A flexão nominal em Mattoso Câmara e outras análises

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A flexo nominal em Mattoso Cmara e outras anlisesGeraldo Cintra USP

RESUMO Analisamos a abordagem de Joaquim Mattoso Cmara Jr. para a flexo nominal em portugus, destacando inicialmente os aspectos em que sua anlise difere da descrio tradicional. Consideramos, a seguir, outras abordagens dos conceitos envolvidos por parte de renomados lingistas do Brasil e do exterior. Por fim, aceitando anlises alternativas, demonstramos a possibilidade de reduo das variaes usualmente tratadas como flexo do substantivo a apenas dois morfemas derivacionais. Palavras-chave: Morfologia; Flexo nominal; Gnero; Nmero.

0. IntroduoA anlise de Joaquim Mattoso Cmara Jr. (JMC no restante deste texto) para a flexo nominal tida como a anlise padro desse fenmeno em portugus. Embora muitas das idias de JMC j tivessem sido publicadas em seus Princpios de Lingstica Geral (Mattoso Cmara 1941, 1954, 1959, 1964) e em artigos na revista Vozes, baseamo-nos aqui nessa anlise em sua verso mais desenvolvida, como exposta em Problemas de Lingstica Descritiva (Mattoso Cmara 1969), Estrutura da Lngua Portuguesa (Mattoso Cmara 1970) e Histria e Estrutura da Lngua Portuguesa (Mattoso Cmara 1975), obras que puseram essas idias ao alcance de um pblico consideravelmente mais amplo. As datas de publicao dessas obras no refletem a seqncia cronolgica de sua elaborao. Como explica Naro (1976a: 86-87), "O trabalho mais destacado de Mattoso sem dvida The Portuguese Language, escrito em 1960 a convite da University of Chicago Press." Esse texto, traduzido para o ingls pelo prprio Naro, foi publicado em 1972 (Mattoso Cmara 1972b), com o ttulo The Portuguese Language. O original em portugus, contudo, s surgiu trs anos mais tarde (Mattoso Cmara 1975). Completado e revisto pelo autor, um texto mais representativo do que Mattoso Cmara (1969), que se destinava a alunos de graduao, ou do que Mattoso Cmara (1970), um pouco mais aprofundado mas admitidamente publicado incompleto aps o f alecimento do autor. A obra ficou inacabada, porm. [.....] liberou -se, todavia, a obra publicao, tendo em vista tratar-se de contribuio de indiscutvel valor, mesmo no cobrindo o campo total a que se propusera o autor. (Mattoso Cmara 1970, orelha) Neste trabalho, partindo de uma breve exposio da anlise de JMC e confrontando-a com a descrio tradicional, examinamos alguns outros pontos de vista tericos sobre a interpretao das caractersticas de gnero e nmero para o portugus e para outras lnguas, propondo, finalmente, uma reinterpretao da questo, fundamentada no apenas em caractersticas formais, mas tambm no emprego efetivo que dessas formas se faz no uso corrente da lngua.

Mantemos, contudo, deliberadamente, a abordagem estruturalista adotada por JMC. Tal posicionamento no significa ignorar que "o estruturalismo descritivista foi logo suplementado na Lingstica Brasileira pela Teoria Gerativa" (Baslio 1999:53), nem subestimar os trabalhos decorrentes dessa orientao. Reflete apenas o intuito de demonstrar a possibilidade de outras anlises sem mudana de modelo terico.

