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A FIGURAÇÃO DAS PERSONAGENS FEMININAS NA LITERATURA
Elis Regina Fernandes Alves (UFAM- IEAA)
Resumo: Realiza-se um levantamento crítico teórico sobre o papel atribuído à mulher ao longo dos séculos em sociedades patriarcais, suas proibições e poucos direitos, sendo relegada ao matrimônio e à maternidade, sem direito a ter propriedades, votar, escolher o próprio marido, a escrever ou se divorciar. A partir disso, estuda-se o feminismo com um movimento social pela busca de igualdade entre os gêneros em todos os seguimentos sociais, sendo o movimento literário feminista a busca pelo direito da mulher de escrever e ser reconhecida como escritora. Conclui-se que é através do feminismo literário que pode haver a desconstrução dos estereótipos imputados às personagens femininas ao longo dos séculos, de modo que a figuração das personagens femininas passe a representar mulheres independentes, não passivas, sexualmente ativas e em busca de seus direitos. Palavras-chave: Feminismos; Feminismo Literário; Personagens Femininas. Introdução
O pensamento feminista contemporâneo vem se desenvolvendo desde a década de
1960, quando a mulher se torna objeto de estudo nas mais diversas áreas de conhecimento,
como a sociologia, a história, a literatura e a crítica literária. Partindo desses estudos, temos a
afirmação da experiência da mulher como leitora e escritora, uma experiência diferente da
masculina, como entendeu Elaine Showalter, uma das fundadoras da crítica literária feminista
nos Estados Unidos, desenvolvendo o conceito e a prática da ginocrítica, termo que descreve
o estudo das “mulheres como escritoras”, verificando como a escrita feminina é diferente da
masculina em termos de linguagem, na criação dos personagens, nos temas, etc.
Para Bonnici (2007, p. 49) “a finalidade da crítica literária e de leitura feminista é
focalizar a constituição do estilo, da imagística e das características do patriarcalismo numa
determinada obra.” Sobre esse pensamento, a crítica feminista impulsiona uma nova
descoberta na escrita de autoria feminina, assim como a releitura de obras a partir do ponto de
vista da mulher. Há também a desconstrução do patriarcalismo que por muito tempo fez da
mulher um ser submisso, direcionada somente para o casamento, mas que agora consegue sua
emancipação também na literatura.
No meio social, a mulher demorou e lutou muito para ter seus direitos e no campo
literário não foi diferente. Até o século XIX, os escritos das obras masculinas retratavam, em
geral, a mulher como um ser emudecido, não podendo optar pelo seu destino e ocupando
sempre um lugar secundário ao homem. Assim, a crítica feminista que surge, de forma
sistematizada, por volta de 1970 e “trabalha no sentido de desconstruir a oposição
homem/mulher e as demais oposições associadas a esta, numa espécie de versão do pós-
estruturalismo.” (ZOLIN, 2003a, p. 162).
A escrita feminina ganha destaque, no século XX, impulsionada pela escritora
Virgínia Woolf, que em Um teto todo seu, de 1929 “aborda o modo como as circunstâncias
atuam sobre o trabalho da mulher escritora e questões relativas à sua sujeição intelectual.”
(ZOLIN, 2003a, p. 166). A autora destaca a questão “mulher e ficção”, pois para ela a mulher
precisa de um “teto todo seu” para escrever ficção ou poesia, ou seja, a mulher necessita de
sua liberdade de expressão e financeira: “A woman must have money and a room of her own
if she is to write fiction” (WOOLF, 2000, p. 6). Para Woolf, somente a igualdade econômica
e social poderia alavancar o desenvolvimento dos talentos femininos (WOOLF, 2000).
Já em meados do século XX, a escritora Simone de Beauvoir baseia-se na
perspectiva existencialista para tratar do feminismo. Em “O Segundo sexo” de 1949, destaca
a situação da mulher na sociedade e entende que “não basta apontar as relações de
propriedade como responsáveis pela opressão feminina; é necessário, também explicar que as
relações de propriedade foram instituídas contra a comunidade e entre homens.” (ZOLIN,
2003a, p. 168). Com sua famosa frase “Não se nasce mulher, faz-se mulher” (BEAUVOIR,
1980a, p. 249) Beauvoir nos faz entender que os comportamentos considerados tipicamente
femininos são, na verdade, aprendidos, dados socialmente, culturalmente e desde pequenas as
mulheres são ensinadas a “serem mulheres”, agindo do como como a sociedade patriarcal
considerou correto para uma mulher.
Outra feminista é Kate Millet, escritora feminista que tem a obra Sexual Politics
(1970) como marco inicial da crítica feminista sistematizada. Analisa que a mulher vive no
sistema do patriarcado, em uma cultura dominada pelo homem. A mulher, tradicionalmente,
era um ser subordinado e mesmo lutando por espaço era escondida por trás da figura do
homem. A autora questiona então o papel da figura feminina e na busca dessa resposta, vê que
nas obras literárias canônicas a mulher é sempre representada por estereótipos culturais, como
o da mulher sedutora ou da santa. Dessa maneira, a autora aponta que a representação das
personagens femininas sofre subordinação e aponta fatores sociais e culturais para isso, pois
existem construções sociais padrão sobre o masculino (positivo) e o feminino (negativo), de
modo geral. Podemos ver que as representações negativas das personagens femininas são
consequências da cultura da sociedade patriarcal.
As Fases do feminismo literário
Para compreender o movimento feminista na literatura, abordamos aqui as três fases
principais desse movimento. Elaine Showalter vai dividir a escrita feminina em 3 fases: Fase
feminina, fase feminista e fase fêmea.
