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A FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS – APONTAMENTOS ETNOGRÁFICOS SOBRE A CELEBRAÇÃO DO SANTO PESCADOR Thais Nascimento Cordeiro Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Sociologia (com ceoncentração em Antrpologia). Orientadora: Profª. Drª. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha Coorientadora: Profª. Drª. Karina Kuschnir Rio de Janeiro Março de 2009

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A FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS – APONTAMENTOS

ETNOGRÁFICOS SOBRE A CELEBRAÇÃO DO SANTO PESCADOR

Thais Nascimento Cordeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA,

do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos para obtenção do título de Mestre em

Sociologia (com ceoncentração em Antrpologia).

Orientadora: Profª. Drª. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha

Coorientadora: Profª. Drª. Karina Kuschnir

Rio de Janeiro

Março de 2009

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NASCIMENTO, Thais.

A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador / Thais Nascimento Cordeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2009.

VIII – 103f. il.

Orientadora: Profª. Drª. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha Coorientadora: Profª. Drª. Karina Kuschnir

A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador (mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2009.

1. Festa de São Pedro. 2. Ritual. 3. Ponta Grossa dos Fidalgos. 4. Lagoa Feia I. Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte; Kuschnir, Karina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III. A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador.

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Todas as minhas humildes reverências aos Pés

de Lótus de Sri-Bhagavan, sem cuja a

inspiração esse trabalho não seria possível.

Em Memória de Regina Márcia Cordeiro.

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Resumo: Ponta Grossa dos Fidalgos é um povoado pesqueiro localizado no interior do estado do

Rio de Janeiro, às margens da Lagoa Feia. Um dos eventos rituais mais importantes do povoado

é a festa de São Pedro, Santo protetor dos pescadores, comemorado em junho. O envolvimento

de um vereador na organização da festa de São Pedro divide a população local sobre a influência

política na festa religiosa e ressalta conflitos existentes em torno da disputa de poder sobre a

organização do festejo. Nesse contexto, as memórias de um modelo antigo dessa festa são

recuperadas e comparadas à festa atual. As lembranças da velha festa de São Pedro evocam a

Ponta Grossa dos Fidalgos do “tempo dos antigos”, e, com ela, um modo de organização social

que não existe mais. Este passado é usado como argumento retórico para confirmar ou questionar

o presente.

Palavras-chave: Festa de São Pedro – Ritual – Ponta Grossa dos Fidalgos – Lagoa Feia.

Abstract: Ponta Grossa dos Fidalgos is a fishing community located in Rio de Janeiro state, on

the edges of Feia Lagoon. One of the most important ritual events of the commnunity is the Saint

Peter festivity, the fishermen protector saint, celebrated in June. The involvement of a local

politician in the organization of Saint Peter feast divides the local population opinion about the

political influence on the religious feast, at the same time, it reinforces the existing conflicts

around the dispute of power on the festivity organization. In this context, the memories of an old

feast style are recalled and compared to the actual one. The old Saint Peter feast memories recall

the Ponta Grossa dos Fidalgos of the “ancient time”, and, with it, it is reminded a mode of social

organization that does not exist anymore. This past is used as a rhetorical argument to confirm or

to question the present days.

Keywords: Saint Peter Feast – Ritual – Ponta Grossa dos Fidalgos – Feia Lagoon.

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AGRADECIMENTOS

Uma vez li em algum lugar que amigos são anjos que aparecem em nossas vidas para nos

ajudar em nossa caminhada. Muitos foram os anjos que cruzaram meu caminho desde a

graduação até aqui, e que contribuíram de forma direta ou indireta para que este trabalho fosse

concluído.

Quero começar a agradecer aos meus colegas do mestrado, à melhor turma à qual eu

poderia pertencer, pelo companheirismo e amizade que nasceu entre nós. E deixar meu carinho

especial para Edilson Pereira e João Paulo Reis, pela acolhida e pelos momentos bons e tensos

que compartilhamos.

Ao meu amigo e orientador da graduação, Arno Vogel, e também a Vera Vogel, Mariana

Lima e Brígida Renoldi, pela amizade, força, incentivo e por abrirem as portas de sua casa pra

mim

Aos meus amigos André Zamana, Camila Daniel, Mariana Alves, Natacha Jabor, Luisa

Borges, Daniel Caetano, Rafael Caetano e Tahiana Fernandes, por tantas coisas que, se fossem

colocadas aqui, resultariam em páginas e páginas de agradecimentos.

Aos meus amigos de aventuras etnográficas, em especial Bonnie Azevedo e Lorena de

Oliveira e Alves, amigas com quem o contato e a amizade não esfriaram com o término do

período de campo.

Às queridas amigas que me ajudaram em momentos de profundo desânimo com o

trabalho, obrigada pela associação: Sri Radhe devi dasi (Samira Simões), Aline Codeço e Liliane

d’Almeida.

Meu muito obrigada aos Professores Marco Antonio da Silva Mello e Karina Kuschnir,

pelo apoio e incentivo, e pelas valiosas sugestões na banca de qualificação, quando eu me

encontrava desmotivada para continuar este trabalho. A Karina por todas as sugestões e o

trabalho que teve comigo depois disso também.

A Elina Pessanha, minha querida orientadora, que me salvou tantas vezes.

À minha família que, mesmo sem entender (até hoje) em que consiste meu trabalho, me

deixou livre para escolher o meu caminho. E à minha eterna segunda família: Suze, Juliana,

Thereza Cristina e Francisco José.

E por fim, com um carinho muito especial, meu muito obrigada pela paciência, amor e

dedicação em todos esses anos a você, Carlos Abraão Moura Valpassos. Esse trabalho é, de certo

modo, seu também.

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Hácele Dios al hombre el día de fiesta, para que se le dé todo y él se da casi

todo a sus deleites, muchas veces a sus maldades.

Juan de Zabaleta

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Índice

INTRODUÇÃO 7

NO CAMINHO DE PONTA GROSSA DOS FIDALGOS 8

PARTE I 19

O LUGAR 19

PONTA GROSSA DOS FIDALGOS: O LUGAR 20

O “TEMPO DOS ANTIGOS” 28

PARTE II 34

A TRADICIONAL FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS 34

AS FESTAS DE SÃO PEDRO 35

2002 35

2003 40

2004 43

2005 49

2006 55

PARTE III 59

A FESTA É MAIS QUE FESTA: REFLEXÕES SOBRE AS COMEMORAÇÕES DO SANTO PESCADOR 59

PENSANDO O RITUAL 60

PENSANDO A FESTA 68

PARTE IV 76

EM BUSCA DA FESTA PERDIDA 76

CANOAS E ATRASO 77

COMO O POVO VÊ A FESTA 82

O DISCURSO DO RETORNO 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS 96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 102

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INTRODUÇÃO

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No Caminho de Ponta Grossa dos Fidalgos

Toda jornada tem um primeiro passo e não foi diferente com esta dissertação. Meu

“campo” começou a ser delineado antes mesmo que eu soubesse que ele seria “meu”. Posso

dizer que comecei a envolver-me com aquilo que viria a ser minha dissertação de mestrado no

ano de 2002, quando, ainda na Universidade Estadual do Norte Fluminense, onde fiz meu

Bacharelado em Ciências Sociais, o Professor Arno Vogel procurava por alunos que pudessem

trabalhar com ele numa pesquisa sobre a pesca artesanal em Ponta Grossa dos Fidalgos. Os

alunos que tomaram este tema como seus projetos de iniciação científica foram José Colaço Dias

Neto, meu colega de classe, e Carlos Abraão Moura Valpassos, então meu veterano e amigo

íntimo que viria, anos mais tarde, a se tornar meu marido.

Naquele contexto, Ponta Grossa dos Fidalgos freqüentemente se fazia presente nas

conversas dos corredores da universidade assim como nos momentos de descontração em bares e

mesmo nas festas dos estudantes. Aqueles eram os primeiros estudantes, com os quais eu tinha

contato, a empreender um “trabalho etnográfico” e as histórias do “campo” despertavam em mim

um certo fascínio. As narrativas expunham diversas dificuldades enfrentadas na inserção naquele

outro universo, se é que podemos falar desse modo, mas também giravam em torno das gafes

cometidas por aqueles aspirantes a antropólogos.

Foi numa dessas conversas que Carlos Abraão me convidou a fazer uma curta visita ao

arraial, apenas para descobrir a data e o horário oficiais da abertura da festa de São Pedro.

Naquele dia percorri pela primeira vez os 35km que separam a sede do município de Campos

dos Goitacases de Ponta Grossa dos Fidalgos. Passamos por Donana e Goitacases antes de

chegar ao distrito de Tócos. Eu já conhecia os dois primeiros distritos, ainda que de passagem,

pois ficam na mesma estrada que leva à praia campista de Farol de São Tomé. Não me

recordava, contudo, de já ter visitado Tocos. Após virar à direita no local conhecido como “trevo

de Goitacases”, entramos na estrada RJ 236, já no distrito de Tócos. A paisagem era tomada por

canaviais, de onde se destacava, imponente, o prédio jesuíta do antigo Solar do Colégio, onde

hoje funciona o Arquivo Público Municipal de Campos.

No distrito de Tócos havia uma placa indicando a direção e o nome dos sub-distritos

pelos quais passaríamos antes de chegar o arraial de pescadores. O cheiro de vinhoto, que é

possível sentir desde Goitacases, tornava-se cada vez mais forte à medida que nos

aproximávamos da Usina Paraíso, em Tócos. Era época de moagem e por isso muitos caminhões

carregados de cana-de-açúcar transitavam por aquelas estradas.

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Foto: Carlos Abraão Moura Valpassos - 2002

Placa de Indicação do Caminho de Ponta Grossa dos Fidalgos em Tócos.

Passamos então pelos locais que mais tarde soubemos que se chamavam Coqueiros de

Tócos, Panta Leon e Caxias de Tócos antes de percorrer a sinuosa estrada municipal (CA 116,

chamada pelos pontagrossenses de “Estrada Zéca Póvoa”) que leva até Ponta Grossa dos

Fidalgos.

Foto: Cyntia Jorge - 2005

Pessoas sentadas no banquinho em frente à casa de Zé Lisboa (à direita)

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Esta estrada, ao se cruzar com a principal rua do povoado, a João Cabral Neto, amplia-se

formando um largo cruzamento asfaltado de ruas conhecido como “Praça do Ingá”. Numa das

esquinas deste cruzamento pude ver um mercadinho. Em frente a quase todas as casas havia um

banquinho de madeira preso ao chão onde os moradores se sentavam para observar o movimento

da rua e conversar nas horas vagas.

A estrada Zéca Póvoa continuava numa rua cheia de casas que culminava na Lagoa Feia,

que não podia ser vista dali. Percorremos os cerca de 2,5km de extensão da rua João Cabral

Neto, indo desde o lugar chamado Ingá até a Ponta, na extremidade leste do arraial1.

Neste rápido passeio pelo povoado vi quatro igrejas: uma Católica, uma Batista, uma

Presbiteriana e uma Congregação Cristã do Brasil. Mais tarde descobriria que o povoado possui

também uma Assembléia de Deus, mas não pude identificá-la naquele momento porque não

possuía, como ainda não possui, qualquer placa ou letreiro indicativo.

A rua que cruza a João Cabral Neto para levar à Capela de Nossa Senhora da Conceição,

como é chamada a Igreja Católica local, é a mesma que leva ao porto principal do povoado, o

Porto da Beirada, onde se localiza o Pesque-Pague.

1 Um mapa detalhado do Arraial encontra-se em anexo.

Rua João Cabral Neto

Pesque Pague

Porto da aBeirada

Estrada para

Campos

Ingá Beirada Ponta

Praça do

Ingá

Praça da Beirada

Igreja Nossa Senhora da Conceição

Lagoa Feia

Croqui de Ponta Grossa dos Fidalgos. (VALPASSOS: 2006)

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Foram estas as paisagens que pude ver naquela minha primeira visita à Ponta Grossa dos

Fidalgos. Naquele primeiro contato, que durou menos de uma hora, notei que éramos

constantemente observados pelos moradores locais, que nos dirigiam olhares que me transmitiam

uma certa desconfiança. Era um sentimento ambíguo, pois do mesmo modo que os sentia

desconfiados com relação a nós, sentia também a existência de uma preocupação em nos receber

e tratar bem. Éramos estrangeiros naquele lugar e sabíamos que, apesar de nossas intenções não

serem ainda claras para eles, podíamos contar com sua hospitalidade.

Este primeiro contato gerou uma impressão positiva sobre o lugar e também sobre as

possibilidades de empreendimentos de pesquisa. Isso me fez procurar o Prof. Arno Vogel e,

desse modo, integrar-me ao grupo de pesquisa que então se constituía.

No dia 19 de outubro de 2002 fui pela primeira vez à Ponta Grossa dos Fidalgos como

pesquisadora. Estava interessada em temáticas relacionadas ao parentesco, à transmissão de

patrimônio, ao casamento, aos papéis sociais e, talvez, às questões de gênero.

Nessa época já havia uma casa alugada no arraial que servia como base de pesquisa, e

naquele dia fui com Carlos Abraão na casa de um casal de moradores para buscar as chaves da

nossa “base”. Quando lá chegamos, presenciamos uma briga entre o casal e, mesmo sem nunca

ter me visto na vida, a mulher me abraçou chorando e reclamando do marido, que não gostou

muito da atitude dela. Assim, ela me tomou como amiga e confidente, de forma que só

conversava comigo sobre o quão ruim era seu marido, sem responder ao que eu perguntava nem

me apresentar às outras mulheres do povoado. Meus colegas de pesquisa só tinham contato com

os homens e eu tinha dificuldade em estabelecer contato com as mulheres do lugar.

Além disso, tive outros pequenos problemas no campo que me pareciam enormes diante

de minha inexperiência e insegurança. O empreendimento etnográfico numa comunidade rural

revelou-se bastante árduo para mim durante todo o período em que lá trabalhei, de 2002 a 2007,

ainda que no início tenha sido mais sofrido. Eu sofria as mesmas dificuldades dos meus colegas

em função de nossa inexperiência como etnógrafos, todavia no meu caso havia um complicador

a mais: por alguns meses fui a única mulher numa equipe masculina.

Os espaços de sociabilidade e as relações entre homens e mulheres eram bem

delimitados. Como não tínhamos ainda esta percepção e eu ainda não estabelecera contato com

interlocutores específicos, achávamos natural que minhas primeiras incursões a campo fossem

em companhia dos rapazes, embora houvesse lugares que eu não pudesse frequentar. Os bares,

por exemplo, não eram frequentados por mulheres, pois a estas poderiam ser dirigidos

comentários maliciosos. Um incidente ocorrido no campo com uma colega de pesquisa ilustra

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muito bem essa interdição moral que as mulheres sofrem com relação a frequentar os espaços

sociais considerados masculinos.

Certa vez, uma das moças do grupo de pesquisa estava conversando com um ex-pescador

de cerca de 60 anos em frente a uma casa. Na porta dessa casa, alguns homens sentados num

banquinho observavam em silêncio a conversa do ex-pescador com a pesquisadora. De repente,

uma mulher surge na porta da casa vizinha e chama por um dos homens que estavam no

banquinho. A mulher parecia irritada, e depois de levar para casa aquele homem, que era o

marido dela, voltou para a porta da casa segurando uma vara de madeira numa das mãos e

batendo-a na outra mão, enquanto olhava para a pesquisadora com expressão aborrecida, batendo

a ponta do pé impacientemente. Desconcertada, a pesquisadora pediu licença ao ex-pescador, ao

qual não conseguia mais prestar atenção às palavras, e foi até o bar de Dóba e Elinha beber uma

coca-cola e se acalmar. Como chegara muito nervosa, Elinha perguntou o que acontecera, e a

pesquisadora relatou. Foi então que ela escutou Elinha dizer “Mas também, né, você fica

frequentando bar, você quer que ela pense o que?” A pesquisadora só ia ao bar de Dóba e

Elinha, e ao de sêo Tico para conversar com os próprios donos dos estabelecimentos, que além

de serem alguns dos primeiros interlocutores estabelecidos no campo, eram também pessoas que

conheciam e estavam sempre dispostas a colaborar com nosso trabalho etnográfico. Assim, este

episódio que ficou conhecido entre nós como “a história da vara” explicitou as sanções morais

que as mulheres poderiam sofrer por serem constantemente vistas nos bares, ainda que não

estivesse bebendo. Os bares e as pescarias eram, pois, os lugares ideais para os meus

companheiros de pesquisa, pois lá estavam sempre reunidos homens a conversar sobre pesca,

mas não somente sobre isso. Nesses espaços de sociabilidade masculino conversava-se também

sobre as mulheres e se aprendia a “ser homem”, ou seja, os homens mais velhos ensinavam aos

mais jovens como um homem deve se comportar com relação às mulheres.

Quando estava com os rapazes, pela interdição moral que eu sofria, eles não podiam ir

aos bares coletar informações. Houve mesmo uma ocasião em que fui explicitamente impedida

de acompanhar os rapazes numa saída de barco pela Lagoa, pois só havia homens na embarcação

e minha presença poderia causar constrangimentos aos tripulantes.

Os interlocutores de meus companheiros eram homens e por isso eu me via incapaz de

estabelecer com eles uma relação etnograficamente proveitosa. Além disso, não conseguia me

aproximar das mulheres do povoado, pois só andava com os rapazes, que não possuíam relações

com as mulheres.

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Estes não foram meus únicos percalços no trabalho etnográfico. Certa vez, José Colaço

e Carlos Abraão entrevistavam um atravessador de peixes2 de Ponta Grossa dos Fidalgos. Um

pouco distante deles, apenas observando a entrevista, estávamos eu e João Paulo Gama de

Oliveira, o quarto estudante a se integrar à equipe. Em um dado momento, apareceu um

marimbondo e João o matou. Eu disse, então: “Valeu, João. Salvou minha vida, porque eu sou

alérgica, sabe?”, e coloquei a mão no ombro de João Paulo. Karina Kuschnir percebe, analisando

sua experiência etnográfica junto a dois vereadores do Rio de Janeiro, que “uma antropóloga

mulher talvez seja exposta com mais facilidade e recorrência a questões morais do que

pesquisadores do sexo masculino”.3 Esta foi uma das primeiras coisas que aprendi no campo,

quando, no dia seguinte, sabendo que eu era namorada de Carlos Abraão, Dóba4 e alguns outros

pescadores que estavam no local, dissessem a João que “a menina de Abraão estava dando em

cima” dele. João e José tentaram explicar que fora uma atitude inocente, mas Dóba ficou

desconfiado de mim. Este acontecimento foi crucial para chamar minha atenção para a forma

como se dão as relações de gênero no povoado. Naquele momento, eu pretendia trabalhar com o

tema da casa, do parentesco e do casamento, então considerei positivo aquele fato, mesmo tendo

que redobrar meus cuidados ao me dirigir a José e João no campo. Os indícios de flertes e

paqueras em Ponta Grossa dos Fidalgos rapidamente se mostraram distintos daqueles com os

quais eu estava acostumada e, por isso, era necessário manter sempre um distanciamento

estudado para não criar situações embaraçosas no campo.

Passei então a andar sempre na companhia de Carlos Abraão, evitando muitos contatos

com meus outros colegas. Foi assim até que uma outra pesquisadora se integrasse ao grupo, o

que aconteceu em janeiro de 2003. A partir dali passei a ter uma outra companhia feminina, o

que ampliou meu campo de ação – até então limitado aos contatos de Carlos Abraão. Além

disso, pouco a pouco os integrantes do grupo de pesquisa foram se tornando mais íntimos dos

habitantes locais, o que ajudou a evitar mal entendidos e a criar um ambiente menos coibido no

campo.

Estes problemas iniciais me deixavam bastante desanimada. Sentia-me sempre tendo que

agir com enorme cautela para não infringir normas que nem mesmo conhecia. Consegui, no

entanto, superar estas questões, mas logo me deparei com outro problema: por sempre fazer

etnografia ao lado de meu namorado passei a ser vista não como pesquisadora, mas como “a

2 Um atravessador é alguém que vende o pescado da Lagoa Feia para os comerciantes do mercado de Campos dos Goitacases. 3 Kuschnir: 2003, p. 29. 4 Um dos primeiros moradores com quem meus companheiros travaram contato, e que veio a se tornar um de seus principais interlocutores.

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namorada de Abraão”. Ainda que meus maiores interlocutores no campo me vissem como

pesquisadora, havia pessoas que acreditavam que eu estava ali somente acompanhando meu

namorado.

É importante ressaltar que meu comportamento no campo não era de “namorada”, mas

que por eu estar sempre ao lado de Carlos Abraão e por ser de conhecimento geral nosso

relacionamento, algumas pessoas acreditavam que eu estava somente “ajudando”, e não

trabalhando.

Para tentar resolver essa questão, passei a ir ao campo sozinha ou com outras pessoas do

grupo, e quando eu estava com um rapaz e nós conhecíamos um(a) novo(a) morador(a) de Ponta

Grossa dos Fidalgos, este(a) sempre perguntava se éramos namorados, e nós respondíamos que

éramos somente colegas de trabalho. No começo éramos olhados com desconfiança, mas aos

poucos as pessoas foram compreendendo que as relações de proximidade que os membros do

grupo de pesquisa mantinham entre si não possuíam uma conotação sexual.

Estava claro para mim que o sexo do pesquisador representava uma questão de suma

importância na elaboração de um trabalho etnográfico, ao contrário do que sugeriu Evans-

Pritchard5. Ser homem ou mulher, naquele contexto, significava um passaporte para âmbitos da

vida social que, se não eram inacessíveis a um dos sexos, eram ao menos de difícil acesso. Isso

ficou ainda mais nítido quando o número de pesquisadoras foi se ampliando. Ao passo que os

pesquisadores tinham acesso a informações sobre técnicas de pesca, conhecimentos

naturalísticos, conflitos ambientais e questões políticas, as pesquisadoras passaram a coletar

informações sobre economia doméstica, questões relacionadas à organização familiar, conflitos

relacionados às fofocas locais, adultérios e outras coisas mais. Enquanto os homens faziam

trabalho de campo na Lagoa e nos bares, as pesquisadoras do grupo realizavam as entrevistas nas

casas das mulheres pontagrossenses, na igreja ou em outros ambientes de “socialização

feminina”.

As próprias histórias e o tipo de conhecimento ao qual se teve acesso depois da entrada

das moças na equipe de pesquisa6 mudaram. Se antes, quando havia somente homens no grupo

5 1978. 6 Cada membro do grupo de pesquisa focou em um determinado tema em seus trabalhos de conclusão de graduação em Ciências Sociais. Em seu trabalho monográfico José Colaço Dias Neto tratou de como através do uso dos saberes relativos à geografia lacustre, aos hábitos da ictiofauna e das técnicas de captura, se criam os “pesqueiros”, locais onde os pescadores propiciam a constante presença de peixes. Discutiu, ainda, o direito de uso destes pesqueiros e as maneiras empregadas, nas conversas sobre pescarias, para que a localização dos pesqueiros não caia em domínio público. Já em sua dissertação de mestrado, Colaço tratou dos diversos calendários de reprodução de peixes existentes: o calendário biológico, o calendário político e o calendário do IBAMA. O conhecimento que os pescadores têm dos hábitos de cada espécie através de um complexo sistema classificatório constituiu o assunto principal da monografia de João Paulo Gama de Oliveira. Carlos Abraão Moura Valpassos analisou em seus trabalhos de graduação e mestrado como se articularam os grupos sociais e as diferentes perspectivas sobre as quais

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de pesquisa, as histórias a que se tinha acesso versavam sobre pescaria, a Lagoa Feia, política e

futebol, após a inserção das mulheres no grupo etnográfico tomamos conhecimento acerca dos

conflitos familiares, das brigas ocorridas entre os moradores do lugar, das práticas religiosas e

dos namoros, casamentos e envolvimentos sexuais das pessoas no povoado. Minha história

pessoal de inserção no campo, portanto, fornece importantes elementos reveladores das

concepções nativas de gênero.

O processo de percepção destas sutilezas do trabalho etnográfico, todavia, foi bastante

lento e acabou por gerar um afastamento de minhas intenções iniciais de empreender a pesquisa

sobre as questões relacionadas ao parentesco e à família em Ponta Grossa dos Fidalgos.

Gradualmente fui prestando cada vez mais atenção nos comentários que as pessoas

faziam sobre a celebração da festa de São Pedro. Nesse ínterim, eu já havia percebido que a

Igreja Católica do arraial era um espaço freqüentado sobretudo por mulheres, o que facilitaria

meu acesso àquele universo. Eu, que já tinha algum interesse em assuntos como religião, crenças

e ritual, notei que a festa de São Pedro era o palco de grandes polêmicas no arraial, além de ser o

maior evento ritual do lugar. Desse modo, acabei por mudar de tema e tomar a celebração do

Santo Pescador em Ponta Grossa dos Fidalgos como meu objeto de pesquisa.

Eu, que fui criada numa família kardecista, estudaria então uma festividade católica. O

lado positivo disso para a pesquisa foi meu grande estranhamento diante daquele universo

simbólico: não conhecia os ritos e nem mesmo a hierarquia eclesiástica, desconhecia os cânticos

e muitos dos costumes que faziam parte das celebrações que viria a estudar. Nesse sentido,

acabei por realizar aquele exercício tão caro à formação antropológica: o de transformar o

familiar em exótico e o exótico em familiar.

Para tanto foi de grande valia a parceria com as novas pesquisadoras daquele grupo de

jovens estudantes: Bonnie Moraes Manhães de Azevedo e Lorena de Oliveira e Alves, duas

moças criadas em contato direto com a doutrina católica. Eram elas que me forneciam as

informações necessárias para entender os mitos e os símbolos que se apresentavam a mim

estes grupos conceberam o espaço lagunar na década de 1970, quando os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos resolveram paralisar por duas vezes as obras do DNOS - Departamento Nacional de Obras de Saneamento, cuja as máquinas empreendiam a construção de um canal submerso na Lagoa Feia. Lorena de Oliveira e Alves mostra em seu trabalho monográfico como a Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos apresenta as características de um novo modelo de clientelismo e como o órgão representativo dos pescadores exerce a importante tarefa de mediação entre a comunidade e os órgãos governamentais relacionados ao meio ambiente. A participação e o papel da mulher no arraial e na economia doméstica, por sua vez, constituem o tema abordado por Flávia Rúbia Arêas, em sua monografia. O trabalho de Cyntia dos Santos Jorge trata das alianças matrimoniais em Ponta Grossa dos Fidalgos focalizando o que lá se chama de ‘casamento-fugido’, termo que designa a prática local da abdução da noiva, ou ainda, de fuga consensual, com vistas à realização do casamento. A festa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do povoado, foi o tema da monografia de Bonnie Moraes Manhães de Azevedo, na qual mostra que a religiosidade local se apresenta como uma importante fonte de identidade, e analisa as relações sociais em torno da igreja.

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durante as missas que vim a assistir ao longo do trabalho de campo e também nas celebrações do

Santo propriamente ditas.

É interessante notar que toda minha experiência de campo foi em companhia de meus

colegas de pesquisa. Em poucos momentos me vi “sozinha”, ou seja, sem ninguém do meu grupo

de referência, em Ponta Grossa dos Fidalgos. Desse modo, nunca tive aquele sentimento que

caracteriza o trabalho de campo como um rito de passagem na formação antropológica7 e que foi

expresso de maneira primorosa pelo grande etnógrafo que foi Bronislaw Kaspar Malinowski:

“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa

praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o

trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um

lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou

missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu

trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja um principiante,

sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar –

pois o homem branco está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe

a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na

pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné8”.

A sensação mais próxima disso foi a de ver o ônibus ou o carro que me trouxe afastar-se

gradualmente, deixando-me ao lado de um ou dois colegas de pesquisa, mas com a certeza de

que aquele meio de transporte tinha data e hora certa para voltar e nos buscar.

