ento, podemos pensar que a conscincia enquanto intencionalidade um ato e deve ser compreendida como projeto de mundo, de um mundo que ela no possui, mas para o qual se dirige enquanto vida intencional.

    Pela tica fenomenolgica, portanto, o homem conscincia de mundo e esse o prprio ato de doao de um sentido a esse mundo. E pelo sentido que doa ao mundo que o homem pode reconhecer-se enquanto homem. Entretanto, a prpria complexidade de aspectos do mundo e a complexidade estrutural do ser humano fazem com que a unidade da conscincia no seja simples e acabada, mas uma conquista gradual que se realiza atravs dos planos diversos de inteno e expresso. Ambos so momentos dialticos conjugados, cuja sntese dinmica a prpria conscincia de si e do objeto.

    Pela inteno, a conscincia situada enquanto se refere concretamente ao aqui e agora de um determinado mundo de objetos e universal enquanto capaz de transcender as determinaes objetivas no exerccio da crtica de sua situao. A expresso revela a originalidade da conscincia, a sua emergncia sobre o que lhe dado objetivamente, a sua fecundidade criadora. A dialtica entre inteno e expresso funda a historicidade humana.. preciso destacar que tal concepo de conscincia enquanto intencionalidade desgua na compreenso fenomenolgica de que as relaes com outras subjetividades so vitais, constitutivas do humano.

    Ao incorporar minha vida cotidiana, existncia como um todo a vivncia do termo mundo-da-vida, a prtica profissional tambm por ele se deixa afetar. Tal

    entendimento me permite apostar numa escola que no se coloque margem da comunidade onde ela de fato est inserida. Mostra-me, ainda, que assim como eu, meus

    alunos no podem vivenciar isoladamente apenas os instantes passados dentro de uma sala de aula, mas perceber que ali esto de passagem pessoas com histrias prprias que fazem deles o que so e que no h como serem colocadas em suspenso. Assim, uma escola que

    pretende trabalhar para o desenvolvimento das vrias habilidades do conhecimento

  • 5

    humano, mas no considera o aluno como um ser em sua totalidade provavelmente trar em seus projetos e suas prticas um falseamento nas relaes ali vivenciadas.

    Assistente de Husserl e posteriormente seu substituto na universidade, o filsofo alemo Martin Heidegger (1889 - 1976), na obra Ser e Tempo (2002), desenvolve sua proposta filosfica enquanto uma analtica existencial que pretende se debruar sobre a

    questo do Ser. O que se busca na reflexo heideggeriana investigar as estruturas que possibilitam

    a questo do Ser e no dar uma resposta definitiva, pronta, determinada, ou seja, estabelecer conceitos. No se trata de compreender o Ser fixando-o no , caminho feito pela tradio filosfica desde Parmnides - o ser . No interessa buscar o que a vida, mas como colh-la em sua dinamicidade, sem fix-la.

    Heidegger no tem a pretenso de propor uma antropologia nos moldes que a tradio filosfica designou como a cincia que se pergunta sobre o que o homem, j que sua questo central o Ser enquanto possibilidades e que tem uma ambincia pr-reflexiva, em qual domnio se encontram as condies da compreensibilidade. Por isso ele privilegia

    o caminho de uma lgica hermenutica onde se percebe aquele que compreende, o que compreendido e as condies de compreensibilidade, especialmente as existenciais. Isto

    o que torna possvel ao homem se relacionar com os seus semelhantes e com os outros

    entes intramundanos. S podemos exercer a compreenso de algo se, de alguma forma temos uma pr-compreenso desse algo efetivado pelo fato de j estarmos no mundo, imbricados com ele.

    Na minha trajetria, quando do desvelamento dessas idias, aclarou-se em mim uma intuio h muito percebida: a de que entre meu aluno e eu, ambos entes capazes de significaes constitudas historicamente, existem similitudes e diferenas efetivadas no mundo, possibilitadas pela pr-compreenso constitutiva do humano, por uma relao de

    pertena ontolgica que nos permite reconhecer, a mim e ao outro, em um mesmo solo em comum.