1. A anlise de JMCO tratamento de JMC para a flexo nominal difere em natureza da abordagem tradicional por ser uma anlise sincrnica formal, baseada na depreenso de formas mnimas associadas a caractersticas estruturais. Tem por base a lngua em uso e no apenas o padro literrio nem uma modalidade idealizada, levando em considerao tambm a lngua falada. Nos casos em que a fonologia interage com a morfologia, JMC particulariza sua anlise para a fala do Rio de Janeiro (sua regio de origem e de mais constante atuao), com eventuais referncias a outras modalidades regionais. Distingue-se ainda esse tratamento por propor o estabelecimento de vogais temticas nominais ( semelhana do que se verifica na classe dos verbos), pelo recurso ao conceito de morfema zero, e pela interpretao adotada em relao s caractersticas de gnero e de nmero. 1.1. Vogais temticas Na anlise tradicional, as vogais finais -o e -a so consideradas marcadores de gnero, respectivamente masculino e feminino, tratados implicitamente como oposio eqipolente, 1 admitindo-se que a vogal -e no est associada ao gnero. Assim, o gnero dos nomes seria definido morfologicamente para as palavras em o e a, distribuindo -se outras palavras por ambos os gneros. As gramticas tradicionais so prdigas em exemplos e listas de exce es. (Cf. p. ex. Almeida 1963, cap. X; Cunha & Cintra 1985, Cap. 8, entre outros) Para JMC, a classe dos nomes est dividida em subclasses caracterizadas pela ocorrncia ou no de um morfema classificatrio, representado por uma vogal tona final, a vogal temtica, sem relao com o conceito de gnero: "No costume nas nossas gramticas estabelecer a mesma distino para os nomes. Mas a convenincia de faz-lo me parece inegvel." (Mattoso Cmara 1970: 76) Pode-se justificar a existncia desses morfemas tanto sincronicamente, depreendendo-os da forma dos vocbulos, quanto diacronicamente, por ser a vogal temtica a vogal da desinncia de acusativo das trs primeiras declinaes a que se reduziu o sistema flexional de casos do latim, e do acusativo que se originam as formas do portugus. Para vocbulos de outras origens essa anlise se aplica por analogia, como em jangada,taba, esfiha, quitanda, maloca (com vogal temtica a), breque, greve, quibe, usque (com vogal temtica -e). As palavras terminadas em consoante so tratadas como temas em e, com alomorfe zero da vogal temtica no singular: "Os nomes terminados no singular em consoante pos-voclica tm uma forma terica em e / i / tono final, que se deduz dos plurais." (Mattoso Cmara 1970:76) Convm acrescentar que por vezes essa vogal temtica latente ocorre tambm em palavras derivadas, como emmaremoto, malefcio, em que seria difcil explicar de outra forma o fato de a vogal ser e e no outra.. Assim, no nos parecem justificadas as crticas de Duarte (2002),2 para quem a vogal temtica nominal, "pelo menos considerando o plano superficial, no tem

razo de ser" e carece de "uma motivao palpvel, de ordem gramatical e distribucional". A seu ver, "[a]rgumenta-se que o estabelecimento do tema terico tem base diacrnica, o que no verdade", por no reconhecer a aplicao analgica a "palavras que tm o e apenas em sincronia". Considera o recurso vogal temtica "um artifcio, que complica muito a descrio em nome da simplificao da formao do plural", sem reconhecer sua importncia como identificadores de distribuio mrfica. J Cavaliere (2000), em posio diametralmente oposta de Duarte, chama a ateno para o fato de que Considerando que a morfologia nominal do portugus se assenta, em termos sistemticos, apenas no acusativo latino, as vogais a, o e e, tpicas do acusativo da primeira, segunda e terceira conjugaes em latim vulgar respectivamente, ganharam foro de vogais temticas em portugus; por via anloga, as vogais a, e, e i, que indicam as conjugaes em latim vulgar, passam a vogais temticas verbais em portugus. J os vocbulos desprovidos de vogal temtica, seja por advirem de outros casos latinos (Deus), seja por terem sofrido acidentes fonolgicos que elidiram a vogal temtica (annelum > anel) ou mesmo por serem emprstimos oxtonos terminados em vogal (rap, sap), so hoje entendidos como nomes atemticos. Tais vocbulos, entretanto, inscrevem-se perfeitamente no conceito de tema predominante na gramtica cientfica,". (Cavaliere 2000:317) Para Carvalho (1973), essas vogais tonas finais constituem atualizadores lexicais, que, associados ao radical, permitem "atualizar o que s virtualmente um elemento do lxico." (p. 58) Os sufixos o e a "funcionam em segundo lugar, cumulativamente, como morfemas de gnero." (p. 58) Admitido o conceito de vogal temtica, temos duas grandes categorias de nomes: os temticos, caracterizados pela presena de uma vogal temtica (-a, -e ou o tonos, sejam ou no oriundos do latim), e os atemticos, que no apresentam esse morfema (em sua maioria oxtonos terminados em vogal, como tupi, sufl, caf, Par, soc,metr, tutu, mas tambm (pro)paroxtonos terminados em is e us ( tnis, nus, bnus, nus), bem como em alguns outros casos (Manaus, trax, fnix, etc.). 1.2. Flexo nominal JMC considera as flexes de gnero e de nmero como manifestadas por uma oposio privativa, em que um elemento marcado (feminino, plural) se ope a outro, no-marcado (masculino, singular). Em ambos os casos, os dois membros da oposio so tratados como morfemas distintos, sendo o membro no marcado representado por um morfema zero, em oposio s formas mnimas associadas ao conceito expresso pelas formas marcadas. 1.3. Gnero natural X gnero gramatical Remonta antiguidade o reconhecimento da inadequao de um critrio de base sexual para estabelecimento do gnero gramatical: "...os esticos compreenderam a operao de concordncia em gnero, e perceberam a falta de correspondncia entre gnero e sexo, apontando como funo do artigo indicar o gnero e o nmero do nome." (Neves 2002: 40) Esse reconhecimento freqentemente posto em destaque no s em trabalhos especializados (manuais e dicionrios de lingstica, textos especficos sobre morfologia) mas tambm em gramticas e textos didticos.