Eu era e continuo a me considerar como uma principiante. Apesar da inexperiência e da

falta de um roteiro, eu contava sempre com a companhia de uma outra pessoa que compartilhava

comigo as mesmas ansiedades e objetivos, diminuindo assim as angústias típicas do labor

etnográfico.

Além disso, cabe dizer que os momentos em que todos os pesquisadores se reuniam na

base, fosse nas refeições ou mesmo na hora de dormir, eram de grande valia. Sempre

passávamos as informações do dia uns para os outros e debatíamos todas as novidades e até

mesmo a reincidência de alguns acontecimentos que passavam a se destacar.

7 Damatta: 2000. 8 Malinowski: 1978, 79.

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Nesse sentido, esta dissertação não é apenas minha. Ela não foi construída sozinha, pois

cada informação, cada acontecimento narrado ou cenário descrito teve alguma contribuição de

meus companheiros de pesquisa.

A troca de informações entre os membros do grupo, desse modo, foi um dos fatores que

muito ajudaram na elaboração deste trabalho. Mesmo após a conclusão das monografias de

graduação, alguns dos estudantes mantiveram Ponta Grossa dos Fidalgos como palco etnográfico

de suas dissertações de mestrado, como foi o caso de Carlos Abraão (VALPASSOS: 2006), José

Colaço (COLAÇO: 2007), Lorena Alves (ainda em fase de elaboração), e eu mesma, claro. Isso

proporcionou um amadurecimento das questões anteriormente abordadas, assim como a

continuidade das conversas e debates em torno daquelas “histórias de pescador”.

É claro que toda rosa possui espinhos e não foi diferente no caso deste trabalho conjunto.

A relação nem sempre foi harmoniosa e muitos percalços se colocaram no caminho: diferenças

de personalidade se abalroavam, problemas pessoais diversos se interpunham e alguns momentos

de estresse eram criados.

Em todos esses momentos de pequenas ou grandes crises (que ao menos nos pareciam

grandes enquanto elas aconteciam), a equipe também foi importante, pois mais do que

informações sobre Ponta Grossa dos Fidalgos, encontrávamos apoio e amizade uns nos outros.

Por tudo isso e por coisas que são difíceis, senão impossíveis, de descrever, afirmo que este

trabalho é o fruto de um empreendimento coletivo.

Nesse sentido, esta dissertação afasta-se do modelo etnográfico do “pesquisador solitário”

proposto por Malinowski e aproxima-se da idéia de trabalho de campo aproveitando as diferentes

qualidades proporcionadas pelas distintas personalidades que compõem uma equipe de pesquisa,

tal como sugeriu Marcel Griaule9.

Malinowski também sugeria um período prolongado de permanência do etnógrafo em

campo. Um ou dois anos, segundo ele, era o período recomendado. No meu caso isso nunca foi

possível, pois a pesquisa em sua maior parte foi realizada em concomitância às aulas de

graduação e, posteriormente, às do mestrado. Assim, as idas a campo eram feitas, em sua grande

maioria, durante os finais de semana e feriados. Em períodos festivos - como os da festa de São

Pedro e de Nossa Senhora da Conceição, ou em Maio, que é o Mês de Maria10 - faltava algumas

aulas para permanecer por mais tempo em campo11.

9 Sobre Marcel Griaule, ver Clifford: 2002. 10 Durante o Mês de Maria (maio), a imagem de Nossa Senhora da Conceição sai da Igreja e visita a casa das devotas que desejam receber a Santa e que se inscreveram para isso previamente. A Santa sai de uma casa para outra todas as noites mais ou menos às 19h. com as mulheres em procissão cantando ladainhas. Assim, assistíamos a romaria da Santa nos fins de semana do mês de maio e naqueles dias durante a semana em que conseguíamos um

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Em dois dos cinco anos de etnografia da festa de São Pedro, acompanhei a organização

da festa e trabalhei voluntariamente na preparação do festejo durante a semana anterior a sua

realização. Não atuei sozinha. A equipe se dividia em "frentes de trabalho", tentando se

aproximar do método etnográfico proposto por Marcel Griaule, no qual vários pesquisadores

observam diferentes atividades de um mesmo evento no mesmo horário a fim coletar a maior

quantidade possível de informações. Desta forma, por exemplo, enquanto dois pesquisadores

estavam acompanhando e trabalhando junto com as mulheres na ornamentação do andor que

carregaria São Pedro durante a procissão por terra, outros dois estavam ajudando na

ornamentação dos barcos da procissão, enquanto um quinto elemento ficava na Associação de

Pescadores conversando sobre a festa e observando a movimentação dos bastidores.

Foi dessa forma que coletei as informações que alicerçaram meu trabalho monográfico de

conclusão de graduação em Ciências Sociais12. Ao término desta etapa, no entanto, fiquei com a

sensação de que poderia ter utilizado o material etnográfico de um modo diferente. Um

determinado acontecimento no campo foi suficiente para me fazer perceber que meu olhar estava

por demais influenciado por um dos grupos locais, e que era necessário levar em conta também

as outras perspectivas existentes sobre a festa de São Pedro.

Foi com esse propósito que ingressei no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e

Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá obtive o espaço e o tempo

necessários para tanto. Além disso, posso dizer que o rito acadêmico da “Qualificação” foi de

suma importância. Nela, os comentários dos Professores Marco Antônio da Silva Mello e Karina

Kuschnir, associados aos de minha orientadora, Prof. Elina Pessanha, foram de grande valia para

que eu pudesse repensar meu material etnográfico e assim, enfim, redigir a narrativa que se

segue.

Foi este o caminho percorrido até a elaboração desta dissertação. Agora, antes que o texto

recaia sobre a festa propriamente dita, creio ser necessário apresentar com maior quantidade de

detalhes o cenário onde se desenrolaram os acontecimentos que aqui serão abordados.

carro para ir e voltar do povoado, já que o horário do último ônibus que sai de Ponta Grossa para Campos é às 17h30. 11 No ano de 2006 nasceu meu filho, o que tornou escassas as idas à campo justamente no período que me vi livre das atividades discentes para realização da etnografia. Desse modo, não pude acompanhar os preparativos da Festa de São Pedro de 2007, tendo presenciado o evento apenas por 2 dias. 12 Nascimento: 2005.

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PARTE I

O LUGAR

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Ponta Grossa dos Fidalgos: O Lugar

Ponta Grossa dos Fidalgos está situada a 21°56’ Sul e 41°20’ Oeste, nas margens

setentrionais da Lagoa Feia, que é a maior lagoa de água doce do Brasil. O arraial é subdistrito

de Tócos, que por sua vez é o 17º distrito do município de Campos dos Goitacases, localizado na

região norte do Estado do Rio de Janeiro – Brasil.

Paralelamente às margens lacustres está disposta, a certa de 300 metros, a principal rua

do povoado, a João Cabral Neto. Esta, por sua vez, é cortada por ruas que levam aos locais onde

ficam atracadas as embarcações, os chamados portos. Ao todo são 9 noves situados, de leste para

oeste, na seguinte ordem: porto do Trator, de Normélia, da Beirada, do Chiquinho, do Macaco,

de Amaro Bagre, do Campo, de Balmineira, e dos Soares13.

Fonte: Google Earth – Janeiro de 2008

Localização de Ponta Grossa dos Fidalgos no Estado do Rio de Janeiro

13 Cf. Colaço: 2007.

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Fonte: Google Earth – Janeiro de 2008

Foto de Satélite do Povoado de Ponta Grossa dos Fidalgos – Altitude do ponto de visão: 1,27 km

O povoado é dividido em partes, nas quais se podem reconhecer rudimentos de bairros,

separadas por pequenos largos conhecidos respectivamente como as praças do Ingá e da Beirada.

Há quatro partes distintas - Ingá, Macaco, Beirada e Ponta – sendo que o Macaco é uma área de

interseção entre o Ingá e a Beirada. Segundo a percepção de alguns dos moradores mais velhos,

foi a partir do Ingá que o povoado se desenvolveu gradualmente, até chegar ao que hoje se

conhece por “Ponta”.

Esta informação confere com os dados etnográficos de Luiz de Castro Faria, que estivera

naquele povoado entre os anos de 1938 e 1941, pois em suas anotações deste período são

mencionados apenas o Ingá e a Beirada, não havendo qualquer menção sobre a Ponta. A área do

Macaco também não é mencionada, pois, agora de acordo com alguns entrevistados, esta área só

recebeu esta classificação em tempos recentes, em virtude do tipo de movimentação do lugar.

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Foto por Marcelo, morador de Ponta Grossa dos Fidalgos.

Vista da rua João Cabral Neto do alto da Caixa d’água. O prédio verde é a Escola Municipal Colônia de Pesca, em

frente está estacionada a ambulância do Posto de Saúde que se situa a seu lado.

O Macaco é sempre apontado como um local agitado e barulhento. Lá está localizada a

maior parte dos bares de Ponta Grossa. Diante desses estabelecimentos, é freqüente a presença

de carros tocando música em alto volume, isso quando a música não parte das caixas de som dos

próprios bares. Os moradores, sejam eles dali ou de outros “bairros”, apontam o Macaco como

uma área onde as brigas são constantes, mas não apenas entre os freqüentadores dos bares como

também entre os próprios vizinhos.

Ponta Grossa dos Fidalgos, além de 13 bares, conta ainda com 01 mini-mercado, 01 salão

de festas, 01 drogaria, 02 padarias, 02 lojas de roupas e miudezas, 01 oficina de bicicletas, 01

trailer que serve como lanchonete, além de uma lanchonete que funciona nos fins de semana, 01

clube recreativo (lugar com piscina, onde são realizados shows de forró e festas), 03 açougues e

05 armazéns, e também 01 posto de saúde, 02 escolas municipais (sendo uma para o pré-escolar

e outra da alfabetização até a 4ª série), 01 quadra de esportes e 01 campo de futebol.

De acordo com o levantamento feito por uma das estudantes, Cyntia dos Santos Jorge,

com base nas fichas de cadastro do Posto de Saúde do lugar, atualmente há em Ponta Grossa

cerca de 2000 pessoas que habitam em 650 casas. Destas pessoas, aproximadamente 400

trabalham diretamente na pesca, embora nem todas elas sejam cadastradas na Associação de

Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos (APAPGF) – capatazia da Colônia de Pesca

do Farol de São Tomé..

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A pesca artesanal representa a principal atividade econômica do lugar, encontrando ali

uma profundidade histórica mais que secular, tal como revelam as menções feitas por José

Alexandre Teixeira de Melo (1886), em fins do século XIX: “No lugar conhecido pelo nome de

Ponta-grossa dos fidalgos, nas margens desta lagoa, há uma povoação, de cerca de 400

habitantes, que vivem da pesca14”.

Nos dias de hoje, os habitantes de Ponta Grossa dos Fidalgos encontram ocupação em

outras atividades econômicas. Há pessoas que trabalham no núcleo urbano de Campos dos

Goitacases, atuando na construção civil, no comércio ou mesmo ocupando postos de trabalho

oferecidos na Prefeitura Municipal. Existem também aqueles que trabalham nas fazendas que

circundam o arraial e os que se empregam na Usina Paraíso, tanto temporariamente, abandonado

a pesca no período de moagem, ou de modo principal, atuando nela ao longo de todo o ano.

Os tipos de ocupação em Ponta Grossa dos Fidalgos não foram a única coisa a sofrer

transformações ao longo do século XX. A arquitetura das habitações é um dos principais

exemplos disso.

Se no final da primeira metade do século passado os escritos de Luiz de Castro Faria

descrevem a preponderância das casas de “pau-a-pique” recobertas por telhados de taboa15, e a

pequena presença de edificações de alvenaria, no século XXI isso já havia mudado bastante.

As casas de alvenaria foram ganhando mais e mais espaço no arraial, substituindo

paulatinamente as antigas habitações de pau-a-pique. Hoje estas não mais existem, mas uma

nova substituição dos padrões arquitetônicos parece estar em pleno andamento.

O modelo de habitação que substituiu as casas de pau-a-pique repete um certo padrão.

São casas cobertas por telhas de cerâmica, que não possuem laje e, em poucos casos, chegam a

se utilizar de estuque.

A primeira casa que alugamos e usamos como "base" de pesquisa situava-se no meio de

um terreno amplo com árvores frutíferas. A disposição dos cômodos segue o modelo utilizado

pela maioria das casas locais: dois quartos, o maior localizado na parte da frente da casa, o outro

virado para um corredor ou já uma sala; nos fundos a cozinha, entre esta e a sala, notamos

repetidas vezes a construção de um banheiro. No croqui abaixo, pode-se ter uma idéia da

disposição dos cômodos. Os traços verdes são janelas, os traços vermelhos são portas. Os quartos

e a cozinha não possuem portas, mas sim umbrais, espaços em geral da largura e altura de portas,

porém no lugar delas os moradores costumam usar cortinas improvisadas, em sua maioria

cortadas de lençóis antigos. No croqui da "Casa 1", que desenhei baseada na primeira casa em

14 Teixeira de Melo: 1886, p. 38. 15 Vegetação nativa.

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que ficamos no arraial, o risco cor de rosa que se vê em duas das quatro paredes do banheiro

representam paredes que não iam até o teto, deixando um vão entre o telhado e a parede.

Esboço da Planta do Interior das Habitações

Nos dias de hoje tem aumentado o uso de estuque ou mesmo de forro PVC (cuja

instalação é realizada por empresas de Campos dos Goitacases), o que diminui a entrada de

poeira e fuligem no interior das residências. Todavia, o que chama mais atenção é a construção

de casas com lajes e telhas de amianto, cujos tijolos são comprados fora do arraial, criando assim

um outro tipo de modelo arquitetônico.

Não apenas os tijolos e telhados mudam, mas também o uso de portas no interior das

residências. Se as antigas casas de alvenaria possuíam apenas cortinas separando os cômodos e a

única porta do interior doméstico era a do banheiro, nas novas casas isso não mais acontece, pois

os cômodos são quase sempre separados por portas.

Antes que o leitor comece a pensar que esta menção aos modos de habitação dos

pescadores não passa de uma digressão, gostaria de justificar-me argumentando que as casas em

Ponta Grossa dos Fidalgos representam algo mais que apenas um lugar onde se pode morar, elas

são símbolos de um modo de vida e constituem verdadeiros artefatos mnemônicos. Para perceber

isto, basta recordar as incessantes narrativas sobre a casa de Sêo Zé Lisboa.

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Foto: Luiz de Castro Faria – Entre 1939 e 1941.

Casas de pau-a-pique na Ponta Grossa dos Fidalgos de meados do século XX

Fotos: Thaís Nascimento – 2003 e 2004

À esquerda, Carlos Abraão e João Paulo em frente à casa que foi a 1ª base de pesquisa. À direita, a casa que serviu

como 3ª base.

Zé Lisboa era um antigo pescador que, quando iniciei minha pesquisa, já contava com

mais de 90 anos. Ele morava numa casinha que se destacava na paisagem, chamando a atenção

daqueles que andavam pelo arraial. Era uma casa bastante velha, cujas paredes pareciam se

equilibrar através do contato com o telhado, tão inclinadas que eram.

Por repetidas vezes ouvi diferentes pessoas contarem uma história na qual Arnaldo Viana,

ex-prefeito de Campos dos Goitacases, oferecia a Zé Lisboa a construção de uma nova casa de

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alvenaria no lugar da antiga, oferta que fora recusada pelo antigo pescador, que alegava que a

demolição de sua casa resultaria em sua própria morte.

A casa de Zé Lisboa era um modelo arquitetônico limiar, algo que não era nem uma casa

de pau-a-pique e nem mesmo uma de alvenaria, fora erguida, pelo próprio pescador, há quase 70,

nos moldes de uma casa de pau-a-pique. Com o passar dos anos, a casa recebeu algumas

reformas, como telhas de cerâmica e algumas paredes de tijolos. Tratava-se, pois, de uma casa de

taboa metamorfoseada em casa de alvenaria, mas de um modo híbrido, ou seja, não se

enquadrando, no final das contas, nem em um nem em outro modelo16.

Foto: Carlos Valpassos - 2002

Zé Lisboa e sua Casa

Nesse sentido, mais que uma mera habitação, a casa de Zé Lisboa era um símbolo:

“A Casa de Zé Lisboa é, pois, um símbolo da história do povoado e, mais que

isso, um símbolo de um modo de vida: o do pescador. A casa representa um

modus vivendi em sua forma pretérita. Não é o pescador contemporâneo que

é representado por ela, mas sim o pescador ‘antigo’, aquele que navegava

16 Cf. Valpassos: 2006.

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uma canoa sem motor, fazendo uso dos ventos da Lagoa e do remo para

impulsionar sua embarcação.

Desse modo, a Casa constitui para Zé Lisboa uma reafirmação de sua

condição de pescador antigo, detentor dos conhecimentos relativos à Lagoa e

à história do povoado, representando, portanto, um aspecto que reafirma e

realça seu elevado status no grupo17”.

A casa representava o elo entre o passado e o presente de Ponta Grossa dos Fidalgos. Era

a última remissão erguida que evocava de algum modo as antigas casas de pau-a-pique. Assim,

sempre que as pessoas narravam a recusa de Zé Lisboa em demolir sua velha casa por uma nova,

elas encerravam a história emitindo a opinião de que “ele agiu da maneira certa!18”.

Em dezembro de 2005, contudo, Zé Lisboa faleceu. Sua casa permaneceu erguida até

março de 2006, quando seus familiares “desmancharam-na”. Lembro que, ao comentar sobre

isso, uma pessoa chegou a dizer que tal ato “foi um pecado”.

A casa de Zé Lisboa é tão emblemática no imaginário coletivo pontagrossense que é

referência até para aqueles que não moram mais em Ponta Grossa dos Fidalgos e seus filhos.

Numa comunidade dedicada ao povoado no site de relacionamentos Orkut19, uma adolescente

carioca cuja a mãe nasceu e tem família em Ponta Grossa dos Fidalgos lançou um tópico na

comunidade poucos dias antes da demolição perguntando sobre Zé Lisboa e se a casa dele

continuava de pé.

Zé Lisboa e sua casa, enquanto símbolos concretos do antigo modo de vida do arraial,

serão importantes para pensar algumas idéias nativas acerca da festa de São Pedro. Assim

também será importante saber como era a vida nesse passado do qual o pescador e sua casinha

velha representavam. Para compreender as comparações feitas pelos pontagrossenses é

necessário traçar um primeiro cenário onde se dava a “festa antiga”, categoria continuamente

invocada como argumento nos conflitos existentes em relação à “festa atual”. Assim, antes de

narrar as festas que ali presenciei, empreendamos uma verdadeira viagem através do tempo rumo

à Ponta Grossa dos Fidalgos de meados do século XX através de narrativas mnêmicas.

17 Valpassos: 2006, 34. 18 Valpassos (2006, 33) diz que: “Fotografando as ruas e pessoas do arraial, me detive, certa vez, em frente à casa antiga, para registrar sua imagem. No mesmo instante, um pescador que passava pelo local me disse que aquilo sim era importante de ser registrado, pois fazia parte da história de Ponta Grossa dos Fidalgos”. 19 http://www.orkut.com – comunidade ‘Ponta Grossa dos Fidalgos’ – endereço da comunidade: http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=7480960

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O “Tempo dos Antigos”

O chamado “tempo dos antigos” poderia ser ilustrado pelos anos entre 1939 e 1941,

período durante o qual o professor Luiz de Castro Faria fez alguns registros etnográficos do

arraial. Com base nos relatos nativos e nas notas etnográficas do período, podemos fazer uma

breve incursão a este passado.

Luiz de Castro Faria estimou em aproximadamente 1000 (mil) os moradores do

assentamento pesqueiro. Nesta época, a população masculina adulta de Ponta Grossa dedicava-se

quase exclusivamente à pesca, atividade que se desenvolvia sem interrupções ao longo de todo o

ano. Havia, então, cerca de duzentos pescadores registrados na Colônia de Pesca Z-22. Cento e

doze crianças freqüentavam a escola mantida por este órgão. Castro Faria afirma que embora o

número de crianças que freqüentavam a escola fosse bastante elevado, estava longe de

representar a totalidade da população infantil local, pois muitas dessas crianças estavam, desde

cedo, empregadas em atividades auxiliares da vida econômica familiar.

Foto: Luiz de Castro Faria

Crianças conduzindo carros com e sem caprinos para transportar água da Lagoa (ao fundo) para casa.

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As mulheres não participavam, nem mesmo indiretamente, dos afazeres da pesca.

Dedicavam-se, em geral, aos afazeres domésticos, e na época da moagem empregavam-se como

cortadoras de cana nas fazendas próximas, sob o regime de diária. Embora houvesse homens

lavradores também, esta atividade complementar, realizada periódica e regularmente nos meses

de junho a novembro não modifica de maneira apreciável o quadro da economia local.

Em algumas casas, praticava-se a pequena agricultura e/ou uma pequena jardinagem para

cultivo de certas plantas medicinais. Também se mantinha a pequena criação doméstica para o

provimento da carne bovina e suína, consumida no povoado ou eventualmente comercializada. É

preciso ressaltar, todavia, que sua produção não se destinava essencialmente nem ao consumo

próprio nem ao comércio, embora eventualmente assim fossem utilizados, pois o alimento

favorito era o peixe.

Esta criação, portanto, era utilizada como animais de tração. Os bovinos e eqüinos

levavam o produto da pesca para a sede do Município, e os caprinos, sobretudo, eram usados no

transporte de água da Lagoa para as residências, visto que não havia água encanada na povoação.

Essa tarefa era confiada às crianças de ambos os sexos, que conduziam pequenos carros que

tanto podiam ser puxados por um caprino como pelos próprios garotos; ou quando não possuíam

carro, transportavam a água à cabeça, em latas de querosene. Em casa, a água era armazenada em

grandes tonéis.

Como já mencionado, o alimento mais apreciado era o pescado da Lagoa Feia.

Pescavam-se bagres, robalos, tainhas e traíras em abundância. Parte desse pescado era

consumida pelos próprios pescadores e suas famílias, outra era vendida no Mercado Municipal

de Campos.

A comunicação entre Campos dos Goitacases, sede do município do qual Ponta Grossa

dos Fidalgos era o 3º distrito20, e o referido arraial efetuava-se através de uma longa e sinuosa

estrada de chão, chamada Estrada de Tocos. Durante o verão, período de intensas chuvas,

tornava-se quase impossível empreender a viagem para o transporte do pescado da Lagoa Feia

para Campos devido aos atoleiros. Os pescadores, então, durante as horas mais frescas da

madrugada, transportavam os peixes acondicionados em balaios de cipó entre folhas verdes de

bananeira, no lombo de cavalos de carga ou mesmo a pé.

O povoado estava dividido em três partes: Ingá, Beira e Ponta. O arraial era uma única

estrada que, procurando terreno firme, avançava sinuosamente até o ponto mais denso do

20 Cf. Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.

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30

tabual21. Essa estrada, a futura Rua João Cabral Neto, dividia-se formalmente em duas partes: a

primeira delas seguia da estrada de Tocos até a extremidade oeste chamando-se Estrada do Ingá;

enquanto a metade oposta era conhecida como Estrada da Beirada.

A maior concentração e uniformidade dos tipos de construção, além das principais casas

de comércio, estavam localizadas na faixa limítrofe entre a Beirada e a Ponta, no início do

caminho que levava à Capela de Nossa Senhora da Conceição, única Igreja do lugar.

Foto: Luiz de Castro Faria

Construção de barro e taipa com telhados de tabúa em Ponta Grossa dos Fidalgos na década de 40.

A aldeia tinha cerca de cento e vinte casas distribuídas irregular e espaçadamente ao

longo da rua principal. As casas, em geral de taipa, lascas de coqueiro e barro, cobertura de

palhas de tabua e piso de terra batida, vinham sendo lentamente substituídas por habitações feitas

de tijolos fabricados no próprio local, cobertas de telhas e com paredes rebocadas e quase sempre

caiadas em branco e azul. Estas casas de alvenaria eram casas de comércio ou moradias das

poucas pessoas que não desempenhavam funções necessariamente ligadas à pesca.

A construção dessas residências de barro e taipa era ritualizada. Os construtores, em geral

os próprios moradores da casa, cantavam e dançavam ritmados pelo bater de palmas e dos pés

21 Tabual é um extenso aglomerado de tabuas, erva que vegeta em brejos e margens de rios, cujo nome científico é Typha dominguensis, e que pode receber também as designações de albardim, bunho, espadana, landim, morrião-dos-fogueteiros, paineira-do-brejo, partasana, pau-de-lagoa e tabua-larga. Cf. CASTRO FARIA, 1941; Houaiss: 2001.

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para fazer o chão de terra batida da casa. Para cobrir a armação de tabua, coqueiro e bambu das

paredes, dois indivíduos, um por dentro da casa e outro pelo lado de fora, arremessavam o barro

úmido no mesmo lugar, ao mesmo tempo, um contra o outro, de maneira que o barro jogado de

dentro e de fora se juntasse com o impacto e grudasse na armação das paredes da casa. O rito da

construção das casas de barro me foi relatado por alguns moradores de modo bastante saudoso e

romântico.

As casas estavam geralmente com suas frentes voltadas para a estrada e, na estação seca,

a distância que as afastava da borda da Lagoa era superior a duzentos metros. Na época das

cheias, entretanto, as águas vinham banhar os cercados das casas mais próximas.

Devido à ausência de energia elétrica - que só chegaria no povoado em 1961 -, as carnes

bovina e suína eram conservadas em grandes recipientes de banha de porco e a iluminação era

feita através de lampiões de querosene. A comida era cozida em panelas de ferro no fogão à

lenha, este localizado fora de casa, numa “construção acessória, geralmente erguida em época

posterior e independente do corpo principal, destinada à função de cozinha”.22

Algumas moradoras de Ponta Grossa me contaram com um sorriso romântico nos lábios

que, na falta de água encanada, roupas e panelas eram lavadas na margem da Lagoa, onde as

mulheres competiam entre si para ver quem deixava as panelas brilhando mais; criando,

recriando e fortalecendo suas redes de sociabilidade.

Como costuma acontecer nas populações rurais, a família apresenta uma prole numerosa

e com diferenças mínimas de idade entre seus membros, quase que em intervalo estritamente

biológico. A população de Ponta Grossa dos Fidalgos se envaidecia do número elevado de filhos,

embora a regra geral fosse a redução do número total de nascimentos a cerca da metade, devido

ao alto índice de mortalidade na primeira infância. Castro Faria, no entanto, afirma que

usualmente citava-se o número total de nascidos, e não o correspondente aos filhos vivos, dado

que só se obtinha mediante solicitação explícita.

Assinala finalmente a longevidade da população pontagrossense, fato que ainda nos dias

atuais se verifica, sendo apresentado pelo grupo como prova da superioridade do seu lugar e

estilo de vida.

Outro motivo de orgulho para os habitantes de Ponta Grossa dos Fidalgos era a própria

Lagoa Feia, que além de sustento, proporcionava lazer. Em suas límpidas águas margeadas a

leste e ao sul por uma faixa de areia branca, era possível banhar-se logo nas primeiras horas da

manhã.

22 Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.

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Por tudo de bom que a Lagoa Feia lhes proporcionava, sob o manto azul da Senhora das

águas, Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do local, muitos eram os devotos de São Pedro,

Santo protetor dos pescadores. Um padre da paróquia de São Gonçalo, localizada no povoado

vizinho de Goitacases, “oficia[va] nos dias de festa e presta assistência religiosa aos que

solicitam a sua presença. A maioria da população é católica; uma pequena parte é

protestante”.23

Foto: Luiz de Castro Faria.

Ponta Grossa dos Fidalgos e as margens da Lagoa Feia dos anos 40.

