A Ferro e Fogo_Resenha

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Livro: A Ferro & Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira Autor: Warren Dean Editora: Companhia das Letras, 1996 - São Paulo - 6a. Reimpressão ISBN: 978-857164-590-5 Resenha por : Hilbernon Maximiano da Silva Neto Para a Cadeira: Tópicos Especiais em Política e Sociedade - Políticas Públicas no Brasil - Programa de Mestrado em História - UERJ Professor: André Campos A Ferro e Fogo é uma obra densa, profunda e que serve de referência sobre qualquer trabalho relativo à questão ambiental no Brasil. Lançando mão de um texto fascinante e apoiado em uma documentação ampla e detalhada o ‘brazilianista’ Warren Dean usa a história da Mata Atlântica como fio condutor para contar a nossa própria história econômica e política. Iniciando a sua narrativa no período que antecede o descobrimento pelos portugueses, passando pela era colonial, desembarque da corte portuguesa, primeiro e segundo reinados, república velha, estado novo, regime militar, re-democratização até os primeiros anos da década de 90 do século passado, Dean conta a história de um povo (aqui incluo todas as camadas da sociedade civil e militar, sem esquecer obviamente dos nossos colonizadores), que ao longo de mais de 500 anos mostrou-se muito pouco preocupado com a preservação e conservação de suas matas e florestas. Logo nos primeiros capítulos fica claro que o Ferro - presente no título - num primeiro momento significa representa o machado, ferramenta que introduzida pelos primeiros europeus, logo se torna o principal objeto de desejo e fetiche dos indígenas e das populações mestiças subsequentes. Machado que, com o avanço da tecnologia, ao longo do tempo, toma a forma de outros implementos capazes de acelerar vertiginosamente a derrubada das árvores

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Resenha referente ao livro de Warren Dean

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Livro: A Ferro & Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira

Autor: Warren Dean

Editora: Companhia das Letras, 1996 - São Paulo - 6a. Reimpressão

ISBN: 978-857164-590-5

Resenha por: Hilbernon Maximiano da Silva Neto

Para a Cadeira: Tópicos Especiais em Política e Sociedade - Políticas Públicas no Brasil - Programa de Mestrado em História - UERJ

Professor: André Campos

A Ferro e Fogo é uma obra densa, profunda e que serve de referência sobre qualquer trabalho relativo à questão ambiental no Brasil. Lançando mão de um texto fascinante e apoiado em uma documentação ampla e detalhada o ‘brazilianista’ Warren Dean usa a história da Mata Atlântica como fio condutor para contar a nossa própria história econômica e política.

Iniciando a sua narrativa no período que antecede o descobrimento pelos portugueses, passando pela era colonial, desembarque da corte portuguesa, primeiro e segundo reinados, república velha, estado novo, regime militar, re-democratização até os primeiros anos da década de 90 do século passado, Dean conta a história de um povo (aqui incluo todas as camadas da sociedade civil e militar, sem esquecer obviamente dos nossos colonizadores), que ao longo de mais de 500 anos mostrou-se muito pouco preocupado com a preservação e conservação de suas matas e florestas.

Logo nos primeiros capítulos fica claro que o Ferro - presente no título - num primeiro momento significa representa o machado, ferramenta que introduzida pelos primeiros europeus, logo se torna o principal objeto de desejo e fetiche dos indígenas e das populações mestiças subsequentes. Machado que, com o avanço da tecnologia, ao longo do tempo, toma a forma de outros implementos capazes de acelerar vertiginosamente a derrubada das árvores nativas de um dos mais belos e ricos ecossistemas do nosso planeta. A verdade é que - desde o machado primitivo até sofisticada moto-serra - nunca mais paramos de cortar, podar, ceifar, desmatar e destruir sem remorso.

O Fogo, por sua vez, surge como representação de uma das mais primitivas e rudimentares técnicas de manuseio: a queimada. A princípio usada pelos povos caçadores-coletadores (os primeiros habitantes do que vem a ser hoje o nosso território, antecedentes aos indígenas) como forma de cercar e expulsar a caça de dentro da mata cerrada e encorpada, logo foi assimilada pelos primeiros colonos e seus descendentes mestiços, perpetuando-se ao longo dos séculos como uma ‘técnica‘ enraizada na cultura popular de tal forma que - ainda hoje - continua sendo amplamente utilizada até mesmo no contexto do moderno agro-negócio.