Admitindo que "A flexo de gnero exposta de uma maneira incoerente e confusa nas gramticas tradicionais do portugus" (Mattoso Cmara 1970:78), JMC demonstra que outros processos tradicionalmente considerados no tratamento do gnero dos nomes nada tm a ver com processos flexionais, pertencendo a diferentes reas da descrio cientfica, tais como derivao (embaixador/embaixatriz), seleo lexical (homem/mulher), e o recurso sinttico do emprego de adjetivo qualificativo (tigre fmea). Em sua anlise, que apresenta de maneira mais desenvolvida em Mattoso Cmara 1966 (reproduzido em Mattoso Cmara 1972a), so femininos apenas os nomes marcados pelo morfema de gnero feminino, fonologicamente /-a/, quer acrescentado a nomes terminados em consoante (cantor/cantora) quer em oposio a formas em o oue, com supresso da vogal temtica (menino/menina, mestre/mestra). Tal supresso, esclarece, constitui "regra morfofonolgica geral, na lngua portuguesa, que permeia todo o mecanismo da flexo e da derivao." (Mattoso Cmara 1969:63). Ou seja, a mesma regra que nos d menino/menina, mestre/mestra, cantor/cantoraopera em falar > falo e leite > leiteiro. O estabelecimento do gnero descrito por JMC como determinado pelo artigo,3 explcito ou no (Mattoso Cmara 1969: 64; 1970: 81), e assim transferido para alm do mbito da morfologia, considerando o gnero imanente, intrnseco, o que significa trat-lo como um trao semntico, paralelo a outros como [animado], [humano], [contvel], etc. O carter masculino ou feminino da palavra est imanente na palavra e de natureza lexical, no flexional . (Mattoso Cmara 1975:77; nfase nossa) Em outros termos, a flexo nominal, quando aparece, refora apenas a expresso de uma categoria gramatical latente, que, mesmo sem essa flexo, se manifesta pela forma do artigo definido que o vocbulo nominal exige . (Mattoso Cmara 1969, 64; nfase nossa) Dizer que o artigo que determina o gnero, contudo, constitui quando muito um recurso didtico, posto que, como destacado na citao acima, o artigo que assume o gnero (e nmero) do substantivo, o mesmo ocorrendo com outros modificadores do nome. Em concordncia com as crticas a que j nos referimos acima, JMC observa que, embora a flexo de gnero, quando aplicada a seres animados, seja usualmente associada a distines de sexo (macho/fmea), indica apenas uma mudana de significado no caso de itens lexicais aos quais a distino masculino/feminino no se aplica (barco/barca, cinto/cinta, jarro/ jarra4 etc.). Considera, portanto, o gnero como "uma categoria formal para os nomes" (Mattoso Cmara 1969:62) que difere da classificao formal dos verbos em trs conjugaes por poder o gnero variar para um mesmo nome substantivo, condicionando uma especializao de sentido. No caso dos nomes que se referem a seres vivos ([+ anim]) essa especializao de sentido pode estar relacionada com uma diferena de sexo (gato/gata). Para os no-animados, trata-se de "uma especializao altamente cambiante" (Mattoso Cmara 1969:62). Em pares como cinto/cinta, jarro/jarra, pode indicar subtipo, diferena de forma ou funo, etc. Contudo, pouco/pouca, pingo/pinga apresentam significao praticamente idntica em expresses como uma pouca de..., uma