No mês de junho, os pescadores arrecadavam dinheiro com a população católica do

povoado para uma festa dedicada a São Pedro, realizada sempre, rigorosamente, no dia 29 de

junho. Nessas festas, cujo festeiro era o pescador Manoel Clarindo, o dinheiro era arrecadado

somente com os pescadores católicos. Este pescador era considerado por seus conterrâneos como

“um homem de respeito”. A festa durava geralmente dois dias. Os fiéis cantavam o hino de São

Pedro em frente ao prédio da Colônia de Pesca, onde acontecia a Missa. Esta, no entanto, não era

celebrada sempre, pois poderia ocorrer, em alguns anos, de o Padre não poder ir ao povoado no

período festivo, porque, como já dissemos, o acesso a Ponta Grossa era difícil e se tornava quase

23 Idem. Não há, contudo, igreja protestante no arraial.

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impossível em períodos de chuvas. Neste caso havia canto de ladainhas para São Pedro.

Havendo Missa, costumava haver também batizados.

Havia uma imagem de São Pedro no povoado, que ficava no prédio da Colônia de Pesca.

Tratava-se de um quadro com o desenho do Santo. Esta imagem era conduzida em procissão – e

ainda nos dias de hoje é levado em procissão pelas águas da Lagoa durante o festejo de São

Pedro.

A procissão percorria a rua que margeava a Lagoa, onde também aconteciam gincanas:

corridas de saco e com um ovo sobre uma colher, para as crianças; corridas de cavalo e de

bicicleta, para os adultos. Quadrilhas eram dançadas, e bandeiras e balões de São João

pendurados, homenageando o outro Santo de junho.

Na última noite da festa aconteciam bailes simultâneos com música orquestrada, em

diferentes pontos do povoado. Eram três ou quatro bailes ao mesmo tempo, sendo todos eles

muito concorridos. Os lugares onde costumavam acontecer esses bailes eram o prédio da Colônia

de Pescadores, o Salão de Festas - que foi, na década de 1960, convertido em cinema, e que nós

encontraríamos, em 2002, reconvertido ao seu antigo papel, - e a “Casa do Governo”, uma das

primeiras construções de tijolo e telha do povoado, cuja destinação original, entretanto,

permanece desconhecida para nós.

Os católicos com mais de 70 anos de hoje contam que nos bailes da antiga festa de São

Pedro só se podia entrar muito bem vestido. Jamais um homem poderia entrar num baile trajando

bermuda ou sem camisa. Sêo Chico Bento, um senhor septuagenário, relatou que certa vez,

vindo de Coqueiro de Tocos, onde ele morava, foi impedido de entrar no baile da Colônia de

Pesca, porque, mesmo trajando calça e camisa social de manga comprida, esquecera a gravata.

Um dos homens que na ocasião trabalhava como segurança na porta do baile, compadecido pela

expressão desiludida do rapaz, foi até sua casa, ali mesmo em Ponta Grossa, e buscou uma

gravata para emprestar a Chico Bento para que assim ele pudesse entrar no baile.

A festa de São Pedro, organizada pelos próprios pescadores, era narrada como uma

homenagem ao Santo que inspira suas vidas, que entende o viver do pescador e suas

dificuldades. É uma festa voltada para dentro do povoado, um momento no qual os pescadores

testemunham sua devoção ao Santo e exercem sua fé.

A festa atual tem uma característica nova, a de ser uma festa que deseja atrair muitas

pessoas ao povoado. Eis o momento de descrever as festas testemunhadas pela equipe de

etnógrafos no povoado entre os anos de 2002 e 2006.

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PARTE II

A TRADICIONAL FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS

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As Festas de São Pedro

2002

Conta-se que em 200124 a então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de

Ponta Grossa dos Fidalgos (APAPGF), Virgimar Magalhães de Oliveira Clér, propôs à Marinês,

zeladora da Capela local, a realização de uma festa em louvor a São Pedro. Fora também em

2001 que Virgimar, recém-chegada ao povoado, fundou e se elegeu presidente da Associação de

Pescadores. O processo de eleição nunca é narrado com clareza pelos membros da comunidade.

O que se diz é que a escolhida era também a única candidata. Em sua monografia, Lorena de

Oliveira e Alves escreve sobre Virgimar:

Ora, é no mínimo curioso que uma mulher (já que a atividade pesqueira na região é

predominantemente masculina) ocupe um cargo de chefia de tamanha influência,

levando em conta o fato de ela não ser pescadora e mais, que ela tenha sido a única

candidata a pleitear o cargo. É importante ainda observar que Virgimar não é natural

do povoado, caráter de distinção muito prezado pelos moradores, que sempre

classificam os não nascidos no povoado como “os de fora”, ainda que estes lá residam

já por muitos anos.25

Em Ponta Grossa dos Fidalgos o território é percebido como um ser com “personalidade

política própria”, parafraseando Christine Chaves em seu trabalho sobre Buritis, e ser nascido

naquela terra é percebido como uma insígnia de confiabilidade, dedicação e amor ao povoado.26

Assim, Virgimar era sempre apontada como uma pessoa ‘de fora’, que não tem o mesmo amor e

dedicação a Ponta Grossa dos Fidalgos do que alguém que fosse ‘filho de Ponta Grossa’.

Virgimar justificava seu interesse em fundar e sua qualificação para gerir a Associação de

Pescadores27 dizendo que era filha de pescador e que fizera diversos cursos sobre educação

24 Minha inserção efetiva no grupo de pesquisa foi em outubro de 2002, como dito anteriormente, portanto, entre as festas que aqui relato, a de 2002 foi aquela que não testemunhei. O que aqui descrevo são narrativas dos moradores do povoado e da etnografia realizada pelos primeiros integrantes do grupo de pesquisa, bem como alguns registros audiovisuais a que tive acesso – imagens de vídeo e fotografias da festa. 25 Oliveira e Alves: 2007, p. 25. 26 Cf. Chaves, 1996. 27 Antes da Associação de Pescadores, Ponta Grossa dos Fidalgos tivera uma Colônia de Pesca, a Z-22. Após a desativação desta há algumas décadas por motivos que desconhecemos e num período do qual não se tem o registro exato, os pescadores precisavam ir até Farol de São Thomé, distrito litorâneo de Campos dos Goytacazes , a 54 quilômetros da sede do município, para se cadastrarem na Colônia Z-19. O papel da Associação de Pescadores é, principalmente, o de mediar os trâmites burocráticos dos pescadores locais com a Colônia Z-19, à qual a Associação é subordinada. Para mais informações a respeito da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos, ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves, disponível na Biblioteca do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense.

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ambiental e pesca. Os pescadores, quando perguntados a respeito, respondem quase sempre a

mesma coisa: que ela chegara ao povoado com o vereador Russo Peixeiro para fundar a

Associação de Pescadores, ou seja, Virgimar assumiu a liderança dos pescadores porque

apoiava-se em redes pessoais que a legitimavam como alguém capaz de exercer tão função.

Mesmo sendo uma mulher numa posição de liderança num órgão relacionado a uma atividade

tradicionalmente masculina, ela possuía outras características que são esperadas de um líder e era

considerada uma presidente “eficiente”.28

Virgimar, Marinês e outras mulheres freqüentadoras da Igreja local organizaram uma

pequena comemoração que contou com a ajuda de Russo Peixeiro. Este doou à Capela local uma

imagem da Santa Padroeira do lugar, Nossa Senhora da Conceição, e duas imagens de São

Pedro: a maior representando o jovem Pedro, e a menor mostrava o Santo Pescador grisalho.

Enquanto as duas primeiras imagens foram alocadas na Capela local, esta última foi mantida na

casa de Virgimar.

A Capela pontagrossense possuía uma pequena imagem com aspecto de “coisa antiga” de

Nossa Senhora da Imaculada Conceição, mas nenhuma imagem esculpida do Santo Patrono dos

pescadores, exceto por um quadro com a gravura do primeiro Papa da Igreja Católica que já

contava mais de meio século.

Assim, em 2002 o vereador assumiu o patrocínio da festa, e junto com seu filho Pedro

Nísio, localmente conhecido como Pedrinho, então chefe do gabinete do Prefeito Arnaldo França

Vianna, efetuou os encaminhamentos burocráticos necessários à realização da festa através de

pedidos de recursos à Prefeitura da cidade e à Guarda Civil Municipal. Solicitou o trio elétrico,

equipamento de som, iluminação, banheiros químicos, segurança, contratação de artistas para

shows e contratação e transporte da banda marcial da Guarda para toque da alvorada e das

músicas durante a procissão.

Virgimar e as mulheres da Igreja29 ficaram responsáveis pela organização religiosa do

evento: combinar com e pagar ao Padre da Paróquia responsável pela Capela local a realização

da Missa durante a festa, organizar as procissões, combinar quem paraninfaria a Missa e quem

ficaria na barraquinha montada pela Igreja, comprar as coisas que seriam vendidas na barraca e

as flores para arrumar o andor, ornamentar o andor antes da procissão, entre outras tarefas.

28 Cf. Oliveira e Alves: 2007. 29 Quando digo “grupo católico” ou “mulheres da Igreja”, refiro-me às frequentadoras habituais da Capela de Nossa Senhora da Conceição, isto é, às fiéis assíduas, que são um grupo de cerca de 15 a 20 pessoas, em sua maioria, mulheres casadas com mais de 35 anos.

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Na tarde da sexta-feira, 28 de junho de 2002, véspera do dia do Santo, os preparativos

encontravam-se em andamento e a festa era o assunto mais comentado pelas pessoas, ainda que

não fossem religiosas ou estivessem diretamente envolvidas com o festejo.

A maior parte dos eventos da festa ocorreu no Porto da Beirada, onde estavam um trio

elétrico e cerca de dez barracas improvisadas de lona e bambu vendendo comidas e bebidas. A

barraca de Nossa Senhora da Conceição, idealizada por Marinês e organizada juntamente com

outras pessoas do grupo católico, vendeu, além das comidas e refrigerantes, crucifixos, pequenas

imagens de Nossa Senhora da Conceição e buttons e ímãs da Santa e de São Pedro.

Foto: José Colaço

Barraquinhas no Porto da Beirada e barcos enfeitados para a procissão da festa de São Pedro de 2002.

A festa iniciou-se na noite de sexta-feira, quando um grupo de oração da Igreja de Nossa

Senhora da Conceição de Caxias de Tocos, que também tem a Santa como padroeira, coordenou

e realizou o canto de ladainhas, dirigiu orações a Deus e Nossa Senhora e contou a história de

São Pedro.30

30 São Pedro foi um pescador na Galiléia que se tornou discípulo de Jesus quando este o convidou a aprender a “pescar gente”. Negou Jesus três vezes quando este foi preso e levado para crucificação, depois arrependeu-se e saiu pregando as palavras de seu mestre até ser também preso e crucificado. Por não se sentir digno de morrer como Jesus, pediu para ser crucificado de ponta-cabeça.

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Ao término do canto das ladainhas31, houve um show de forró no trio elétrico, o que foi

bastante esperado e que contou com a presença de pessoas de outras localidades, como

Coqueiros e Caxias de Tócos.

No sábado, dia 29 de junho de 2002, dia do Santo, aconteceu um evento conhecido como

“alvorada”. Nas primeiras horas do dia, a banda da Guarda Civil Municipal de Campos

percorreu a rua João Cabral Neto realizando uma evolução pelo povoado, desde o Ingá até a

Ponta. Após percorrer toda a rua principal, deteve-se por instantes em frente à casa de

“Pedrinho”,32 filho de Russo. Só então seguiu para o Porto da Beirada, onde se deu a Celebração

da Palavra e rezou-se o “Pai Nosso” em homenagem aos pescadores e à Lagoa Feia.

Agradecimentos foram feitos a Pedrinho e Virgimar, os festeiros; a Marinês; e ao vereador

Russo Peixeiro, que permaneceu ao lado direito do Sacerdote durante toda a Celebração. A

seguir, apresentou-se o Coral Infantil da Igreja de Caxias de Tócos.

À tarde uma procissão de oito barcos levou as duas imagens de São Pedro do Porto da

Beirada ao Porto Antônio Soares, o último do lado do Ingá, de onde retornou, em procissão por

terra ao porto de onde partiu.

Durante a procissão de barcos preces foram feitas, ladainhas entoadas, e hinos religiosos

cantados, além do que os moradores chamam de “hino a São Pedro”, que na verdade se trata de

um hino patriótico. Mais tarde encontramos a letra deste hino, no Manual do Patrão de Pesca

como “Hino do Pescador Brasileiro”33. Eis sua letra:

Pescador, larga as velas ao vento

Rumo ao mar com destreza e valor

Em teu barco do salso elemento

O domínio tu tens, pescador.

Pouco importa se a brisa refresca

Ou se rugem procela e tufão

Sê herói em teu barco de pesca,

31 O dicionário eletrônico Houaiss define ladainhas como “prece litúrgica estruturada na forma de curtas invocações a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem, aos santos, recitadas pelo celebrante, que se alternam com as respostas da congregação (fiéis e/ou religiosos)”. HOUAISS, 2001. 32 Pedro foi chamado de “festeiro” da festa de 2002. É casado com uma das vocalistas do Ministério de Louvor “Sagrada Família”, que sempre toca em Ponta Grossa dos Fidalgos em dias festivos. 33 O livro que traz a letra e a pauta musical do hino, informa ainda que ele foi escrito por Bastos Tigre e sua melodia, composta por Eduardo Souto. O hino foi premiado com o primeiro lugar no concurso promovido pelo Comandante Frederico Villar, organizador do livro Manual do Patrão de Pesca, e demais oficiais do Cruzador “José Bonifácio”, em 1922 no Rio de Janeiro.

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Com valor conquistando teu pão.

Quer o mar seja um manto trevoso

Ou esplendor em puríssimo azul

Leva à Pátria o pendão majestoso

Do Amazonas aos mares do sul.

Não esqueças que é tua esta terra

Como é tua esta faixa de mar

Defendendo-a na paz e na guerra,

Pescador, tu defendes teu lar.

O hino tem um ar patriótico, de exaltação ao pescador. Faz referências à Pátria, o Brasil,

e à bandeira nacional (“o pendão majestoso”), e também ao lugar onde o pescador vive e pesca,

área sobre a qual tem domínio e responsabilidade reconhecida.

Antes da saída dos barcos em procissão, a insígnia de São Pedro, uma chave de papel foi

elevada aos céus, içada por balões de gás. No retorno ao Porto da Beirada, quando já era noite,

dezenas de pessoas, segurando velas e rezando, acompanharam a imagem do Santo em

procissão.

À noite, foram realizados novos shows no trio elétrico, sendo o número de pessoas

presentes maior que o da noite anterior.

No domingo as barraquinhas continuaram funcionando e as pessoas, em considerável

parcela, permaneceram no Porto da Beirada, embora o trio elétrico já se tivesse retirado. Este dia

coincidiu com a final da Copa do Mundo de 2002, ocasião em que a seleção brasileira

conquistou o pentacampeonato mundial de futebol. A Prefeitura precisou mandar aquele trio

elétrico a outro lugar para animar a festa de comemoração do penta-campeonato da Seleção

Brasileira de Futebol.

Nesse mesmo dia, pela manhã, um grupo de cavaleiros desfilou pelo povoado, saindo do

Porto da Beirada, percorrendo a rua João Cabral Neto do Ingá à Ponta, e retornando ao Porto,

onde se desfez. Esse evento, que é chamado de “cavalgada”, foi o único relativo aos festejos de

São Pedro, neste dia em que as pessoas se dedicaram às comemorações da vitória da seleção

canarinho.

Durante todo o mês de junho acontecera a “peregrinação de São Pedro” pelo povoado, i.

e., a visita da imagem do Santo às casas dos pescadores que aceitaram recebê-la. A visita ocorreu

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nos mesmos moldes da peregrinação de Nossa Senhora da Conceição realizada em Ponta Grossa

dos Fidalgos em maio, “mês de Maria”, durante o qual a imagem da Santa sai de uma casa para a

outra,34 em procissão. Nas casas que a recebem, cantam-se ladainhas e realizam-se orações toda

noite, antes da saída da imagem para a casa seguinte. A visita de São Pedro às casas dos

pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ocorreu apenas em 2002.35

Russo Peixeiro discursou na abertura dos shows de sexta e sábado, e seguiu no mesmo

barco que conduzia a imagem de São Pedro durante a procissão por água. Na procissão por terra,

foi uma das pessoas que carregou o andor do Santo, e, durante as Missas, esteve sempre ao lado

do Padre. No dia do Santo Pescador, neste ano de 2002, após a apresentação do Coral Infantil, o

vereador discursou revelando que seu filho Pedro nascera com sérios problemas de saúde no dia

de São Pedro. Sendo devoto do Santo, Russo deu ao filho o nome de Pedro, e fez uma promessa

de patrocinar uma festa de São Pedro durante alguns anos caso seu filho se curasse. Russo

assinalou que aquela era a oportunidade do cumprimento de uma promessa do devoto ao Santo

que curara seu filho.

Russo também se comprometeu com o povo construir de uma Capela ou Gruta para São

Pedro no Porto da Beirada, onde é realizada a festa do Santo. Assim, uma imagem de São Pedro

ficaria na Igreja e a outra na Gruta que ele pretendia construir, o que não foi possível porque a

obra do porto foi embargada pelo IBAMA, que acreditava que o a construção do porto alterava a

Lagoa, pois um aterro de uma pequena parte era necessário.

2003

A festa de 2003 seguiu os moldes da anterior. Registrou, no entanto, um acréscimo

quantitativo nos eventos. Em 2003 houve apresentação de quadrilhas de São João contratadas

para animar as comemorações, além de shows com bandas de forró durante os três dias da festa.

Houve ainda a corrida esportiva, o passeio de trenzinho para as crianças, e um show com um

grupo de animadores infantis - Show Riso -, bem como apresentação de bandas musicais

católicas, a cargo dos Ministérios de Louvor36 “Adorar-te”, no sábado; e da “Sagrada Família”,

no domingo.

Desta vez, a Alvorada, que ocorreu no domingo, ficou a cargo de uma banda de Tócos e a

Cavalgada, ao contrário de 2002, contou com os cavaleiros desfilando uniformizados. As

34 Sobre os ritos relativos a Nossa Senhora da Conceição em Ponta Grossa dos Fidalgos, ver AZEVEDO, Bonnie. Nossa Senhora da Conceição: religião, ritual e simbolismo em Ponta Grossa dos Fidalgos. 2006. 35 As casas visitadas são sempre das pessoas que se inscrevem previamente para receber a visita da Santa ou do Santo. Sempre inscritas nestas visitas estão as mulheres que freqüentam a Igreja e a família de sêo Antonio Soares, um senhor que em 2002 contava 108 anos de idade e que faleceu em 2006, aos 112 anos. 36 Um Ministério de Louvor é um grupo musical que canta “louvores”, músicas religiosas católicas.

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camisas usadas por eles mostravam o desenho da imagem de São Pedro, na parte da frente, com

os dizeres: “3ª Festa de São Pedro de Ponta Grossa dos Fidalgos”. Após a Cavalgada, a banda de

Tócos tocou “Parabéns pra você” no Porto da Beirada. Os participantes da Cavalgada

concentraram-se na entrada de Caxias de Tócos, numa curva da estrada, de onde saíram rumo a

Ponta Grossa dos Fidalgos, ao Porto da Beirada, precedidos por um carro de som que transmitia

uma canção de Roberto Carlos37 em louvor a Nossa Senhora. O locutor Sandro Lima,38 que de

2003 a 2006 esteve presente na festa divulgando-a, saudou os cavaleiros, anunciando uma única

vez o quadro com a imagem de São Pedro, que precedia o cortejo, numa charrete puxada por

dois cavalos. Em seguida saudou o vereador Russo Peixeiro, que participava da cavalgada,

agradecendo-lhe pela festa, que elogiou exaustivamente. Foi então que Russo retirou o chapéu e

o levou ao peito, em sinal público de sua devoção ao Santo, gesto imediatamente repetido pelos

demais cavaleiros, sem que nenhuma palavra de ordem fosse pronunciada neste sentido.

Em dado momento, o apresentador, talvez para situar os visitantes de Ponta Grossa dos

Fidalgos, foi além de suas declarações costumeiras, afirmando que aquela era “a Terceira Festa

de São Pedro em louvor a Russo Peixeiro”.

Desta vez a Missa Campal contou com a presença do Bispo da Diocese de Campos, Dom

Roberto Guimarães, e foi paraninfada pelo Grupo de Oração da Capela de Nossa Senhora da

Conceição de Ponta Grossa dos Fidalgos. O rito foi celebrado no palco montado no Porto da

Beirada, que ostentava uma faixa onde se lia: A população de Ponta Grossa dos Fidalgos

agradece ao vereador Russo Peixeiro, ao Prefeito Arnaldo Vianna e à Prefeitura de Campos.

Certa ocasião, Marinês falou sobre a necessidade de conversar com Russo sobre o

“problema da bebedeira” no dia principal da festa. Durante a cavalgada o vereador distribuía

cerveja aos cavaleiros, fato ao qual se atribuíram os conflitos ocorridos próximo às pessoas que

assistiam à Missa celebrada pelo Bispo. Foi Durval Tavares Rocha,39 o festeiro daquele ano, que,

com a ajuda de algumas pessoas, conseguiu apartar a briga antes que esta atrapalhasse a

celebração. Marinês apontou como solução para este problema a realização da cavalgada em dia

diferente da Missa, ou a mudança do horário desta para as oito da manhã, antes da cavalgada,

evitando, dessa forma, a presença de “pessoas embriagadas para atrapalhar a Missa”.

Em 2003 as barracas eram de madeira40 e tinham sido doadas aos moradores pela

Prefeitura de Campos. Neste ano, a barraquinha de Nossa Senhora da Conceição não foi

37 Tratava-se da canção “Nossa Senhora”, composição de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. 38 Locutor oficial da Prefeitura de Campos para eventos no interior do município. 39 Durval é um pescador, habitante de Ponta Grossa, que também trabalha na Prefeitura. 40 No ano anterior, as barracas eram de ripas de madeira e lona de plástico improvisadas pelos moradores. Em 2003, as barracas eram feitas do mesmo material, porém possuíam melhor acabamento e padronização de tamanho.

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montada, pois, segundo Marinês, “não compensou o trabalho que deu”, ou seja, não houve lucro,

o que ela explica argumentando que ali não se tinham vendido bebidas alcoólicas, e a maioria

das pessoas queria beber cerveja ou cachaça. A Santa Padroeira do povoado, todavia, foi

representada durante a procissão pelas águas, quando Sua imagem seguiu num barco ao lado do

que levava a imagem de São Pedro. Esta procissão, por sua vez, contou com um número de

barcos ligeiramente superior ao do ano precedente, pois, além dos barcos do povoado, recebeu os

das pessoas de fora do arraial que tinham vindo participar da festa.41

Observando as festas de 2002 e 2003, foi possível notar uma ampliação considerável das

comemorações. Em 2003, as festividades de São Pedro, além de contar com maior variedade de

eventos, foram também mais divulgadas, o que, por sua vez, colaborou para atrair mais gente ao

arraial.

A divulgação se deu através de cartazes pendurados desde a rodoviária de Campos,

passando pelos povoados vizinhos, até Ponta Grossa dos Fidalgos, além do interior dos ônibus da

Viação Siqueira, empresa responsável pelas linhas que ligam Campos dos Goitacases ao

povoado e redondezas. Também houve anúncio nas rádios campistas e em alguns jornais locais

que fizeram reportagens durante a festa.

Ao microfone o locutor anunciava que os festeiros deste ano eram Pedrinho e Durval,

embora no cartaz estivesse apenas o nome de Durval. A cavalgada contou com a organização de

festeiros próprios, Daniel e José Hipólito, pequenos proprietários de terras no povoado,

associados aos festeiros principais. Virgimar, depois de um desentendimento com Russo, foi

deixada de fora.42 Os eventos religiosos permaneceram sendo organizados pelo grupo de oração

local.

Um fato importante para o catolicismo local aconteceu no final de 2003. A chave da

Capela local ficava com Marinês que, junto com algumas de suas mais assíduas freqüentadoras,

limpava a “Casa da Santa”43 e arrecadava dinheiro, para possíveis obras no prédio e outros

gastos necessários, através de rifas de bolos ou trabalhos manuais feitos e doados por uma dessas

mulheres. Uma vez por mês o Padre Jorge vinha ao povoado celebrar a Missa, e uma vez por

semana o ministro extraordinário da santa Comunhão44, sêo Paulinho, de Caxias de Tocos, vinha

ao povoado realizar a Celebração da Palavra.

41 Infelizmente, não tenho os dados exatos de quantos barcos participaram da procissão por água. 42 Desconheço a natureza do desentendimento. As pessoas disseram apenas que eles brigaram “por causa de política”. 43 “Casa da Santa” é a forma como as devotas se referem à Capela de Nossa Senhora da Conceição. 44 Um Ministro pode segurar a hóstia consagrada e celebrar a comunhão, coisas que pessoas comuns não podem fazer, permitidas somente aos ministros extraordinários da santa Comunhão, Padres ou às pessoas em escala hierárquica eclesiástica superior. Durante muitos anos a função foi chamada pelos católicos de “ministro da

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Padre Jorge havia convidado Sidney, morador de Caxias de Tócos, a assistir ao curso

para tornar-se ministro extraordinário da santa Comunhão, e este aceitou. Quando finalmente

recebeu o título referente à função, em outubro de 2003, Sidney solicitou autorização para atuar

na Igreja de Ponta Grossa. Esta dependia da disponibilidade do ministro de Caxias de Tócos para

que houvesse a celebração da Palavra. Como tal, criou o Conselho Capelar para cuidar dos

interesses da Igreja local, reorganizou o Grupo de Oração Nossa Senhora da Conceição - que

canta os hinos católicos durante as Celebrações do calendário eucarístico do povoado - e realizou

as Celebrações da Palavra durante a festa de Nossa Senhora da Conceição de 2003.

2004

Na sexta-feira, dia 25 de junho de 2004, às 20:00, minhas companheiras de pesquisa45 e

eu estávamos no Porto da Beirada para assistir à abertura oficial da “4ª Festa de São Pedro”,

conforme anunciava uma faixa pendurada na praça do Ingá. Havia um palco da Prefeitura de

Campos dos Goitacases montado no local, um estande da Secretaria de Meio Ambiente, dez

barraquinhas e muitas bandeirinhas de São João. A presença da Secretaria de Meio Ambiente na

festa do povoado pesqueiro pode ser interpretada como uma forma de Russo Peixeiro dizer aos

habitantes locais que tinha interesse em construir a prometida Gruta para São Pedro, já que as

obras do porto embargadas pelo IBAMA foram empreendidas pela Prefeitura através da

Secretaria de Meio Ambiente.

Quinze policiais militares cuidavam da segurança. Sandro, o mesmo locutor do ano

passado, anunciava ao microfone o apoio de Arnaldo França Vianna, de sua esposa, Ilsan

Vianna46, e do vereador Russo Peixeiro. O movimento de pessoas no Porto era escasso e alguns

barraqueiros diziam que a festa seria “fraca”, prevendo o comparecimento de poucas pessoas

“devido à pouca divulgação”.

Em 2004, a festa fora divulgada por meio de cartazes afixados nos lugarejos vizinhos e

nos ônibus que levam à Ponta Grossa; e também por um carro de som que anunciava os festejos,

convidando os ouvintes a comparecer. Os moradores, quando questionados a respeito desse

inédito meio de divulgação - o carro de som -, diziam que ele só ia até Tócos e que isto era

Eucaristia”, expressão proibida pelo Papa João Paulo II com a publicação do documento Redemptionis Sacramentum em 2004, sob a justificativa de que apenas um Padre pode celebrar o sacramento da Eucaristia, jamais um leigo. Assim, a ambigüidade da expressão “ministro da Eucaristia” poderia levar a erro, julgando-se que o leigo possa exercer funções próprias do sacerdote. 45 Refiro-me aqui a Bonnie Moraes Manhães de Azevedo e Cyntia dos Santos Jorge. 46 Na época, Arnaldo Vianna era Prefeito de Campos dos Goitacases e Ilsan, sua esposa, diretora da Fundação Teatro Trianon.