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Lendo a obra de Dean e fazendo uma analogia com o movimento sanitarista brasileiro do final do século IXX e das primeiras décadas do século XX, podemos concluir que a questão ambiental, nunca foi motivo de preocupação para as elites política e científica nacional. Ao contrário do que ocorreu com a saúde pública, no período mencionado, nunca tivemos um movimento conservacionista ou preservacionista devidamente organizado, articulado e formalmente constituído. Na área ambiental não tivemos por assim dizer, uma figura catalisadora, quase mítica equivalente a um Oswaldo Cruz . Justamente o oposto, a floresta tropical sempre foi vista, como sinônimo de atraso, doenças e ocultismo até mesmo pelos sanitaristas. No imaginário sempre foi algo a ser extirpado, limpo, saneado, podado, domesticado.

Fica claro que a questão ligada às florestas, matas e rios - durante séculos - nunca deixou de ser secundária, mero objeto de curiosidade por parte de alguns poucos visionários. O que se extrai do texto de Dean é que mesmos os mais ilustres naturalistas, que por aqui andaram, olharam para as nossas matas e florestas com um olhar preconceituoso, notadamente eurocêntrico, tornando-os incapazes de entender mais profundamente, por exemplo, a relação dos indígenas e depois caboclos com as milhares de espécies da flora e fauna usadas no cotidiano destas populações para as mais diversas finalidades. Dean nos deixa com a certeza de que foram escassos os cientistas que realmente compreenderam a complexidade e a diversidade da Mata Atlântica.

Ao longo do livro muitos nomes são citados como exemplos negativos e somente uns poucos lembrados de maneira positiva, destacando-se nesta última categoria Auguste de Saint-Hilaire, um dos primeiros naturistas realmente interessado em compreender a Mata Atlântica e Augusto Ruschi que para o autor parece ter mais importância pelo papel de militante ambientalista do que como cientista. Curioso mesmo é o tratamento que Warren Dean dispensa a Chico Mendes, retratado primordialmente como líder sindical:

“Mas a publicidade e os recursos afluíram nesse sentido quando um dos seu líderes, Chico Mendes, foi identificado como ‘ambientalista’ e, posteriormente - tal como inúmeros outros líderes trabalhadores rurais - foi assassinado por latifundiários. Essa conexão inspirou a criação na Amazônia de uma nova forma de unidade de conservação, a ‘reserva extrativa’, cujos moradores supostamente deveriam praticar apenas formas tradicionais de exploração, permitindo a sobrevivência da floresta no lugar”.

Dean deixa evidente que - desde o nosso primeiro Código Florestal, datado de 1934, passando pelas edições subseqüentes - o que tivemos foi uma sucessão de textos propositadamente dúbios, imprecisos, cheios de ‘brechas’ que permitiram a destruição das florestas e matas em nome de um desenvolvimentismo irracional, comprometendo as futuras gerações e aniquilando irremediavelmente grande parte da nossa flora e fauna.

Para explicar a situação caótica - que resultou num ‘amontoado’ de leis, decretos, códigos, órgãos, departamentos e repartições com funções sobrepostas - criadas deliberadamente pela burocracia oficial , ao longo da nossa história ambiental - Dean chega a cunhar uma expressão própria: “embaralhamento burocrático”.

Ocupando praticamente toda a faixa litorânea da nossa costa, a Mata Atlântica não podia deixar de ser a primeira grande vítima do processo de ocupação e colonização do Brasil. Vista num primeiro momento (e talvez até hoje) como um grande empecilho para a fixação dos ‘neo-europeus’, rapidamente tornou-se objeto da ganância e insensibilidade

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dos colonizadores, sofrendo severas perdas em termos de flora e fauna nativas ao longo dos nossos diversos ciclos ‘extrativistas-exportadores’, que sem exceção causaram na Mata danos irreversíveis, como - por exemplo - detalhadamente descritos no último capítulo do livro.

Primeiro o pau-brasil, depois a cana, seguida do ouro e pedras preciosas, do café, da pecuárias intensiva e assim sucessivamente até a industrialização, sempre em todos estes ciclos econômicos - como muito bem nos mostra Dean - a floresta pagou o maior de todos os preços (e ainda paga).

O cenário torna-se ainda mais apocalíptico, quando Dean aborda a questão do emprego maciço da lenha, proveniente das árvores nativas da Mata Atlântica, como nossa principal fonte energética, ao longo de praticamente cinco séculos, pois tradicionalmente sempre fomos um país carente de hidrocarbonetos. E, o que é mais preocupante, parte significativa da nossa siderurgia até hoje depende do carvão vegetal para alimentar suas coquelarias, comprometendo de forma irremediável o que resta da Mata Atlântica, principalmente em Minas Gerais, onde esta atividade ocorre eminentemente de maneira informal.