pinga de... (uso praticamente restrito a Portugal), de que arrolamos alguns exemplos: 5 a. "Rega-se com uma pinga de gua e, depois de cozer um pouco, junta-se a cenoura em rodelas." b. "Palestras com uma pinga de caf" o nome genrico a que obedecem as comemoraes." c. "Chegou Amrica em 1935 com uma pouca de roupa interior e um mao de livros." d. "e a juventude brasileira ainda vivia os efeitos da "Era de Aqurio", embora de uma forma uma pouca tardia." Demonstra-se, assim, adequada a anlise do morfema de gnero marcado como especificador semntico e no como indicador de feminino. 1.4. Nmero A definio do nmero tem-se mantido a mesma desde nossos primeiros gramticos. Ferno de Oliveira no define o conceito, por considerar que "[o] intuito desta parte da Gramtica [.....] no mais que s dar notcia das vozes, e no definies ou determinadas declaraes das coisas." (Oliveira 1536/1975:114). Joo de Barros, contudo, j define: "Nmero em o nome aquela distinam per que apartamos um de muitos. E ao nmero de um chamam os gramticos singular, e ao de muitos plurr." (Barros 1540/1971:309) Essa definio, em outras formulaes, vem se repetindo desde ento at a atualidade. Distinguindo significao e forma, JMC esclarece que o nmero "[c]onceptualmente, a oposio entre um nico indvduo e mais de um indivduo. Morfologicamente a ausncia de s final no singular e sua presena no plural." (Mattoso Cmara 1975:75) Na anlise tradicional, o singular, sem marca caracterstica, se ope a um plural marcado pelos sufixos s e es. Outros casos, como o plural das palavras em l, em ditongo nasal, etc. costumam ser simplesmente relacionados, mas no analisados. Como no caso do gnero a anlise de JMC trata tambm o nmero como oposio privativa, em que o membro marcado, o plural, se ope a um membro nomarcado, o singular, representado por um morfema zero. A marca de plural fonologicamente uma consoante fricativa /-s/, com alomorfes dependentes do contexto fonolgico, admitindo palatalizao na fala de Portugal, do Rio de Janeiro e de outras regies. Demonstra que o suposto plural em es decorre da recuperao da vogal temtica e da maioria das palavras terminadas em consoante no singular, adicionando-se a ela o morfema do plural, com eventual operao de processos morfofonolgicos.

Na anlise dos outros casos, JMC pe em evidncia os processos morfofonolgicos envolvidos, enfatizando a regularidade de formao do plural, sempre com o sufixo /-s/, exceto no caso de paroxtonos terminados em /-is/ tono ou o de certos monosslabos em /-s/, em que ocorre um alomorfe zero do morfema de plural. Para sua anlise desses casos, parte de formas tericas em grande parte dedutveis sincronicamente. Apenas no caso das palavras em o recorre a uma anlise mais complexa, que parte da considerao das formas plurais. Difere, portanto, significativamente da anlise tradicional por, ao postular um nico sufixo, demonstrar a unicidade do processo de flexo de nmero.

