A Fonte Da Nação- Um Estudo Crítico Sobre Os Livros Didáticos de História Do Brasil- Eduardo...
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Dedico este livro a meus pais,Antonio e Dinorah,
tem sido bom caminhar com vocês
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Apresentação
O livro didático de história do Brasil tem sofrido um intenso apanágio quereafirma sua importância na prática escolar brasileira. Tal afirmação contempla uma
centralidade da cultura escrita diante de outras formas de expressão, que implica um
repensar criterioso num momento em que a instituição escolar da forma que foi concebida
pelo modelo iluminista encontra severos limites de atuação.
O discurso histórico prescrito no livro didático, se fora importante em outros
momentos de nossa história escolar, hoje não vê possibilidade de propagação diante de
tantas e complexas redes de informação disponíveis, que o crescente volume dessematerial adquirido pelo Programa Nacional Livro Didático parece desmentir.
Para que esta ênfase torne-se mais visível, esta tese prioriza o foco nas
imagens fundantes produzidas para reforçar o discurso da nação, o amor à pátria, os
símbolos políticos institucionais que supostamente magnetizam as gerações em torno de
um centro de gravidade poderoso. Analisar a iconografia elaborada para esta função,
historicizando tais imagens, têm a intenção de discutir a história pátria e não de apenas
apresentá-la como um fato. Desse modo é possível perceber que, embora conquistando
cada vez mais legitimidade devido à intervenção estatal, os livros didáticos pouco
acrescentam no sentido de contribuir para a construção de novas relações no ambiente
escolar.
Carregados potencialmente da verdade dos fatos ali narrados, tais objetos
engessam funções e orientam papéis cristalizados de professores e de alunos, encetando
uma memória fechada num passado que deve ser tão somente pedagógico, num passado
exemplar, fixado nos marcos da história oficial.
Discussões acerca dos limites dessa história como ocorreu em São Paulo em
meados da década de 1980, leis oriundas de um desejado perfil escolar mais globalizado,
que imprimem à história regional uma importante colaboração para a construção de novas
formas de sociabilidade, colocam o termo nação num novo patamar de questionamento,
cuja atuação de exigências de que certos aspectos de cidadania trazem à tona, ainda que
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de forma imprevista e por vezes desconcertante, sujeitos históricos reais com quem uma
outra escola terá o dever de dialogar.
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ÍNDICE GERAL
INTRODUÇÃO: diálogo, a última saída..........................................................
PARTE I – LIVRO DIDÁTICOCapítulo 1. Itinerários......................................................................................
1.1 O Colégio Pedro II...............................................................................1.2 Varnhagen e os fundamentos da história áulica...................................
Capítulo 2. Livros didáticos nacionais e suas imagens: historicidades............2.1 Livros didáticos....................................................................................2.2 “Lucem Diffundo”................................................................................2.3 História e Imagens................................................................................
PARTE II – ICONOGRAFIACapítulo 3. Mirabília........................................................................................
3.1 Da imagem...........................................................................................Capítulo 4. Pintores.........................................................................................
4.1 Debret inaugura a ambigüidade nacional.............................................4.2 Manoel de Araújo Porto Alegre captura a nação-signa........................
Capítulo 5. Iconografia de uma determinada pátria..........................................
5.1 Victor Meirelles, o aprendiz de demiurgo............................................5.2 Pedro Américo invoca Cronos..............................................................5.3 Um Tiradentes para uma república banguela.......................................
Capítulo 6. O regional e a nação.......................................................................
6.1 Afonso Taunay e o Bureau da Criação.................................................6.2 As Idades do Brasil...............................................................................
PARTE III – NAÇÃOCapítulo 7. A memória nacional e a história....................................................
7.1 Estado e Nação.....................................................................................Capítulo 8. Confronto......................................................................................
8.1 A proposta curricular de 1986..............................................................8.2 Jomtien, Tailândia................................................................................8.3 LDB de 1996........................................................................................8.4 PCNs....................................................................................................
Capítulo 9. Regional.........................................................................................9.1 Os livros didáticos regionais de história...............................................9.3 Rizoma: um livro didático de história assume sua vocação..................
