A Filosofia Moderna e Descartes

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    A Filosofia Moderna e Descartes (*)

    Eduardo O C ChavesI. A Filosofia Pr-Moderna: Tendncias BsicasPara entender a filosofia moderna necessrio entender a filosofia que a precedeu --a medieval e, at certo ponto, a filosofia antiga.Embora haja considerveis diferenas entre a filosofia antiga e a medieval, e mesmoentre as diversas correntes que constituram uma e outra, possvel detectar umacerta tendncia bsica naquilo que poderamos chamar de "filosofia pr-moderna", e

    que engloba elementos bsicos de uma e de outra.Para a filosofia pr-moderna, em primeiro lugar, a existncia daquilo que na filosofiamoderna se convencionou chamar de "mundo exterior" (a realidade externa nossamente) no um problema. Para ela, pacfico que existe um mundo fora de nossamente, que objeto de nosso conhecimento. Isso no precisava ser demonstrado,porque no havia se tornado um problema.Para a filosofia pr-moderna, em segundo lugar, a realidade contm objetos e fatos.Objetos so coisas e fatos so estados de coisas. Tanto objetos como estados decoisas existem, na realidade: eles so descobertos, no constitudos.Alm disso, e em terceiro lugar, para a filosofia pr-moderna o mundo exterior

    objetivamente ordenado. A realidade no composta meramente de objetos e fatosisolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, atravs devrias relaes, dentre as quais a principal a de causalidade.A relao de causalidade, para a filosofia pr-moderna, existe objetivamente narealidade: um evento realmente causa o outro, e isto um fato que pode serconstatado. A realidade no composta apenas por "fatos atmicos" -- evento a eevento b, por exemplo -- mas tambm por fatos complexos -- evento a causandoevento b, por exemplo. A relao de causalidade, portanto, no redutvel relaode contigidade espao-temporal, como diria Hume. Ela comporta tambm o nexocausal.

    Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existeindependentemente do ser humano. No o ser humano que impe ordem realidade: esta j ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordemque j existe. esse fato que possibilita o conhecimento.A realidade, para a filosofia pr-moderna, portanto, contm fatos, atmicos ecomplexos. Esses fatos, como visto, so estados de coisas que existem, na realidade:so descobertos, no constitudos. Conquanto possam existir estados de coisasimaginrios, fictivos, eles no devem ser descritos como "fatos imaginrios". Fatosso coisas reais.Para a filosofia pr-moderna, em quarto lugar, a verdade uma relao de

    correspondncia ou adequao entre os juizos de um sujeito e os fatos que soobjeto desses juizos. Se o juizo emitido por um sujeito corresponde aos fatos, verdadeiro; se no existe essa correspondncia entre o juizo emitido e a realiduade,ele falso. A realidade no nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente . Sonossos juizos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.Para a filosofia pr-moderna, em quinto lugar, temos evidncia da verdade ou no denossos juizos atravs principalmente dos sentidos, pela perceo sensorial. E aquiloque nos dado na percepo nada mais nada menos do que a realidade,propriamente dita, os objetos e os fatos que compem o mundo externo a ns.Embora seja notrio que s vezes nos enganemos em nossa percepo, a essaconstatao no se d importncia muito grande na filosofia pr-moderna.Para a filosofia pr-moderna, em sexto lugar, possvel, partindo dos sentidos,descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidadesupra-sensvel (ou o que comumente se chama de "sobrenatural"). Em geral,

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    acreditava-se que era possvel descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pelachamada "via natural", ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelossentidos.Para a filosofia pr-moderna, em stimo lugar, o conhecimento o conjunto de juizosverdadeiros e evidenciados nos fatos que compem a realidade (sensvel ou supra-sensvel). Para que haja conhecimento necessrio que haja um sujeito, queconhece, e um objeto, que conhecido.A filosofia pr-moderna no duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela

    plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiana tantaque ela pode falar, sem embarao, em milagres. no tem maiores problemas com oconceito de milagre. Um milagre um evento que, se ocorrer, viola ou suspende aordem objetiva existente na realidade. Para a filosofia pr-moderna, milagres, se defato existem, acontecem a nvel da realidade, e no apenas de nosso conhecimentoda realidade. Sua definio envolve referncia ao plano ontolgico e metafsico, noapenas epistemolgico. Milagre no apenas um nome para nossa ignorncia daordem (como diria Spinoza mais tarde): o milagre uma violao ou suspenso daordem objetiva existente na realidade. Por isso que se acreditava que eles eram desua importncia: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em milagres,

    porm, no quer dizer acreditar neles. Se realmente acontecem ou no outraquesto. Nem todos os filsofos pr-modernos acreditavam que milagres aconteciam.Mas no tinham dificuldade com o conceito.Para a filosofia pr-moderna, por fim, e em oitavo lugar, a pedagogia o processoatravs do qual a criana levada a conhecer e a descobrir fatos, o processo deconduo do sujeito ao objeto.II. A Transio para a Filosofia Moderna: o CeticismoEmbora tenha existido cticos na Antigidade e na Idade Mdia, que duvidaram deque o ser humano tenha conhecimento da verdade, ou mesmo que a verdade exista,o ceticismo nunca foi considerado, na filosofia pr-moderna, como uma conditio sine

    qua non da filosofia.Contudo, alguns eventos importantes ocorreram por volta do sculo XVI, quecomearam a criar um novo clima: o clima do ceticismo.Um dos eventos importantes foi o surgimento da cincia moderna, especialmente notocante chamada hiptese heliocntrica.A hiptese geocntrica postula que a terra o centro do universo e o sol e as demaisestrelas, bem como os outros planetas, giram ao redor da terra, que ficaestacionria. Esta hiptese, bom que se diga, corresponde plenamente ao que nosindicam nossos sentidos. Nossos sentidos nos do a impresso de que a terra ficaparada, no se movimenta, e que os outros corpos celestes se movem ao redor dela.

    Se nos basearmos apenas nos sentidos, a hiptese geocntrica parece bastante bemconfirmada pela evidncia. Mais bem confirmada do que a hiptese heliocntrica.No entando, aqui vm os cientistas, e propem uma hiptese totalmente contrria evidncia dos sentidos: a hiptese de que a terra no s gira em torno de um eixocomo gira ao redor do sol, que o centro do sistema planetrio de que a terra fazparte. Para acreditar na hiptese heliocntria, foroso duvidar do que nos dizemnossos sentidos, preciso admitir que nossos sentidos nos enganam em relao aquestes bem fundamentais.Que nossos rgos dos sentidos s vezes nos enganam fato sobejamenteconhecido, desde a antigidade mais remota. Mas o que comea a surgir agora ainquietante pergunta: ser que nossos sentidos no nos enganam sempre? Se verdade que a terra gira, em torno de um eixo e ao redor do sol, contrrio ao quedizem os sentidos, ser que esses sentidos no nos enganam em outros aspectostambm? Ser que realmente conhecemos a realidade?