2. Outras idiasA anlise de JMC constitui considervel progresso em relao anlise tradicional, por considerar a expresso oral, por incorporar fatores antes no considerados e tambm por introduzir considervel simplicidade na descrio do processo. Essa anlise teve forte repercusso, e reflete-se na quase totalidade dos trabalhos sobre morfologia do portugus publicados posteriormente, entre 1973 e 2000, 6 tornando-se a anlise padro da flexo nominal em portugus, como destaca Rocha ao discutir a distino entre flexo e derivao, afirmando basear-se em Mattoso Cmara (1970) "pelo fato de essa obra ter-se constitudo em um marco para o estudo da morfologia portuguesa no Brasil e pelo fato de as idia s desse autor serem ainda hoje um ponto de referncia para os estudos gramaticais brasileiros." (Rocha 1998:193) Outros pontos de vista, contudo, poderiam ser adotados, aprofundando a anlise Assim, por exemplo, Bloomfield (1933:178) j considerava, para o ingls, o plural dos nomes e as diferentes formas verbais como palavras diferentes: In our school tradition we sometimes speak of forms like book, books, or do, does, did, done as "different forms of the same word." Of course, this is inaccurate, since there are differences of form and meaning between the members of those sets: the forms just cited are different linguistic forms and, accordingly, different words. Hockett (1959: 230) trata o gnero como intrnseco: "Nouns belong to a gender; some adjectives are inflectedfor gender." Gleason, da mesma maneira, considera o gnero inerente ao nome, admitindo flexo apenas para os adjetivos: In nouns, gender is commonly an inherent feature of each stem. That is, nouns are not inflected for gender, but each noun has a characteristic gender. In those languages with a well-developed concord system, adjectives are usually inflected for gender; that is, no adjective has an inherent gender, but may be inflected to produce a form for each gender. In many instances this is a useful basis for distinguishing between these two parts of speech. (Gleason 1961:228-9) O mais completo tratamento de que dispomos para o gnero Corbett (1991), que considera o gnero "the most puzzzling of grammatical categories" (p. 1), e a ele

dedica todo um volume, baseado na anlise de mais de 200 lnguas (porm com apenas breve referncia lngua portuguesa). Em textos publicados desde o final dos anos 60, o lingista portugus Jos Gonalo Herculano de Carvalho j tratava o gnero dos nomes em portugus como derivao e no flexo (cf. Carvalho 1969: 323), em virtude de suas caractersticas especficas, posio que reafirma mais tarde: No portugus so, como sabemos, palavras flexionadas o substantivo ( com flexo de nmero, mas no de gnero , o adjectivo (incluindo o particpio em funo adnominal) e com este quase todos os pronomes, o artigo e os numerais ordinais (com flexo de gnero e nmero), uma parte dos numerais cardinais (com variao de gnero) e finalmente o verbo. (Carvalho1974: 601; nfase nossa) Em artigo significativamente intitulado "Gnero?", John Martin (1975) contesta a propriedade dos termos masculino e feminino na caracterizao das palavras em portugus, baseando -se sobretudo em exemplos comoum sorvete seria timo, est cheio de crianas na praia, aqui bom, etc., em que a forma do adjetivo no determinada por um substantivo, concluindo que No lugar de "gnero", ento, fica o conceito de adjetivos marcados ou no marcados. Os marcados correspondem aos "femininos" da gramtica escolar, e aparecem somente quando o adjetivo est relacionado a um substantivo marcante. Os no marcados aparecem EM TODAS AS OUTRAS CIRCUNSTNCIAS, haja ou no um substantivo a eles relacionado. este ltimo fato que determina que o assunto no seja uma mera questincula terminolgica, pois as concluses dele decorrentes transformam dum modo essencial nossa maneira de encarar a categorizao dos substantivos e o fenmeno da concordncia adjetiva. (Martin 1975:8) No discute, contudo, tratar-se ou no de flexo curioso notar que esse artigo parece no ter tido a influncia que se poderia esperar. Dos doze manuais de morfologia por ns consultados, 7 apenas Rosa (2000) o inclui em sua bibliografia. Posio semelhante adotada por Jensen em relao ao latim, em caso perfeitamente anlogo ao que ocorre em portugus: Because it features in agreement rules, gender is normally considered inflectional in Latin, yet it functions derivationally in such pairs as cervus (masculine) 'stag' cerva (feminine) 'doe' (Jensen 1990:116) A pioneira anlise de Herculano de Carvalho no se reflete nos manuais de morfologia publicados entre ns desde ento, apenas vindo a ser retomada por Evanildo Bechara no final dos anos 90 (Bechara 2000:132 [ 1999]). Bem mais recentemente, Rosa (2000), baseando-se em Bechara, adota a mesma posio, que, reconhece, "vem ganhando adeptos nas descries do portugus" (p. 125). Em trabalho at o momento apenas veiculado pela Internet ("O problema da flexo de gnero"), Jos Pereira da Silva (2004) retoma esse ponto de vista, analisando as questes envolvidas e arrolando autores que adotam tal posio. Obviamente, muito dessa discusso depende de como se definem os conceitos de palavra, flexo e derivao,questo que extrapola o mbito deste trabalho. Na interpretao de Bybee (1985, Cap. 4) flexo e derivao seriam no conceitos

