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  • 377Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 377-389, agosto 2003Disponvel em

    A FILOSOFIA E A MSICA NA FORMAO DE ADORNO

    BRUNO PUCCI*

    RESUMO: Este ensaio se prope a rastrear, no transcurso de sua vidae de seus escritos, a seguinte assero de Adorno: Estudei filosofia emsica. Em vez de me decidir por uma, sempre tive a impresso deque perseguia a mesma coisa em ambas, e mostrar como a relaocontnua e dialtica entre msica e filosofia foi fecunda em sua for-mao educacional e cientfica, bem como na constituio de seu ori-ginal pensamento filosfico.

    Palavras-chave: Teoria crtica e educao. Dialtica negativa. Msicae filosofia. Teoria esttica.

    PHILOSOPHY AND MUSIC IN THE BILDUNG OF ADORNO

    ABSTRACT: This paper goes into the biography and writings ofTheodor Adorno to detect the relevance of his statement: I studiedphilosophy and music. Instead of deciding for one or the other, Ialways had the impression that I pursued the same thing in both.It thereby attempts to show how the ongoing dialectical relationshipbetween music and philosophy was fruitful for both his scientificand educational upbringing, and the constitution of his originalphilosophical thought.

    Key words: Critical theory and education. Negative dialectics. Musicand philosophy. Aesthetic theory.

    * Professor Titular do PPGE da UNIMEP, pesquisador do CNPQ e da FAPESP e coordenador doGrupo de Estudos e Pesquisa Teoria Crtica e Educao. E-mail: [email protected]

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    msica faz-se presente e formativa desde os seus primeiros anosde vida. Theodor Wiesengrund Adorno nasceu em 11 desetembro de 1903 em Frankfurt am Main. Seu pai, Oskar

    Wiesengrund, um prspero comerciante atacadista de vinhos, e suame, Maria Calvelli Adorno, de origem corso-genovesa, cantoraprofissional de renome, antes do casamento. Agathe, tia solteira, irmde sua me e companheira de lar, uma pianista talentosa. Ao som dassinfonias de Mozart e Beethoven tocadas ao piano pela tia e dos Liederpopulares ou trechos de pera interpretados por sua me, desenvolveuuma infncia feliz e uma adolescncia segura.

    A filosofia no demora a aparecer em seus dias. Aos 15 anos deidade, em companhia de um amigo da famlia, 14 anos mais velhoque ele Siegfried Kracauer , envolve-se com a leitura semanal daCrtica da razo pura, de Kant. Longas conversaes filosficas sotecidas durante anos, aos sbados. Com 16 anos estuda composiocom Bernhard Sekles no conservatrio de Hoch. Aos 18 anos ingressana recm-fundada Universidade Johann Wolfgang Goethe, para ouvir/estudar ainda mais filosofia e, nesse mesmo ano, sob a orientao deKracauer, l O esprito da utopia, de Ernst Bloch filosofia e A teoriado romance, de George Lukcs filosofia e arte.

    Cresceu em um ambiente dominado por interesses artsticos etericos e foi encorajado pelos pais e amigos a desenvolver seus dotesem ambas as direes. Ele mesmo nos d conta disso: Estudeifilosofia e msica. Em vez de me decidir por uma, sempre tive aimpresso de que perseguia a mesma coisa em ambas (Adorno,2002, p. 9).

    Em 1922, com 19 anos, conhece Horkheimer filsofo emum seminrio sobre Husserl e, no ano seguinte, Benjamin esteta efilsofo. Com ambos estabelecer relaes de intensa amizade e defecundas produes cientficas, mas seu amigo e mentor da poca eramesmo Kracauer. Em 1924, com 21 anos, defende sua tese dedoutorado: A transcendncia do objeto e do noemtico na fenomenologiade Husserl, sob orientao de Hans Cornelius filsofo de tendnciasprogressistas, e, ao mesmo tempo, pianista, escultor, pintor e autorde estudos de esttica e de pedagogia da arte.

    Em 1925 vai para Viena estudar msica com profissionais docrculo vanguardista de Schoenberg. Seus estudos, com EduardSteuermann e Alban Berg, voltaram-se para piano e composio.Alm dos mestres citados, os msicos Rudolf Kolisch e Anton

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    Webern tambm faziam parte de seu grupo de conversaes. Entre1928 e 1929 foi editor da revista Anbruch, de Viena, em prol damsica mais moderna radical.

    Visivelmente mais talentoso como comentarista de msica quecomo compositor, no se sentindo reconhecido no crculo deSchoenberg e com saudade de sua cidade natal, regressou a Frankfurtno vero de 1925. No tinha abandonado, porm, seu projeto detornar-se msico, mas cultivou cada vez mais a esperana de fazer umacarreira universitria em filosofia, centrada na esttica. A influnciada temporada na capital austraca foi decisiva em sua formaomusical e filosfica; o rigor da composio e da expresso de seusensaios, sua filosofia atonal devem-se muito a esse perodo.