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    Pior do que isso: s vezes sonhamos, ou temos alucinaes, e imaginamos ver coisasque no esto l. O que que garante que no estamos sempre sonhando oualucinando? O ctico comea a duvidar, no s de que temos conhecimento adequadoda realidade, mas mas da prpria existncia de uma realidade por detrs de suasidias. Pode ser que estejamos sempre sonhando ou alucinando!As tendncias bsicas da filosofia pr-moderna comeam a ser colocadas em questo.Um outro evento que ajudou a questionar as bases da filosofia pr-moderna foi areforma protestante do sculo XVI.

    Em um aspecto importante, a reforma protestante colocou em questo o problema docritrio de verdade religiosa (Popkin, cf Kenny).Em outro aspecto importante, e relacionado, a filosofia pr-moderna, como vimos,acreditava que, partindo dos sentidos, era possvel chegar ao conhecimento de umarealidade que transcende os sentidos: a chamada realidade supra-sensvel (ou o quecomumente se chama de "sobrenatural"). Em geral, acreditava-se que era possvelter conhecimento de Deus (por exemplo) pela chamada "via natural", ou seja,atravs da razo humana refletindo sobre os dados fornecidos pelos sentidos. verdade que a filosofia pr-moderna, em geral, admitia que no podemos terconhecimento pleno de Deus pela via natural. O conhecimento assim obtido era

    relativamente elementar, dizendo respeito apenas ao fato de que Deus existe e aalgumas caractersticas que ele tem, ou no tem. Para se chegar ao conhecimentopleno de Deus, a filosofia pr-moderna geralmente admitia a necessidade de umarevelao divina, que suplementaria o conhecimento obtido atravs da razo assistidapelos sentidos. Esse conhecimento complementar no seria alcanado pela razo,mas pela f -- embora a filosofia pr-moderna geralmente tenha mantido que a f,embora supra-racional, no contra-racional, ou anti-racional, ou irracional.A reforma protestante do sculo XVI no s negou como violentamente criticou essatendncia emprio-racionalista da filosofia pr-moderna. Lutero chamou a razo deprostituta, a afirmou que o conhecimento de Deus s vem pela f, no pela razo, e

    que a f algo que se ope razo. Na verdade, em alguns pronunciamentos dosreformadores, chega-se a defender o ponto de vista de que a f to mais intensaquanto mais irracional for o seu objeto. O importante a f, no o conhecimentonatural. E para demonstrar que a f mais importante do que a razo, alguns dosreformadores procuraram mostrar quo falha a razo humana -- contaminada quefoi pelo pecado -- e os sentidos humanos -- freqentemente enganados e enganosos.O resultado desse esforo foi ceticismo em relao capacidade humana no s deconhecer o que jaz alm dos sentidos, mas tambm em relao capacidade humanade conhecer, simplesmente. A esse ceticismo, correspondeu sempre um fidesmo -- atese de que o importante crer.

    Aqui talvez seja o momento de esclarecere que existem vrios graus e diversasformas de ceticismo.Existe uma verso relativamente branda de ceticismo, que no duvidando daconfiabilidade dos nossos sentidos, e, portanto, no contestando a possibilidade deconhecimento emprico, nega, entretanto, que possamos ir alm dos sentidos,questionando, portanto, a existncia do chamado conhecimento supra-sensorial. Essaforma de ceticismo tem sido chamada de ceticismo em relao razo, mas adenominao no muito adequada. Talvez seja mais apropriado denomin-lo deceticismo em relao ao supra-sensorial.Alm dessa, existem outras variantes de ceticismo que admitem a possibilidade deconhecimento emprico e mesmo supra-sensorial, mas negam a a existncia oumesmo a possibilidade da verdade, redefinindo o conceito de conhecimento de modoa eliminar referncia ao conceito de verdade. Essa forma de ceticismo poderia serdenominada de ceticismo em relao verdade.

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    Existem, por fim, variantes do ceticismo em relao aos sentidos. As duas principaisso:

    - o ceticismo que coloca em dvida que os nossos sentidos nos forneamconhecimento adequado da realidade emprica, mas que no questiona a existnciadessa realidade;

    - o ceticismo que coloca em dvida que os nossos sentidos nos forneamconhecimento de uma realidade extra-mental, e que questiona, portanto, a prpriaexistncia de um mundo externo a ns.

    Uma outra forma de classificar o ceticismo seria dividi-lo em verses radicais emoderadas.A verso radical do ceticismo, tambm chamada de acadmica (1), afirma que notemos nenhum conhecimento, exceto do fato de que no temos conhecimento, queno existe nenhuma verdade, a no ser aquela que afirma que a verdade no existe.O dito socrtico, "S sei que nada sei", poderia ser considerado o slogan dessaverso .A verso moderada do ceticismo, tambm chamada de pirrnica (2), nega quetenhamos evidncia adequada at mesmo para determinar se sabemos que nadasabemos. "No sei nem mesmo se nada sei", seria o seu slogan. A atitude adequada

    para o ctico seria suspender o juzo, at mesmo em relao ao ceticismo, ser cticoat do prprio ceticismo.(Como se pode ver, a verso chamada de moderada , em certo sentido, mais radicaldo que a verso dita radical).III. A Filosofia Moderna e Descartes: Tendncias BsicasNesta seo, analisarei as principais tendncias do chamado pai da filosofia moderna:Descartes. No essencial, o ponto de vista de Descartes, considerado um racionalista, adotado tambm pelo empirismo (representado por Hume) e pelo criticismotranscendental (representado por Kant, que pretendeu suplantar tanto o racionalismocomo o empirismo).