    Heidegger (idem, ibidem) estabelece dois campos vivenciais do homem: tudo aquilo que pode ser objetivado, respondido na forma isto pertence ao campo ntico e o que nos permite tal compreenso pertence ao ontolgico. O homem um ente especial; o nico

  • 6

    que tem a possibilidade de dizer eu sou. A proposta heideggeriana, ento, a de colher o sentido do Ser atravs do ente humano.

    Ele coaduna com o pensamento husserliano quando entende o homem -ser-a- como um ser lanado, jogado no mundo, finito j que criado para a morte carregando, assim, uma facticidade. Mas amplia tal concepo considerando que o ser-a , ao mesmo tempo,

    sempre ex-sistere, ou seja, aquele que est propenso a ou mantm-se no Ser procedendo de algo que vem de fora no como realidade fsica, mas como instncia existencial. Assim, o

    termo dasein nos traz a percepo de um ente que est no Ser j, desde sempre lanado no mundo, na facticidade e no por uma escolha exercida logicamente a partir de construtos racionais. Por outro lado, este ente guarda uma certa autonomia exercida na possibilidade de poder ou querer se manter nele. A identidade do homem um processo, uma identificao. O dasein

    sempre possibilidades e est em permanente contato com o Ser em um nvel pr-reflexivo, pr-temtico e no apenas ao nvel de conscincia racional. Antes mesmo de refletir, ele j se sente nesta situao de estar lanado. Antes de pensar, j estou em relao com o Ser, j estou no mundo, j habito um lugar neste mundo e a partir deste lugar que posso dizer-me.

    Essas reflexes j apontam na direo de um outro olhar para o ser da escola, do aluno, da Educao enquanto possibilidades efetivadas a partir desta constituio ontolgica na qual posso reconhecer a mim e ao outro como ser no mundo, ser de presena. Assim apreendidos, entes que compartilham uma mesma constituio existencial, professor e educando podem estabelecer relaes na vivncia de experincias comuns.

    A palavra alem dasein utilizada por Heidegger (2002) traduz a idia de aqui, um ponto em torno do qual se estende um espao. H uma centralidade em torno do homem e tambm uma relao com as coisas, os animais e outros dasein. Indica ainda o tempo: eu estou aqui, sou este momento. H uma circularidade entre espao e tempo j que no podemos pensar o Ser alm do tempo, exterior a ele. Percebemos, tambm, uma referncia ao destino, de estar lanado a, no mundo, situado no tempo e no espao. O a do dasein no se resume apenas a um lugar ntico, mas tambm ontolgico que permite que o histrico, o esttico, o religioso, o tico se abram.

    Estar no mundo estar em relao com o mundo e tal conjunto de relaes que constitui o ser-no-mundo e que deve ser entendido como unicidade; so momentos

  • 7

    estruturais de uma constituio una. Toda compreenso de mundo j pressupe uma compreenso do dasein porque esse se faz junto ao mundo.

    O prprio conhecimento, ou seja, a capacidade que o homem tem de conhecer, de atribuir significados tambm constitutivo do dasein e se funda na sua relao com este j ser junto a que antes de ser cognoscitiva, cuidar de, o se dar a. O cuidar heideggeriano o modo como o dasein se relaciona com os outros entes intramundanos, com as manualidades, isto , um certo modo de estar em afetabilidade com o mundo.

    Nesse instante do meu caminhar, a partir da percepo de que o processo do conhecimento tem sua origem no plano ontolgico e constitutivo de todo e qualquer ser humano, sou forada a colocar em xeque a parcela de responsabilidade que cabe a ns professores acerca daquilo que o aluno aprende ou deixa de aprender. Em outras palavras, correta a hiptese defendida pela Pedagogia e que afirma ser o aprendizado um fenmeno que acontece escolha de um determinado interventor? O conhecimento s se d em momentos pr-definidos e em condies ditas apropriadas? O que , afinal, conhecer? A esta ltima pergunta, responde a fenomenologia heideggeriana que a capacidade que ns, humanos, temos de vivenciar experincias e, a partir delas intuir significados tendo como horizonte, como ltima referncia o mundo vivido.