radicalmente opostos, mas sim extremos numa escala contnua (ou seja, integrariam uma oposio gradual). Ainda assim, contudo, a anlise permite novos questionamentos, se levarmos em considerao caractersticas do uso real da lngua em suas diversas modalidades. 2.1. Morfema zero Tanto na anlise do gnero quanto na do nmero, a anlise de JMC envolve a considerao de um morfema zero. Esse conceito, apesar de sua indiscutvel aplicao e convenincia na anlise lingstica, sempre se demonstrou uma faca de dois gumes, a ser utilizada com extremo cuidado. A possibilidade de criar livremente morfemas que no se manifestam para obter a desejada simetria na anlise altamente tentadora, e requer do analista a estrita observncia da chamada navalha de Occam,8 princpio segundo o qual no se devem criar entidades alm do absolutamente necessrio. Gleason (1961:76), que reconhece o conceito de alomorfe zero, embora como "merely a convenient device", ope-se ao estabelecimento de um morfema zero: That is, one in which there is no overt allomorph whatever. To do so is quite unnecessary and will generally lead to increased complexity of statement, the precise opposite of our desired goal. Moreover, it is logically indefensible. If we are to make such free use of zero, there is no definable place to stop. (Gleason 1961:76) A fragilidade desse conceito destacada por Matthews (2000) "These concepts were never universally accepted even within the North American school, whose model this was". Discute ainda as implicaes de se adotar esse conceito, ressaltando que "to say that something is not marked is one thing; to sa y that it is marked by zero is another." (Matthews 2000:123-124). Mais recentemente, Mel'cuk (1999) dedica extenso artigo ao conceito de morfema zero e sua aplicao na anlise lingstica. Estabelece um princpio em que se formulam as condies necessrias para a introduo de um zero lingstico e considera diversos tipos de signos zero. Observa que "Generally speaking, one should not look for a zero marker where one could see a real, 'physical' i.e. overt difference: a zero sign must be exclusive as a possible carrier of the information in question or there is no zero sign." (p. 6) No adotando o conceito de morfema zero, deveremos recorrer a outro tipo de anlise que permita descrever adequadamente os fenmenos considerados, o que nos leva a ter de reconsiderar os procedimentos adotados.

3. Revendo os conceitosAcostumados que estamos a certos aspectos da anlise tradicional, dificilmente os questionamos, aceitando-os como propostos e sem por vezes nos darmos conta de que talvez no representem mais do que um costume, uma tradio, como mencionam alguns autores.