    Apesar de a filosofia de Ren Descartes (1596-1650) se basear no que ele chama de"dvida radical", Descartes no considerado um ctico: , freqentemente,conhecido como um racionalista. Vou procurar mostrar, porm, que sua filosofia,apesar de ser apresentada por ele como a resposta ao ceticismo, , no essencial,fundamentalmente ctica.Descartes comea por refletir sobre as perguntas inquietantes do ctico: Ser quenossos sentidos no nos enganam sempre? O que que garante que no estamossempre alucinando ou sonhando?1. Relao com a Filosofia TradicionalApesar de ter estudado em colgio jesuta (La Flche, de 1604 a 1612), Descartes

    veio a se tornar altamente ctico em relao filosofia clssica que havia aprendidono colgio jesuta.Em relao filosofia ele afirma:"A filosofia nos ensina falar com aparncia de verdade sobre todas as coisas, e nosleva a ser admirado pelos menos eruditos. . . . [Contudo, apesar de] a filosofia tersido cultivada por muitos sculos pelas melhores inteligncias que jamais viveram, . .. no h, nela, uma s questo que no seja objeto de disputa, e, em conseqncia,que no seja dbia" (DM, I, 84,86; cf. 90). o fato de que ele consegue duvidar da veracidade de tudo o que passa por filosofiaque faz com que ele se torne ctico em relao a ela, e que tenha certo desprezopela filosofia tradicional. Se a filosofia vai ter lugar no universo de Descartes, ela terque ser drasticamente revista.2. Paixo pela Matemtica

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    Em seus primeiros anos em La Fleche, Descartes se dedicou tambm matemtica(Copleston, IV, 74), que sobremaneira o impressionou, "por causa da certeza de suasdemonstraes e da evidncia de seu raciocnio" (Ibid, p.85; cp. Copleston, IV, 75).Ele manifesta surpresa, porm, que a matemtica no tenha sido utilizada, a no sernas "artes mecnicas", e que "nenhum edifcio mais nobre tenha sido construdosobre suas bases firmes e slidas" (Ibid).Ele tomou a si a tarefa de construir esse edifcio mais nobre. Para ele, a filosofiasomente seria capaz de escapar dos ataques do ctico se tivesse, como base de

    sustentao, um ponto de apoio arquimdico que fosse certo e indubitvel. a buscadesse ponto de apoio que caracteriza sua filosofia.3. O Mtodo CartesianoO mtodo de Descartes foi proceder de forma matemtica, primeiro estabelecendo osprincpios fundamentais, para a seguir derivar deles suas conseqncias, da mesmaforma que teoremas so derivados de axiomas (Aune, 7-8, NKS, SCP, 27). Dessaforma, utilizando o mtodo rigoroso do raciocnio matemtico, ele esperava constuir,sobre bases firmes e slidas, um edifcio filosfico que ficasse imune controvrsiaftil que havia caracterizado a filosofia que aprendera na escola (Aune, 7-8).A primeira etapa na construo desse edifcio a descoberta de princpios bsicos ou

    axiomas, que funcionem como base e alicerce do edifcio. A estratgia que ele utilizapara chegar a esses princpios foi a da dvida sistemtica: nada que pode serduvidado aceitvel como fundamento de seu sistema.Assim sendo, na busca desse ponto de apoio, Descartes resolve duvidar,sistematicamente, de tudo. Ele se prope submeter todas as suas crenas a umareviso sistemtica para tentar encontrar aquela(s) de que ele no consegue,realmente, duvidar. Essas crenas induvbitveis lhe forneceriam a base para seuedifcio, visto que seriam consideradas como absolutamente certas (Aune, 7-8).4. O Projeto CartesianoNa verdade, o projeto de Descartes maior do que simplesmente reconstruir a

    filosofia. Ele quer fornecer um fundamento racional para as crenas das pessoascomuns bem como para a cincia que comeava naquela poca, da qual foi umdefensor e para a qual fez contribuies importantes.Um indivduo (seja ele uma pessoa comum ou um cientista) desenvolve muitas desuas crenas antes de chegar idade da razo. Mesmo depois da idade da razo,freqentemente adquire crenas atravs do exerccio no-crtico de sua atividadesensorial, de testemunhos no confiveis de outros, de apelo a autoridades indignasde crdito. Quem pretende ser racional em suas convices, tem, mais cedo ou maistarde, de limpar a sua mente de todas as suas crenas, duvidando de tudo aquilo que incerto e passvel de dvida, e reconstruindo suas crenas sobre um novo

    fundamento, certo e indubitvel (Kenny, 14).Descartes resume seu projeto:Muitos anos atrs percebi quantas opinies falsas vinha aceitando como verdadeirasdesde minha infncia, e quo dbio tudo o que eu nelas baseava deveria ser. Decidi,ento, que, se realmente quisesse estabelecer algo de slido e duradouro nascincias, teria que, deliberadamente, me livrar de todas as opinies que at entoaceitara e comear a construir tudo de novo, a partir do zero. . . . No serianecessrio, para os meus propsitos, mostrar que todas minhas convices eramfalsas -- tarefa que poderia nunca vir a concluir. Como a razo j me haviapersuadido de que deveria deixar de acreditar tanto nas coisas que parecem sermanifestamente falsas como naquelas que no so inteiramente certas eindubitveis, o menor fundamento para uma dvida seria suficiente para me fazerrejeitar qualquer de minhas opinies. Por isso, no precisei examinar cada uma deminhas convices, individualmente, o que seria um trabalho interminvel, mas

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    apenas os fundamentos em que se baseavam, pois a destruio da fundao faz comque todo o edifcio venha a ruir" (Medit I, 144-45, cr Aune, 8-9)O objetivo de Descartes , portanto, examinar o fundamento que existe para asvrias categorias de crena que possua. Se o fundamento de toda uma categoria decrenas pode ser questionado, as crenas baseadas nesse fundamento no podem sertidas como inteiramente certas. Pode at ser que as crenas sejam verdadeiras, mas tambm possvel que sejam falsas, e, se possvel que sejam falsas, elas nopodem ser consideradas indubitveis. Talvez subseqentemente, quando encontrar

    fundamentos certos e indubitveis para suas crenas, Descartes possa voltar aaceitar algumas das crenas abandonadas e mostrar que so verdadeiras. Porenquanto, porm, ele as colocar de lado como suspeitas e indignas de credibilidade(Aune, 10).5. Esclarecimento de Alguns Termos oportuno esclarecer alguns termos bsicos do discurso cartesiano. Para Descartes,"certeza" e "indubitabilidade" so termos, se no sinnimos, pelo menoscorrelacionados. Se um enunciado certo, ele tambm indubitvel. Um enunciado certo, para Descartes, quando ele necessariamente verdadeiro. Um enunciado indubitvel, para Descartes, quando no possvel que ele seja falso, quando no se

    pode encontrar nenhuma razo para question-lo (por que absolutamente certo).Note-se que, para Descartes, a "necessidade" que ele atribui a um enunciado certono a necessidade inerente s tautologias (quilo que subseqentemente se veiochamar de "enunciados analticos"), visto que ele considera possvel, pelo menos noprimeiro estgio de suas dvidas, como veremos, que enunciados matemticos sejamfalsos, e, portanto, dubitveis.Quando Descartes fala em dvida, ele tem em mente uma dvida racional, ouintelectual, no uma dvida existencial, ou prtica. Duvidar racionalmente de umacrena encontrar razes para duvidar de sua veracidade, identificar razes parapensar que a crena em questo pode, possivelmente, ser falsa (Aune, 10). Eis o que