    Ento, como ter a certeza de alcanar o objetivo principal colocado queles que se dedicam Educao? Haveria um mtodo seguro de avaliao capaz de nos dar essa resposta? Seriam, ento, minhas inquietaes impossveis de solucionar? Creio poder afirmar que o que se coloca em jogo, ento, exatamente a objetividade esperada em todos os procedimentos pedaggicos que a mim chegaram. Se viver e aprender so sinnimos, a partir das vivncias, das experincias compartilhadas que o professor pode no determinar ou escolher o que seu aluno vai aprender, mas como isso se dar no dia-a-dia escolar. O aprendizado, ento, passa a contar com mais um elemento de referncia, o professor. E

    assim vai se construindo, aos poucos, a cada nova experincia, um ser humano mais aberto e mais sensibilizado no e pelo mundo, qual seja, eu prpria, no esquecendo de que sou projeto, estou sempre e a cada dia por fazer-me.

    Introduzindo a questo da corporeidade como ndice da conscincia ou da subjetividade humana, Merleau-Ponty (1908 - 1961), leitor de Husserl e de Heidegger, contemporneo de Ricoeur, na obra Fenomenologia da Percepo (1999) descreve a

  • 8

    funo do corpo-prprio enquanto exerccio da subjetividade como exterioridade comportamental. ele que determina a forma concreta das relaes interpessoais e, mais amplamente, da presena do homem no mundo.

    Em seu intuito de mostrar a unidade fundamental sujeito-mundo-corpo-prprio, corporeidade, Merleau-Ponty (idem, ibidem) considera que nosso corpo, enquanto sensvel, est sempre implicado em nossas relaes com o mundo, que ambos so feitos do mesmo estofo. Isso quer dizer que o mundo muito mais que um objeto. Ele um ser do qual meu corpo sensvel faz parte, mas sem fuso ou coincidncia. H, antes, uma espcie de imbricamento de um no outro. No nvel da vida perceptiva de nosso corpo, a certeza da presena do mundo -nos oferecida de modo irrefutvel, mas fora dos modos do pensamento subjetivo e da cincia, o que torna pertinente afirmar que trata-se de uma f no mundo e no de um saber sobre o mundo.

    A perspectiva merlopontyana nos faz acreditar em uma outra possibilidade oferecida pela experincia humana de que h uma unidade vivida com o corpo que se apresenta imediatamente na vida e que se pode traduzir pela constatao de que a conscincia no se

    d a si mesma de uma forma pura e absolutamente transparente como defendiam os ideais racionalistas. A conscincia se d como uma estrutura que acompanha o concreto,

    articulando-se com as coisas, as pessoas, a cultura. Sua concepo de corpo-sujeito - corpo-prprio - quer afirmar a unidade vivida, o

    corpo-conscincia. O corpo o campo expressivo do sujeito ou o lugar primeiro onde o sujeito realiza sua prpria existncia.

    Eu sou este corpo que me abre e me permite a concretude de minha existncia, onde me reconheo enquanto lugar singular no tempo e no espao. A questo esttica, como todas as demais pertinentes ao existir, torna-se manifesta na intencionalidade do meu corpo-prprio, no movimento, na postura, no comprometimento com o fazer humano. (MERLEAU PONTY, 1999, p.210)

    Nessa proposta, os sentidos no se reduzem a aparelhos destinados a captar uma

    imagem do mundo, mas so os meios para o homem ser sensvel ao mundo e harmonizar-se com ele. Assim, o homem enquanto corpo no uma parte do mundo ou uma coisa entre as demais. Ele, o corpo, conduz o mundo em si como o mundo o conduz, conhece o mundo e

  • 9

    este se reconhece nele. Assim, o corpo no um intermedirio, mas o piv; a estrutura corporal sustenta o eu e no o contrrio; a alma pensa segundo o corpo e no segundo ela mesma.