Habituamo-nos a considerar o gnero em portugus como um fenmeno flexional. Embora nossas gramticas nem sempre definam com clareza o que tomam por flexo, uma tradio afirmar que "os substantivos mudam em sua terminao, isto , mudam de flexo, para indicarem os acidentes de GNERO, NMERO e GRAU 9 (Rosa 2000:125; nfase nossa). Number is familiarly thought of as a contrast between one category indicating a single individual and another indicating two or more. These are traditionally designated singular and plural. These names are indicated to suggest the "meanings" of these categories." (Gleason 1961:223; nfase nossa). Nas descries lingsticas, um dos gneros tomado como base do sistema (caso marcado), sendo os outros gneros descritos relativamente a este (casos marcados): assim, em portugus, o feminino geralmente descrito por uma variao morfolgica do masculino, tomado como base. (Dubois et al 1995:302; nfase nossa). 3.1. Gnero Como dissemos acima (em 1.3 Gnero natural X gnero gramatical), a terminologia adotada para a descrio do gnero enfatiza a relao macho/fmea, implicando a predominncia desse critrio biolgico, sem que se justifique tal posio. Mais ainda, Rocha (1998) relata pesquisa anterior 10 em que se constatou que apenas 4,5% dos substantivos no corpus analisado apresentavam feminino caracterstico. A grande maioria dos substantivos, por conseguinte, apresenta gnero fixo, no sujeito ao que se costuma considerar flexo. Convm ainda lembrar que muitos substantivos apresentam uma nica forma para ambos os gneros (intrprete, contribuinte, analista,etc.) Se a distino com base no sexo no s no o critrio predominante, como constitui apenas um caso particular, aplicado a um nmero restrito de palavras, seria prefervel abandonar a dicotomia masculino/feminino e considerar a ocorrncia de apenas um morfema derivacional, que denominaremos especificador ({ESP}), cujo acrscimo tem por funo indicar especificao semntica da natureza varivel, diferente para diferentes vocbulos ou classes de vocbulos. Tal interpretao nos proporciona uma anlise ao mesmo tempo mais simples e mais precisa da funo do gnero na estrutura da lngua. Permite ainda melhor compreenso da razo de a forma no marcada (omasculino) ser a empregada para generalizar, abrangendo toda uma classe, em frases como "O sertanejo acima de tudo um forte" (Euclides da Cunha, Os sertes, Cap. III), evitando-se, em conseqncia, interpretaes que procuram vincular esse fenmeno gramatical a noes de ordem sociolgica. Kehdi (1990) observa que o povo, em sua linguagem espontnea, cria formas masculinas sempre em o; p. ex. faz-se corresponder ao feminino coisa o masculino coiso, inexistente na lngua culta. So tambm dignas de nota formaes como corujo, criano, madrasto. Essas observaes conduzem-nos concluso de que o est intimamente associado noo de masculino: a flexo de gnero no se reduz a uma oposio / -a, e, sim, a uma oposio o / -a (p. 30-31) Embora se trate de uma anlise plausvel para o que seria um fenmeno anlogo etimologia popular, difcil verificar se se trata de uma reao natural, por analogia, ou de influncia do uso dos termos masculino efeminino, aprendidos na infncia.

De qualquer forma, no deveria surpreender o fato de que essa interpretao popular venha a divergir, mesmo radicalmente, do resultado de uma anlise terica, baseada em critrios fundamentados e explcitos e no em uma simples suposio. 3.2. Nmero A definio de nmero como a oposio um/mais de um no resiste a uma anlise mais minuciosa do uso real das formas ditas singular e plural. O chamado singular, a rigor, no especifica unicidade, tanto assim que usado como termo genrico, significando "todo e qualquer membro da categoria X", como no conhecido slogan "Livro, presente de amigo", ou na igualmente conhecida afirmativa do carnavalesco Joozinho Trinta "Quem gosta de misria intelectual. Pobre gosta de luxo." Esse uso, nem sempre considerado nas gramticas, embora muitas mencionem o emprego do singular (em geral tambm "masculino", ou seja [-ESP]) para se referir a uma espcie tomada como um todo. Exemplos podem ser encontrados com facilidade, principalmente na fala e na escrita menos formal. O conceito de nmero analisado detalhadamente em Corbett (2000), com base em mais de duas centenas de lnguas, o que lhe permite estabelecer interessante tipologia de sistemas de nmero, demasiado ampla para ser considerada aqui. O que efetivamente indica que a referncia a um nico elemento a presena de um numeral (esperei por uma hora), um artigo, definido ou indefinido ( li o livro, li um livro), um pronome demonstrativo (este livro caro) ou indefinido (qualquer pessoa sabe disso). Depreende-se, portanto, que o chamado singular seria mais adequadamente definido como no-referncia ao nmero, enquanto que a marca de plural indica referncia a um nmero indefinido, o "mais de um" da definio tradicional. Teramos assim um nico morfema {NUM}, que abrange, portanto, um ou vrios membros de uma classe (criana {-NUM}/crianas {+NUM}) ou uma classe como um todo (criana {-NUM} gosta de brinquedo ). Ao contrrio do gnero, o nmero no inerente ao nome decorre de uma escolha baseada em fatores pragmticos e na deciso de incluir ou no referncia ao nmero. Assim, por exemplo, em "Livro, presente de amigo" o que se tem o uso do chamado singular para indicar que a referncia apenas ao conceito de livro, independentemente de qualquer meno de nmero., equivalendo a "um ou mais objetos da classe livro so presente de quem amigo". Em Buscar menino no colgio (ttulo de Saraiva 1997), o emprego da forma menino abrange duas generalizaes: no se trata necessariamente de um nico menino, nem se exclui a possibilidade de se tratar de menina(s) ou de um grupo misto, nem Equivale, portanto, a dizer "buscar criana(s) no escola". E nem se trata necessariamente de um nico colgio.