    diz Descartes:"H muito tempo que venho observando que, no que diz respeito vida prtica, algumas vezes necessrio seguir opinies, que se sabe ser muito incertas, como seelas fossem indubitveis. . . . Mas porque eu desejava me dedicar exclusivamente busca da verdade, pensei ser necessrio fazer exatamente o oposto e rejeitar, comose fossem absolutamente falso, tudo aquilo acerca do que pudesse ter a menordvida, para ver se, ao final, restaria alguma coisa que fosse indubitvel" (Discurso,VI, HR, pp 100-101, apud Williams, 34-35).6. Primeiro Argumento CticoEsclarecidas essas questes preliminares, vejamos como Descartes procede. O que

    mais nos interessa aqui como Descartes pode duvidar das crenas que adquiriuatravs de sua percepo. Ele esclarece:"Tudo o que, at o presente, aceitei como mais verdadeiro e certo, fiquei sabendopelos sentidos ou atravs deles. Mas posso provar que algumas vezes os sentidos meenganam, e que sbio no confiar inteiramente em algo que j alguma vez nosenganou" (Medit I, 145). "Visto que os sentidos nos enganam algumas vezes, decidisupor que nada fosse como eles nos fazem imaginar" (Discurso, VI, HR, 100-101,apud Williams, 35) 3.Com esse primeiro argumento, Descartes vem a duvidar de seus sentidos e aconsiderar dbio e suspeito tudo o que ficou sabendo atravs deles. Os sentidos,portanto, no so o fundamento absolutamente certo e indubitvel que estavaprocurando. Parece no haver critrio que nos permita distinguir uma percepoerrnea de uma correta.

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    Descartes considera a objeo de que, embora algumas vezes nos enganemos acercade coisas que percebemos h muito tempo, ou que percebemos de muita distncia(ou seja, acerca de coisas distantes, no tempo ou no espao), no poderamos nosenganar acerca de impresses sensoriais, que estamos tendo no momento, de coisasprximas de ns. Parece impossvel duvidar de que, ao olhar para minha mesa, aliestejam minhas mos escrevendo em um papel -- somente uma pessoa insana teriadvidas disso!7. Segundo Argumento Ctico

    A resposta de Descartes a essa objeo introduz um segundo argumento: o dosonho. Sua resposta a seguinte:"Devo lembrar que sou um homem, e, como tal, tenho o hbito de dormir. Durantemeu sono, freqentemente sonho, e no sonho tenho impresses semelhantes s quepessoas insanas tm quanto esto acordadas, ou at mesmo mais provveis.Quantas vezes j no me ocorreu, em sonhos, que eu estivesse em determinadolugar, vestido de tal maneira, sentado prximo lareira, quando, na realidade,estava na cama, dormindo. No momento presente, realmente me parece que comolhos despertos que vejo este papel, que a cabea que movimento no estadormecida, que deliberada e intencionalmente que estico meu brao e vejo minha

    mo. O que acontece durante o sono parece no ser to claro e distinto como asimpresses que estou tendo agora. Mas ao pensar sobre tudo isso eu me relembro deque, em muitas outras ocasies, tive iluses semelhantes, enquanto dormia.Examinando cuidadosamente essas lembranas, concluo que, manifestamente, noexistem indicaes certas pelas quais possa claramente distinguir as impresses quetenho, quando acordado, das que pareo ter, enquanto durmo, e fico confuso. Eminha confuso tal que sou quase capaz de me persuadir que no momento estousonhando" (Medit I, 145-146, Aune 9-10).Na ausncia de indicadores claros que lhe permitam distinguir as impresses que temquando acordado das que lhe acontecem quando dorme, Descartes considera possvel

    que todas as suas percepes sejam totalmente ilusrias e que as coisas ao seuredor, incluindo o seu prprio corpo, podem, no s ser totalmente diferentes do quelhe parecem ser, mas realmente no existir, na realidade. Parece no haver critrioque nos permita distinguir percepes verdicas de inverdicas (4).O primeiro argumento -- o de que nossos sentidos s vezes nos enganam,produzindo percepes equivocadas, e que, portanto, as coisas podem no ser comoparecem -- leva Descartes a concluir que o mundo exterior pode no ser comoparece.O segundo argumento -- o de que nos sonhos tenho percepes inverdicas, que nocorrespondem a nenhuma realidade externa -- leva Descartes a concluir que o mundo

    exterior pode nem mesmo existir.A diferena bsica entre o primeiro e o segundo argumento a seguinte. Quandosomos enganados pelos nossos sentidos, so os prprios sentidos que,retrospectivamente, nos mostram que estvamos enganados. O erro, no caso deengano dos sentidos, no se generaliza ao presente caso: ele se situa sempre numcaso anterior, j passado. Somente se constata um engano dos sentidos emcontraposio a casos de percepo no-enganosa (Kenny, 25) (5). No caso dosonho, porm, a dvida se estende ao caso presente: pode ser que esteja sonhandoagora. O fato de que estou totalmente convencido de que no estou sonhando agoraem nada contribui para a certeza genuna de que no esteja sonhando. O argumentodo sonho , portanto, mais radical.Os argumentos, at agora, parecem nos mostrar que os sentidos no so confiveis.Como a cincia depende de observaes sensoriais, a cincia, como um todo estariasob suspeita, em virtude desses argumentos -- exceto, talvez, a matemtica. Estaria

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    a matemtica acima de qualquer suspeita, e residiriam nela os enunciados certos eindubitveis que Descartes procura?8. Terceiro Argumento CticoDeixando de lado, por um momento, as convices baseadas nos sentidos,examinemos um terceiro argumento de Descartes, apresentado quando ele passa aexaminar algumas idias matemticas simples. Os enunciados "dois mais trsperfazem cinco", ou "um quadrado tem quadro lados", no parecem ser enunciadoscuja veracidade dependam dos sentidos. Acordado ou sonhando, parece impossvel

    que algum seja enganado acerca de coisas to bvias. Elas parecem ser certas e,portanto, indubitveis."Acordado ou dormindo, dois e trs perfazem cinco, e um quadrado tem apenasquatro lados; e parece impossvel que verdades assim to bvias fiquem sob suspeitode falsidade" ( Kenny,16)Mas nem nesses exemplos matemticos Descartes acredita encontrar o fundamentoque est procurando. Por um lado, as pessoas muitas vezes erram, considerandocomo auto-evidente algo que no o . Por outro lado, Deus, ou um ser extremamentepoderoso, inteligente e maligno, poderia engan-lo em tudo o que pensa, e poderiater disposto as coisas de tal forma que ele fosse enganado at em relao a esses