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insuficiente. Reclamavam da Prefeitura de Campos que, alegando contenção de despesas,47 não

anunciara a festa nas rádios locais. Portanto a festa seria prestigiada por poucas pessoas oriundas

“da cidade” e também dos outros lugares não diretamente vinculados ao assentamento pesqueiro.

Foto: Cyntia dos Santos Jorge

Faixa afixada na praça do Ingá, com a programação de shows da 4ª festa de São Pedro.

Os barraqueiros argumentavam que por volta das 20:00 do primeiro dia da festa de 2003

a circulação no Porto da Beirada era muito maior do que naquele mesmo horário em 2004.

Percebi, contudo, que após as 22:00 muita gente começou a chegar. Concluí, com outras pessoas

do povoado, que tinham deixado para ir à festa somente após a transmissão do último capítulo da

novela “Celebridade”,48 onde se revelaria finalmente o assassino de um de seus personagens.

Numa barraquinha de cachorro-quente do Porto da Beirada havia um televisor instalado. Em

torno dele cerca de dez pessoas estavam reunidas para assistir às revelações do capítulo

conclusivo da telenovela.

47 Esta contenção de gastos provavelmente estava ligada ao fato de ser aquele ano eleitoral. Sobre isso falarei mais adiante. 48 Transmitida pela Rede Globo de Televisão.

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No primeiro dia da festa não houve nenhum evento especificamente religioso, ou seja,

ladainhas, missa, procissão ou apresentação dos ministérios de louvor. Segundo Sandro, a

Prefeitura de Campos, a Fundação Teatro Trianon e a Secretaria de Meio Ambiente tinham

assumido a parte recreativa da festa, enquanto a parte religiosa tinha ficado aos cuidados da

APAPGF. Mais tarde descobri que os preparativos religiosos foram feitos por Virgimar e Ruth,

esposa de Russo Peixeiro.

Tampouco no sábado 26 de junho de 2004 houve qualquer acontecimento de cunho

religioso, relativo ao Santo Pescador, limitando-se as atividades festivas à apresentação de um

grupo de música baiana. Algumas barraquinhas funcionaram normalmente, vendendo bebidas e

comidas variadas. Foi, de certo modo, um dia comum no campo. Um dos barraqueiros afirmou

que a festa só ficaria animada no domingo, dia da cavalgada.

Foto: Cyntia dos Santos Jorge

Russo Peixeiro caminhando à direita da banda da Guarda Civil Municipal de Campos durante a Alvorada.

Neste dia acordamos bem cedo para assistir à Alvorada. Quando a banda da Guarda Civil

Municipal chegou já era dia claro. Às seis e meia ouvimos o som de fogos e marchinhas. Ao

chegar na praça do Ingá vimos que Russo Peixeiro marchava ao lado direito do Maestro Amaro.

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A Alvorada marchava rápido porque já estava atrasada e por isso nem todas as pessoas

conseguiam acompanhá-la. Foi até o Ingá de onde voltou em direção à Ponta dirigindo-se,

finalmente, à Capela de Nossa Senhora da Conceição, onde concluiu sua apresentação com o

“Parabéns pra você”. A seguir, seus membros foram até a Escola Municipal José de Azevedo

para o café da manhã que Russo lhes oferecia.

Na casa deste houve também um café da manhã para os homens do povoado e visitantes,

que iriam participar da Cavalgada: café, suco de caju, bolo de farinha de trigo e pão francês com

mortadela. Houve ainda distribuição de uma camiseta aos participantes da Cavalgada. Na parte

dianteira da camisa havia uma estampa de São Pedro idoso com os dizeres “4ª Festa de São

Pedro de Ponta Grossa dos Fidalgos” e, na parte de trás, “Apoio: Vereador Russo Peixeiro e

Comissão de Festas”, onde as palavras “Apoio” e “Comissão de Festas” estavam na cor azul,

enquanto “Vereador Russo Peixeiro” em vermelho e com um corpo de fonte maior para “Russo

Peixeiro”. Os festeiros da Cavalgada eram os mesmos do ano anterior.

Foto: Cyntia dos Santos Jorge

Cavaleiros tomando o café da manhã oferecido por Russo Peixeiro em sua casa.

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Ao término desta ocorreria uma procissão por água. Os barcos estavam quase prontos.

Sandro e a líder do Show Riso49 anunciaram a procissão, convidando as pessoas a participar.

Dirigimo-nos, pois, ao Porto da Beirada enquanto o Show Riso continuava no palco animando as

crianças. Lá, descobrimos que a procissão já tinha ido e voltado. Segundo Marinês e outras

mulheres do Grupo de Oração local, durante menos de um quarto de hora, quinze barcos saíram,

“rodaram no meio da Lagoa”, e retornaram. Como Zeladora da Igreja, caberia a Marinês puxar

as ladainhas durante essa procissão, mas, também ela, ao chegar ao Porto, descobriu que os

barcos já haviam partido. Quando um dos barqueiros a viu, retornou para buscá-la. Segundo ela,

não houve reza nesta procissão. Assim descobrimos que não tínhamos sido as únicas a perdê-la,

pois várias outras pessoas chegaram depois de nós e se manifestaram surpresas ao saber que a

procissão já terminara.

Ao fim do Show Riso, por volta das quatro e meia da tarde, o locutor convocava as

pessoas para a Missa: “Queria convidar todas as famílias religiosas para ter Jesus dentro do

coração simbolizando a festa de São Pedro”. O celebrante, Pe. Jorge, agradeceu “especialmente

a Russo Peixeiro e sua mulher Ruth pela festa”. Dentre as duas centenas de pessoas presentes,

cerca de oitenta pareciam prestar atenção à Missa. O padre afirmou que em cada pescador ou

trabalhador havia um pouco da alma de São Pedro, sem acrescentar maiores esclarecimentos à

afirmativa. No momento das orações e pedidos, Pe. Jorge rogou a Deus que as pessoas

aprendessem a cuidar das águas e pediu por Russo Peixeiro e seu mandato. Ao fim da Missa, o

Padre agradeceu à Prefeitura e ao vereador pela organização da festa e relatou a disposição do

Prefeito em providenciar a pavimentação do Porto e a doação ao povoado de uma gruta para São

Pedro. Concluiu dizendo que no ano seguinte essas obras estariam concluídas e que isto

certamente favoreceria a festa. Em seguida, deu dois “vivas!” a São Pedro e um aos pescadores.

Tentamos seguir a procissão por terra, mas havia cavaleiros e crianças de bicicleta no

meio dela. O cortejo não avançou além da praça do Ingá, de onde retornou rumo à Capela e só

então conseguimos acompanhá-lo. Tudo na procissão nos pareceu muito confuso. Havia um

carro de som que tocava hinos religiosos, enquanto os participantes recitavam o terço. O

combinado era intercalar os mistérios do rosário com hinos. O que de fato aconteceu foi a

superposição das duas coisas. Pouco mais de cinqüenta pessoas acompanharam a Procissão até a

praça do Ingá. Em geral, a Procissão vai até o Ingá e volta com um número maior de

participantes, às vezes até dobrando a quantidade. Desta vez, a Procissão diminuiu, e apenas

pouco mais de quarenta pessoas retornaram com ela até a Igreja. Esta procissão foi abandonada

49 No Show Riso, grupo de animação infantil, diversos personagens cantam e dançam, sendo a líder do grupo uma “boneca”, ou melhor, uma mulher fantasiada de boneca.

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por algumas pessoas com medo de que acontecesse algum acidente por causa dos cavaleiros

misturados ao cortejo; outras se aborreceram porque Ruth, esposa do vereador e responsável pela

organização da parte religiosa da festa, reclamou durante a procissão que as pessoas não estavam

rezando e começou a brigar com elas. “A procissão estava fraca”, disseram os fiéis. Na Igreja

terminaram o terço. Russo era um dos portadores do andor. Ao final, ele lembrou a todos que, na

terça-feira, dia do Santo, haveria Missa e Procissão dedicadas a São Pedro.

Conversando com alguns freqüentadores da Igreja sobre a desorganização das procissões,

eles me revelaram que “o povo estava insatisfeito com Russo”, e a prova disso viria no resultado

das eleições.50 As principais razões para a insatisfação do “povo” eram, em segundo plano, a

contratação de uma moça de fora de Ponta Grossa para substituição de uma moça do povoado

que trabalhava na Escola Municipal José de Azevedo, e cujo contrato havia terminado; e, como

razão principal, o desrespeito de Russo para com o Grupo de Oração local no tocante à

organização e participação na festa de São Pedro. Ressalte-se aqui a exclusão de Marinês e suas

companheiras da organização da festa, como já mencionado, neste ano feita por Virgimar e Ruth.

Também a missa campal fora paraninfada por um grupo de oração de um povoado vizinho em

detrimento do grupo de oração local. Desta forma, os católicos que costumavam participar

ativamente da festa de São Pedro resolveram “boicotar a festa de Russo”, de diferentes maneiras.

Alguns não assistiram à Missa, muitos não participaram das procissões e outros ainda

percorreram ou tentaram percorrer o trajeto da procissão por terra, mas sem acompanhar a reza, o

que deixou Ruth irritada e fez com que ela brigasse com as pessoas no meio do cortejo.

Padre Jorge alegou que “não sabia” de nada, e que fora Russo e Ruth quem lhe disseram

que seria o grupo de oração de Tócos, da Igreja Nossa Senhora da Penha, que paraninfaria a

Missa. Sidney ficou muito irritado com a displicência do Padre, pois na sua opinião, a atitude

correta do Sacerdote seria de, no mínimo, perguntar ao vereador se o grupo de oração local

estava de acordo com a decisão. Padre Jorge, no entanto, nada fez, e Sidney discutiu com ele

pelo que julgou um desrespeito àquelas mulheres que freqüentam a Capela pontagrossense.

Exigiu assim que o Padre se desculpasse com suas paroquianas e com ele, mas esta exigência foi

feita através de um recado, e não pessoalmente. Sidney entregou o cargo de ministro

extraordinário da santa Comunhão e mandou dizer ao Padre que somente quando este se

desculpasse com as mulheres de Ponta Grossa retornaria ao cargo. Padre Jorge, por sua vez,

disse que pediria desculpas a Sidney caso este fosse até a Paróquia de São Gonçalo para recebê-

las. Não tendo nenhum dos dois cedido, o impasse permaneceu.

50 Em outubro de 2004 se realizaria o pleito para Prefeito do Município e vereadores.

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Assim, o grupo de oração local decidiu realizar uma comemoração especial para São

Pedro no dia oficial do Santo. Geralmente, quando o dia do Santo cai no meio da semana, eles

fazem apenas uma Celebração da Palavra, deixando para realmente comemorar o Santo Pescador

no fim de semana em que sua festa é realizada. Desta vez, na terça-feira seguinte, dia 29 de

junho, a Capela local estava abarrotada de pessoas para assistir à Missa ministrada pelo Pároco

local, e também do lado de fora da Igreja muitos fiéis acompanharam as palavras do Pe. Jorge.

Após a Celebração da Eucaristia, houve uma procissão com cinco vezes mais pessoas que a

ocorrida no domingo.

2005

No dia 26 de maio de 2005, quinta-feira de Corpus Christi, acompanhei a saída da

imagem de Nossa Senhora da Conceição da casa de “dona Nenete” para a cada de “dona Silíca”,

duas senhoras com mais de sessenta anos que recebem a visita da Santa em suas casas todos os

anos no mês de Maria. Não houve comemoração de Corpus Christi, pois a data pede Celebração

da Eucaristia, já que o objetivo da festa é celebrar solenemente o mistério da Eucaristia - o

Sacramento do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, e não havia ministro extraordinário da santa

Comunhão ou Sacerdote que pudesse celebrar.

Depois de passar a Santa de uma casa à outra, de fazer as orações e cantar as ladainhas, a

dona da casa que recebe a imagem oferece um lanche às pessoas que acompanharam a

transposição da mesma, e segue-se um momento de interação social feminina, já que os poucos

homens que acompanham a ida da Santa de uma casa à outra nunca entram nas casas, ficam

sempre no lado de fora.

Nessas breves reuniões femininas, as mulheres discutem assuntos particulares e pessoais,

além de temas de relevância para o grupo católico local, tais como eventos de interesse do grupo.

Acompanhei todas as visitas da Santa passando de uma casa para outra do dia de Corpus Christi

até dia do retorno da Santa à Igreja, a “casa dela”. No dia 29 de maio, após a transposição da

Santa de uma casa à outra, as mulheres confraternizavam entre si quando Marinês perguntou a

Valéria, a tesoureira do Conselho Capelar, se haveria mesmo festa de São Pedro. Seguindo o

prognóstico que alguns me fizeram ao fim da festa de São Pedro de 2004, Russo Peixeiro não se

reelegeu, ainda que tenha sido muito votado em todo o município, e boatos corriam de que em

2005 ele não realizaria a festa. Quando Marinês tocou no assunto, uma acalorada discussão teve

início.

Alguém disse que Russo teria dito em reunião com os pescadores que não realizaria a

festa, fato que não se confirmou nem foi refutado. Marinês então falou que isso era uma falta de

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50

respeito dele, afinal, a política não deveria interferir na religiosidade. Ela então propõe fazer uma

procissão para São Pedro e cantar ladainhas, fazendo uma comemoração. As mulheres se

mostram entusiasmadas em fazer a quinta festa de São Pedro, e neste momento uma mulher

chamada Dionéia51 diz: “Tradicional festa de São Pedro, mas a tradição só durou quatro

anos?”. Então elas começaram a falar que a festa de 2004 não foi boa porque “era só política”, já

que a Igreja, ou seja, aquele grupo de mulheres, ficou de fora. A recusa de Russo em fazer a festa

naquele ano era, para elas, uma corroboração da opinião que então expressavam. Nelson52 disse

que gostaria de conversar com Marinês sobre a festa de 2005, mas não sabia se poderia ajudar

muito, pois ainda não era presidente efetivo da APAPGF.

Neste momento elas começam a relembrar o passado: diziam que na “festa dos antigos”

cantava-se o hino de São Pedro em frente ao prédio da Colônia e que Virgimar “ressuscitou” a

festa em 2001. Contaram que naquele ano as mulheres se reuniram, durante quinze dias, até de

madrugada na casa de Virgimar para fazer bandeirinhas. Armaram barracas com artesanatos. A

festa de 2001, segundo elas, foi simples, mas foi muito boa porque teve mais fé e devoção. A

procissão de barcos saiu do Porto da Beirada e foi até o Porto Antonio Soares, depois seguiu por

terra de volta ao porto principal do povoado. Como em 2002, e como seria o ideal sempre. Já em

2004, a procissão de barcos esqueceu Marinês e voltou pra pegá-la, depois rodou no meio da

Lagoa sem reza e voltou ao mesmo lugar. Em 2001 não teve muita gente de fora e Russo ajudou

só um pouco, tomando a frente do patrocínio somente no ano seguinte. Em 2005, contudo, até

aquele momento não se sabia se Russo patrocinaria ou não o festejo.

Assim, festa deste ano foi organizada às pressas, com pouco mais de uma semana de

antecedência, quando os pontagrossenses ainda especulavam se haveria ou não festa de São

Pedro em 2005. Russo Peixeiro recebera 3573 votos no município, porém estes foram

insuficientes para mantê-lo na Câmara. Por este motivo, ele anunciara que não realizaria a festa

naquele ano.

Muitas denúncias de compra de sufrágio foram feitas envolvendo os dois principais

candidatos a Prefeito da cidade de Campos dos Goitacases, o que determinou a suspensão do

mandato do Prefeito e Vice-Prefeito eleitos. Assim, no início de junho de 2005, o Presidente da

Câmara de Vereadores campista (Alexandre Mocaiber) assumiu a Prefeitura Municipal,

51 Dionéia é tesoureira da APAPGF e em alguns dias seu marido, Nelson, se tornará presidente oficial da Associação, que mantém boas relações com Russo Peixeiro. 52 Nelson era vice-presidente da APAPGF. Quando no início de 2005, Virgimar deixa Ponta Grossa dos Fidalgos, ele assume o posto abandonado e sua esposa, Dionéia, assume a tesouraria da Associação. Alguns pescadores dizem que Virgimar saiu “fugida” do povoado devido à descoberta dos roubos que ela fazia na Associação. As acusações nunca foram levadas à justiça, não tendo assim sido refutadas ou confirmadas. Para saber mais sobre a Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves: 2006.

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deixando uma cadeira vaga na Câmara. Pela grande quantidade de votos obtida, ainda que não

tenha sido suficiente para manter-se como vereador, Russo Peixeiro reassumiu sua cadeira na

Câmara até que o problema político municipal fosse resolvido. Foram nessas circunstâncias que

Russo convocou a “população de Ponta Grossa dos Fidalgos” para uma reunião53 em sua casa no

povoado, onde anunciou que realizaria a festa de São Pedro.

Nesta reunião, onde compareceram apenas pessoas que já o apoiavam, Russo mostrou-se

profundamente decepcionado com a população do distrito de Tócos, pois ele sabia que fora lá

que recebera votação menor que a esperada54. Então o político fala sobre tudo o que ele sempre

fez pelos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos, desde pequenos favores como conseguir

médico para alguém que necessitasse até convencer o Prefeito a não realizar concurso público

para a Guarda Civil Municipal, a fim de que os seguranças contratados de Ponta Grossa

continuassem empregados, pois ele sabia que provavelmente aquelas pessoas perderiam no

concurso e teriam dificuldades para sustentar suas famílias.

A reunião foi um verdadeiro desabafo do político derrotado no pleito que se sentia traído

por aqueles a quem ele exclamava amar e a quem tanto ajudou: a população de Ponta Grossa dos

Fidalgos. Nesta reunião ele também disse que naquela semana, no dia da sua primeira reunião na

Câmara dos Vereadores após reassumir a cadeira, um ônibus iria buscar aqueles que quisessem ir

à reunião, e pediu aos presentes que fossem e levassem cada um mais cinco amigos ou

parentes.55

Tomada a decisão de realizar a festa em data tão imediata ao acontecimento, não foi

possível fazer a divulgação adequada: não houve cartazes com a programação da festa nem

anúncios em rádio ou televisão. Com isso, algumas pessoas, que montaram suas barracas nos

anos anteriores, desistiram de fazê-lo, temendo o prejuízo. Ainda assim, o número de barracas se

manteve alto. Além da barraca de Samuel,56 transformada num bar permanente após a festa de

2004, cerca de dez outras foram armadas no Porto da Beirada, que permanecia sem o prometido

calçamento e a sonhada Gruta de São Pedro.

53 A “convocação” para esta reunião foi feita na base do “boca-a-boca”, isto é, inicialmente através de Nelson e de Durval, Russo fez com que circulasse por todo o povoado a notícia de que Russo faria uma reunião em sua casa. O convite era extensivo a quem quisesse participar, e por isso Cyntia Jorge, única integrante do grupo de pesquisa que se encontrava em campo naquela ocasião específica, participou da reunião e me entregou a gravação da mesma para que eu transcrevesse. A ela, meus agradecimentos por esta preciosidade etnográfica. 54 Segundo o próprio Russo, ele obtivera 732 votos nos distritos de Goitacases e Donana, de um total de 3573 votos em todo o município. 55 A análise do discurso do político nesta reunião se encontra na Parte IV deste trabalho. 56 Samuel é um homem de meia-idade, instruído em escolas da cidade de Campos, como ele mesmo gosta de ressaltar. Tem um salão de festas em Ponta Grossa, onde promove eventos e lida com equipamentos de som, além de um bar no Porto da Beirada, construído em 2004.

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52

Oficialmente a festa começou na sexta-feira, dia 1º de julho, porém os únicos eventos

extra-ordinários ocorridos foram os shows de Sagrada Família e Oswaldão57. Já no sábado,

aconteceu apenas um show de forró. Os eventos costumeiros do festejo de São Pedro se

concentraram no domingo.

Na manhã de domingo, um grupo de músicos, cujos integrantes fazem parte da Guarda

Civil Municipal, realizou a alvorada pelas ruas do povoado. Eles não estavam fardados desta vez,

pois, segundo um dos músicos, a banda da Guarda não existia mais porque Carlos Alberto

Campista58 decidira não mais apoiá-la, supostamente para conter os gastos da Prefeitura. Tinham

sido levados ao povoado por um ônibus alugado por Russo Peixeiro, pois a Prefeitura não mais

disponibilizou o ônibus da Guarda para a banda. Alguns daqueles músicos, contudo, resolveram

continuar tocando em festas religiosas da região por conta própria, já que são pagos para tal e é

sempre um “dinheirinho a mais que entra” no limitado orçamento familiar.

Foto: Thaís Nascimento

A banda que toca a alvorada seguida pelos moradores no final da Ponta, já amanhecendo.

57 Oswaldão, também conhecido como Dom Américo, é um cantor do município de Campos dos Goitacases que tem um estilo irreverente e falastrão. 58 A decisão foi tomada enquanto Carlos Alberto Campista exercia o cargo de Prefeito do município campista. Na ocasião da festa de São Pedro, o político estava impedido de exercer seu mandato devido a denúncias de compra de votos no pleito, porém sua decisão foi mantida por Alexandre Mocaiber, Prefeito em exercício.

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Num trecho da rua João Cabral Neto, na Beirada, dois rapazes saíram de suas casas, em

frente às quais passava o cortejo da alvorada, e ordenaram aos músicos que parassem de tocar.

Um deles tentou agredir Durval, além de segurar o trompete de uma integrante, que reagiu.

Alguns homens seguraram os dois rapazes e os levaram para dentro de casa. O cortejo, então,

prosseguiu em silêncio, e a banda só voltou a tocar em frente à caixa d’água. A alvorada

terminou diante da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos

novamente com o “Parabéns pra você”.

A versão apresentada pelos moradores locais sobre o conflito mencionado acima foi a de

que este fora motivado por fatores políticos. Segundo contaram, Russo Peixeiro prometera aos

rapazes um emprego, promessa que não cumpriu. Após passarem a noite bebendo no forró

realizado pelo dono do Pesque-Pague, os rapazes tentaram quebrar o carro do vereador e

ameaçaram agredi-lo, motivo pelo qual este não participou da alvorada neste ano. Quando o

cortejo passou diante de suas casas, os jovens enraivecidos detiveram a banda de música no

intuito de manifestar sua insatisfação com o político e de atrapalhar sua festa.

Do palco cedido pela Prefeitura pendia uma faixa com os dizeres: “Os moradores de

Ponta Grossa agradecem ao Pref. Alexandre Mocaiber e ao Sr. Russo Peixeiro. Obrigado!”. O

local estava enfeitado com bandeirinhas de São João e um arco de bambu enfeitado com as

bandeirinhas ficava na entrada do Porto, como nos anos anteriores. Este arco, de certa forma,

delimitava até onde os carros podiam ser estacionados e os cavaleiros podiam entrar com seus

cavalos.

A cavalgada foi menos prestigiada que no ano anterior, embora tenha tido mais

participantes do que a de 2003. Além disso, não foram confeccionadas camisas para o evento e

não havia imagem do Santo acompanhando aos cavaleiros.

A procissão por água contou com oito embarcações e correu o risco de sair sem a imagem

do Santo pescador, pois a zeladora da Igreja, responsável por conduzi-la ao Porto da Beirada,

permaneceu em casa. Marinês também não compareceu ao primeiro dia da festa e ficou pouco

tempo no local dos festejos durante a segunda noite. As outras mulheres que freqüentam a Igreja

e até mesmo as que compõem o Conselho Administrativo da mesma, juntamente com Marinês,

não sabiam o que estava acontecendo e por quê ela não comparecia à festa. Sua justificativa,

quando perguntada a respeito, foi a de que seu filho pequeno estava doente, impedindo-a de sair

de casa. Sua ausência, no entanto, pode ter sido intencional, a fim de mostrar sua insatisfação

com a inserção do vereador na festa. Isto porque no ano anterior, ao falar sobre o fato de a

procissão de barcos ter saído sem ela, Marinês questionou: “Como pode a procissão sair sem a

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zeladora da Igreja?”; idéia que foi reforçada por Valéria, secretária do Conselho Administrativo

da Igreja: “Sem Marinês, que é zeladora, a procissão não pode sair”.

Foto: Thaís Nascimento

Barcos enfeitados para a procissão por água no Porto da Beirada.

Nelson, novo presidente da Associação de Pescadores, enviou um menino à casa de

Marinês a fim de chamá-la para a procissão por água, e só então ela apareceu com o quadro que

retrata São Pedro. O percurso dos barcos durante a procissão foi o mesmo do ano anterior, ou

seja, as embarcações fizeram uma espécie de “oito” dentro da Lagoa e retornaram ao Porto.

Somente no barco onde estava Marinês com algumas mulheres da Igreja houve canto e ladainha.

Entre a procissão por água e a Missa Campal, decorreram cerca de duas horas. Foi o

tempo necessário às pessoas para tomarem banho e se arrumarem para o evento. Russo Peixeiro,

desta vez, estava no palco, apadrinhando uma criança batizada na ocasião. Após a Missa e o

batismo da menina, Padre Jorge afirmou que no ano seguinte a Missa seria realizada na Igreja às

oito horas da manhã de domingo, atendendo à solicitação da comunidade católica local,

representada por Marinês. Se o argumento da febre do filho foi apenas uma desculpa para um

boicote à festa, dadas as suas críticas à conduta de Russo Peixeiro na festa religiosa, então sua

manifestação rendeu frutos, ou pelo menos, uma promessa de boas colheitas.

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Foto: Thaís Nascimento

Os homens segurando o andor de São Pedro e as mulheres, o de Nossa Senhora da Conceição, preparando-se para a

procissão por terra após a Missa Campal.

O ritual religioso foi encerrado com uma procissão bastante prestigiada onde os homens

levaram o andor do Santo, e as mulheres, logo atrás, levaram o andor de Nossa Senhora da

Conceição, com a imagem grande da Santa. A festa foi encerrada após a procissão com show de

forró.

2006

No ano de 2006 eu estava morando na cidade do Rio de Janeiro, onde cursava as

disciplinas do meu curso de mestrado. Mantive, todavia, contato com os colegas do grupo de

pesquisa e através deles soube que a festa de São Pedro aconteceria nos dias 30 de junho, 1° e 02

de julho, respectivamente sexta-feira, sábado e domingo. Desta forma, como estava em aulas,

resolvi viajar para Campos somente na sexta-feira, já que nada especial fora anunciado para o dia

do Santo, e eu teria aulas na quinta-feira.

No ônibus que me levou de Campos a Ponta Grossa dos Fidalgos naquela sexta-feira,

encontrei Marinês, que me relatou que não haveria Missa na festa de São Pedro deste ano. Isto

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porque Pedrinho, que estava à frente da organização da festa de 2006, combinara a Missa com o

pároco da Igreja de Santo Antônio, no bairro Jardim Carioca, em Campos. Acontece que um

pároco não pode celebrar Missas em Igrejas pertencentes a Paróquias que não a sua sem a devida

autorização do pároco responsável pela diocese onde acontecerá a celebração. Ou seja, este

pároco contatado por Pedrinho não poderia celebrar em Ponta Grossa sem a autorização de Padre

Jorge, visto que a Capela local pertence à Paróquia de São Gonçalo, localizada em Goitacases.

Quando Padre Jorge soube que outro Padre fora convidado a celebrar a Missa em Ponta Grossa,

não só não permitiu que o outro celebrasse como também afirmou que não celebraria a Missa na

festa de São Pedro. “A mesma coisa que fizeram com Padre Jorge foi o que ele fez com a gente

há dois anos”, afirmou Marinês referindo-se ao ocorrido na festa de 2004, em que outro grupo de

oração fora convidado para auxiliar o Padre na Missa.