    Reiterando o pensamento merleaupontiano, podemos dizer que o corpo-prprio a experincia e a vivncia do si como pathos5", aqui entendido como o contrrio do

    mondico, do fechado, da auto-suficincia de uma subjetividade consciencial; um sentimento fundamental que exprime a no coincidncia do homem consigo mesmo, a

    atestao de um engajamento no seio do mundo sem ainda discursar sobre este engajamento. No um logos6, mas um querer-dizer. o mundo como totalidade o lugar de minha estruturao e no apenas a conscincia exterior a esse lugar. Talvez resida a a grande contribuio da fenomenologia Educao: a possibilidade de vivenciar cada aula como uma experincia nica, singular, diferente de todas as outras j ocorridas, cada uma revestida de um dizer prprio enquanto efetivao, engajamento no mundo. Um dizer que no se restringe ao uso lingstico sistematizado e que tem a ver com o modo de ser do professor e do aluno manifesto no seu corpo-prprio.

    Minhas experincias pedaggicas, por deciso da escola e minha conivncia quase sempre aconteciam em ambientes convencionais: salas com carteiras individuais, mesa do

    professor em lugar de destaque e quadro de giz. Neles esperado que os alunos sigam risca normas especialmente elaboradas para facilitar o aprendizado. Silncio, ordem, concentrao garantiriam um bom resultado, ou seja, todos seriam capazes de aprender os contedos sistematizados trabalhados naquele perodo temporal que chamamos aula. O que se faz imperioso destacar que tais normas carregam implcita a dicotomia corpo/mente, com a predominncia dessa ltima j que para aprender precisamos exercitar o intelecto, mas no o corpo. A diviso do conhecimento em disciplinas isoladas tais como Portugus, Matemtica e a existncia de uma aula especfica de Educao Fsica so evidncias que

    fomentam tal proposio.

    5 -Pathos palavra de origem grega, cuja correspondente em latim passio, deve ser distinta de afeto ou

    paixo usada em filosofia como qualquer estado, condio ou qualidade que consiste em sofrer uma ao ou ser influenciado ou modificado por ela.( ABBAGNANO, Nicola. 2000. p. 19 a 21) 6 - Logos palavra de origem grega, cuja correspondente em latim verbum, significa a razo enquanto

    primeira substncia ou causa do mundo. (ABBAGNANO, Nicola. 2000. p.630 e 631)

  • 10

    Uma Possibilidade

    Sobre a proposta husserliana de fenomenologia, Ricoeur a considera no apenas enquanto um mtodo descritivo das articulaes fundamentais da experincia, mas reconhece que se fosse possvel a prtica de tal mtodo, chegar-se-ia ao princpio ltimo da

    autofundao de um homem puro, conquistado pela reduo - epoch7- colocando entre parntesis toda a problemtica das coisas em si para atingir o campo privilegiado da

    experincia, o lugar da intuitividade. Entretanto, h que se destacar que no desenrolar da reflexo fenomenolgica surge

    a questo da intencionalidade pela qual o ato de visar alguma coisa s pode ser atingido atravs da unidade identificvel do sentido visado. Como j foi aclarado, toda conscincia conscincia de alguma coisa, objeto, sujeito, fato etc. Ela compreendida como inteno, como projeto de mundo. Husserl afirma a existncia de uma intencionalidade operante que perpassa toda percepo, motricidade, espacialidade, temporalidade, intersubjetividade e da qual no se conhece seno por seus resultados. A conscincia conforme concebida pela

    fenomenologia se reconhece como profundamente engajada na corporeidade do sujeito, como tambm em seu mundo.