    enunciados cuja verdade parece to evidente."Uma razo que as pessoas fazem erros em raciocnios desse tipo e consideramcomo certo e auto-evidente o que vemos ser falso. Outra razo, mais importante, que Deus, que nos criou, e que pode fazer tudo o que deseja, pode ter desejado noscriar -- no sabemos ainda -- de tal modo que sempre nos enganemos mesmo emrelao quelas coisas que pensamos melhor conhecer" (Kenny, 17).Para acrescentar rigor ao seu mtodo, portanto, Descartes, que tem algum escrpuloem imaginar que Deus pudesse ser malvolo (Kenny, 35), supe que exista esse serextremamente poderoso e inteligente, mas maligno, que ele chama de um "gniomaligno", que faz com que nos enganemos "mesmo em relao quelas coisas que

    pensamos melhor conhecer" (6). Em decorrncia dessa suposio, Descartes passa aduvidar da veracidade at dos enunciados matemticos mais simples e acrescentarigor sua dvida da realidade externa, inclusive de seu prprio corpo (7) (Medit II,148-149, 101, Aune 10-11, Kenny, 18).9. O Certo e Indubitvel: O "Cogito"Mas se nem os sentidos nem a matemtica, nem as cincias empricas nem asformais, esto acima de dvida, "o que , ento, que pode ser consideradoverdadeiro?" (8)A primeira resposta que se sugere que a nica coisa certa e indubitvel que nada certo. Mas mesmo essa afirmao no e certa e indubitvel: bem possvel que

    haja vrias outras coisas que sejam certas e indubitveis, e, se houver, a afirmaono seria verdadeira. At mesmo dessa afirmao, portanto, Descartes conclui quedeve duvidar.Entretanto, Descartes percebe que, se ele duvida de tudo, h algo que no lhe possvel duvidar, a saber, do fato de que est duvidando. Se ele duvida disso, pelomesmo ato est duvidando. Desse fato Descartes conclui que ele no pode duvidar seno existir, e que, portanto, sua existncia, como um duvidador, absolutamentecerta e indubitvel. Nem mesmo o gnio maligno pode engan-lo acerca disso,porque, para ser enganado, ele, Descartes, tem que existir: ele no pode serenganado se no existir.Como duvidar, ser enganado, etc., so formas de atividade mental, que podem serchamadas de pensamento, Descartes conclui que, se ele est pensando, num dadomomento, ento sua existncia , naquele momento, absolutamente certa eindubitvel. "Cogito, ergo sum" (9). Ele no pode estar errado, portanto, acerca do

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    fato de que o enunciado "Penso, logo existo" necessariamente verdadeiro todas asvezes que ele o concebe ou declara (10).Com esse enunciado Descartes acredita ter descoberto sua primeira verdade certa eindubitvel. Ele existe todas as vezes que pensa, que duvida, que enganado."Observando que essa verdade, 'Eu penso, logo existo', to slida e firme que nemas mais extravagantes suposies dos cticos podem derrub-la, julguei que noprecisava ter escrpulos de aceit-la como o primeiro princpio da filosofia, que eubuscava" (HR, I, 101; Kenny, 40)

    Mas esse conhecimento extremamente limitado em escopo. Ele tem certeza de queexiste quando pensa, mas no sabe, por exemplo, qual a sua natureza -- ele sabeque ele , no o que ele -- nem se continua a existir quando para de pensar. preciso, portanto, continuar a busca.10. A Natureza do EuDescartes passa, portanto, a investigar a natureza daquilo que, ao pensar, ele temcerteza de que existe.Como se viu, Descartes encontrou razes para duvidar de tudo o que depende dossentidos. O ele ter certeza de que existe, portanto, no implica que ele tenha certezade que tem um corpo, que ele tenha impresses sensoriais, sensaes. A nica coisa

    de que Descartes pode ter certeza de que existe enquanto ser pensante, enquantores cogitans."Aqui descubro o que me pertence. Eu sou, eu existo -- isto certo. Mas por quantotempo? Apenas enquanto eu continuo a pensar, porque possvel que, ao deixar depensar, deixe de existir. No estou admitindo nada que no seja necessariamenteverdadeiro. Estou, portanto, me considerando apenas como um ser pensante, isto ,uma mente -- alma, entendimento, razo, termos cujo sentido at aqui desconhecido. Eu sou, portanto, uma coisa real, uma coisa que realmente existe. Masque tipo de coisa? Eu j disse: uma coisa que pensa" (Medit, apud Aune, 12) (11)Se algum lhe perguntar se seus pensamentos tm alguma causa externa, Descartes

    responde que seus pensamentos podem ter sido causados por algo externo a ele,como podem ter sido produzidos em sua mente por Deus, pelo gnio maligno, ouento por ele mesmo. Tudo isso possvel, e, portanto, nenhuma dessas causaspossveis pode ser considerada certa.11. As Marcas da Verdade Certa e IndubitvelO caminho que Descartes decide seguir, a partir desse ponto, , tendo encontradopelo menos uma coisa absolutamente certa, examin-la, para ver se conseguedescobrir nela as marcas identificadoras de algo indubitvel, para ver se conseguedefinir o que que a torna indubitvel.Sua concluso que nada existe no enunciado "penso, logo existo" alm de uma

    "apreenso clara e distinta" do que afirmado. Apreenso clara e distinta deve,portanto, ser marca da verdade certa e indubitvel (Aune, 12-13) (12)."Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas no saberei eu, igualmente, o que necessrio para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiroconhecimento, nada h que me assegure sua verdade, exceto a percepo clara edistinta daquilo que afirmo, que no seria suficiente para me garantir que aquilo queafirmo verdadeiro se fosse possvel que algo que concebo clara e distintamenteviesse a ser falso. Dessa forma, parece-me que posso j estabelecer, como regrageral, que todas as coisas que percebo muito claramente e muito distintamente soverdadeiras" (Medit III, HR, 158 - quoted from source).12. Intuio e DeduoMas no so apenas os enunciados claros e distintos que podem ser consideradascertos e indubitveis. Qualquer enunciado que possa ser validamente deduzido delestambm ter as mesmas caratersticas .