No dia 29 de junho de 2006 ocorrera um louvor com o Ministério de Música Sagrada

Família e, ainda que no dia seguinte, sexta-feira 30 de junho, tenha ocorrido somente um louvor

com outro grupo de adoração, da mesma maneira que no dia anterior, as pessoas só

consideravam que a festa havia começado na sexta-feira. Este ano as barracas eram

padronizadas, todas de lona branca, mas na sexta-feira à noite elas não estavam todas montadas.

O vento forte na beira da Lagoa dificultava sua armação. No sábado à noite cerca de quinze

barracas estavam montadas no Porto da Beirada, além do palco de shows e um pula-pula para as

crianças.

A maioria das pessoas neste segundo dia de festa só começou a chegar no Porto da

Beirada após as 22h. Desde o final da tarde Sandro Lima já estava lá anunciando os eventos

daquela noite: apresentação do grupo de quadrilha de salão ‘Brilho do Luar’ e show de ‘Sabor de

Beijo’, um grupo de música baiana. Depois deste, haveria um show de forró do grupo ‘Cartão

Postal’ no Pesque-Pague. No meio do show de ‘Sabor de Beijo’ o gerador de energia apresentou

problemas e parou de funcionar. Assim, o show de ‘Cartão Postal’ começou antes do show de

‘Sabor de Beijo’ terminar, já que este fora interrompido e Amaro, dono do Pesque-Pague, não

queria deixar o movimento dispersar. Com isso, as pessoas foram para o Pesque-Pague e não

retornaram para o término do show de ‘Sabor de Beijo’, o que deixou Nelson e Durval

insatisfeitos. Segundo eles, Amaro quis fazer um show de graça no mesmo horário do show da

festa de São Pedro porque Russo não deu a ele o prometido aterro do Pesque-Pague, para evitar o

contato das águas dos tanques com as da Lagoa em período de cheia. Também Daniel,

organizador da cavalgada nos anos anteriores, não quis ajudar na festa pois Russo não lhe dera o

prometido emprego. Assim, a cavalgada da 6ª festa de São Pedro foi organizada por Silvinho,

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um homem de aproximadamente 40 anos que costuma doar as flores para o andor em períodos

festivos.

Foto: Thaís Nascimento

Procissão de barcos em 2006.

A alvorada, marcada para cinco e meia da manhã de domingo, começou com uma hora de

atraso. Como sempre, foi tocada pela banda da Guarda Civil Municipal59, seguida por pessoas

que cantavam e dançavam e, atrás destas, um grupo de homens soltando fogos. Este ano, porém,

os homens que soltavam fogos estavam com um vidro de acetona que passava de mão em mão

entre eles, cujo conteúdo cada um deles aspirava antes de passar adiante. O término da alvorada

foi com a execução de “Parabéns a você” em frente à Associação de Pescadores, onde foi

oferecido um café da manhã aos músicos da Guarda Civil Municipal. Ali, presenciei uma

conversa entre Sandro, Nelson e Durval e assim eu soube que haveria apenas a procissão de

barcos. Isto ficou assim decidido porque, segundo eles, as pessoas estavam cansadas, e por isso a

procissão por terra poderia ficar para outro dia festivo. Disseram também que não havia banda

para puxar os hinos durante a procissão por terra, e isto desanimaria as pessoas, então era melhor

59 Em 2006, a banda da Guarda Civil Municipal voltou a se organizar com apoio da Prefeitura de Campos.

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não fazer a procissão naquela ocasião. Como forma de estimular a participação dos pescadores,

houve o sorteio de uma bicicleta entre os donos de barcos que participaram da procissão lacustre.

Sandro reclamou para mim do povo de Ponta Grossa dos Fidalgos, que ao invés de ficar feliz

com a festa, reclama da política, e é contra a festa porque é contra o partido de Russo ou porque

este não cumpriu alguma promessa. Disse também que a festa não é do político, é de São Pedro,

e que o político maior é Deus.

Eles discutiram ainda durante alguns minutos se os cavaleiros deveriam ou não ir até o

Porto. Decidiram que sim, tendo Durval argumentado que o cavaleiro que vem de Goitacases ou

Farol que “dar sua voltinha” no local da festa, onde está a “badalação”. Começaram então a

discutir como fariam para retirá-los de lá depois, pois estava marcado para às 16h a apresentação

do Show Riso.

A cavalgada estava marcada para chegar às 14h, como nos outros anos, mas chegou no

povoado ao meio-dia e meia, e meia hora depois já tinha percorrido a rua principal e estava no

Porto. Havia uma Kombi tocando músicas do Padre Marcelo Rossi e um carro com carroceria

picape levava o andor do Santo. Não havia mais que cinqüenta cavaleiros participando do

evento, realmente um número muito pequeno comparado aos anos anteriores. Havia três

charretes e pouquíssimas mulheres participando da cavalgada. Sandro saudou os cavaleiros e

pediu a eles para não deixarem os cavalos ali por causa do show infantil. Quando a cavalgada

chegou ao Porto, Samuel desligou o forró que tocava em seu bar, só voltando a ligar o aparelho

de som quando os cavaleiros foram se retirando.

No meio da tarde aconteceu a procissão por água com sete barcos. Os participantes

cantaram o hino do pescador, deram vivas a São Pedro, Nossa Senhora da Conceição, São João

Batista, Nossa Senhora dos Navegantes e aos pescadores. Rezaram um Pai Nosso e uma Ave

Maria. Ao término da procissão Sandro Lima agradeceu aos pesquisadores da UENF no

microfone. Logo depois começou o Show Riso e a cantora agradeceu “a Pedro Nísio e a Russo

Peixeiro, que tantas vezes foi nosso anfitrião”. Mesmo Russo não tendo aparecido na festa, esta

continua sendo “de Russo” no imaginário das pessoas, e assim também falou Pedro, quando em

discurso no final da festa afirmou que sem Russo Peixeiro nos bastidores da festa, esta não teria

sido possível.

Ao final do Show Riso houve o sorteio de uma bicicleta entre os donos dos barcos que

participaram da procissão por água. O prêmio foi doado pela Associação de Pescadores para o

sorteio, a fim de incentivar a participação na procissão. Com o cair da tarde, houve a queima de

fogos e o show de Dom Américo. Assim se encerrou mais uma festa de São Pedro.

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PARTE III

A FESTA É MAIS QUE FESTA: REFLEXÕES SOBRE AS COMEMORAÇÕES DO

SANTO PESCADOR

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Pensando o Ritual

Os escritos bíblicos relatam que Jesus andava pela beira do lago da Galiléia quando viu

dois irmãos pescando em seus barcos e os convidou a acompanhá-lo para ensiná-los a pescar

gente. Os irmãos pescadores eram Simão, conhecido como o apóstolo Pedro, e André. Logo à

frente, viu e chamou outros dois irmãos pescadores, Tiago e João.

Pedro nasceu em Betsaida, vilarejo pesqueiro às margens do mar da Galiléia ou de

Tiberíades, na verdade, uma lagoa de 247km², também conhecida como Lago de Genezaré,

situada a duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo, e cuja comunicação com o Mar

Morto é feita através do rio Jordão. Também a Lagoa Feia se comunica com o mar através do

Canal das Flechas e seu nível é dois metros mais baixo que o do mar. Sua extensão é de 160km²,

embora já tenha sido maior que o lago de Genezaré, tendo 123km² a mais que este. Há, portanto,

muitas características que permitem a identificação dos pescadores da Lagoa Feia com seu Santo

padroeiro, e estas são apontadas, com orgulho, por alguns deles.60

Antes do século IV, uma festa em memória ao Santo era realizada no dia 28 de dezembro,

data arbitrariamente escolhida para comemorar São Pedro e São Paulo, sem nenhuma referência

à data da morte dos dois Apóstolos. A partir do ano de 258, a memória dos dois mártires passou

a ser celebrada em 29 de junho na Via Appia ad Catacumbas, pois esta data evoca a transposição

de seus restos mortais para este local.

A festa de São Pedro faz parte do ciclo festivo dos santos do mês de junho, composto

ainda por Santo Antônio e São João, celebrados, respectivamente, nos dias 13 e 24 de junho.

Todos os três são santos tradicionalmente muito festejados pela população rural brasileira, que se

identifica com eles de distintas maneiras.61 Gastão de Bettencourt diz que “São Pedro, o humilde

pescador das margens do lago de Genezareth, que havia de vir a ser o fundador da igreja do

Senhor, pescador de homens, (...) é festejado também, no Brasil, como em Portugal, com certo

entusiasmo”.62

Não se sabe quando a festa de São Pedro foi feita pela primeira vez em Ponta Grossa dos

Fidalgos. Também é desconhecido o ano preciso em que foi interrompida por um tempo,

também ele incerto, que varia de um interlocutor para outro. Tudo que se sabe é que a festa foi

retomada em 2001, tendo o grupo de pesquisa feito registros das festas de 2002 a 2006. A

comparação destas comemorações permite alinhar as diversas seqüências, que fazem parte do

60 Ver imagens de satélites das duas lagoas em Apêndice I. 61 Cf. Bettencourt: 1947; Lima: 2003. 62 Bettencourt: 1947; P. 157.

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61

processo ritual. Com esta finalidade, consideremos, pois, o quadro sinóptico das festas de São

Pedro ocorridas naqueles anos.

Como se vê, a festa tem durado sempre três dias, com uma abertura na noite da sexta-

feira que antecede o fim de semana em que se realizará. Os acontecimentos propriamente rituais

tendem a se concentrar em um só dia, o principal do festejo. O quadro sinóptico revela algumas

variações de um ano para o outro. Há variações quanto ao número de eventos, por exemplo. E

também quanto ao tipo de evento, dentro de uma mesma categoria. Assim é que as ladainhas e

orações da festa de 2002 não se repetiram nos anos seguintes. A partir de 2003 se acrescentaram

as “quadrilhas de salão”. Outra variação de aspecto quantitativo é o acréscimo de eventos numa

mesma categoria, podendo haver mais ou menos shows ou quadrilhas. A impressão que se tem é

a de que a organização da festa parece estar adquirindo um padrão, no que se refere à ordem dos

acontecimentos. Pode-se observar, por exemplo, que toda festa se inicia e finda com um show de

forró. Esses shows acontecem em todos os dias festivos, com exceção do dia 30 de junho de

2002, quando o trio elétrico se retirou do Porto da Beirada para animar a comemoração, em outra

localidade, do pentacampeonato mundial de futebol.

Peças únicas são a Alvorada, a Cavalgada, a Missa. Esta última só não ocorreu em 2006

por conflitos entre os organizadores da festa e o Pároco local. A Procissão que era uma só, ou

melhor, duas Procissões articuladas, transformou-se num evento em dois tempos, separados pela

Missa. Primeiro, a Procissão pelas águas, depois a Procissão em terra.

A Alvorada acontece sempre no alvorecer do dia mais importante da festa, quando

ocorrem também a Missa e as Procissões e, nos últimos quatro anos, a Cavalgada.

O vocábulo “alvorada” pode ser entendido em três diferentes acepções. Uma delas refere-

se ao crepúsculo da manhã ou aos primeiros raios solares. A outra se relaciona à prática militar

do toque de corneta ou banda marcial para levantar a guarnição a bordo dos navios de guerra ou

dos quartéis. Por fim, de acordo com o uso regionalista brasileiro, a palavra “alvorada” indica

uma manifestação ruidosa, seja com foguete, toque de música ou salva de tiros, ao alvorecer de

dia festivo.63 Trata-se de uma convocação a todo o povoado para participar da festa. O toque da

alvorada inaugura o tempo festivo, chamando a atenção para um importante acontecimento

naquele lugar. A Alvorada acontece sempre no dia da Missa e das Procissões porque estes são os

acontecimentos especiais da festa do Santo, já que o ritual está diretamente relacionado à

festividade religiosa, à celebração do Santo, à realização de uma procissão e a uma celebração

litúrgica.

63 Cf. Houaiss: 2001.

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62

Victor Turner define “ritual” como o comportamento formal prescrito para ocasiões não

devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos.64

Este comportamento, contudo, não é estático, podendo ser um meio de transições sociais,

enquanto a cerimônia está ligada a estados sociais. 65 Isto explica que o pescador festeiro desde

2003, durante o período do ritual de São Pedro, fique em destaque devido à posição de liderança

que assume, enquanto ao longo do ano tende a ser tratado por seus pares como um igual.

O sistema ritual pode ser definido por incluir, não apenas o encantamento de todos os

ritos nos livros litúrgicos de dada religião, mas também os ritos transmitidos oralmente pelas

tradições paralitúrgicas populares.

Marinês, a Zeladora da Capela, disse, certa vez, que são imprescindíveis, na festa de

Nossa Senhora da Conceição, a Missa, a coroação da Santa e a procissão no dia 08 de dezembro,

data vinculada à Padroeira do povoado; e, em festas de São Pedro, são essenciais a Missa; a

procissão de barcos, pois o barco e a água são símbolos do pescador de quem São Pedro é

patrono; e a procissão por terra, para levar o Santo de volta ao Porto, de onde a procissão de

barcos saiu. Ainda que seja uma leiga, dentro do universo católico, no sentido em que o padre e,

em certa medida, o ministro extraordinário da santa Comunhão, são os especialistas, Marinês faz

uma interpretação interessante acerca dos símbolos do ritual católico.

O símbolo seria, então, a menor unidade do ritual que mantém a estrutura específica em

um contexto ritual, ou seja, um símbolo tipifica, representa ou lembra algo na medida em que

possui qualidades análogas ao que está sendo representado ou pela associação através de fatos e

pensamentos. Os símbolos, contudo, não são absolutamente fixos, e novos significados podem

ser adicionados a eles. Levar a imagem de São Pedro em um barco através das águas lacustres

simboliza o ofício cotidiano do pescador, que labuta sob o sol a fim de sustentar sua família. Da

mesma forma, retornar com o Santo através de terra firme ao Porto de onde ele saiu para

trabalhar, representa o regresso seguro do pescador à sua casa e seus familiares. Ao apontar o

barco e a água como símbolos dos pescadores, Marinês deseja ressaltar que a festa de São Pedro

é a “festa dos pescadores”, posto que é dedicada a um pescador, que é o Santo.

São Pedro é também o símbolo do papel social esperado dos homens naquele grupo.

Pode-se fazer uma analogia com a análise de Jean-Pierre Vernant sobre a escultura de Hestia e

Hermes, esculpida por Fídias. O que chama a atenção de Vernant para a associação

entre Hermes e Hestia é o fato de estes dois deuses não terem ligação aparente: não são irmãos,

nem mãe e filho, nem marido e mulher, e não têm também nenhum laço de dependência pessoal.

64 Cf. Turner: 2005. 65 Cf. Turner: 1968.

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63

O autor, contudo, identifica, através do Hino homérico a Hestia, uma afinidade de função entre

os deuses: as duas forças divinas, presentes nos mesmos lugares, desenvolvem lado a lado

atividades complementares.

Hestia representa a lareira no centro do habitat humano, símbolo de imutabilidade e

permanência. Já Hermes representa o movimento, as transições. Na casa, seu lugar é junto da

porta, protegendo a soleira. Em todos os lugares em que os homens se reúnem, deixando suas

casas, Hermes está presente. O simbolismo dos deuses do panteão grego é muito próximo do que

simbolizam São Pedro e Nossa Senhora da Conceição enquanto representação de papéis sociais

esperados pelos pontagrossenses. O espaço de socialização do homem é o exterior, como em

Hermes, em especial os bares e a Lagoa, de onde devem tirar o sustento de suas famílias, tal qual

São Pedro fazia. O dever do homem é proteger e prover sua família, enquanto a mulher deve

cuidar da casa e dos filhos. Assim como o lugar de permanência de Hestia é o centro da moradia

privada, também a Capela é a “casa” da Santa padroeira do lugar. Ambas são representativas do

principal espaço de sociabilidade da mulher: a casa. Neste sentido, a Igreja, enquanto “casa da

Santa”, pode ser considerada uma extensão do lar privado. É na sua casa e na casa das outras

mulheres (e neste sentido, é incluída a “casa da Santa”), que as mulheres compartilham, ensinam

e aprendem os valores de “ser mulher” naquele grupo.

Vernant afirma que

“o espaço doméstico, espaço fechado, com um teto (protegido), tem, para os gregos, uma

conotação feminina. O espaço de fora, do exterior, tem conotação masculina. A mulher

está em casa em seu domínio. Aí é o seu lugar; em princípio, ela não deve sair. O

homem, pelo contrário, representa, no oîkos, o elemento centrífugo: cabe-lhe deixar o

recinto tranqüilizador do lar para defrontar-se com os cansaços, os perigos, os

imprevistos do exterior; cabe-lhe estabelecer os contatos com o que está fora, entrar em

comércio com o estrangeiro.” 66

O autor afirma ainda que a “permanência” de Hestia na casa não é de natureza apenas

espacial. Como ela confere à casa o centro que a fixa no espaço (a palavra Hestia designa

também, no grego, a lareira), Hestia assegura ao grupo doméstico a sua perenidade no tempo. É

pela Hestia que a linhagem familiar se perpetua e se mantém semelhante a si mesma,67 ou seja, é

através da mulher que a família se organiza e que os valores são passados de geração a geração,

pois é dela a responsabilidade do cuidado com os filhos. A analogia com Hestia e Hermes nos

66 Vernant: 1990; p. 197-198. 67 Cf. Vernant: 1990.

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permite, portanto, compreender como Nossa Senhora da Conceição e São Pedro são símbolos

representativos dos valores vinculados aos papéis de gênero aceitos e esperados em Ponta Grossa

dos Fidalgos.

Enquanto os símbolos instrumentais constituem meios para o fim principal do rito, os

símbolos dominantes são mais que isto, pois se referem a valores que são considerados fins em si

mesmos, quer dizer, a valores axiomáticos. Utilizando esta perspectiva de Turner, interpreto

esses símbolos apontados por Marinês como símbolos instrumentais do ritual, sendo a imagem

do Santo o símbolo dominante ou focal. No caso da festa que narro, o ritual evidencia valores,

reconhecidos pela população católica como ideais e corretos, destacando a postura de homem

trabalhador e católico.

O momento de máxima focalização de São Pedro são as procissões, quando o Santo fica

literalmente acima dos homens, elevado no andor em que é carregado.68 Na procissão pelas

águas, os homens saem como se fossem pescar acompanhando São Pedro, ocasião em que o

Santo também está “acima” deles – o andor com a imagem (ou o quadro) de São Pedro é levado

pelo barco maior e mais enfeitado. Elevado acima dos fiéis, o Santo os irmana, no momento de

sua passagem, através de uma relação de proteção, ligando-se aos fiéis que o acompanham e que

o vêem passar, e de mediação, ligando os fiéis entre si, que, ao sair de suas casas, se tornam

companheiros de fé.69

Durante a procissão pelas águas de 2002, a chave de São Pedro foi elevada aos céus presa

a balões de gás, numa alusão à promessa de Cristo a São Pedro: “Eu lhe darei as chaves do

Reino do Céu; e o que você ligar na terra será ligado no céu, e o que você desligar na terra será

desligado no céu”.70 Essa passagem se refere ao poder sacerdotal de estabelecer ou desfazer

vínculos sagrados, e foi mencionada durante a festa de São Pedro de 2002, após a abertura com

ladainhas e cânticos.

A promessa feita encontra sua explicação em Isaías, no qual é conferida a Eliaquim, filho

de Hilquias, a plena autoridade do reino de Judá: “Colocarei a chave da casa de Davi sob a

responsabilidade dele: quando ele abrir, ninguém poderá fechar; quando ele fechar, ninguém

poderá abrir”.71 Cristo, por conseguinte, designa sua intenção de conferir a São Pedro a suprema

autoridade sobre sua Igreja.72

68 Cf. Damatta: 1983. 69 Idem, Ibidem. 70 Mateus 16:19. 71 Isaías 22:22. Grifos meus. 72 Cf. Enciclopédia Católica. Esta assinala que a São Pedro foi dada a chave do poder (clavis potentiae), e a São Paulo, a chave do conhecimento (clavis scientiae). A idéia da chave do conhecimento deriva das palavras de Cristo

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Outro simbolismo ligado à procissão por água é o do peixe, pois a procissão evoca o

ofício do pescador. O símbolo, ele mesmo, pode ter sido sugerido pelo milagre da multiplicação

de pães e peixes, ou pelo aparecimento de Jesus aos sete discípulos, após a ressurreição, nas

margens do mar da Galiléia, quando, após uma noite inteira sem pegar peixe algum, jogaram as

redes, a pedido de Jesus, e encheram os barcos.73 Sua popularidade entre os cristãos, contudo, se

deveu principalmente, ao que parece, ao famoso acróstico, consistindo nas letras iniciais de cinco

palavras gregas, que formam a palavra peixe - Ichthys. Tais palavras descrevem a característica

principal de Jesus para seus fiéis: Iesous Christos Theou Yios Soter, i.e., Jesus Cristo, Filho de

Deus, Salvador. A palavra Ichthys, então, representa, para os cristãos, tanto o peixe, quanto a fé

na divindade de Cristo.

A própria Lagoa Feia tem implicações simbólicas, na medida em que evoca a história de

São Pedro, pois o mar da Galiléia era na verdade, como sabemos, o grande lago de Genezaré ou

de Tiberíades. Também Marinês aponta o caráter simbólico da água, que é fonte e origem da

vida, e a imersão nela pode dissolver ou regenerar. É usada no batismo, nas bênçãos, nos

exorcismos, nas abluções rituais e em muitas outras ocasiões litúrgicas. São Pedro navegou nas

águas, andou sobre elas e temeu a fúria do mar da Galiléia, cujas ondas tempestuosas Jesus

acalmou.

O foco da procissão por terra é o Santo, que sai do templo e vai ao encontro dos fiéis, os

quais o aguardam em suas casas, de onde o verão passar, ou seguem o seu andor, participando da

sua peregrinação pelo povoado. O centro da procissão é rigidamente ordenado.74 Aí estão o

Santo e as autoridades que o carregam – neste caso, o vereador, os organizadores da festa de São

Pedro e os católicos do povoado. É importante ressaltar que a maioria dos homens não costuma

freqüentar a Igreja, cujos fiéis assíduos são, na sua maioria, mulheres. Alguns homens do

povoado, contudo, costumam participar ativamente da festa, carregando o andor durante a

procissão; ajudando a arrumar o palco, para a missa campal; e reorganizando a Capela, após o

encerramento da festa.

A imagem no andor ornamentado é acompanhada por um séqüito, durante a procissão por

terra, pela rua principal do povoado, num momento em que o Santo se mostra aos fiéis. A

procissão une as autoridades ao povo, pois ao mesmo tempo em que o Santo está acima do povo

aos fariseus: “Ai de vocês, especialistas em leis, porque vocês se apoderaram da chave da ciência. Vocês mesmos não entraram, e impediram os que queriam entrar”. (Lucas 11:52). 73 Cf. João 21. 74 Cf. Damatta: 1983.

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e separado dele pelas autoridades que o carregam e estão mais próximas dele, caminha com os

fiéis que lhe dedicam suas orações e cânticos.75

O quadro sinóptico mostra que as procissões por água e por terra estavam integradas nos

anos de 2002 e 2003, tendo sofrido um deslocamento em 2004 e 2005, quando foram separadas

pela Missa. Nos anos de 2002 e 2003, as procissões em périplo, palavra que deriva do grego

períploos ou períplous,ou, “circunavegação”, “navegação em torno de”, possuíam o caráter de

via sacra, saindo do Porto da Beirada rumo ao Porto Antonio Soares, de onde os moradores

retornavam em procissão por terra, percorrendo todo o povoado. A partir de 2004 a procissão de

barcos levou o quadro do Santo e, após a missa campal, o andor, com a imagem de São Pedro,

foi retirado do palco e carregado em procissão por terra. Esta separação ocorreu devido à

dificuldade de organizar a procissão de barcos, pois é escassa a adesão dos donos de barco ao

evento.

Já os shows de forró são eventos explicitamente lúdicos, enquanto os chamados “shows

católicos” parecem, a princípio, difíceis de classificar como religiosos ou não. A palavra “show”

remete a “espetáculo”, e à sua origem no verbo inglês “to show”, i. e., mostrar, exibir, expor. A

idéia de espetáculo é incompatível com a de religiosidade, de modo que o termo “show católico”

une duas substâncias heterogêneas que parecem ser inconciliáveis. As bandas, também chamadas

de Ministérios de Louvor, são formadas por pessoas católicas pertencentes a alguma paróquia

campista, mas podem contar, eventualmente, com um músico não-católico contratado para um

show. Suas músicas podem ser classificadas, quanto ao gênero musical, entre o rock e o pop,

utilizando, inclusive, riffs de músicas conhecidas, como Satisfaction, da banda de rock inglesa

Rolling Stones. As letras, contudo, falam de Deus, Jesus e passagens bíblicas, e os aplausos são

pedidos “para Jesus”. Os católicos cantam, dançam, e se preparam para o show de forró que virá

a seguir. Esses shows de forró são os bailes populares por excelência em Ponta Grossa dos

Fidalgos.

As chamadas “quadrilhas de salão” foram inseridas na festa de São Pedro em 2003.

Trata-se de grupos contratados para dançar quadrilha nas festas juninas, i. e., algo explicitamente

relacionado a São João, incorporado ao festejo de São Pedro. Sobre o folclore dos três santos de

junho, Gastão de Bettencourt escreve: “Se práticas há, que se prolongam desde a celebração de

Santo Antônio à de S. Pedro, irradiaram da marca de S. João, no intervalo daquelas”.76

75 Idem, Ibidem. 76 Bettencourt: 1947; p. 16.

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A missa, além de representar o sacrifício de Cristo, 77 é uma oportunidade para falar de

pessoas e da dívida para com elas. O Padre agradece aos organizadores da festa e aos políticos

que a apóiam, no caso, o Prefeito e o vereador Russo Peixeiro. Entre as dádivas que este oferece

à comunidade, encontra-se a festa de São Pedro. A propósito, convém lembrar, com assinala

Marcel Mauss, a assimetria entre o dar e o receber, em que aquele que dá fica numa posição

superior àquele que recebe. Por isso, o doador tem poder sobre o receptor, na medida em que

este passa, em virtude da dádiva, à posição de devedor. Assim o vereador considera que a

população está em dívida com ele,78 o que lhe permite esperar retribuição, sob forma de voto.

Ao patrocinar a festa do Santo Pescador, o vereador procura afirmar-se como líder moral

dos pescadores e dos católicos do lugar e reafirmar-se enquanto líder político, além de ligar sua

imagem ao padroeiro da festa, para se tornar, ele mesmo, patrono dos pescadores.79 Através da

festa, o vereador promove a si mesmo como o instituidor, ou patrocinador, dela.80

O símbolo ritual pode condensar vários significados, que colocariam as normas éticas e

jurídicas da sociedade em contato íntimo com fortes estímulos emocionais. A excitação social e

os estímulos diretamente sensoriais da festa de São Pedro, tais como a música, a dança e o

álcool, levariam o símbolo ritual a um intercâmbio de qualidades entre os seus pólos de

significação.81 As normas e valores evocados pelo Santo Pescador e por sua festa saturam-se de

emoções distintas, de acordo com o momento festivo. Os valores e sentimentos despertados no

momento da Missa são diferentes daqueles ressaltados durante o show.

A Missa evoca a comunhão com Cristo, o louvor ao Santo homenageado e a fé católica,

exigindo, portanto, um comportamento de recato e respeito, coerente com esses sentimentos e

valores. Já os shows de forró despertam sensações de divertimento, lazer e brincadeira,

conduzindo ao prazer da dança, por vezes libidinosa, da bebida e da paquera. Os valores cristãos

ficam, com estes espetáculos, temporariamente suspensos.