Com a eletrificação das nossas principais cidades e consolidação do processo de industrialização, ocorrido inicialmente no eixo Rio-São Paulo-Minas, a reboque vem mais destruição: as primeiras hidroeléticas construídas no seio da Mata Atlântica. Ainda que pequenas - se comparadas com as atuais - causaram enorme impacto e degradação.

Logo na abertura, no primeiro capítulo o autor deixa claro que a “História Florestal” , em todo o planeta, “sempre foi uma história de exploração e destruição” ou seja destruir, cortar, desmatar, queimar e aplainar superfícies nunca foi uma exclusividade luso-brasileira. Entretanto, em poucos momentos da história o ser humano o fez com tamanho desprezo, ignorância e voracidade como no caso da Mata Atlântica.

Ao lermos o livro fica óbvio, que as “intervenções humanas” superaram “as expectativas humanas” , ie, os estragos irremediáveis em termos de vidas, espécies de flora e fauna não compensaram os supostos benefícios.

Dean deixa claro que “para o homem a coexistência com as florestas tropicais sempre foi problemática”, incluindo neste caso também os povos caçadores-coletores que ocuparam as Américas durante de milhares de anos até a chegada dos europeus. Ou seja, Warren Dean derruba o mito popular - que estes povos das florestas viviam sem interferir no meio-ambiente. Apesar de uma ação mais harmoniosa, devido às limitações tecnológicas, estes povos nativos se desenvolveram e se multiplicaram avançando sobre as florestas, causando um certo grau de impacto, ainda que muito menos devastador que o provocado pelos europeus.

No livro Dean não se detém somente numa disciplina, no caso a História. Muito pelo contrário, ‘A Ferro e Fogo’ é um exemplo de como em certos temas a História - quanto disciplina - necessita se aproximar da Geografia e lançar mão de outros saberes. No caso específico o autor apoiou-se na em conhecimentos de Botânica, Geologia e outros saberes dando provas de grande erudição.

Para Warren Dean, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica formavam juntas “uma zona biogeográfica diferente e mais rica em espécies que as outras florestas tropicais do planeta, situadas na África ou Sudeste da Asiático”.

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O que o autor tenta nos mostrar (e pelo menos para mim consegue de modo extremamente convincente) é que a Mata Atlântica “era em si mesmo de uma diversidade extraordinária, levando-se em conta seu tamanho relativamente modesto”.

E, que para nós brasileiros, fique uma lição, pois em relação a ela, já passamos a conjugar o verbo no passado. Espera-se que quanto à Floresta Amazônia ainda possamos empregar o verbo no futuro.

Nos primeiros capítulos Dean se dedica a mostrar a formação da Mata Atlântica e a sua ocupação / invasão pelos primeiros humanos, responsáveis pelo desaparecimento da megafauna nativa (mega no sentido de tamanho dos animais que aqui viviam). Em relação ao período que antecede a chegada dos Portugueses, uma das teses de Dean é aqui ‘reinavam’ os Tupis, que por volta de 1500 “ ainda eram capazes de se expandir mais e não haviam exaurido o potencial produtivo do seu habitat”.

Com o desembarque dos Portugueses, inicia-se um novo ciclo, onde junta-se ao emprego do fogo (amplamente usado pelos indígenas), o machado de ferro trazido pelos neo-europeus. E, com o advento deste novo ciclo, baseado no modelo clássico de colonização européia, Dean nos alerta que História da Mata Atlântica não pode ficar limitada e restrita somente à questão ambiental, mas deve também debruçar-se sobre a questão fundiária, um dos grandes temas políticos ainda sem perspectivas de solução satisfatória na sociedade brasileira. A questão fundiária que tem sua gênesis com as capitanias e sesmarias perpetua-se - ao longo dos diferentes regimes de governo e distintos modos de produção - constituindo-se num relato pleno de usurpações, violência, falsificações, falcatruas e toda sorte de vilanias.

Outro ponto que fica óbvio é que a História da Mata Atlântica é sobretudo a história do olhar preconceituoso do colonizador (uma espécie de ‘eurocentrismo’ ainda hoje muito presente no comportamento das nossas elites) em relação ao nativo e ao esplendor do seu ‘habitat’, como afirma Dean, na página 721:

“O intento Português de conquistar e transformar esse território e nele não sucumbir ou admitir a sua rendição às culturas nativas evidencia-se no seu interesse limitado pela sua vegetação e vida animal [...] como conquistadores ficaram, em grande parte, imunes àquela curiosidade relativa ao mundo natural que , na época, despertava curiosidade na Europa [..] sua atitude em relação a essa costa distante foi até desdenhosa.”