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    Em As Regras para a Direo da Mente, escrito por volta de 1630, Descartes afirmaque nosso conhecimento depende de duas operaes da mente: intuio e deduo.Intuio o nome que ele aqui d "apreenso clara e distinta":"Intuio a concepo que uma mente no anuviada e atenta nos d to pronta eclaramente que deixamos de ter qualquer dvida acerca daquilo quecompreendemos".Seu conhecimento de que, se ele pensa, ele existe enquanto coisa pensante, intuitivo, nesse sentido do termo: Ele afirma:

    "Quando eu observo que ns somos seres pensantes, esta uma espcie de nooprimria, que no concluso de nenhum silogismo. Quando algum diz: 'Estoupensando, logo eu existo', ele no est usando um silogismo para deduzir a suaexistncia de seu pensamento, mas est apenas reconhecendo este fato como algoevidente, em uma simples intuio mental" (HR, II, 38; Kenny,41; cf.51ff) (13).Deduo, por outro lado, inferncia necessria de coisas que so conhecidas comcerteza. Para Descartes, embora a deduo difira da intuio, baseada nesta, poiscada passo em uma cadeia dedutiva corresponde a uma intuio: preciso apreenderclara e distintamente cada passo na deduo. (Aune, 16, Kenny, 55)Tendo estabelecido um enunciado absolutamente certo e indubitvel, Descarte

    prossegue em sua investigao para ver o que pode ser dele deduzido. Tendocolocado no lugar o alicerce, ele pretende agora construir o prdio.13. O Terceiro Argumento RecolocadoVoltemos questo dos enunciados matemticos. Depois de ter estabelecido umenunciado certo e indubitvel, Descartes volta a considerar a afirmao de que 2mais 3 perfazem 5. Segundo ele, quando ele contempla essa afirmao, levando emconta apenas o enunciado, ele tem uma apreenso clara e distinta de sua verdade.Ele s considera a afirmao dbia por causa da hiptese do gnio maligno, que podelhe enganar mesmo acerca de coisas que lhe parecem evidentes. Ele reconhece,agora, que este fundamento para sua dvida frgil, porque no nenhuma razo

    para acreditar que esse gnio maligno exista. Mas mesmo um fundamento frgilprecisa ser levado em conta.Para eliminar a hiptese da existncia do gnio maligno, Descartes se sente obrigadoa provar que um ser todo-poderoso existe, mas no enganador. Essa prova equivalente a uma prova da existncia de Deus, e vai permitir que ele passe a aceitarcomo verdadeiros enunciados que ele parece apreender como claros e distintos masque, por causa da hiptese do gnio maligno, havia rejeitado.14. A Existncia de DeusVejamos, agora, que argumentos Descartes usa para provar (14) a existncia deDeus. possvel detectar vrias provas em seus escritos.

    No Discurso Descartes desenvolve uma prova baseado na idia de perfeio.15. Argumento Circular?Antes de prosseguir oportuno esclarecer uma questo controvertida: discutvel seDescartes considerou clareza e distino como marcas apenas de certeza eindubitabilidade ou tambm de verdade.Caso seja apenas a primeira hiptese, estaria o "cogito" includo entre as verdadesque so certas e indubitveis mas no necessariamente verdadeiras, como asmatemticas? A mim me parece que o certo e o indubitvel igual ao verdadeiropara Descartes.O que ele distingue (mal) entre verdades que so certas e indubitveis, mesmocom a hiptese de um gnio maligno (como o "cogito", e, talvez algumas outrasverdades) e enunciados que parecem certos e indubitveis, mas, com a hiptese dognio maligno (i.e., sem a prova da existncia de Deus) no podem ser tidos comoverdadeiros.

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    Em vrios locais Descartes afirma, explicitamente, que mesmo a hiptese de umDeus enganador ou de um gnio maligno no pode faz-lo duvidar do "cogito", isto ,de que ele pensa, e, em pensando, existe. (EVIDNCIA)Mas apenas depois de provar que Deus existe, e, que, sendo benevolente, alm detodo-poderoso, no permitiria que um gnio maligno nos enganasse todesavergonhadamente, que Descartes se considera justificado em considerar osenunciados matemticos (e outros, como veremos) como verdades certas eindubitveis. Na verdade, aps ter provado que Deus existe, Descartes abre as portas

    e reintroduz tudo de que antes havia duvidado.Parece claro, portanto, que, para Descartes, h uma diferena qualitativa entre o"cogito" (de que ele acha impossvel duvidar) e as outras verdades que parecem serclaras e distintas (mas que ele acha possvel duvidar). Essa interpretao tem ainda omrito de no imputar a Descartes um argumento circular: o de que ele usa o"cogito" para definir que clareza e distintino so critrios de verdade, em seguidausa esses critrios para provar a existncia de Deus, e, por fim, usa a existncia deDeus para provar que os enunciados que apreendo de forma clara e distinta soverdadeiros (Vr Doney, 213 ff).No Discurso, por exemplo, ele diz (a primeira passagem j foi citada):

    "Observando que essa verdade, 'Eu penso, logo existo', to slida e firme que nemas mais extravagantes suposies dos cticos podem derrub-la, julguei que noprecisava ter escrpulos de aceit-la como o primeiro princpio da filosofia, que eubuscava" (HR, I, 101; Kenny, 40)"Depois disso eu considerei o que, numa proposio, necessrio para que sejaverdadeira e certa, pois, desde que acabara de descobrir uma que sabia ser tal,pensei que devesse saber no que consistia essa certeza. E tendo notado que nohavia absolutamente nada no enunciado 'Eu penso, logo existo' que me garante tercom ele feito uma afirmao verdadeira, exceto o fato de que vejo muito claramenteque, para pensar essa afirmao, ela tem que necessariamente ser verdadeira,

    conclu que eu poderia pressupor, como regra geral, que as coisas que concebo muitoclara e distintamente so todas verdadeiras -- lembrando-me, entretanto, de que halguma dificuldade para determinar quais so as coisas que distintamenteconcebemos" (HR, I,102).Especialmente a ltima frase sugestiva: Descartes afirma que tudo o que clara edistintamente percebe verdadeiro, mas reconhece que existem dificuldades paradeterminar se o que estamos apreendendo est sendo apreendido de forma clara edistinta. Considero que essa ltima frase corrobora, de maneira especial, minhainterpretao.Em passagem das Meditaes, j citada, e muito parecida com as passagens do

    Discurso que acabo de citar (a "regra geral", por exemplo, mencionada em ambas),Descartes afirma:"Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas no saberei eu, igualmente, o que necessrio para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiroconhecimento, nada h que me assegure sua verdade, exceto a percepo clara edistinta daquilo que afirmo, que no seria suficiente para me garantir que aquilo queafirmo verdadeiro se fosse possvel que algo que concebo clara e distintamenteviesse a ser falso. Dessa forma, parece-me que posso j estabelecer, como regrageral, que todas as coisas que percebo muito claramente e muito distintamente soverdadeiras" (Medit III, HR, 158 - quoted from source).Contudo, foroso reconhecer que em vrias outras passagens Descartestextualmente afirma que sem o conhecimento da existncia de Deus no poderiasaber nada. Eis algumas delas:

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    "Para remover inteiramente [a possibilidade de dvida baseada no Deus enganador]devo investigar se h um Deus assim que a ocasio se apresentar, e, se concluir queDeus existe, devo investigar se Ele pode ser um enganador. Sem conhecimentodessas duas verdades, no vejo como jamais possa ter certeza de qualquer coisa"(Medit III, HR 159, from source)."Depois que reconheci que h um Deus -- porque ao mesmo tempo tambmreconheci que todas as coisas dependem dEle, e que ele no um enganador, e dissoinferi que o que percebo clara e distintamente no pode deixar de ser verdade --

    nenhuma razo contrria pode ser apresentada que me faa duvidar da verdade dealgo que clara e distintamente percebi, desde que me lembre t-lo clara edistintamente percebido (mesmo que no momento no tenha em mente as razesque levaram a julg-lo verdadeiro), e, assim, posso dizer que tenho conhecimentoverdadeiro e certo dessa coisa" (Medit III, HR 184)."E assim eu claramente reconheo que a certeza e a verdade de todo conhecimentodepende apenas do conhecimento do verdadeiro Deus, medida que, antes deconhec-lO, no poderia ter um conhecimento perfeito de nenhuma outra coisa"(Medit III, HR, 185) (NB: conhecimento perfeito).16. A Metafsica Cartesiana: O Dualismo Mente-Corpo

    Antes de prosseguir, interessante registrar como Descartes consegue duvidar deque realmente exista um mundo exterior. Aparentemente, esse mundo nos dadopela percepo: atravs de nossos rgos dos sentidos, percebemos o mundoexterior. Pelo menos esse o ponto de vista tradicional, conhecido como realismo (svezes qualificado de "ingnuo").Descartes no concorda com esse ponto de vista tradicional. Para ele, a nossa mente(ou conscincia) e a realidade externa so dois reinos separados e autnomos,nenhum sendo dependente do outro. Embora ele no negue que a mente seja capazde compreender objetos externos a ela, aquilo de que estamos imediatamenteconscientes, para Descartes, no so os objetos externos, mas apenas

    representaes mentais, ou idias, produzidas pela nossa prpria mente. A mente,portanto, tem contato com o mundo externo apenas atravs de idias, que sorepresentaes mentais dos objetos externos.O objeto de nossa percepo, portanto, no so os objetos externos, como acreditamos realistas ingnuos, mas representaes mentais desses objetos. Aquilo que nos direta ou imediatamente dado na percepo so idias que existem apenas na mente(embora possam representar objetos externos). Vou chamar essa teoria da perceode "representacionalismo" (15).Essa teoria da percepo baseada na metafsica cartesiana, i.e., na teoria da mentee da realidade externa que Descartes advoga. Para ele, a mente uma substncia ou

    entidade, caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter conscincia, de ser umacoisa que pensa, que percebe, que sente (res cogitans). A realidade externa material, e a matria tem como caracterstica bsica o fato de ser extensa (resextensa). Conscincia e extenso so coisas claramente distintas, podendo cada umadelas ser clara e distintamente concebida sem referncia outra. Os vrios estadosde conscincia (pensamento, sensao, sentimento) so totalmente distintos dosvrios modos de determinao da matria. Por isso, nenhum estado de conscinciapode ser essentialmente dependente de qualquer coisa fsica. A mente, e tudo queela possui, pode existir sem qualquer substncia material (16).Essa metafsica radicalmente dualista tem srias implicaes epistemolgicas. Afirmarque a conscincia um atributo intrnsico de uma substncia negar que aconscincia seja relacional, isto , negar que a conscincia se constitua atravs darelao com algo que diferente dela prpria, a saber, a realidade externa. Por causadisso, inteiramente possvel, para Descartes, que tenhamos exatamente as mesmas

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    experincias que temos e que no exista nada, fora de nossa prpria mente, que sejaresponsvel pelos nossos estados de conscincia. Os estados de conscincia damente dependem apenas da prpria mente, de nada mais (17). por isso que Descartes consegue duvidar da existncia de um mundo exterior semduvidar da existncia de seus estados de conscincia -- porque conscincia, para ele,no conscincia de algo diferente dela mesma.Note-se que a conscincia, para Descartes, tem objetos, conscincia de algumacoisa, mas os objetos da conscincia so mentais, e, no fundo, no se distinguem

    dela mesma. Uma idia , para Descartes, um objeto da conscincia mas tambm, aomesmo tempo, um estado da conscincia (18).Se essa teoria parece difcil de entender, usemos, para entend-la, a analogiaproposta por David Kelly. Imaginemos que a mente seja como um projetor decinema. O faxo de luz que ele projeta um atributo essencial do projetor: sem eleno haveria projetor (o faixo de luz anlogo conscincia). Os objetos na tela soos objetos da conscincia. Contudo, o projetor no uma lanterna que iluminaobjetos independentes da lanterna. O projetor contm um faixo de luz (a conscincia)que cria e constitui as imagens que ele ilumina: os objetos na tela existem apenas"na" luz -- se ela se apagar eles deixam de existir (19).

    17. O Ceticismo de DescartesDo que foi dito fica claro que Descartes um ctico -- mas por razes outras do queas que ele invocou para a sua dvida. Ele ctico porque sua epistemologia, emespecial sua teoria da percepo, o leva a negar que tenhamos conhecimento domundo externo -- a menos que se invoquem hipteses auxiliares de fundamentaomuito duvidosa, como a da existncia de Deus. Para Descartes, a nica forma degarantir que a nossas idias corresponde um mundo l fora o suposto fato de queDeus existe e que, sendo perfeitamente bom, no permitiria que nos enganssemossobre algo to fundamental como a existncia do mundo exterior. Elimine-se ahiptese de Deus e Descartes se torna o ctico mais radical em relao ao

    conhecimento emprico.