Entre a Missa e os shows de forró, o show católico surge como um evento ao mesmo

tempo recreativo e religioso. Pode-se considerar estes shows como não sendo nem sagrados nem

77 Cf. Mateus 26:26; Marcos 14:22; Lucas 22:19. 78 Cf. Mauss: 2003. 79 Os vocábulos “patrono”, “padroeiro” e “patrocinador” têm a mesma origem etimológica, derivados da raiz latina pater-, “pai”, porém com um valor mais social e religioso do que de simples paternidade física, esta designada por parens. Do antepositivo pater-, se originam as palavras patrónus, “protetor dos plebeus”; padrom, “protetor”; padroeyro, “santo que protege”; e patrocinìum, “proteção dos patrícios aos plebeus, patrocínio, apoio”. 80 Turner afirma que, ao patrocinar o ritual do Mukanda, o chefe Ndembu obtém o reconhecimento amplo, dentro e fora de sua aldeia, de líder moral, quando não de líder político dela. No caso da festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos ocorre o mesmo, mas em outro sentido, pois Russo já o líder político local. 81 Cf. Turner: 2005

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profanos, configurando-os assim em um instrumento de mediação entre dois momentos distintos

da festa: o ritual e o lúdico.

Pensando a Festa

A festa de São Pedro pode ser pensada como um fato social total82 dentro de Ponta

Grossa dos Fidalgos, pois envolve os aspectos mais variados da vida naquele povoado pesqueiro.

O primeiro plano em que se pensa ao falar da festa de São Pedro é o religioso, já que o festejo se

propõe a reverenciar um santo católico que é padroeiro dos pescadores. Isto nos leva à esfera

social da economia doméstica, profissão e mesmo identidade dos homens do arraial. Assim como

a maioria deles, São Pedro exercia o ofício de pescador antes de começar a seguir Jesus,

identidade, aliás, que se manteve mesmo depois de se tornar discípulo: ele parou de pescar

peixes para aprender com Jesus a “pescar homens”, mas conservou sua identidade de pescador.

Embora haja o exercício de outras profissões no arraial (há os que trabalham em

estabelecimentos comerciais no povoado, os que trabalham nas fazendas vizinhas de cana-de-

açúcar e os contratados pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes para serviços com vigia,

servente e fiscais de banheiro público), o ofício que para os locais confere mais valor em termos

identitários, é o da pesca.

Esta ‘identidade compartilhada’ entre seu santo patrono e o pescador de Ponta Grossa dos

Fidalgos não fica limitada, contudo, ao ofício de seu sustento. Contada durante na abertura da

festa de 2002, a história do apóstolo Pedro evoca os valores que o homem ideal deve ter no

imaginário daquela população,83 valores estes que devem ser buscados no futuro marido das

moças. Esta característica nos remete à esfera da reprodução da estrutura social, tanto no que se

refere aos pais ensinando aos filhos o ofício da pesca desde pequenos, quanto ao tipo de parceiro

que se busca para o casamento.

Existem duas formas de se casar em Ponta Grossa dos Fidalgos. Os moradores

denominam ‘casamento-noivo’ a cerimônia nupcial realizada na Igreja, com a noiva trajando

vestido de noiva, véu e grinalda, em que a festa é patrocinada pelo pai da noiva e a casa e os

móveis desta são pagos pelo pai do noivo. Este tipo de casamento é pouquíssimo frequente no

povoado. Devido ao seu alto custo financeiro, os namorados em geral preferem o ‘casamento-

fugido’, que segue um processo ritualizado para o estabelecimento das alianças matrimoniais e é

a forma mais usada de enlace matrimonial. Geralmente, o primeiro contato para o início de um

namoro que pode resultar em casamento-fugido se dá “após o primeiro contato visual ou verbal,

82 Cf. Mauss: 2003. 83 A este respeito falarei mais detalhadamente em “Canoas e Atraso”, na Parte IV deste trabalho.

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quando o par, ou apenas um pretendente passa a flertar demonstrando seu interesse e

provocando a atenção do outro com expressões fisionômicas e gestos significativos; todos eles

realizados com cautela, para não suscitar a atenção dos circundantes”.84 A festa de São Pedro,

com seus shows e eventos recreativos é um momento privilegiado para o flerte e início de

namoro no povoado.

Além dos aspectos religioso, político, identitário, de reprodução social e lúdico, a festa de

São Pedro engloba ainda o âmbito econômico, pois muitas famílias se organizam para montar as

barraquinhas e ganhar uma renda extra para o orçamento doméstico durante a festa.

Ao analisar as várias ‘festas brasileiras’ e suas características comuns, Rita de Cássia

Amaral afirma que, mesmo não tendo como objetivo atrair turistas, a festa assim se permite usar

em certos pontos, caso o Estado tente transformá-la em produto turístico. Para a autora, através

da vontade de realização da festa, muitos grupos se organizam, crescendo política e

economicamente, ainda que em modo local. A própria população compreende e ressalta a

importância de um intenso fluxo de pessoas de fora de Ponta Grossa dos Fidalgos durante o

período festivo, que consomem nas barraquinhas e movimentam a economia do lugar.

O interesse em atrair pessoas de fora do povoado não está somente no caráter econômico

da festividade. Se refletirmos a respeito da dimensão simbólica da festa, trazer pessoas de

povoados vizinhos é aumentar as possibilidades de reprodução social do lugar. As pessoas são

atraídas ao arraial na ocasião da festa de São Pedro pela homenagem ao Santo católico; pela

vontade de dançar, cantar, beber e paquerar nos shows de forró e música baiana; e pela

realização da cavalgada.

Pode-se afirmar que a cavalgada é um evento que não representa os pescadores, mas os

fazendeiros e proprietários de terras da região. Apesar disto, acontece todos os anos como um

evento inscrito dentro do rito calendário de São Pedro, o retorno e a inserção desses cavaleiros

no povoado ocorrem dentro de uma sazonalidade, posto que a divisão anual corresponde à

periodicidade do rito. O calendário festivo-religioso exprime o ritmo da atividade coletiva e

assegura sua regularidade. 85

Sabe-se que há uma tensão latente entre os fazendeiros de terras marginais à Lagoa Feia,

em sua maioria, ilhas situadas dentro dela, e os pescadores que da Lagoa tiram seu sustento.

Quando falam dos problemas que costumam enfrentar por não poderem pescar em determinados

pontos da Lagoa porque os fazendeiros não permitem que os pescadores entrem em suas terras,

84 Jorge: 2006, p. 42. 85 Cf. Durkheim: 2000.

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muitos dos pescadores mais antigos relatam um conflito ocorrido na década de 1970, em que, por

duas vezes, a população de Ponta Grossa se reuniu para paralisar o trabalho que uma draga do

DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento) realizava na Lagoa para construção de

um canal submerso que, segundo os pescadores, removeria um ressalto topográfico chamado

Durinho da Valeta, o que acarretaria no escoamento da água da Lagoa até que ela secasse

completamente.86 Como boa parte dos nativos que participam da cavalgada são proprietários de

terras marginais à Lagoa Feia, convém tentar compreender a importância deste evento dentro do

rito do Santo Pescador. Afinal, este evento tem sua regularidade garantida na festividade e o

contato mantido pelos pequenos fazendeiros e os pescadores se configura como algo freqüente,

uma vez que parte dos cavaleiros são pessoas do povoado ou possuem terras nele.

De 2002 a 2006 a cavalgada aconteceu sempre aos domingos, terceiro dia de festividade.

Ela se mostra importante porque, exceto em 2002, o último dia de festa é o dia principal das

comemorações, quando se concentram eventos considerados centrais na celebração do santo

pescador: procissão de barcos, procissão por terra e missa campal.87 Em 2002 esses eventos se

concentraram no sábado, que foi considerado o dia principal da festa, mas havia uma

peculiaridade naquele ano. Como afirmei anteriormente, naquele domingo acontecera a final da

Copa do Mundo de futebol, e o Brasil estava disputando a partida. Conquistando o

pentacampeonato ou não, o trio elétrico animaria uma festa em outra localidade, e por isso a

Prefeitura precisou deslocá-lo de Ponta Grossa. Assim, para “não competir” com o futebol, as

procissões e a missa aconteceram no dia anterior. Este é um ponto importante de se ressaltar.

Quando as mulheres que frequentam a Igreja organizam a festa, prestam atenção a essas

questões, embora a maioria delas não se interesse por futebol. A preocupação é antes em não

desagradar ao Santo com uma missa e procissões esvaziadas do que com os interesses

masculinos por esporte. Colocar os eventos religiosos para concorrer com o futebol poderia

resultar em pouca adesão masculina às homenagens litúrgicas e, talvez, a procissão de barcos

nem ocorresse.

Ainda assim, o único evento relacionado à festa de São Pedro ocorrido naquele domingo,

último dia da festa de 2002, foi a cavalgada. Esta representa o momento em que os cavaleiros

“fazem-se visíveis” no povoado pesqueiro. Eles também fazem parte daquela comunidade e,

embora não sejam pescadores, de alguma forma se identificam com o Santo. Ainda que não

86 Cf. Valpassos: 2006. 87 Ver quadro sinóptico no Anexo II. Em 2006, dos três eventos religiosos considerados centrais, dois deles não ocorreram. A festa de São Pedro continuou sendo considerada ‘festa’, mas foi classificada pela população como ‘fraca’.

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sejam pescadores, os homens do povoado procuram se identificar com as qualidades de São

Pedro. A primeira delas é que ele é um homem ‘trabalhador’, ‘honesto’, de respeito.

Neste momento de display e ostentação, é possível ver muitos homens e rapazes de Ponta

Grossa dos Fidalgos andando a cavalo com vestimentas que não são rotineiras no povoado:

camisa xadrez por dentro da calça jeans, botas e chapéu de vaqueiro, por vezes cinto de fivela no

mesmo estilo. No dia-a-dia os habitantes do povoado não usam este tipo de roupa, mas muitos se

apresentam assim durante a cavalgada, às vezes dispensando apenas a camisa xadrez, quando há

uma “camisa da cavalgada”. Assim, a cavalgada chama a atenção para a categoria “cavaleiros”,

que são os afazendados ou ainda, o sujeito que vai para ser como um afazendado.88 Isto porque

os donos de fazendas marginais à Lagoa Feia que participam da cavalgada costumam emprestar

seus cavalos e charretes a outros homens do povoado que desejem participar do evento mas que

não sejam donos de terras e/ou não tenham cavalo.

Basicamente três tipos de pessoas participam das cavalgadas em Ponta Grossa dos

Fidalgos: 1) os proprietários de terras marginais à Lagoa Feia; 2) os afazendados que vêm de

outras localidades para prestigiar a cavalgada de São Pedro de Ponta Grossa; e 3) os homens e

rapazes locais que desejam mostrar-se como “afazendados” durante o evento e os ‘curiosos’, isto

é, pessoas que não são donas de terras e nem rapazes fazendo-se de cowboys. Podem ser

mulheres ou homens de dentro ou de fora do povoado interessados em participar da cavalgada

por gostarem de andar a cavalo, porque acham divertido, porque são devotas de São Pedro ou

mesmo apenas por curiosidade, e por que não dizer, entre os “curiosos” também podem estar

pessoas com motivações etnográficas, como Bonnie, Cyntia, Lorena e eu em 2004.

Os cavaleiros que vêm de fora, em geral participam de diversas cavalgadas em um

circuito de festas religiosas pelos distritos do município campista e, às vezes, dos municípios

vizinhos de São João da Barra e São Francisco do Itabapoana.89 A idéia de display pode ser

demonstrada pelo argumento usado por Durval quando, em 2006, discutia com Nelson e Sandro

sobre a ida ou não dos cavaleiros até o Porto da Beirada. Durval pensava no grupo de cavaleiros

visitantes quando disse que o cavaleiro que vem dos povoados vizinhos que “dar sua voltinha”

no local onde está a “badalação” da festa.

Após o passeio dos cavaleiros pelo Porto, o locutor Sandro costuma pedir para que eles

prendam os cavalos nas terras vizinhas ao Porto da Beirada, pertencentes a Daniel, festeiro da

88 Esta idéia da cavalgada como um display, um momento de ostentação para ‘fazer-se ver’ dentro do povoado me foi sugerida por Arno Vogel. 89 Em 2004, por exemplo, agradeceu-se durante a cavalgada à presença de cavaleiros oriundos de São Martinho, Baixa Grande, Farol de São Tomé, Tocos, Caxias de Tocos e Coqueiros de Tocos, todas localidades do município campista.

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cavalgada durante os anos de 2003, 2004 e 2005. Muitas vezes, alguns desses homens que vêm

de fora e também os rapazes locais que se vestem de vaqueiros para o evento ficam transitando

pelo Porto da Beirada mesmo depois de Sandro pedir para que eles se retirem. Surgem então

conflitos de valores e pensamentos entre esses homens, que querem se exibir para as mulheres e

se divertir bebendo, dançando forró e andando a cavalo, e as mulheres que frequentam a Igreja e

alguns católicos com mais de 60 anos. Este é, basicamente, o grupo que acusa os cavaleiros de

falta de respeito a elas e ao Santo.

Esses cavaleiros, contudo, não se vêem desrespeitando ninguém, mas participando de

uma festa no povoado, na qual desejam se divertir. Ainda que tenha caráter religioso, a festa de

São Pedro mantém igualmente aspectos bastante secularizados, que criam conflitos com o grupo

católico local. Segundo Rita do Amaral, na maioria das festas religiosas brasileiras “a

participação popular se dá mais pelo aspecto turístico, do divertimento e alegria, do que pelo

aspecto religioso propriamente dito do evento”. 90 A antropóloga ressalta, ainda, “que para

aqueles que realmente dominam o código da festa, a leitura dos símbolos que ela contém é

sempre diferente da leitura dos turistas e visitantes, que a vêem, geralmente, como espetáculo e

diversão”.91 Em Ponta Grossa dos Fidalgos, os que vêm de fora participam da festa buscando o

prazer - bebendo, dançando forró e paquerando - enquanto os cavaleiros, além deste tipo de

diversão, procuram divertir-se andando a cavalo. Isto não significa, contudo, que diversão seja a

única motivação para a participação destas pessoas na festa religiosa. Assim como as

manifestações de religiosidade fazem parte da festa de São Pedro, também o fazem os eventos

lúdicos. O lúdico e o religioso são dois dos muitos aspectos na mesma festa.

Nunca ouvi um pontagrossense dizer que vê problemas em haver recreação na festa de

São Pedro. Pelo contrário, muitos afirmam que se não houver shows de música e dança a festa

fica “fraca”, em oposição a uma festa “boa” ou “forte”. Também a festa antiga possuía aspectos

lúdicos e tinha um caráter recreativo, representados nas gincanas e nos bailes. Segalen afirma

que o lúdico sempre fez parte dos grandes rituais:

“De fato, se o ritual é aceito, compartilhado, ele se acomoda às atitudes mais

descontraídas, quem sabe até lúdicas; apenas quando imposto é que vai apresentar

marcas de distanciamento e respeito convencional (...). A alegria e os

90 Amaral: 1998; P. 36. 91 Idem; P. 278.

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transbordamentos sempre acompanharam os grandes rituais; por que recusar-lhes

isto hoje?”.92

Segundo Rita de Cássia Amaral, os jesuítas permitiam, durante a Colônia, que os índios e

os negros dançassem, pois a dança era considerada uma maneira de agradar a Deus. A presença

das danças profanas nas festas religiosas, portanto, seria o “resquício da catequese jesuítica”.93 É

necessário, pois, que haja aspectos lúdicos na festa para garantir o estado de efervescência

coletiva, para o qual contribuem fortemente “os elementos presentes em todas as festas: música,

bebidas, comidas específicas, comportamentos ritualizados, danças, sensualidade etc.” 94

Uma das grandes críticas sobre desrespeito aos cavaleiros está relacionada aos efeitos

etílicos. Quando participei da cavalgada em 2004, ao chegar ao ponto de concentração numa

curva da estrada de Caxias de Tocos, percebi que Russo, seu filho Pedro, e os festeiros do evento

José de Hipólito e Daniel95 estavam distribuindo cerveja aos cavaleiros. Havia uma caminhonete

com a caçamba cheia de gelo e latinhas de cerveja e os quatro homens se esforçavam para

organizar os cavaleiros e a distribuição das bebidas. Durante a cavalgada, Russo disse ao

microfone que a cerveja era só para refrescar e não para beber e “ficar doido”. Mesmo assim, o

vereador foi muito criticado pelo grupo que o acusou de falta de respeito ao Santo, pois ele

colaborou, com a distribuição de bebidas, para que os cavaleiros ficassem bêbados e se

comportassem de maneira licenciosa, dizendo obscenidades às moças.

Extinguir a embriaguez tupinambá nas festividades foi uma das principais batalhas dos

jesuítas quando chegaram ao Brasil no século XVI. A ebriedade era já encarada como raiz de

todo o mal e perdição, causa da discórdia entre os povos pela Igreja Católica Européia.96 O que

se percebe na literatura antropológica, todavia, é que a bebida faz parte da festa religiosa no

Brasil, sempre dividindo as opiniões a respeito. Pode-se citar, como exemplo, a festa de São

João, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, sobre a qual João Carlos de Souza escreve:

“Em carta publicada pelo Iniciador97 de 1º de julho de 1883 (...), o missivista registrou

que na noite de São João a animação fora grande, com muitas fogueiras, muitas salvas e

muitos gatos pretos (bebedeira). (...) Considerou que Corumbá não oferecia nenhuma

92 Segalen: 2002; P. 150. 93 Amaral: 1998; P. 65. 94 Idem; p. 22. 95 Proprietários de terras marginais à Lagoa Feia, moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos. 96 Cf. Fernandes, 2007. 97 Jornal de Corumbá.

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distração e, quando ocorria uma festa, ela se tornava verdadeiramente popular. O texto

sugere que, ao referir-se ao popular, o autor pensasse nessa dimensão de liberdade,

algazarra, bebedeira e desregramento, próximos dos rituais carnavalescos.”98

Esta analogia da festa católica com o rito carnavalesco foi feita também por Isidoro Alves

em “O Carnaval Devoto”, quando fala sobre o Círio de Nazaré, em Belém, no Pará. Também ali

há a tentativa de separar o “núcleo estruturado” das áreas “marginais”, o puro e do impuro, o

absolutamente sagrado e do profano absoluto.

A tentativa de separação destes dois loci festivos, portanto, está presente em diversas

festas católicas brasileiras, se não em todas, em maior ou menor grau. O que aquele grupo de

Ponta Grossa dos Fidalgos critica é a falta de limites desses homens. Nenhum problema há em se

divertir na festa, desde que sejam respeitados os momentos rituais, como a Missa Campal. É

permitido beber, porém seria de bom tom não exagerar. Paquerar é normal e também os católicos

mais velhos do lugar o faziam nas festas antigas, todavia dizer indecoros às mulheres e moças é

desrespeito. Dançar forró é muito divertido e todos gostam, mas é desnecessário que a dança seja

feita de modo licencioso. Muitas vezes, os que vêm de fora não estão atentos a essas pequenas

regras de conduta observadas pelos católicos assíduos à Igreja. Daí a acusação, por parte desses

últimos, de desrespeito.

Os cavaleiros não agem propositalmente dessa forma que parece tão ofensiva e

desrespeitosa ao grupo católico. Eles agem assim porque não estão submetidos às características

e tendências peculiares aos fiéis católicos, e nesse sentido eles estão distantes do grupo. Sua

proximidade está relacionada com traços comuns da natureza social, como o gosto pelo forró,

para dar um exemplo, ou genericamente humana, como a necessidade e desejo de recreação. Não

é simples, todavia, a oposição entre devoção e diversão. Há complexas formas devocionais

associadas a modos de diversão, como por exemplo, o “beber para o Santo”, uma devoção que

tende a escapar da regulação da instituição católica. Neste sentido, o cavaleiro, ainda que

também católico, se afasta dos fiéis locais99. A proximidade e a distância produzem uma tensão

particular entre o cavaleiro e o grupo em que se inseriu, gerando uma forma particular de

interação. Em Ponta Grossa dos Fidalgos, essa interação é conflituosa e evoca uma discussão

sobre o respeito ou a falta dele.

Há uma divisão entre ‘parte religiosa’ e ‘parte recreativa’ da festa de São Pedro em Ponta

Grossa dos Fidalgos. Esta divisão é adotada pela própria população, dado que todo evento

98 Souza, 2004: P. 345. 99 E quando digo fiéis, neste caso, refiro-me aos freqüentadores assíduos da Igreja, que criticam esses excessos.

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ocorrido na festa de São Pedro é um evento “religioso”, posto que esta é uma festa para o Santo.

Há uma idéia, contudo, nos valores dos católicos praticantes do local, de que paquera, bebida e

política não devam ser misturadas a coisas da Igreja. Beber e paquerar na festa do Santo, ao

menos durante os momentos em que a imagem de São Pedro se encontra no Porto da Beirada, é

um desrespeito ao Santo e encarado pelos mais velhos como sinal de falta de fé e devoção. Já a

política partidária é considerada por muitos no povoado como algo intrinsecamente pejorativo,

como uma entidade malévola capaz de conspurcar tudo aquilo em que toca. Assim, muitos dos

conflitos existentes na festa de São Pedro são resultado desta visão maniqueísta que os habitantes

de Ponta Grossa dos Fidalgos têm com relação a certos assuntos. Se a festa não tiver as partes

econômica, religiosa, política e de sociabilidade, ela fica “fraca”, dentro da categorização nativa,

e deixa de ser um fato social total.

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PARTE IV

EM BUSCA DA FESTA PERDIDA

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Canoas e Atraso

A maioria dos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos tende a dividir o mundo em

poderes opostos e incompatíveis, como no caso de política e religião. Eles também agem assim

com relação ao passado, àquela Ponta Grossa do tempo dos antigos que eu descrevi no primeiro

capítulo e da qual muito ouvi falar, mas não cheguei a conhecer. É perceptível, no entanto, que

estas memórias podem ser interpretadas tanto com valorização positiva, quanto com negativa.

Assim, tem-se uma diferença de concepção do passado que chamarei de “tempo das canoas” e de

uma outra, chamada de “tempo do atraso”.

O “tempo das canoas” é recordado como um período de pesca abundante, numa Lagoa

bela, cujas margens são como uma praia. Neste sentido, a frase “não havia luz, mas havia

respeito” denota a nostalgia de tempos difíceis, porém considerados por muitos como tendo sido

melhores para se viver do que os atuais, senão do ponto de vista do conforto, que não se compara

ao de hoje, ao menos do ponto de vista moral.

Não pense o leitor que não havia conflitos. Ao lado dessa visão idílica do “tempo das

canoas”, onde, nas palavras de Castro Faria, “tudo parece refletir a simplicidade do ambiente em

que toda aquela vila se agita”, 100 surge um olhar menos romântico, que vê as pessoas desta

época como “atrasadas”, “primitivas”, invocando neste sentido os conflitos entre os moradores

do Ingá e os da Beirada e da Ponta, quando os membros de um desses grupos residenciais não

podiam transitar pelo território do outro sem uma permissão do xerife do lado rival, sob pena de

desencadear brigas.

Essa visão se refere à época em questão como o “tempo do atraso”, época em que o

asfalto ainda não chegara ao povoado e as estradas que levavam à Ponta Grossa dos Fidalgos

eram lamacentas, dificultando o acesso ao lugar, mantendo-o isolado do resto do município e

atrapalhando o transporte da safra de peixes para o Mercado Municipal de Campos.

Era um período em que os moradores do Ingá e da Beirada brigavam entre si. Conta-se

que cada lado tinha seu “xerife”, que atuava como uma espécie de diplomata e tinha autoridade

para permitir ou não que os moradores do lado oposto adentrassem seu território. Essa dualidade

opositiva traduzia-se também na existência de dois times de futebol; um do Ingá, outro da

Beirada, que jogavam apenas entre si. O time oficial de Ponta Grossa dos Fidalgos, contudo, era

o Colonial, composto por jogadores dos dois times pontagrossenses, que disputava campeonatos

da região contra times das localidades vizinhas. No mês de fevereiro havia a disputa entre os

“ranchos de carnaval” dos dois lados, espécie de blocos carnavalescos que desfilavam e tinham

100 Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.

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pontuação atribuída às fantasias e à música. Ao final do desfile, no local hoje conhecido como

Macaco, grande parte dos foliões dos lados rivais travava uma batalha campal.

A mesma Ponta Grossa dos Fidalgos é, portanto, vista de duas formas distintas: a visão

idílica do “tempo das canoas” destaca os aspectos positivos que os moradores julgam que a

aldeia tinha naquele então, ao passo que o rótulo “tempo do atraso” relembra e enfatiza os

aspectos negativos da vida no arraial, como as dificuldades de uma vida árdua e os conflitos

entre as facções locais.

As evocações mnésicas dos pontagrossenses parecem contraditórias se não estivermos

atentos para o fato de que o tempo dos antigos é um argumento retórico. Por isso o passado pode

ser utilizado para justificar os mais diferentes pontos de vista sobre os assuntos mais diversos.

A festa “é o reviver do passado e projeção de utopias”.101 A memória da nova festa de

São Pedro evocou as festas antigas, sua religiosidade e seu respeito, supostamente inexistentes

nos dias de hoje, porém, em perfeita harmonia no passado. Assim, de um modo geral, as pessoas

quando se referem ao “tempo das canoas” afirmam que havia mais respeito na festa antiga de

São Pedro. Não encontrei, todavia, pessoa alguma que, mesmo defendendo seja a visão do

“tempo das canoas” ou a do “tempo do atraso”, desconsiderasse ou ignorasse quaisquer fatores,

negativos ou positivos, do tempo antigo. Ainda que possam privilegiar uma dessas formas de

recordar o passado, todos estão conscientes de que havia fatores, da vida cotidiana pretérita,

melhores ou piores que os atuais. Apesar disso, muitos, ao recordar o passado, terminavam

suspirando – “ah, minha filha, mas era tão bom...”. Em iguais circunstâncias, outros,

aproximadamente na mesma proporção, protestam contra esta idealização, sobretudo as

mulheres, que assinalam a redução do dispêndio de energia na execução das tarefas domésticas,

muito menor hoje do que antigamente.

Não se pode afirmar, contudo, que todas as mulheres prefiram os dias atuais em

detrimento do tempo antigo. Pelo menos no plano do discurso, algumas mulheres disseram que

preferiam viver como antigamente, pois havia mais respeito, mais moral, mais religiosidade e fé,

e “as moças se casavam virgens”. Se bem que, entre todas as mulheres que me argumentaram

que o tempo dos antigos era melhor porque as moças se casavam virgens, nenhuma delas casou-

se efetivamente de tal modo, como elas mesmas afirmam. Boa parte delas nem mesmo se casou

na Igreja, maneira defendida como sendo a ‘correta’; a maioria adotou a fuga como forma de

contrair matrimônio.

101 Amaral: 1998; P. 273.

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Isso mostra que também há mulheres que idealizam o passado, a despeito das

dificuldades materiais e do trabalho árduo que era cuidar da casa, carregando latas d’água na

cabeça da Lagoa para a casa, cozinhando em fogão à lenha e conservando o alimento em tonéis

com banha de porco, já que não havia eletricidade.

Esta idealização por parte dessas mulheres com relação à virgindade feminina no passado

demonstra ainda uma transformação ocorrida nos valores da sociedade. Essa mudança não se deu

de forma abrupta, foi e ainda é um processo, portanto o que se vê hoje são valores a priori

contraditórios coexistindo não somente no mesmo lugar, mas demonstrados pelas mesmas

pessoas. Assim é que, por exemplo, um pai afirmou não deixar sua filha de quinze anos assistir a

novela das oito horas, da Rede Globo de Televisão, pois acredita que haja cenas inapropriadas

para a garota, com muitas referências a sexo. Mas esta mesma moça freqüenta o Porto da

Beirada durante a festa de São Pedro, onde a sensualidade dos casais dançando forró pode ser

percebida até pelo mais desatento dos visitantes. A libidinosidade da dança e dos carinhos

trocados por muitos namorados em público durante a festa é reconhecida pelo pai, mas não se

constitui enquanto problema para ele, ao contrário da telenovela.