Dean deixa bem claro que a história da destruição da Mata Atlântica, antes de tudo, também é a história da ‘plantation’ escravagista. Um modo de produção cruel, desumano que em parte explica a fúria com os colonizadores e seus herdeiros avançaram sobre as matas. Warren Dean é direto e incisivo na sua constatação deste fato quando afirma, na página 75:

“A conservação dos recursos naturais iria mostrar-se irrelevante em uma sociedade na qual a conservação da vida humana era irrelevante”.

E, aqui neste ponto, tomo a liberdade de questionar o autor quanto ao tempo do verbo empregado no passado: “era irrelevante” ou não seria mais apropriado, quando olhamos apuradamente para nossa sociedade que, sob muitos aspectos, “a conservação da vida humana” ainda é irrelevante.

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Estruturado em 15 capítulos, com notas, referências em abundância e um índice remissivo primoroso “A Ferro & Fogo” constitui-se primordialmente numa obra sobre a questão das transições (como afirma Stuart Schwartz no Prefácio). Na transição da sociedade dos povos caçadores coletadores para os primeiros colonos e o extrativismo primário, do modo de produção das ‘plantations’ escravagistas para o trabalho livre e assalariado na sociedade industrializada.

Dean cobre com precisão todos os ciclos da nossa história, sendo que os três últimos capítulos merecem uma análise mais atenta, pois nos levam a refletir sobre questões ainda muito atuais, que parecem se perpetuar nas pautas política e científica, tais como: os aspectos referentes à aplicação da lei ambiental; à complexidade do replantio e reintrodução de espécimes da flora e da fauna; aos orçamentos minguantes dos orgão de pesquisa; regulação e fiscalização do meio-ambiente; o manejo de matas - propositadamente equivocado - conduzido por grandes corporações estatais e privadas; à atenção que se deve ter com o que ele chama de “ambientalismo de grife” e sobre ambientalismo e ideologia.

Do ponto de vista do método historiográfico empregado em ”A Ferro & Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira”, Dean parece buscar inspiração em na história da longa duração, se é que podemos pensar o Brasil em termos de ‘história de longa duração’, afinal passaram-se somente 500 anos desde a chegada dos primeiros europeus. Mas que seja, cinco séculos é o que temos. Dean consegue fazer deste tempo, um tempo capaz de se constituir numa narrativa longa, plenamente capaz de nos fazer compreender de forma isenta e afastada os eventos que produziram a nossa sociedade. “A Ferro & Fogo” é uma espécie de La Méditarranée et Le Monde Méditarranéen à L’Epoque de Philippe II” (Fernand Braudel), centrado no mundo tropical de matas exóticas e extremamente ricas na sua biogeografia.

Para mim, ao final da leitura, ficou o sentimento de que Dean desenvolveu o tom de sua narrativa fortemente inspirando no capítulo 26 de O Capital (onde Marx descreve como se dá o processo de acumulação primitiva) quando na página final, ele conclui:

“Durante quinhentos anos, a Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, corantes escravos, ouro, ipeacuanha, orquídeas e madeira para o proveito dos seus senhores coloniais e, queimada e devastada, uma camada imensamente fértil de cinzas que possibilitavam uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A população crescia cada vez mais, o capital ‘se acumulava’ - em barreiras à erosão de terras de lavoura, em aquedutos, controle de fluxos e enchentes de rios, equipamentos de dragagem, terras de mata plantada e a industrialização de sucedâneos para centenas de produtos outrora apanhados de graça na floresta. [...] O ‘valor da terra nua’ tornou-se o padrão do banqueiro para o cálculo da caução.”

Em épocas de aprovação, conduzida num ritmo propositadamente açodado e sem a devida discussão em profundidade que o assunto requer, de um nova versão do Código Florestal Brasileiro, a obra de Warren Dean serve de reflexão quanto ao futuro que queremos legar. Se tivéssemos algum tipo de poder sobre os nossos diletos parlamentares, deveríamos exigir que antes de votarem o texto final do novo código, fossem obrigados, como uma espécie de dever de casa, a ler “A Ferro & Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira”.

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Rio, 15 de Maio de 2011.