    Notas:. Assim chamada porque se desenvolveu na Academia Platnica do sculo III AC. Cf.Popkin, ix. Afirma Popkin: "O alvo do filsofo ctico Acadmico era mostrar, atravsde uma srie de argumentos e quebra-cabeas dialticos, que o filsofo Dogmtico(i.e., aquele que afirmava que ele tinha conhecimento de alguma verdade acerca dareal natureza das coisas) no poderia saber, com certeza absoluta, o que dizia saber.Os Acadmicos formulavam uma srie de dificuldades para mostrar que as

    informaes que obtemos atravs dos sentidos no so confiveis, que no podemoster certeza de que nossos raciocnios so confiveis, e que no possumos um critrioou padro seguro que nos permita distinguir o verdadeiro do falso".2. Assim chamada porque foi primeiro apresentada por Pirro de Elis, que viveu porvolta de 315 a 225 AC. Cf. Popkin, x. Afirma Popkin: "Os pirrnicos consideravam quetanto os Dogmticos como os Acadmicos afirmavam demais, um grupo dizendo 'Algopode ser conhecido", o outro dizendo "Nada se pode saber". Em lugar disso, osPirrnicos propunham a suspenso do juizo sobre todas as questes em relao squais parece haver evidncia conflitante, incluindo a questo se h ou no hconhecimento".3. Nenhum exemplo de enganos dos sentidos fornecido na primeira Meditao. NoDiscurso e na sexta Meditao, porm, Descartes menciona uma srie de exemplosbastante conhecidos e sempre invocados na literatura ctica: uma torre quadradaparece redonda distncia, esttuas altas parecem pequenas distncia, estrelas

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    distantes parecem muito menores do que so, pessoas que tiverem membrosamputados ainda setem dor no lugar em que os membros no mais se encontram.Registre-se que os exemplos dados por Descartes envolvemee geralmente o que veioa ser chamado (a partir de Locke) qualidades secundrias, e no as qualidadesprimrias, que tambm Descartes acreditava existir apenas na mente. Cf (Kenny, 25-28).4. Cf. Kenny, 29ff5. Na verdade, Descartes nega que uma experincia sensorial que corrige a outra:

    ele afirma que o intelecto, com base em outras impresses sensoriais, que faz acorreo. Ao enfiar um pauzinho na gua, percebo, pelo meu sentido de viso, que opauzinho fica torto. Meu sentido de tato, contudo, mostra que o pauzinho no esttorto. S os sentidos no me permitem adjudicar entre essas impresses sensoriaisconflitantes. o intelecto que me leva a, neste caso, optar pelo impresso produzidapelo tato. Cf. Kenny, 26).6. Alguns crticos de Descartes tm apontado que ele no precisaria da hiptese dognio maligno para colocar em dvida enunciados matemticos. Bastaria que eleinvocasse a possibilidade de que, em sonho, tenhamos uma apreenso clara edistinta de que (por exemplo) dois e trs so seis. Descartes procurou rebater esse

    argumento afirmando que, num caso como esse, o sonhador apenas pensaria estartendo uma apreenso clara e distinta, mas que na verdade no a estaria tendo. Masessa resposta inadequada, no contexto, porque ela poderia ser aplicada tambm apercepes sensoriais. Por que no afirmar, em relao pessoa que em sonhopercebe estar ao lado da lareira, etc., que ela apenas pensa estar percebendo, masna realidade no est. O argumento do sonho, como bem aponta Kenny (33-34), ou insuficiente para questionar percepes presentes, ou ento suficiente paraquestionar tambm a matemtica (dispensando a hiptese do gnio maligno).7. Erro em relao a enunciados matemticos e percepo parece ser to difcil quenada menos do que onipotncia parece ser necessrio para perpetr-lo. Cf. Kenny,

    34.8. Muitos autores tm apontado que a dvida de Descartes no foi to radical quantoele pretende. Se ele acreditava que os sentidos o haviam enganado algumas vezes,ou que matemticos s vezes erram em seus raciocnios, ento ele deve estarconfiando em sua memria, ou na experincia subseqente de constatar o erro.Talvez, para se sair dessa constatao, ele pudesse dizer que est apenas invocandorelatos contraditrios acerca de experincias sensoriais ou de clculos matemticos.Mas mesmo assim, ele continuaria no colocando em dvida o princpio da no-contradio, que afirma que contraditrios no podem ambos verdadeiros. Esseprincpio Descartes no questiona nem mesmo com a hiptese do gnio maligno, e

    Descartes parece ter acreditado que era impossvel duvidar dele. Descartes tambmno duvida de que ele conhece o sentido das palavras que ele usa, que ele sabe oque pensamento, certeza, dvida, verdade, existncia (Cf. HR, I, 222) (Cf. Kenny,20-21, 26-27, 50). Leibniz reclama que Descartes deveria ter fornecido critrios declareza e distino se realmente pretendia que esses conceitos servissem comomarcas da verdade. Doney, 251, Popkin, SED (?), 2059. Quando me refiro ao "cogito", entre aspas, como no ttulo da presente seo,refiro-me a todo o argumento que culmina na expresso "Cogito, ergo sum".10. questionvel, como se ver adiante, que o que aqui se apresenta seja umargumento dedutivo (o que Descartes chama de um "silogismo"), no sentido estritoda expresso. Se fosse, estaria faltando a premissa maior, a saber: "Se penso,existo" -- que exprime a idia de que, para pensar, preciso existir. Descartesreconhece isso e considera essa premissa to bvia a ponto de dispensar explicitao.Cf Kenny, 50ff

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    11. Cf Malcom, "Descartes' Proof that his Essence is Thinking"; cp article in APQ,1972 or 1973, sobre o mesmo tpico, Check Yandell/Weinberg, intro to section ondualism12. Cf "Clearness and Distinctness in Descartes", in Doney, p.250. Para que clareza edistino fossem critrios de verdade certa seria necessrio que tivssemos critriosde clareza e distino, que no temos.13. A intuio, no caso, no se aplica apenas concluso de que ele existe, mas aofato de que em pensando ele sabe que existe. Nem legtimo afirmar que Descartes

    reinvindica ser possvel intuir sua existncia. O objeto da intuio a inferncia deque ele existe a partir do dado de que ele pensa, embora nas Regulae Descartesafirme que possvel intuir a existncia, sem referncia ao pensamento. Mas asRegulae foram escritas antes das formulaes mais cuidadosas do "cogito" (Kenny,51-55).14. Obviamente, ao usar o termo "prova", mesmo sem aspas, no estou pr-julgandoa validade dos argumentos de Descartes. Uso o termo com aspas, ou qualificado por"suposta", "pretensa", etc., tornaria o texto por demais pesado. Por isso prefiro usara terminologia que Descartes, que sem dvida estava convencido da validade de seusargumentos, utilizou.

    15. Cf. David Kelly, The Evidence of the Senses: A Realist Theory of Perception(Louisiana State University Press, Baton Rouge, 1986), p.10.16. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.17. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.18. Cf. David Kelly, op.cit., p.11.19. Cf. David Kelly, op.cit., p.12.

    (*) Este trabalho consiste basicamente de notas de aula e, portanto, no deve ser julgado com o mesmo rigor que se julga um artigo publicado ou um paper.

    Copyright by Eduardo Chaves

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