O que isto nos revela? Creio que este seja um exemplo justamente deste choque de

valores ‘tradicionais’, compatíveis com o modo de vida antigo, com os novos valores trazidos

com a ‘modernidade’ junto com o contato mais próximo com a sede do Município e com as

informações do exterior de Ponta Grossa dos Fidalgos, veiculada pela programação tanto

informativa quanto de entretenimento da tv, aparelho inexistente nos tempos dos antigos. A

intensificação dos contatos com o mundo além de Ponta Grossa dos Fidalgos, somada aos

próprios processos de transformação ocorridos localmente, deram lugar a novos valores e modos

de comportamento no povoado.

Algumas histórias são vividas “por tabela” e contadas por muitos que não a

experimentaram pessoalmente. Fazem parte do imaginário coletivo.102 Assim, mesmo aqueles

que não conheceram a Lagoa com seus 370km² ressaltam que a Lagoa era muito bela no tempo

dos antigos e demonstram a mesma nostalgia que Georges Duby atribui aos idosos, que “choram

os bons tempos passados em que tudo era mais belo”,103 num fenômeno que Pollak chama de

“acontecimentos vividos por tabela”, i.e., acontecimentos vividos pelo grupo ou pela

coletividade à qual a pessoa sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre

participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase

impossível que ela consiga saber se participou ou não. São eventos que não se situam dentro do

102 Cf. Pollak: 1992. 103 Cf. Duby: 1988.

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espaço-tempo de uma pessoa, mas, ainda assim, por meio da socialização política ou da

socialização histórica, criam um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado

passado tão forte que Pollak fala de “uma memória quase que herdada”.104

Pollak afirma que a memória é um fenômeno construído, pois é “organizada em função

das preocupações pessoais e políticas do momento”.105 Ele afirma que o que a memória

individual grava ou exclui, recalca ou relembra, resulta de um verdadeiro trabalho de

organização, e isto pode se dar consciente ou inconscientemente. Ela é seletiva e nem tudo fica

gravado ou registrado, constituindo-se assim como verdadeiro registro tentacular dos

acontecimentos da vida.

Comemorar é trazer à lembrança, recordar, memorar. Deriva do latim commemáre, de

memoráre, “o que se lembra, o que se faz lembrar”. Quando a festa deixou de ser realizada, os

católicos continuaram a fazer a procissão e rezar a ladainha em frente ao prédio da Colônia de

Pesca. Como, mesmo quando eles chamavam a comemoração de festa, nem sempre havia Missa,

não ficou claro para todos que a festa não mais estava sendo realizada. Ou seja, continuou

existindo um rito para (re)lembrar São Pedro. A grande diferença entre a festa antiga e a simples

comemoração religiosa, eram os bailes realizados na festa antiga, mas ninguém lembra ao certo

em que ano eles deixaram de acontecer.

Halbwachs diferencia o tempo coletivo do tempo individual, ou ainda, diz que a divisão

do tempo, que resulta de convenções e costumes a fim de expressar a ordem social, é diferente da

noção, impressão ou consciência individual que se tem da duração do tempo. Assim, os

indivíduos criam “durações individuais” que dividem o tempo. O que se observa em Ponta

Grossa dos Fidalgos é que as pessoas, embora não lembrem o ano exato da morte do antigo

festeiro e o conseqüente hiato entre os dois modelos de festa, se lembram de um “contexto de

dados temporais” a que a lembrança da antiga festa está ligada de alguma forma: falta de energia

elétrica e de água encanada, existência de times de futebol e ranchos de carnaval que rivalizavam

no povoado, inexistência de outras igrejas além da católica, o tipo de habitação, as margens da

Lagoa Feia etc. É justamente nesse sentido que, “graças a primeira série de reflexões desse tipo,

muitas vezes uma lembrança toma corpo e se completa”, como escreve Halbwachs.106

São Pedro não é o símbolo focal da festa simplesmente porque a festa é feita em sua

homenagem, mas porque o Santo evoca os valores que o homem ideal deve ter em Ponta Grossa

dos Fidalgos: deve ser trabalhador e prover o seu lar. São Pedro é a máxima expressão do que é

104 Cf. Pollak: 1992. 105 Idem; ibidem. 106 Halbwachs: 2006, p. 124.

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ideal em um homem no povoado, ou seja, o homem que as mulheres buscam em Ponta Grossa

possui as características atribuídas ao Santo: um homem honesto, trabalhador, que vive da pesca,

que ama Deus. A identificação começa na profissão, visto que a pesca é ainda hoje a principal

atividade econômica desenvolvida no local, mas não pára por aí. São Pedro não é simplesmente

um homem que vive da pesca, mas um ‘pescador nos moldes tradicionais’, i.e., que fazia uso de

saberes naturalísticos e redes de pesca. O pescador de status alto no povoado é aquele que

conhece bem a ictiofauna e a geografia da Lagoa Feia: os hábitos de cada espécie de peixe, suas

formas de alimentação e reprodução, os lugares em que gostam de ficar, os solos e águas da

Lagoa e as técnicas de captura apropriadas a cada espécie. É preciso lembrar que dentro de uma

Lagoa de 160m², nem sempre é possível avistar suas margens. Assim, o pescador precisa

conhecer a técnica de marcas de encruzo e o solo da Lagoa para se localizar dentro dela e saber

para que lado precisa navegar quando for voltar para casa.

O pescador que mais se aproximou, em tempos recentes, do pólo de significado

normativo deste símbolo focal, ou seja, dos valores de ordem moral e social associados a São

Pedro, foi Zé Lisboa. Vale recordar ao leitor o que foi dito sobre este homem na primeira parte

deste trabalho. Zé Lisboa era um pescador nos moldes tradicionais. Conhecia muito bem a

geografia lagunar e os hábitos das espécies de peixes, assim como diversas técnicas de captura.

Seu modo de vida e sua casa eram símbolos do antigo pescador e modo de vida nos tempos

atuais. Ele era a representação viva da coetaneidade do não coetâneo.

Ele não era simplesmente o passado inserido no presente. Zé Lisboa era o símbolo vivo

das transformações ocorridas no povoado no último meio século. Quando Abraão chegou a

Ponta Grossa pela primeira vez e disse que queria saber sobre pesca, foi levado para conhecer Zé

Lisboa, então decano da pesca no local. Os pescadores que levaram o jovem pesquisador para

falar com Zé Lisboa consideraram naquele momento que era importante o visitante conhecer as

histórias do passado, como era a pesca antigamente em antagonismo à pesca hoje, e conhecer e

ouvir as histórias a respeito da casa daquele senhor, uma casa de tijolos, mas que em muito se

assemelhava às antigas casas de tabúa do arraial.

O passado também é relembrado quando os conflitos em torno da organização da festa

entre o vereador e o grupo de oração local se tornam explícitos em 2004. Assim, uma versão

diferente da festa do Patrono dos pescadores começou a ser evocada para argumentar que Russo

usara a festa como meio de autopromoção política.

Desse modo, a vida de Ponta Grossa dos Fidalgos continua sendo fortemente marcada

pela presença de um passado que, longe de ser relegado ao status de meras recordações de

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períodos já distantes, mostra-se o arcabouço argumentativo para questionamentos e avaliações de

iniciativas e decisões do presente.

Como o povo vê a festa

A população de Ponta Grossa dos Fidalgos, obviamente, não possui uma opinião

homogênea a respeito da inserção do vereador na festa católica. As pessoas têm visões

diferentes, de acordo com o ‘grupo’ em que elas se inserem, de acordo com seus interesses

conscientes ou não. Há no povoado, desse modo, protestantes e católicos; os ‘contra’ e os ‘a

favor’ de Russo no cenário político municipal; os que montam barraquinhas durante o festejo e

os que não o fazem; os católicos que freqüentam a Igreja local assiduamente e os que vão apenas

nas procissões e ocasiões litúrgicas especiais. Não só os interesses e pontos de vista destes

grupos são diferentes, como muitas vezes eles se entrelaçam e por isso surge uma multiplicidade

de opiniões e de “graus” do quanto se é contra ou a favor do modelo atual da festa. Como a

mesma pessoa pode expressar, de acordo com a situação em que se encontra, diferentes “graus”

destas opiniões e nenhuma pesquisa sistemática foi realizada no sentido de “medir” essas

variações, limito-me aqui a apresentar os argumentos genéricos sobre a festa enquanto uma

estratégia política ou não.

Há, pelo menos, duas maneiras de ver a festa: de que esta é um artifício do vereador para

obtenção de votos, argumento que passou a ser usado explicitamente após os conflitos de

interesse entre Russo Peixeiro e as mulheres do grupo de oração local; e o argumento de que a

festa necessita da política, sem a qual, aquela não aconteceria. Este raciocínio começou a ser

explicitado por alguns moradores em contraposição à idéia da festa como algo excessivamente

político.

Como já dito anteriormente, em 2004 a esposa do vereador e a presidente da Associação

de Pescadores organizaram os eventos religiosos da festa de São Pedro e Russo Peixeiro

convidou um grupo de oração de outra localidade a paraninfar a Missa. Esta atitude causou

grande insatisfação às mulheres do grupo de oração local, mesmo entre aquelas que apoiavam

politicamente Russo. Foi a partir daí que estas mulheres organizaram um “boicote” àquela festa,

ato qualificado como uma manifestação do grupo de oração em oposição à inserção e influência

de Russo, enquanto político, na festa. Este grupo considerou que desta forma o ritual religioso se

transformava em momento de “propaganda política” e que havia desrespeito não só da parte do

vereador para com elas e com o Santo, mas também da parte de alguns visitantes e cavaleiros.

Este, contudo, foi o argumento explícito que elas utilizaram para explicar o gesto de

repúdio por terem sido deixadas de fora da organização da festa. Há, no entanto, mais sobre o

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que refletir. Se encararmos a política de forma mais ampla, e não somente como uma prática

partidária e busca por votos, poderemos concluir que aquelas mulheres estavam reivindicando

seu espaço político dentro da organização do festejo. Afinal, até o ano anterior, elas tinham o

poder de decidir quem estaria no palco no momento da Celebração da Eucaristia para cantar os

louvores durante a liturgia, a que horas ocorreriam as procissões e a Missa, como seriam

ornamentados os andores, onde ficaria o andor com o Santo até o momento de ele ser levado ao

Porto da Beirada, se haveria Ministérios de Louvor realizando shows católicos durante o festejo

etc. Todas as pequenas decisões e sua viabilização eram tarefa de Marinês e das outras mulheres

do Conselho Capelar. No momento em que o vereador, enquanto o grande patrono da festa,

homem que a fazia acontecer, as ignorou e colocou outras pessoas para tomar estas decisões, elas

perderam seu espaço político dentro da festa. Perderam seu poder de atuação na esfera religiosa

da festa não somente no processo decisório que ocorre antes de sua realização, mas também no

processo participativo, já que outro grupo de oração viera acompanhar o Padre durante a Missa.

Ainda que o objetivo destas mulheres não fossem votos, elas também faziam um uso

político da festa, num sentido mais amplo, angariando prestígio entre seus pares e/ou satisfação

pessoal com a organização da festa, além de conquistar neste evento um lócus privilegiado para a

exaltação de suas crenças religiosas. Talvez até mesmo fosse uma busca por prestígio perante

São Pedro, visto que não raras vezes os pontagrossenses atribuem manifestações da natureza

ocorridas principalmente durante o período comemorativo dos Santos ao humor destes. Se

chover durante a festa de São Pedro, por exemplo, costuma-se dizer que é porque o Santo está

chateado pois as pessoas não soltam fogos suficientes para ele, ou não prestam a devida atenção

à Missa, ou mesmo não prestigiam as procissões como deveriam.

Muitos católicos de Ponta Grossa dos Fidalgos, por já não nutrirem simpatias político-

partidárias com Russo, aderiram ao boicote à festa de 2004. Cito esta festa porque ela foi o caso

mais extremo e emblemático do conflito que se apresentou de forma latente durante os anos

anteriores, e, num estado menos vigoroso, nos anos posteriores. Os católicos do local que não

viam essa dramática ‘transformação’ do rito religioso em puro marketing político participaram

normalmente da festividade, comparecendo aos shows, montando barraquinhas, enfeitando os

barcos para a procissão, soltando fogos durante a alvorada, assistindo à Missa. Desta maneira, a

população se dividiu, e ainda que parecesse, aos olhos de um visitante que fosse pela primeira

vez à festa de São Pedro naquele vilarejo, que havia muitas pessoas assistindo à Missa Campal,

por exemplo, quem tinha a experiência das festas anteriores percebia que o número de fiéis

atentos era ínfimo. Se esse mesmo visitante ficasse atento às conversas dos moradores no

povoado, poderia perceber essa divisão de opiniões entre os católicos locais, pois a todo o

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momento ouviam-se discussões de pequenos grupos de três ou quatro pessoas, cada um

defendendo seu ponto de vista a respeito de a festa ser uma estratégia política de Russo ou não.

Nessas pequenas rodas de debates, volta e meia alguém mencionava a festa do tempo dos

antigos. Em geral, as pessoas que apontam a festa antiga como melhor que a atual têm acima de

60 anos e muitas não participam da festa de hoje, devido à idade avançada, ou mesmo católicos

que são politicamente contra Russo Peixeiro e por isso o acusam de desrespeito e falta de

religiosidade. É bom mencionar também que os freqüentadores assíduos da Igreja são mulheres

em sua grande maioria, e com idade acima de 35 anos. Poucos são os jovens que freqüentam a

Igreja, e uma parcela considerável deles vai acompanhando suas mães. Muitos jovens,

especialmente as moças, participam das procissões que ocorrem no povoado, mas não são

assíduas às celebrações litúrgicas. Quando os jovens vão à Igreja, ficam na pracinha que há em

frente, conversando ou namorando, tornando sua presença no interior da Igreja um

acontecimento não muito comum.

Mas se a festa antiga era tão boa, por que não voltar a organizar o festejo de São Pedro

nos moldes antigos, prescindindo do patrocínio e influência de um político? Ora, inúmeros

conflitos se desenvolveram no povoado. Para citar um exemplo, entre a presidente da Associação

de Pescadores, Virgimar, e parte dos pescadores credenciados na Associação: desvio da verba

destinada ao pagamento do seguro-defeso e o credenciamento de pessoas que não viviam da

pesca para o recebimento deste seguro, numa relação de clientelismo, eram algumas das

acusações correntes feitas pelas pessoas à presidente.107 Assim é fácil concluir que, se um

festeiro fosse pessoalmente até cada uma dessas pessoas que diz que prefere a festa antiga a fim

de arrecadar dinheiro e organizar uma festa nos moldes antigos, ele seria em algum momento

acusado de roubar o dinheiro, não importa quem fosse. Além disso, como afirmou o antigo

festeiro quando questionado sobre o motivo de não retornar ao modelo antigo da festa, uma

celebração organizada pelos próprios moradores não teria a grandiosidade da festa que tem o

apoio político. Mais que isso, como argumentou o ex-festeiro, o emprego do dinheiro arrecadado

seria sempre alvo de suspeitas e críticas, o que diminuiria o interesse de uma pessoa em assumir

para si as responsabilidades diante da realização do evento.

Além disso, os jovens, para quem a festa é um importante momento de lazer,

confraternização e diversão, ficariam insatisfeitos, achando a festa “fraca” e ruim. Uma festa

fraca não atrairia pessoas dos povoados vizinhos para consumir nas barraquinhas, o que

107 Para mais informações a respeito da Associação de Pescadores e seu funcionamento, ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves: Práticas Políticas, Produções Ideológicas e Discursos de Legitimação na Associação de Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos.

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atrapalharia aos barraqueiros, que fazem um investimento anual para comprar as bebidas e

comidas necessárias para vender durante a festa de São Pedro e arrecadar um dinheiro extra.

Também os barraqueiros provavelmente reclamariam, e não só eles, de ter que dar dinheiro para

realização da festa, ao invés de obter algum lucro durante o momento festivo.

Coisas que o político consegue com alguma facilidade junto à Prefeitura, a qual

intermedeia para o povoado, seriam mais difíceis de se conseguir, tais como iluminação,

segurança, palco, estrutura de som, geradores de energia elétrica, trio elétrico, bandas, banheiros

químicos, divulgação e o pagamento do Pároco para realização da Missa Campal. Para o

vereador, a liberação destes recursos para a festa é muito mais fácil do que para uma pessoa

comum, porque ele dispõe de acessos os quais os cidadãos não têm. Já para uma pessoa comum,

distante de um posto de poder político, há todo um trâmite burocrático para pedir e, por vezes, só

se consegue parte do que foi pedido.

De forma resumida, são estes os argumentos que elencam a impossibilidade de realização

da festa tal qual o modelo pretérito ressaltado nas narrativas que enfatizam os aspectos positivos

dos tempos de outrora. Aquilo que era já não é mais, e a possibilidade de um retorno se mostra,

senão impossível, ao menos de difícil realização. Desse modo, aquilo que pode parecer uma

proposição de mudança, surge, de certa forma, como uma argumentação queixosa contra aquilo

que se considera problemático.

Assim, a grande tensão entre os grupos durante a festa do Santo Pescador destaca

exatamente uma disputa de poder, uma disputa política no sentido amplo da palavra. Quando a

zeladora da Igreja reclama que Russo não a consultou sobre os assuntos religiosos relacionados à

festa e que substituiu o grupo de oração local por um grupo de fora para auxiliar o Padre na

Missa, ela está requisitando para si (e consequentemente para suas companheiras) o poder

relativo aos assuntos religiosos locais, do qual, entre os católicos, ela é referência.

No contexto da festa, a política partidária emerge como o aspecto profano de um evento

voltado para aquilo que é sagrado, pois é encarada como uma prática danosa e suja. Acontece,

todavia, que a vida social não pode ser reduzida a poucos pares maniqueístas, e a própria

repartição do mundo em campos religiosos, econômicos, políticos, pessoais etc, é uma forma de

organizar o pensamento a fim de facilitar a compreensão das coisas.

Neste sentido, a festa não pode ser considerada apenas como recreativa, tampouco como

unicamente política ou religiosa. Não poderia ser compreendida se tais aspectos fossem tomados

como partes distintas do processo ritual. Eles são faces de um mesmo evento e a desconsideração

de qualquer um deles levaria à incompreensão do todo, pois este só pode ser apreendido em sua

amplitude se levarmos todos esses aspectos que no discurso nativo surgem como antitéticos e

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que, no fim das contas, apresentam-se melhor através da idéia de opostos complementares. A

festa, desse modo, contém em si “vários pares de oposição sem representar de modo exclusivo

nenhum deles, constituindo-se, antes de todos108”.

É preciso, portanto, ter em conta quem relata as festas e em quais contextos, pois a

suposta ambigüidade é fruto de narrativas formuladas de modo relacional e contextual. Assim,

podemos incorrer que tanto as festas do passado moldam o discurso sobre as festas

contemporâneas quanto o contrário. Passado e Presente, desse modo, possuem uma interpretação

flutuante que caracteriza, de acordo com a pessoa e o contexto, o dinamismo das narrativas sobre

a festa de São Pedro.

É necessário, então, pensar o ritual por um prisma que priorize a relação dos diferentes

personagens que o realizam. É precisamente nessas circunstâncias que a história aparece como

“um tal emaranhado de sucessos e fracassos, e tão cheia de interpretações duvidosas, que quase

todos os grupos podem encontrar algum precedente favorável às suas atuais demandas e alguma

circunstância para invalidar as dos seus rivais109”.

Nesse sentido, Russo Peixeiro e Marinês destacam-se como atores operando valores e

discursos numa disputa por prestígio, seja este mostrado através de votos ou através dos elogios

e da admiração dos pares. Estamos lidando, pois, com um campo social onde ocorre a

“coexistência e a competição situacional de vários critérios que conferem prestígio, mas não

ensejam o controle sobre os outros110”, no qual os “líderes rivais saquearam o repositório das

façanhas pretéritas para justificar seus atos e objetivos111”.

E essa disputa simbólica tem na festa de São Pedro seu locus privilegiado por ser este o

momento ritual que propicia aquilo que certa vez se chamou de “efervescência social”, ou, dito

de outro modo, um verdadeiro “fenômeno social total” onde, como queria Marcel Mauss:

“(...) exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e

morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas - estas

supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da

distribuição; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os

fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam112”.

108 Amaral: 1998; P. 272. 109 Turner: 2005; 226. 110 Idem; 208. 111 Idem; 229. 112 Mauss: 2003; p. 187.

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Todas essas “instituições” surgem de modo destacado ao longo das celebrações do Santo

Pescador e, apesar dos esforços dos distintos grupos sociais do arraial em separá-las

analiticamente, encontram-se associadas umas às outras de maneira indivisível, fazendo do

momento um verdadeiro florescer dos símbolos que hão de colorir e mesmo compor as disputas

locais anteriores às festividades.

O discurso do retorno

A compreensão do discurso do vereador redivivo é muito importante para apreender os

valores e mecanismos que movem o comportamento e pensamento político de Russo Peixeiro.

Em 2005, após a cassação do mandato do prefeito e vice eleitos em 2004, o então

presidente da Câmara de Vereadores assumiu temporariamente a Prefeitura, vagando assim uma

cadeira entre os parlamentares municipais. Russo Peixeiro, não reeleito, mas bem votado no

município, por ocasião destes acontecimentos, retornou à Câmara. Convocou, então, toda a

população de Ponta Grossa dos Fidalgos, para uma reunião em sua casa no povoado. Nesta

reunião, ele falou sobre sua desilusão por ter perdido as eleições dentro da comunidade à qual

teria se dedicado tanto e acusou seus adversários de terem o vencido através da compra de

sufrágio, como se segue:

“(...) Eu no dia da eleição minha [dá ênfase na palavra ‘minha’], eu acabei de votar, meu

compadre Amaro, oito horas da manhã, fui pra dentro de casa. (...) eu fiquei dentro de casa,

[bate na mesa duas vezes] não saí! E dinheiro rolou dentro de Donana, [o candidato a vereador]

comprando a 50 conto, a 100 conto, botou dez mil conto na mão de um Romeu que ele comprou,

e de outro lá, eu entre Goitacases e Donana tive 732 votos. Por 400 votos, eu seria vereador na

Câmara sem depender de ninguém. Porque eu amo vocês! Essa reunião de hoje aqui, [bate na

mesa] vocês [bate na mesa] tão olhando aqui, cara a cara o vereador! Pelo destino, é o

vereador. Vocês orem por mim, peçam a Deus que eu fique na Câmara que vocês não têm lá um

vereador não, têm um amigo pra hora difícil, quando eu tenho médico pra vocês, pra operar um

filho, eu tenho um advogado, eu tenho o que vocês precisarem, fora do meu mandato não

tenho!”

O que Russo deseja ressaltar neste discurso é justamente o caráter diferenciado que ele

tem enquanto detentor de acessos os quais estão fora do alcance das pessoas comuns113, e de

113 Cf. Kuschnir: 2000.

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intermediador privilegiado entre seus eleitores e os recursos de que eles precisarem (médico,

advogado, empregos, cadastramentos para recebimento do seguro-defeso, vagas nas chamadas

‘frentes de trabalho’ obtidas em período de proibição da pesca etc). A este respeito, Karina

Kuschnir escreve que “a posse de um mandato é condição fundamental para se ter acesso aos

recursos públicos, sejam eles cargos, bens, obras, benefícios legais, burocráticos ou simbólicos.

Sem um mandato, o político pode até ‘orientar’, mas ‘não tem acesso’”.114

Além disso, ele destaca a sua honestidade e hombridade perante os outros candidatos,

segundo ele, eleitos através da compra de sufrágio, enquanto ele, que ficou em casa no dia da

votação ao invés de distribuir dinheiro em troca de votos, mas que ama Ponta Grossa dos

Fidalgos, não foi reeleito. Ainda assim, naquela reunião ele comunicava aos pontagrossenses que

estava retornando à Câmara devido aos escândalos eleitorais e investigações relativas à compra

de sufrágio pelos candidatos à Prefeitura de Campos dos Goytacazes. Russo atribuiu a Deus o

fato de, mesmo não tendo sido reeleito, estar de volta à Câmara de Vereadores, ou ainda, atribui

à providência ou justiça divina, que é o reconhecimento supremo de sua honestidade e amor

pelas pessoas de Tocos e redondezas, em especial, Ponta Grossa dos Fidalgos.

Russo se coloca não somente como um político aborrecido por não ter recebido os votos

que esperava, mas como um amigo magoado que precisa do mandato parlamentar apenas para

servir e ajudar aqueles a quem ama tão profundamente. A todo o momento ele exemplificava sua

dedicação e amor ao povo do lugar, a quem só teria condições de ajudar se fosse vereador.

“Então é a reunião minha aqui é pra vocês escolherem o melhor de vocês. Vamos, supor,

vamos supor, meu Deus, vamos pedir a Deus que não aconteça isso! Na outra eleição, será que

vocês vão acompanhar um homem que não quer bem a Ponta Grossa? Será que vocês não vão

pensar (...), eu vou votar é no candidato de Russo. Nós todos. Mas vocês ficaram isolados, se

receberam 3 meses...

Uma mulher interrompe dizendo: __ A estrada está acabada, está tudo acabado.

Russo: __ E agora já to asfaltando tudinho, o doutor já ta [com] a ordem, o doutor

Alexandre [Mocaiber, vereador que assumiu a Prefeitura temporariamente], já tá [marcado

para] vir restaurar, lá no pedido, aqui tudo que tava parado porque eu não era vereador. Eu

quero deixar bem claro isso! Botar mais uns dez caminhões de arrecife ali no Porto, aonde a

água atravessou, que to pedindo uma luz baixa e autorização da Águas do Paraíba pra você

ligar da sua, do seu Pesque-Pague no poste, para o seu Pesque-Pague. Então eu quero, como

114 Kuschnir: 2000; p.88.

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hoje, não vou esconder não, de vez em quando eu faço o que eu posso. Já ajudei o Colégio

Municipal, [bate na mesa] já ajudei [bate na mesa] Fernanda no Colégio Estadual, já ajudei

aquele rapaz daquele forró [bate na mesa] ali da esquina, e hoje estou aju-, pagando [bate na

mesa] um forró [bate na mesa] pra ajudar meu amigo Samuel ali. Compreendeu? Eu morro

aqui! Eu amo aqui! Agora, eu se eu passar por uma decepção mais uma vez aqui dentro de

Ponta Grossa, compreendeu? Sabe o que que vocês são? Eu vou falar a expressão da verdade,

doa a quem doer! Vocês são mais burros que eu pensava na minha vida!”

Novamente Russo ressalta sua dedicação e carinho por Ponta Grossa, bem como sua

decepção porque um político que nenhuma relação tem com o povoado superou o número de

votos recebidos por ele nas localidades de Donana, Goitacases e Tocos, onde costumam se

concentrar os votos que o elegem. Ao questionar se nas eleições seguintes aquelas pessoas

agiriam da mesma maneira que nas eleições de 2004, “acompanhando um homem que não quer

bem a Ponta Grossa”, o político ressalta o caráter distanciado do outro candidato com relação ao

povoado em contraposição à sua proximidade e afetividade com o local, onde mantém uma casa

com criação de caprinos e galináceos além de tanques de piscicultura. Assim, Russo se coloca

como alguém que conhece muito bem a realidade local por também ter uma propriedade ali,

enquanto o outro candidato só aparecera em Ponta Grossa por ocasião das campanhas eleitorais.

Kuschnir afirma que o poder público é encarado como uma instituição impessoal que não

resolve os problemas por não conhecer a realidade das pessoas, e que é somente através da

mediação do político que pertence à comunidade que esta terá acesso aos recursos públicos,115

exatamente o que Russo quer ressaltar quando se compara ao adversário.