    De 1922 a 1933, Adorno acompanhou como crtico a Konzertleben(vida musical) de Frankfurt. Escreveu uma centena de pequenos artigos,hoje reunidos sob o ttulo Crticas das peras e concertos deFrankfurt. A vida musical era um dos principais temas do debatepblico de sua cidade. Particularmente depois de sua estada em Viena,deixou-se conduzir, nas crticas, pelas idias avanadas de Berg, deSchoenberg e dos defensores da msica dodecafnica moderna. D-senesse perodo a gnese de conceitos fundamentais de seu pensamentoesttico: material musical, a consistncia da obra singular; a construoe a expresso da obra de arte; a construo como soluo de problemascolocados concretamente nas obras. Estas constelaes, para Adorno,tm lugar na experincia concreta do conhecimento histrico que asobras musicais expem queles que aprendem a pensar com osouvidos (Almeida, 2000, p. 190-203).

    Em 1928, Adorno tenta, sem sucesso, a Habilitation docncia na Universidade de Frankfurt. A tese apresentada, Oconceito de inconsciente na teoria transcendental da mente , no foiaprovada por Cornelius, assessorado por Horkheimer. Trs anosatrs, Cornelius e seu assessor no tinham aceito a tese de Benjamin,A origem do drama barroco alemo (Benjamin, 1984). Adorno ficoumuito irritado sobretudo contra Horkheimer, que, suspeitava, nohaveria defendido suficientemente sua tese por no a considerarsuficientemente marxista (cf. Wiggershaus, 2002, p. 114). Numasegunda tentativa, em 1931, com o tema Kierkegaard: a construoda esttica, atinge seu objetivo. Seu novo orientador o filsofo etelogo Paul Tillich. Horkheimer tambm fez parte de sua banca. Atese, posteriormente transformada em livro (Adorno, 1969) e

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    dedicada a Kracauer, defende a idia de que a conscincia esttica,pela sua aparncia de reconciliao, capaz de fornecer umconhecimento mais acurado das contradies irreconciliveis domundo real. Adorno, servindo-se de uma crtica aniquiladora esalvadora, desenvolveu no texto um materialismo de inspiraoteolgica, adquirido nos contatos com Kracauer e Benjamin.

    O discurso inaugural como assistente de filosofia na UniversittJ. W. Goethe intitulou-se A atualidade da filosofia e foi proferido nodia 8 de maio de 1931. Por meio dele, apresenta um programa para ainterveno filosfica contempornea. Tinha, ento, 28 anos. Mesmodefendendo uma temtica essencialmente filosfica, em uma tertlia depensadores acadmicos, compe-na em forma de ensaio e utiliza-se daars inveniendi a fantasia exata como organon primordial dainterpretao filosfica (Adorno, 1996). O discurso inaugural deAdorno aparentava ser um passo em direo a Horkheimer, mas, nofundo, permanecia um programa teolgico-materialista no esprito deBenjamin e de Kracauer. No agradou nem a Horkheimer, nem aMannheim, nem ao prprio Kracauer. Mas Adorno permaneceu fiel aseu programa, que significava, antes de tudo, apresentar os conceitosde Benjamin ao mundo cientfico universitrio (Wiggershaus, 2002, p.125-126).

    A partir de 1927, Benjamin passa a ser mais significativo paraAdorno que Kracauer. Viam-se durante as estadas de Benjamin emFrankfurt e de Adorno em Berlim. Aquele, oito anos mais velho queeste, tambm era filho de um rico comerciante judeu, da capitalalem. Tinha publicado nos anos 20 dois trabalhos filosficos sobrecrtica de arte: As afinidades eletivas de Goethe e A origem do dramabarroco alemo. De 1928 a 1932, reuniam-se com freqncia, emFrankfurt e redondeza, onde aconteceram, segundo informao dofrankfurtiano, conversaes inolvidveis. Benjamin leu para Adornoos primeiros esboos do Trabalho das passagens, trechos de Ainfncia em Berlim em 1900; correspondiam-se amide. Os doisamigos, filsofos e estetas, desenvolveram um tipo de trabalho emconjunto, alimentaram preocupaes comuns (Gagnebin, 2000).Adorno, em suas correspondncias, faz referncia a um programafilosfico comum (Nobre, 1998, p. 60); familiarizou-se tambmcom temas e categorias elaborados por seu amigo. Segundo Buck-Morss, a partir de 1928, quase todos os seus escritos trazem a marcada linguagem de Benjamin (1981, p. 66). Posteriormente, algumastenses entre os dois se fariam pblicas.

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    A primeira participao de Adorno na Revista do Instituto dePesquisa Social, agora sob a direo de Horkheimer, d-se em 1932com um tema musical, A situao social da msica, em que traa aslinhas bsicas de uma esttica materialista da msica como modelopara a prtica filosfica. Depois surgiro outros artigos analticos,sobre msica ou temticas estticas, publicados pela Revista doInstituto: Sobre o jazz (1936), Carter fetichista da msica e regressoda audio (1938), Fragmentos sobre Wagner (1939), Spengler hoje(1941), A investida de Veblen cultura (1941). Numa avaliaoquantitativa de suas produes, Adorno muito mais msico quefilsofo. Porm, como Thomas Mann observaria mais tarde (2001, p.40), ele rejeitava a opo entre esteta e terico e o conjunto de suasobras confirma essa observao. No entanto, so raros os msicos-filsofos ou os filsofos-msicos! Precisam eles desenvolver um tipode inteligncia e de fantasia bem particular. Na sutil considerao deTrcke, Adorno,