    No entender de Ricoeur (1989), a fenomenologia husserliana, apesar de ter intudo o carter universal da intencionalidade, a de que a conscincia tem seu sentido fora de si mesma, no deu um passo alm, no percebeu que mesmo sem a pretenso da pureza alcanada pelo vis da reduo, legtimo o procedimento por ela descrito, o de que o homem s pode dizer de si e de seu mundo a partir das prprias vivncias e no por um conhecimento dado a priori.

    a partir da que Ricoeur aponta as proximidades entre a fenomenologia e a hermenutica quando esta ltima se desvencilha dos trabalhos interpretativos de textos

    especficos. A hermenutica ricoeuriana reconhece que a questo o que compreender se

    7 Epoch - Com Husserl e a filosofia fenomenolgica em geral, epoch tem o sentido de contemplao

    desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicolgico na existncia das coisas do mundo oi do prprio mundo na sua totalidade. A epoch fenomenolgica distingue nitidamente a filosofia de todas as outras cincias que esto interessadas na existncia do mundo e dos objetos nele compreendidos; por isso, faz do filosofar uma atitude puramente contemplativa, qual pode revelar-se, em sua ingenuidade, a prpria essncia das coisas. (ABBAGNANO, Nicola, 2000, p. 339)

  • 11

    coloca, a cada vez, como anterior s questes sobre o sentido deste ou daquele texto, fosse ele bblico, jurdico, histrico ou artstico.

    No que concerne proposta de Martin Heidegger (2002), de uma analtica existencial, a hermenutica ricoeuriana traz para o ponto central de sua reflexo a questo do mundo-da-vida fenomenolgico. Heidegger entende que o homem um ente lanado no

    mundo que o constitui, por ele constitudo e que com ele estabelece uma relao de pertena ontolgica.

    A hermenutica faz uma leitura dessa pertena ontolgica como a condio de possibilidade necessria para que o homem oponha a si mesmo a constituio de objetos e do conhecimento. A relao sujeito-objeto, ainda presente em Husserl (1890), doravante tem seu lugar em um solo ontolgico primordial que antecede qualquer relao de conhecimento e mais, mesmo a sua condio de possibilidade. A problemtica da objetividade pressupe antes dela uma relao de incluso que engloba o sujeito pretensamente autnomo e o objeto pretensamente adverso. Ricoeur chama esta relao inclusiva de pertena.

    Para Ricoeur (1989), na hermenutica estabelece-se, assim, uma relao tridica entre o que compreende, o que compreendido e as condies de compreensibilidade. Os

    movimentos de subjetivao e objetivao se entrecruzam e se complementam, so contemporneos. A percepo que brota da experincia com o outro ressoa em mim e esse ressoar me permite reconhec-lo e a mim mesmo. por estar nessa referncia, nesse solo ontolgico que posso, em um primeiro momento tomar distncia daquilo que quero compreender/interpretar e, nesse distanciamento permitir o ressoar do que compreendido para, em um segundo momento, reconhecer-me como diferente dele, como outro. o que prope a circularidade hermenutica. Compreender, ento, no um modo de conhecer, mas a maneira de ser e de se ligar aos seres e ao Ser.

    Ao entender a primazia do ser-no-mundo em relao a outros projetos de fundao da subjetividade humana, Ricoeur nos fala de sua proposta filosfica; "no h compreenso de si que no seja mediatizada por signos, smbolos e textos escritos; a compreenso de si coincide, em ltima anlise, com a interpretao aplicada a estes termos mediadores. (idem, ibidem, p. 40)