Ele busca ainda, através de seu discurso, angariar votos para seu candidato no caso de um

possível “3º turno”, como os campistas em geral chamavam a possibilidade da realização de uma

nova votação para Prefeito. Do seu ponto de vista, os pontagrossenses perderam uma

oportunidade de retribuir todas as benfeitorias que ele fizera pelo povo de Ponta Grossa e que

procurava enumerar (“ajudei o Colégio Municipal, já ajudei Fernanda no Colégio Estadual, já

ajudei aquele rapaz daquele forró ali da esquina, e hoje estou pagando um forró pra ajudar meu

amigo Samuel ali”), retribuição que deveria ter vindo em forma de votos das pessoas e de seus

familiares e amigos, para que ele se mantivesse como vereador. As circunstâncias, contudo, se

desenrolavam de maneira que culminariam em um novo pleito para eleger um prefeito para o

Município, e a maneira como as pessoas poderiam demonstrar seu arrependimento por não terem

retribuído às dádivas do político local era “votar no candidato de Russo”.

115 Cf. Kuschnir: 2000.

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Além disso, ele argumenta que, por não terem na Câmara um representante direcionado

aos problemas de Ponta Grossa, os moradores do povoado ficaram “isolados”, isto é, não

receberam investimento da Prefeitura e deixaram de receber o repasse de recursos municipais

destinados ao “seguro-defeso”, assunto sobre o qual provavelmente falaria mais detalhadamente

se não tivesse sido interrompido quando afirmou “se receberam 3 meses...”. É interessante

pensar que o caráter de “isolamento” do povoado é uma característica sempre ressaltada na visão

negativa do tempo dos antigos, em que, devido às dificuldades de acesso ao arraial, as pessoas,

incluindo as que detinham o poder público, não visitavam e, consequentemente, não injetavam

recursos em Ponta Grossa. Se no tempo dos antigos esse isolamento era, em grande medida,

físico, geográfico, nos tempos atuais o caráter de “lugar isolado” é dado pela falta de atenção que

os políticos, principalmente, dão ao local. Russo, portanto, evoca valores locais importantes, os

quais associam a ‘acessibilidade’ a um lugar ao ‘progresso’ ou à ‘modernidade’, em contraste

com o ‘isolamento’ entendido como ‘atraso’, para suscitar em sua audiência a ‘consciência’ ou

os sentimentos de que não reelegê-lo fora um erro que poderia deixar Ponta Grossa ‘em atraso’ e

que, portanto, não deveria se repetir.

Como Russo estava de volta à Câmara, agora o lugar receberia novamente a atenção do

Poder Municipal, pois Ponta Grossa tinha novamente um vereador que a representasse e,

somente por este motivo, o prefeito em exercício já “estava com a ordem” para restaurar a

estrada e os diques da Lagoa Feia e colocar iluminação pública em frente ao Pesque-Pague.

Antes de reassumir a Cadeira, contudo, ele não tinha os acessos necessários para que estas obras

fossem empreendidas, e procura “deixar isso bem claro”, afirmando: “aqui tudo que tava parado

porque eu não era vereador”.

Esta conversa com os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ocorrera dia 04 de junho

de 2005, um sábado, seis meses, portanto, depois da posse do novo Prefeito Carlos Alberto

Campista, apoiado por Russo nas eleições e naquele momento afastado do cargo e cassado sob

acusação de compra de votos. Também os candidatos da oposição, apoiados pelo ex-governador

e por sua esposa, então governadora do Estado, estavam sendo investigados sob a mesma

acusação. Russo também fala a este respeito, convocando os moradores de Ponta Grossa para

comparecerem na terça-feira seguinte, dia 07 de junho a uma reunião na Câmara Municipal:

“Eu quero ver a união de vocês é terça-feira. Mas vocês não estão trabalhando pra mim

não! Vocês que eu empreguei, vocês que foram empregados do outro político, se [o prefeito

eleito] Carlos Alberto Campista não voltar, que nós vamos ganhar no Supremo Tribunal,

porque, esse ex-governador, gastou milhões (...), ele que manda no Rio de Janeiro, tá

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entendendo, olha! Quem... Se eu tiver mentindo, eu quero que vocês levantem a voz aqui e

digam. Quem votou aqui, em Pudim [candidato a prefeito da oposição], foi a paga [pelo

pagamento] de cinquenta reais, cem reais. Eu estou mentindo? [bate na mesa] Fala em voz alta!

Pessoas com voz desanimada: __ Não...

Uma mulher: __ É uma vergonha.

Russo: __ Eu num to mentindo, porque ele iludiu, ao povo. E vocês, coitados, sem

conhecimento, tinham que pegar o dinheiro desse bandido?! Desse, desse, desse, que nunca

fizeram nada por Ponta Grossa? [Vocês deveriam dizer] eu vou entrar e vou votar é no

candidato de Russo Peixeiro.”

Assim, Russo vai tentando esclarecer a situação de seu candidato a prefeito, defendendo-

o das acusações das quais seria julgado no Supremo Tribunal Eleitoral e pelas quais estava

afastado da Prefeitura. Ao mesmo tempo, procura mostrar que seus desafetos políticos, estes sim,

são culpados das acusações que também lhes foram feitas, e trazer para seus aliados políticos os

votos daqueles que estavam presentes na reunião. Ele chama sempre atenção para o fato de um

político que nunca ajudou ninguém em Ponta Grossa ter obtido mais votos do que ele, que

sempre estivera ali e sempre ajudou a tantas pessoas, tomando aquilo mais do que como uma

derrota política, mas como uma ingratidão a sua dedicação a Ponta Grossa e como uma injustiça

ao esforço que ele sempre fez para ajudar a todos ali.

Virgimar, ex-presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos

Fidalgos, é também naquele momento classificada como um desafeto político, no sentido de que

possui interesses divergentes dos interesses de Russo. Já o novo presidente, Nelson, é aliado

político do vereador, uma figura estrategicamente importante pelo cargo que ocupa para a

distribuição das benfeitorias que Russo consegue para a comunidade, por exemplo, o seguro-

defeso ou as ‘frentes de trabalho’ disponibilizadas durante o período de defeso para auxiliar no

orçamento doméstico. Assim como Virgimar, Russo também fora acusado de credenciar de

pessoas que não viviam da pesca para o recebimento do seguro-defeso, e aproveita a ocasião

também para se defender destas acusações:

“Num vô negar a vocês não, [bate na mesa] na frente do defeso [bate na mesa duas

vezes] da pesca, eu botei Deo [bate na mesa] pra receber [bate na mesa] da pesca [bate na

mesa]. Foi pescador aqui [bate na mesa], vendedor de peixe [bate na mesa], por que [bate na

mesa] só que tinha ali uma birosca, eu num ia botá Deo? E quem estava no comando, que então,

bota e tem que botá! Mas não botei ninguém de Dores de Macabú, nem de Tócos, e vim aqui

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com mentira, vieram aqui roubava as eleições. Hoje nós temos um homem honesto aqui que é

Nelson. Pra mim, é um homem honesto! Pra mim, até que prove o contrário! Eu tive a honra de

empregar você, minha filha, tive a honra de empregar seu irmão, [bate na mesa] e seu pai é um

homem honesto! [bate na mesa] Ele tem de convocar a classe de pescador, [bate na mesa] ele

hoje é o presidente, [bate na mesa] essa mulher só tá pegando mentira [bate na mesa] que vem

hoje, vem amanhã, [bate na mesa] porque nós vamos permanecer [bate na mesa] ele como

presidente da colônia [bate na mesa]. Eu tenho condições [bate na mesa] de botar [bate na mesa]

dinheiro na colônia! [diz “na colônia” acompanhado de quatro batidinhas na mesa] Mas só boto

[bate na mesa] recurso ali [bate na mesa] com seu marido de frente [bate na mesa]!”

Neste momento Russo apresenta a distinção entre ele e Virgimar. Em sua argumentação,

ele credenciou Deo, dono de um armazém (“birosca”) no povoado, porque este fora pescador e

vendedor de peixes. Além disso, é alguém do povoado, o que difere sua ação das que ele afirma

que Virgimar tenha praticado: credenciar pessoas de Dores de Macabú e de Tocos, desviando,

portanto, recursos destinados aos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos em benefícios de

habitantes de outros lugares. Russo alega que Virgimar, esta sim, tinha interesses puramente

políticos, ao contrário dele, que “tem amor ao povo de Ponta Grossa”, como afirmou em

diversos momentos de seu discurso.

Ele também exalta as qualidades de “homem honesto” de Nelson, novo Presidente da

Associação de Pescadores, em oposição às “mentiras” de Virgimar. Na reunião estavam

presentes a esposa e a filha de Nelson, e é para elas que Russo discursa neste momento, quando

afirma: “Eu tive a honra de empregar você, minha filha, tive a honra de empregar seu irmão, e

seu pai é um homem honesto!” Este é um momento importante em que Russo mostra a

‘desonestidade’ de sua desafeta política e a ‘honestidade’ de seu aliado. E como vereador, ele

sabe que tem acesso a recursos dos quais a Associação precisa, e, embora fale direcionado à

Dionéia, esposa de Nelson, comunica a todos que pode ajudar à Associação. Sua declaração é

feita com um misto de paixão e revolta, sentimentos esses que permeiam todo o seu discurso

nesta reunião. A paixão dos que acreditam na justiça, dos que amam o lugar e as pessoas que

defendem; e a revolta pela decepção de ter sido “traído” por aqueles a quem tanto ama. Esses

sentimentos eram comunicados não somente pelas palavras que o vereador enunciava, mas

também pela maneira como ele o fazia: a entonação de sua voz e as batidas na mesa: “Eu tenho

condições [bate na mesa] de botar [bate na mesa] dinheiro na colônia! [diz “na colônia”

acompanhado de quatro batidinhas na mesa] Mas só boto [bate na mesa] recurso ali [bate na

mesa] com seu marido de frente [bate na mesa]!”

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Em dado momento de seu discurso, Russo fala do assunto sobre o qual muitos esperavam

ouvir: a festa de São Pedro. Grande era a expectativa dos moradores do povoado na realização da

festa, já que Russo voltara à Câmara de Vereadores. Faltando poucas semanas para a data

comemorativa do Santo Pescador, os moradores ainda se questionavam se haveria festa naquele

ano, e em discussões por vezes acaloradas defendiam ou acusavam Russo Peixeiro, explicitando

mais uma vez o caráter político da festa católica. Política e religião se mesclam na festa de São

Pedro de tal forma que as conversas sobre a celebração religiosa terminavam em discussões

políticas; e na mesma direção, mas em sentido inverso, foi falando de política que Russo falou

sobre a festa de São Pedro. Disse ele:

“[Não digam] que eu vou dar isso e vou dar aquilo a vocês não. Não tem nada de dizer

que eu vou dar emprego, que eu vou fazer isso, que eu não tenho condições no momento. O que

eu vou fazer, é entrar com um requerimento para recontratação de todos os funcionários sem

ex-ce-ção, [pausa] e eu vou defender todos aqui de Ponta Grossa. [pausa] Como eu pedi que

não deixasse fazer concurso público nenhum para atrapalhar os seguranças aqui que todos eles

iam perder e iam ficar na estrada. Aí depois viraram aí as costas. Certo? Então se na terça-

feira, eu quero que cada um de vocês, por exemplo, é possível que cada um de vocês que eu

empreguei, já fiz a comparação, se no dia [bate na mesa] da eleição, bom, [bate na mesa] Russo

me empregou eu vou lutar até cinco horas [bate na mesa] da tarde, pra mim, eu pessoalmente

dar dez votos a ele. Eu saía daqui eleito. Eu saía daqui eleito. [pausa] E hoje vocês estão

falando com vereador! (...) Eu hoje sou vereador, se tem a consciência disso. Por exemplo, eu

não ia ter condições de fazer a festa [de São Pedro], mas tá pintando eu com condições de fazer

a festa porque eu sou vereador. Prefeito... [pessoas interrompem aplaudindo] O Prefeito aí vai

vir atender, [uma mulher fala ao mesmo tempo: “se fosse outro na cadeira não fazia não”] eu

vou pedir os shows, eu vou pedir as coisas, não será tão grande a festa, mas tudo indica, que eu

vou levar uns três a quatro meses na Câmara. (...) só eu não posso empregar, eu posso manter

só que agora começa a recontratação agora essa semana, vocês sabem disso? Que já venceram

os contratos de vocês, e eu tenho que agora [que interceder].”

Esse caso é muito interessante para se pensar. Russo afirma que não tinha condições de

empregar ninguém e que as pessoas não deviam esperar isso dele. Apesar de ter retornado à

Câmara Municipal, declara não ter possibilidades de dar empregos novos a ninguém, mas ao

mesmo tempo ele declara que, por ser vereador, pode interceder junto ao Prefeito para

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recontratar os funcionários de Ponta Grossa que foram demitidos meses antes, quando muitos

empregados do município através de contratos foram mandados embora devido à realização de

um concurso público Concurso este, inclusive, que ele conseguiu adiar por alguns meses no ano

interior, pois sabia que os contratados de Ponta Grossa dos Fidalgos, que trabalhavam como

seguranças do Posto de Saúde e nas duas escolas locais, não conseguiriam aprovação e ficariam

“na estrada”, isto é, sem meios de sustentar suas famílias.

Quando declara que fará a festa de São Pedro, que não poderia realizar antes, por estar

fora da Cadeira, é aclamado pelos presentes. As pessoas esperavam que Russo, e não outro

político, realizasse a festa do santo pescador. Cerca de três semanas antes, o vereador que Russo

acusou de ter angariado os votos que deveriam ser para ele em Donana e Goitacases116 se

ofereceu para patrocinar a festa de São Pedro no povoado. O outro vereador fez a oferta a

Durval, que antes de responder se aceitava ou não questionou Russo a respeito da realização da

festa: “E aí, tem outro político querendo fazer, você vai ou não vai fazer a festa?”. Os boatos

sobre a realização ou não da festa de São Pedro com o patrocínio de Russo Peixeiro continuaram

até o dia desta reunião, em que Russo declarou publicamente que organizaria o desejado festejo.

No momento deste pronunciamento em sua casa no arraial pesqueiro, Russo coloca em

evidência as “regras do jogo”, explicando e “deixando muito claro” como funcionam as coisas

dentro da Câmara e em que momentos ele pode interceder pelas pessoas que o procuram. Assim

é que ele explica que as obras públicas em Ponta Grossa dos Fidalgos só se realizam se existir

um representante do povoado para chamar a atenção para ele, as ‘frentes de trabalho’, ou seja, os

trabalhos temporários para os períodos de proibição da pesca só chegam através de um vereador

que represente a população local e a própria liberação do seguro-defeso municipal exige a

mediação de um político interessado naquela região. Em seu discurso, o vereador explicita as

cobranças de parte a parte presentes na relação que tem com seus eleitores: se por um lado, a

população espera que ele consiga todas essas benfeitorias e realize a festa de São Pedro e ele

cumpre, a contrapartida deveriam ser os votos, para que ele permanecesse na Câmara para

continuar a defender os interesses das pessoas de Goitacases, Donana e Tocos, e assim o ciclo se

renovasse.

116 Permito-me relembrar ao leitor a afirmação de Russo, já citada algumas páginas atrás: “E dinheiro rolou dentro de Donana, [o candidato a vereador] comprando a 50 conto, a 100 conto, botou dez mil conto na mão de um Romeu que ele comprou, e de outro lá, eu entre Goitacases e Donana tive 732 votos”. Nesta fala ele se refere ao mesmo vereador que se ofereceu para realizar a festa. Quando perguntados a respeito do interesse deste vereador em patrocinar o festejo, eles respondem “ele tem família em Goitacases”, o que para eles é um distintivo do interesse deste vereador em relação aos outros vereadores do município.

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Ao fim da reunião, Russo pede para que quem não votou nele nessa eleição, que vote na

seguinte, porque ele é amigo de todos ali. Os presentes o aplaudem enlouquecidamente e gritam,

aclamando-o.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Considerações Finais

A festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos, enquanto um dos eventos rituais

mais importantes do povoado, revelou diversos aspectos culturais daquela população. Um evento

de tal magnitude, que atrai pessoas dos povoados vizinhos e movimenta todo o arraial de

pescadores, mostra, por exemplo, a expressão que tem o catolicismo no local. Apesar de possuir

quatro igrejas protestantes, a prática católica no vilarejo pesqueiro é muito mais simbólica entre

os moradores do lugar em termos de prestígio e identidade social, principalmente na correlação

entre as expectativas de conduta das pessoas e os santos padroeiros locais. O rito de São Pedro

expressa, portanto, entre outras coisas, o prestígio das mulheres que cuidam da Capela de Nossa

Senhora da Conceição no local, enquanto mulheres religiosas, abnegadas, que cuidam de suas

casas e da ‘casa da Santa’, i.e., a Capela. Assim, a festa mostrou-se um momento importante para

os interesses políticos destas mulheres.

O que se pode observar analisando os dados empíricos é o resultado da disputa de

poderes sobre e durante a festa, e a instabilidade em torno de sua organização, i.e., há uma

constante disputa sobre o controle e viabilização da festa. Esta disputa em torno da festa é

política em termos amplos, que ultrapassa a política partidária e a luta pelos votos, ainda que

perpasse por esta questão. Numa perspectiva aberta, a disputa política em Ponta Grossa dos

Fidalgos é, também, a busca de um poder que poderia ser identificado como social, que envolve

prestígio e a valorização de atributos considerados positivos segundo o ethos da cultura local.

Ter influências decisórias sobre a organização da festa de São Pedro ou parte dela coloca o

detentor deste ‘poder’ em destaque diante de seus vizinhos e parentes em Ponta Grossa dos

Fidalgos, numa posição de “superioridade moral”, em certo sentido. Quando uma pessoa ganha

esse tipo de destaque social no povoado, ela passa a ser solicitada pelas outras para que dê

conselhos e auxilie na resolução de conflitos.

Em seus trabalhos, Márcio Goldman mostra que algumas vezes a palavra “política”

carrega consigo uma valoração de coisa negativa, conspurcadora. Os pontagrossenses encaram o

mundo de uma maneira dualista, onde de um lado estão as coisas puras, como as amizades, a

família e a religião; e de outro as coisas impuras, como a política.117 Márcio Goldman afirma que

não basta dizer que “política” é um termo polissêmico, pois “os ‘eleitores’ em geral tendem a

conceber a política como uma atividade (...) poluente – no sentido de que contamina as relações

117 Moacir Palmeira e Beatriz Heredia afirmam que em nossa sociedade a família é identificada à união, enquanto a política, por outro lado, é associada à divisão. Daí esta visão dualista da família, dos grupos sociais e das atividades que lhes são extensivas de um lado, e a política do lado oposto. Cf. Palmeira & Heredia: 1997.

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sociais”. 118 Assim, o que aqui quero ressaltar é que, embora eu tente mostrar essa visão

maniqueísta dos pescadores de Ponta Grossa, a minha perspectiva é a da política enquanto fio

condutor da realização da festa. “Como a festa se dá? Que eventos ela terá? Que lugares

relativos cada evento terá na festa?” Estas questões são reveladoras dos mecanismos de controle

da realização e caracterização da festa, a partir dos quais se desenvolvem estratégias e

negociações, conscientes ou não, para sua realização.

Como antropóloga, quis entender como as coisas se dão, com relação à festa, na esfera

política. Não pretendi defender nenhum ponto de vista nativo acerca do tema, mas mostrar que o

ritual a cada ano é uma incógnita, diferente de ritos analisados por outros autores em que os

elementos aparecem no mesmo lugar relativo e, embora sofram alguns ajustes, mantém-se no

essencial. A festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos e os eventos que ela envolve são

sempre alvo de especulação, visto que ninguém sabe de antemão como será sua disposição, e por

isso ressalta o caráter dinâmico da vida social, vida esta sempre colorida de incertezas, apostas e

disputas.

A Igreja não capitaneia a festa e o máximo de apoio em sua organização que a Paróquia

dá é a ida do Pároco até o povoado para celebrar a Missa. O grupo religioso reclama, mas não

toma a dianteira da festa em momento algum. Apenas na narração que me foi feita sobre a

primeira festa de São Pedro o grupo de oração da Capela local organizou a festa. A partir do ano

seguinte, contudo, após o vereador assumir o patrocínio da festa, este grupo ficou responsável

apenas pela dita “parte religiosa” do festejo.

De outro lado, os líderes locais procuram auxiliar o vereador na organização do festejo,

buscando assumir algumas tarefas e exercer um poder relativo dentro da festa. Digo relativo

porque, embora estas pessoas almejem ter voz decisória no “passo a passo” da realização do

evento, nenhuma delas pretende se equiparar ao vereador, muito menos tomar seu lugar. O

presidente da Associação (enquanto posição estrutural naquela sociedade), os proprietários de

terras marginais à Lagoa que organizam a cavalgada, as mulheres que se reúnem para decidir a

parte litúrgica do rito, enfim, os festeiros só têm a importância e poder que exercem na festa

porque ela é realizada, e isso acontece, em grande parte, devido ao patrocínio oferecido pelo

vereador.

Essa disputa de poder entre os diferentes grupos e atores sociais nos bastidores da festa de

São Pedro tem um caráter de negociação da seqüência ritual. Para o grupo católico, o problema

não é haver shows de forró ou cavalgada. Até mesmo a questão da bebida durante a

118 Goldman: 2000; p. 319.

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comemoração do Santo é vista pelas freqüentadoras da Igreja como algo que faz parte da festa. O

problema está na sobreposição de eventos lúdicos e religiosos. Para as mulheres do Conselho

Capelar, os espaços e tempo das diferentes “categorias” de eventos festivos devem estar bem

delimitados e separados. Há, contudo, os que, embora também sejam católicos, dispõem os

eventos festivos de maneira a privilegiar o turismo e a economia local. Assim, percebe-se que

esta negociação às vezes se dá de forma bem sucedida do ponto de vista dos atores envolvidos, e

noutras se explicita como momento de tensão.

Em suma, a contribuição desses atores tem pesos diferenciados para a realização das

festas que variaram através do tempo. Ao que tudo indica, os papéis que estes atores cumprem

são indispensáveis ao resultado final da festa de São Pedro, o que é explicitado em diversos

momentos ao longo dos anos. Alguns exemplos são o ‘boicote’ das fiéis à procissão por terra em

2004, gerando uma procissão “fraca” e pouco prestigiada e a insatisfação da esposa do vereador

porque as mulheres não estavam rezando na procissão que ela organizara; a demora da zeladora

em abrir a Capela para que trouxessem o quadro de São Pedro, atrasando a procissão de barcos

em 2005; e também o “cansaço” e “desânimo” das pessoas, na falta de uma banda que puxasse

os hinos, a respeito da realização de uma procissão por terra para São Pedro em 2006.

Embora haja divergências entre os atores sociais que compõem o rito de São Pedro, cada

grupo de atores é importante tanto para conferir legitimidade à festa enquanto acontecimento do

calendário litúrgico local, que pode ser traduzida pela frase de um rapaz que sempre afirma não

gostar muito “dessas coisas de igreja”, mas que destacou a importância das procissões quando

disse que “festa de São Pedro sem o santo não é a tradicional festa de São Pedro, aí vira uma

festinha qualquer”; quanto para viabilizar efetivamente a festa como tal, criando as condições

para que ela se realize com seus componentes lúdicos, atraindo pessoas de fora e sendo um

momento importante para a reprodução social do povoado. A festa de São Pedro, portanto, não

pode ser apenas os shows animados e a vinda de pessoas de fora, pois, embora estes sejam

atributos importantes para que a festa seja considerada “boa” ou “forte”, sem o santo ela deixa de

ser a “festa de São Pedro” para se tornar somente alguns shows animados. Ela também não pode

se resumir às “coisas da Igreja”, pois o canto de ladainhas e uma procissão por terra eram

práticas rituais que perduraram durante o hiato temporal entre a ‘festa antiga’ e a ‘festa nova’.

Estes dois âmbitos que juntos compõem a festa, separados perdem seu caráter de ‘festa’ e se

tornam práticas quase triviais perante os olhos da população. Estas duas esferas festivas e os

atores envolvidos com a organização de cada uma delas estão no centro das negociações

políticas em torno do arranjo festivo.

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Pode-se, por exemplo, considerar que esta negociação foi tranqüila em 2002, quando pela

primeira vez Russo Peixeiro assumiu o patrocínio da festa junto com seu filho Pedro, então chefe

do gabinete do Prefeito Arnaldo França Vianna. O vereador discursou na abertura dos shows,

contou sobre sua promessa ao Santo e prometeu ao povo construir uma Gruta para São Pedro no

Porto da Beirada, onde é realizada a festa do Santo. No ano anterior, Russo doara duas imagens

de São Pedro e uma de Nossa Senhora da Conceição à Igreja local.

Em 2003, o que chamava a atenção era a sobreposição das imagens de político e homem

de Deus disseminada pelas palavras do locutor ao microfone, que em dado momento chegou a

declarar que a festa de São Pedro era “em louvor a Russo Peixeiro”. Foi no ano seguinte,

contudo, que a influência do vereador na organização da festa incomodou às mulheres

freqüentadoras da Igreja a ponto de explicitar esses conflitos. O boicote do grupo de oração da

Igreja local em 2004 era a maneira que elas tinham de dizer que não estavam satisfeitas com a

forma que a festa havia tomado, e de mostrar que elas eram necessárias para a realização do

festejo.

Em 2005, principalmente, há uma certa cobrança da população para que Russo realizasse

a festa. Assim foi que se ouviam, nas conversas em frente às casas ao final da tarde, as pessoas

dizerem frases como “se não era só política, ele tem que fazer a festa mesmo não tendo sido

eleito” ou “que festa tradicional é essa que a tradição só dura quatro anos?”; ao que Russo

rebateu na reunião feita em sua casa ponderando que só tinha condições de fazer a festa se

estivesse na Câmara, onde era um representante dos interesses do povoado junto ao Poder

Público. A negociação continuava conflituosa, mas num caráter diferente do ano anterior. Em

2005 havia a insegurança acerca da realização ou não da festa.

Em 2004, principalmente, e com menos projeção nos anos posteriores de 2005 e 2006, o

passado e a “festa dos antigos” surge como um verdadeiro argumento retórico. Trata-se de um

recurso díctico manipulado pelos diferentes atores de acordo com os contextos em que se

encontram inseridos, ou seja, um recurso que se refere à situação em que o enunciado é

produzido, ao momento da enunciação e aos atores do discurso, compondo assim os elementos

indiciais da linguagem, que figuram lado a lado com as designações simbólicas ou conceituais.

O índice desse “tempo” é conhecido por todos, não apenas parcialmente, mas em sua

integridade. O uso que se faz das narrativas que compõem os discursos disponíveis, no entanto,

varia segundo as intenções do ator e sua situação. Por isso, é possível ver a mesma pessoa, num

dado momento, ressaltar os aspectos positivos do “tempo das canoas” para, pouco tempo depois,

deslocar o acento para o caráter negativo que marcava o “tempo do atraso”.

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Assim sendo, a situação em que um ator social se encontra no presente dá os contornos

do modo pelo qual ele evocará o passado. O presente, neste sentido, cria as versões sobre o

passado, mas não seria menos verdadeiro dizer que este tempo que já passou emerge sempre

como um argumento questionando ou confirmando aquilo que acontece no agora. As memórias

do tempo antigo são um argumento na negociação constante acerca das seqüências e eventos do

rito, ou ainda, no manejar da disputa política pelo poder sobre o ritual de São Pedro.

Passado e presente fundem-se então, impulsionando a vida, gerando novas narrativas que

serão diferentemente apropriadas e usadas num futuro próximo e garantirão assim o dinamismo e

a continuidade da vida social desses homens e mulheres que povoam as margens setentrionais da

Lagoa Feia.

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Apêndice I

Fonte: Google Earth.

Imagens geradas por satélite capturadas em fevereiro de 2008: Lago Tiberíades; ponto de visão 70 quilômetros de

altura.

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Fonte: Google Earth.

Imagens geradas por satélite capturadas em fevereiro de 2008: Lagoa Feia; ponto de visão 70 quilômetros de

altura.

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Tabela de Sequências Rituais

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