A fase Feminina seria aquela que engloba a literatura produzida entre 1840 e 1880
(embora estas datas não sejam fixas). Inicialmente, as mulheres precisavam usar pseudônimos
masculinos para escrever, como é o caso da inglesa Mary Ann Evans, que teve que usar o
pseudônimo de George Eliot para poder publicar, mas logo passaram a usar seus nomes
femininos, identificando-se. Porém, como era de se esperar, a maioria dos escritos femininos
nesse início de ascensão da literatura produzida por mulheres estava ainda sob o jugo do
patriarcalismo e das ideologias machistas que dominavam a sociedade até o século XIX com
mais força. Por isso é que muitas obras literárias produzidas por mulheres, nesta época, ainda
recaem em estereótipos ao figurarem mulheres, como se evidencia, por exemplo, nos
romances de Jane Austen, escritora inglesa que ficou bastante popular no início do século
XIX escrevendo obras cujas protagonistas eram mulheres, a maioria jovens em busca da
felicidade, sendo que a felicidade, comumente, se constituía em casar-se com o homem
escolhido. Assim, a protagonista Elizabeth de Orgulho e preconceito, de 1813, desafia os
padrões sociais impostos ás mulheres de sua época e recusa um pedido de casamento
vantajoso com seu primo, por não amá-lo. Por orgulho, recusa o casamento com o rico Mr.
Darcy, algo impensável para as mulheres da época. Obviamente que para a época, as mulheres
retratadas eram mais ousadas que a maioria das mulheres de sua época, pois iam contra certos
padrões, desafiavam ordens paternas, mas, ainda assim, o objetivo de vida dessas mulheres
era o casamento, e com Elizabeth não é diferente, pois o final romântico do livro evidencia
que ela esperava o amor no casamento com Mr. Darcy. Nos romances da época, embora as
mulheres dessem pequenos passos dados para fora do patriarcalismo, ainda acabavam por se
submeter às regras do bom comportamento feminino esperado socialmente, e a literatura
ainda não ousava quebrar esta barreira.
A fase feminista se dá perto da virada do século, de 1880 a 1920, aproximadamente,
com mudanças nos paradigmas sociais, as mulheres passam a lutar mais por seus direitos nos
campos sociais e a literatura vai refletir isso, sendo que a escritora Virginia Woolf se torna o
grande nome do feminismo nessa fase. Além de escrever crítica literária feminista, criava
romances e contos em que as mulheres são protagonistas e figuradas como independentes,
modernas e desafiadoras, ou, como passivas quando o que se objetivava era a crítica a isso.
Desta época surgem obras que mostram as lutas das mulheres por direitos sociais e a quebra
dos padrões impostos e aceitos por séculos. Como exemplo, o romance de D. H. Lawrence, de
1928, O amante de Lady Chatterley, evidencia como a protagonista não é mais a mulher
passiva e submissa, pois aqui temos uma mulher que trai o marido, já que se sente infeliz no
casamento e não tem uma vida sexual ativa, e acaba por se divorciar deste marido,
contrariando as opiniões negativas de todos que a rodeiam. Para Connie, protagonista desse
romance, o que importava era livrar-se de um casamento que a fazia infeliz, mesmo que isso
lhe custasse o julgamento extremamente negativo da sociedade, e ela desafia o jugo patriarcal
e se casa com seu amante, alguém de classe social inferior.
Quando Simone de Beauvoir publica O segundo sexo, em 1949, a literatura de cunho
feminista adentra numa nova fase em que, mais do que lutar por direitos sociais, a mulher
procura descobrir-se como ser individual e autônomo e começa uma jornada de
autoconhecimento, já que por séculos ela vivia em favor do marido, filhos ou pai, não lhe
sendo permitida a autorreflexão e o conhecimento de si, de seu corpo, seus desejos. É a
evolução do feminismo no campo literário, a chamada fase fêmea. É a fase da literatura em
que as obras literárias apresentam um caráter mais voltado para a mulher livre dos valores do
patriarcalismo. Apresentam personagens que não seguem o padrão social imposto, são
independentes, vivem questionamentos relacionados à sua existência e à busca pela
identidade, e como exemplo temos a obra A cor púrpura (1982) de Alice Walker. Neste
romance, a protagonista Celie nos é mostrada, inicialmente, como uma menina negra abusada
sexualmente pelo padrasto, engravidando dele e tendo seus filhos doados. A seguir, é dada em
casamento a um homem muito mais velho, que a humilha, a estupra, a violenta. Aos poucos,
Celie começa a lutar para escapar dessa vida de humilhações, adquire independência
financeira, se separa e começa a fase da autodescoberta, percebendo seu corpo, descobrindo
sentimentos até então sufocados pela violência e subjugação de seu pai e marido. Descobre-se
lésbica e começa a questionar os valores religiosos em que acreditava até então.
As fases distintas do feminismo literário aqui descritas não são fixas em termos
temporais e podem ser observadas em momentos distintos da história da literatura de
mulheres e sobre mulheres. Ainda hoje é possível verificar obras que figuram mulheres em
sua fase feminina, ainda submissas e obedientes, por exemplo.
Referências
ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980a.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida- Tradução de Sérgio de
Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980b.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá:
Eduem, 2007.
MICHEL, Andrée. O feminismo. Uma abordagem histórica. Tradução de Angela Loureiro de
Souza. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
WOOLF, Virginia. A room of one’s own. London: Penguin, 2000.
ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. (orgs.)
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem,
2003a. p. 161-183.
ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia
Osana. (orgs.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá:
Eduem, 2003b. p. 253-261.