  • 12

    Com esta afirmao Ricoeur coloca a termo os idealismos cartesiano e husserliano de que possvel um acesso direto do sujeito a si mesmo. Segundo o pensamento heideggeriano de que a interpretao - o Bedeutung - o desenvolvimento da compreenso, ele afirma que toda compreenso j uma interpretao e o intrprete deve ser colocado em meio a, nunca no incio ou no fim. Portanto, o caminho para se tratar a questo sobre o

    sentido do Ser deve acontecer por um desvio -via longa- mediatizado pela compreenso/interpretao dos signos - a percepo dita -, dos smbolos - explicitao do sentido segundo em expresses de duplo sentido - e dos textos escritos que, de certa forma, no esto presos s condies intersubjetivas do dilogo. Neles, as subjetividades, tanto do autor quanto do leitor, no so dadas a priori; devem ser reconstrudas junto com o significado do prprio texto. A hermenutica que percorre os caminhos da reflexividade, da fenomenologia e da mediao teria duas funes principais: "reconstruir a dinmica interna do texto escrito e restituir a capacidade de a obra se projetar para fora na representao de um mundo que o homem poderia habitar."(RICOEUR, 1989, p. 43).

    Diante da sua proposta de uma hermenutica, algumas questes se abrem: o que posso entender por texto em sala de aula? O registro escrito de um acontecimento, um fato,

    uma experincia? Ou o conjunto de significaes que abarca o gestual, a intencionalidade do nosso dizer, a tonalidade afetiva afetao - que emprestamos a ele? Fenomenologicamente falando, todas as situaes descritas podem ser consideradas como o texto da aula, de uma aula especfica, prpria. Entretanto, ricoeurianamente falando, o texto a forma como o homem utiliza a linguagem para dizer de si e do outro, para compreender/interpretar-se enquanto ser-no-mundo. E, mesmo percebendo o dilogo como uma forma textual mais imediata, ele reconhece no texto escrito uma amplitude maior de possibilidades de atribuir significados. No se usam as palavras para dizer do mundo, mas

    para habit-lo, pertenc-lo. Ricoeur (1997) reconhece no campo narrativo o lugar onde melhor se estrutura o

    jogo entre linguagem e mundo. Este jogo nos colocado pela dupla vertente do signo, da palavra: o poder de dizer sobre algo - impondo limites - e o de ultrapassar seu prprio dizer enquanto possibilidades referenciais estabelecendo proximidades inditas -a metfora

    permite a coexistncia de vrios nveis de significao numa mesma expresso. O texto nos

  • 13

    permite descobrir aspectos da linguagem que a prtica usual e a sua funo instrumentalizada dissimulam. Nesse jogo, o sentido de um texto no est nele prprio, mas na compreenso/interpretao de quem com ele interage. O sentido que posso apreender do texto ressoa em mim para que eu possa dizer-me, dizendo-o, para que eu possa compreender-me, compreendendo-o.

    O discurso de Ricoeur (1991) pretende, assim, desaguar em uma ontologia da subjetividade e nos encaminha para uma interpretao da subjetividade vista pela perspectiva da ao, da vida prtica, do narrativo, do esttico e do tico. Trata-se da primazia do ato de ser, de existir sobre o ato de pensar. Seu modo de filosofar reconhece a impossibilidade de uma abordagem direta ao Ser j que a transparncia e imediatez do sujeito a ele mesmo, como ser-no-mundo, jamais lhe sero possveis, justamente porque ser-no-mundo. Da o desvio necessrio atravs da interpretao dos modos deste ente que participa do Ser operar no mundo.

    Portanto, a compreenso ontolgica do homem depende de uma interpretao hermenutica no universal, mas sim especfica para cada momento reflexivo. Cada

    abordagem atingir um aspecto, sempre contingente, da subjetividade humana que se exprime vivencialmente e somente pode ser atingida fragmentariamente. No temos acesso

    unidade desta subjetividade j que ela mesma percurso, construo. Ao mesmo tempo, ele reconhece a necessidade de um distanciamento entre a existncia concreta e a reflexo que diz esta existncia. Para que eu possa refletir sobre algo, necessrio um certo distanciar-se objetivao - para que meu discurso se efetive subjetividade. Isto implica em dizer que uma ontologia da subjetividade jamais atingir um saber absoluto. A questo sobre o que o homem permanecer como uma questo em aberto devendo ser desdobrada por outras como quem o sujeito que fala, age, narra, descreve, atesta etc...