O mesmo se aplica a exemplos como "Professor brasileiro ganha mal." (Dirio Catarinense, 3-10-2002), "Aparece vendedor de tudo quanto canto." (ouvido em conversao) ou a inmeros outros semelhantes. 3.3. Quantos morfemas? Se caracterizarmos o gnero como um processo derivacional e reconhecermos ser inadequada a terminologia tradicional, baseada em uma distino biolgica, poderemos considerar no uma oposio privativa mas sim um nico morfema aditivo, cuja funo a de especificar um significado particular. Poder -se-ia manter a denominao gnero, dissociando-a contudo das noes de masculino e feminino. Preferimos aqui denomin-loespecificador (representado por {ESP}), interpretando os nomes como caracterizados por um trao [E ESP], em que o valor de E permite determinar a forma que a palavra tomar, especificando-se no lxico se ocorre o acrscimo do alomorfe /-a/ (menino/menina), outro processo fonolgico (valento/valentona), acrscimo de outros sufixos derivacionais (imperador/imperatriz, prncipe/princesa) ou ainda formas particulares, de ocorrncia restrita (leo/leoa, judeu/judia). No caso de seleo lexical (homem/mulher, bode/cabra, etc.) obviamente no est em jogo nenhum critrio gramatical, mas sim a opo pela palavra adequada, determinada pragmaticamente. essa caracterstica dos nomes substantivos que vai determinar a concordncia, que se manifesta pela seleo da forma adequada dos modificadores do substantivo (artigos, pronomes demonstrativos e indefinidos, adjetivos), estes sim dotados de flexo. Rosa (2000) sugere a possibilidade de se tratar tambm o nmero como um processo derivacional: Levada s ltimas conseqncias, a determinao nos d como flexional o Nmero no adjetivo, mas no no nome, o que foi ressaltado por Rocha (1994): 14 nfase no original): "Se algum diz: Eu no tenho amigos, eu tenho um amigo, no a natureza da frase, a estrutura da orao que determina o emprego da forma singular ou plural do substantivo. a situao. 10 (Rosa 2000:126) Assim sendo, torna-se evidente que tambm no caso do nmero dos substantivos o que ocorre derivao e no flexo. Se tanto o gnero quanto o nmero forem tratados como processo derivacional, e se levarmos em considerao o fato de que o masculino e o singular no se manifestam, no h motivo para a manuteno das dicotomiasmasculino/feminino e singular/plural.

4. ConclusoAdotar os critrios expostos acima significa reinterpretarmos o sistema tradicional de quatro morfemas como constitudo por apenas dois morfemas derivacionais aditivos, {ESP} e {NUM} que se podem acrescentar ao substantivo, no sujeito a flexo. Apresentaro flexo apenas os modificadores do substantivo.

Por se tratar de processos derivacionais, a variao de forma do substantivo no estar sujeita obrigatoriedade associada ao conceito de flexo. A aplicao das regras de concordncia de mbito varivel em funo do nvel de linguagem considerado. Na variedade socialmente privilegiada denominada "norma culta" ou "lngua padro", todos os modificadores do substantivo devem concordar com ele quanto especificao ({ ESP}) e quanto referncia ao nmero ({ NUM}). J em outras variedades o funcionamento do sistema diverso. Devido existncia de extensa bibliografia sobre questes de variao em portugus, limitamo-nos aqui meno de Campos & Rodrigues (1996) que analisam a flexo nominal de nmero na lngua falada, em um corpus extrado do material do Projeto NURC (Projeto de Estudo da Norma Lingstica Urbana Culta), compreendendo 450 minutos de gravao.