    Nesta perspectiva, quero pensar a Educao pelo vis fenomenolgico hermenutico

    onde compreender e interpretar so movimentos simultneos e correlacionais; como algo para alm da simples instrumentalizao, como uma das possibilidades do Ser colocar-se

    num determinado caminho, reconhecer-se como autor de seu projeto existencial. Se me percebo, ento, como ser-no-mundo, histrico, que constitui a si e ao seu

    entorno a partir das reflexes que brotam das experincias percebidas e compartilhadas,

    posso afirmar que o conhecimento um fenmeno inerente ao humano, que ocorre

  • 14

    durante toda a sua trajetria e que no est apenas vinculado a este ou aquele procedimento, a este ou aquele contedo sistematizado. A construo de significados acontece na reflexo sobre as experincias comunicadas e compartilhadas e todo ser humano, o professor e o educando inclusive, se constitui e se reconhece nesse processo -fenmeno vivido.

    Quais as possibilidades efetivas de construo de cada sentido novo concretizado na cumplicidade de um compartilhar experincias semelhantes? So infinitas e acontecem

    revelia de nossa racionalidade formal, cartesiana. No existe mundo antes que eu possa experienci-lo, mas a experincia com e no mundo a via pela qual atesto o meu existir. No caso especfico do espao escolar, o cuidar dessas percepes deveria ser nosso principal e mais importante objetivo j que so determinantes na constituio do humano entendendo que este norteamento se faz presente em todos os momentos ali vivenciados, inclusive no trato de todos os contedos propostos pela grade curricular. Assim, a reflexo de cunho fenomenolgico-hermenutico no apenas serviu de fundamentao terica para a minha dissertao de mestrado como tambm mostrou-se, ela

    mesma, o percurso metodolgico possvel e coerente ao meu trabalho. Minha proposta de trabalho de campo baseou-se no vivenciar experincias em um espao privilegiado, a sala

    de aula e, a partir de minhas prprias referncias, interpret-las. Nesse primeiro momento metodolgico, tais experincias foram a fonte para a elaborao de um texto descritivo, to minucioso quanto minha relao com a linguagem permitir. O segundo momento se constituiu pela anlise de tal texto sob a tica hermenutica ricoeuriana que considera a experincia singular, aquela que vivenciei na escola, passvel de ser comunicada pelo texto. O que faz com que o meu texto, singular, possa ser comunicado o que ele tem de universalizvel, ou seja, enquanto manifestao de mundo, o fato de nos reconhecermos seres historicamente constitudos e inseridos em comunidades estticas, ticas, polticas,

    religiosas, etc., que garante o que h de comunicvel na minha relao singular com e no mundo.

  • 15

    Referncias

    ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    ASSIS, Machado. Memrias Pstumas de Brs Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

    HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edies 70, 1990.

    ______ Ensaios e Conferncias. Petrpolis: Ed. Vozes, 2002.

    ______ Ser e Tempo. Petrpolis: Ed. Vozes, 2002.

    HUSSERL, Edmund. A Idia da Fenomenologia. So Paulo: Edies 70, 1986

    ______ A Origem da Geometria. Trad. de M Aparecida Viggiani Bicudo. Rio Claro: Unesp, 1980.

    MEIRELLES, Laura B. Heidegger e a superao do Niilismo. In: 1 Mostra de Trabalhos de Graduao e Ps-Graduao da UFJF. 2004. Juiz de Fora. XI Seminrio de Iniciao Cientfica da UFJF. 2004.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. A Estrutura do Comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975.

    ______ Fenomenologia da Percepo. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    ______ Textos Escolhidos. Tradues e notas de Marilena Chau. So Paulo: Abril Cultural, 1980.

    RICOEUR, Paul. A Crtica e a Convico. Lisboa: Edies 70, 1997.

    ______ Do Texto Ao. Porto: 1989.

    ______ O Si-Mesmo como um Outro. Campinas: Papirus, 1991.

    ______ Histria e Verdade. Rio de Janeiro: Cia. Editora Forense, 1968.