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................
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A FONTE DA NAÇÃO
A primeira vez que vi o Grupo Corpo foi emIrará, 1946, quando eu tinha dez anos.
Foi assim: um dia me levaram à Fonte daNação...Antes, explico como funcionava o serviço deáguas: uma cisterna, no fundo das casas maisremediadas, fornecia água para banhos eserviços. A água potável vinha da Fonte daNação, em burricos que levavam uma cangalhacom dois pequenos barris de tanoeiro de cadalado. O aguadeiro ia de porta em porta. Lembroque em casa comprávamos uma carga,púnhamos na talha e tínhamos água potávelpara uma semana. Beber e cozinhar....Me levaram à Fonte da Nação. Dia ensolarado,vento fresco, aprazível respiro de certos cantosdo sertão. A fonte ficava numa baixada, ia-se poruma ribanceira. De certa altura, embora aindalonge, eu tive uma vista geral da azáfama láembaixo na beira das bicas, onde vi o GrupoCorpo.Era assim: à esquerda, a nascente da fonte, umaparte calçada onde os aguadeiros enchiam osbarris. Como toda a roupa de Irará era tambémlavada ali, já na parte calçada algumaslavadeiras se misturavam aos aguadeiros,apanhando o líquido potável.À direita, havia um grande e extenso terrenogramado, verde e brilhante à luz do sol, onde
estavam estendidas, numa imensa colcha deretalhos, roupas de todos os tamanhos e cores.Chamo atenção para o fato de que o choque debeleza não seria tão grande se não fosse aluminosidade do ar nordestino. Tudo era nítido,cortante, um punhal de cores. Então eu ouvi:todas as lavadeiras e os agüeiros cantavam umaincelência, com aquela voz fanhosa, aguda, nua,de muitas dores.E eu, criança, desprevenido, desprovido daintercessão dos nomes que nos adultos alivia ochoque, fiquei ali, atingido pelo raio, paralisadona trovoada de minha primeira emoção estética.
Toda a música que faço é sempre uma tentativade repetir o que ouvi naquele instante.
Tom Zé
Eu não vivo no passado. Não existe passado. Opassado é que vive em mim.
Paulinho da Viola.
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INTRODUÇÃO: DIÁLOGO, A ÚLTIMA SAÍDA
Durante praticamente os quatro anos de elaboração desta tese enfrentei um
dilema que só veio a se resolver no final.
Tal se deve a uma sofisticada rede de significados que envolvia o tema e que
parecia fechar sobre ele uma única possibilidade de abordagem, de tal sorte que qualquer
outra pareceria passadista ou saudosista.
Quantas fossem as apresentações em seminários, tantas seriam as objeções
que surgiam diante das argumentações que colocavam livros didáticos e imagens numa
perspectiva ideológica. Parecia que o universo das relações estava irremediavelmente
mediado pela concorrência individual, coletiva, de classes.
Apenas no final tive que tomar uma decisão que superasse a ambigüidade que
havia caracterizado o texto até o momento da qualificação. Mas haveria de caminhar
numa linha muito tênue entre a pieguice e a consolidação de uma trajetória que ansiava
por vir à tona, por ser aceita como legítima numa realidade já aparentemente tão
resolvida.
Espero ter feito a escolha mais adequada.
Esta tese procura destacar a iconografia pátria (Descobrimento/ Primeira Missa ,
Independência/ O Grito do Ipiranga , Escravidão e República/ Tiradentes ) desde seu
surgimento (ou sua maior vulgarização) nos livros didáticos de História até seu mais sério
questionamento, fruto de uma história regional produzida inclusive nas universidades
federais. Para tanto, apresento livros didáticos de História, nacionais e regionais, num
movimento de confronto e tensão que envolve a construção de uma determinada memória
histórica enfrentando os limites de sua própria historicidade.
O tema dava conta, então, de algumas inquietações minhas que convergiampara um ponto em comum. A primeira era a enorme e exagerada permanência de
conteúdos reproduzidos nos livros didáticos de história, cristalizados que foram em algum
lugar do passado, tornados verdade e repetidos com assustadora regularidade. Foi assim
que as imagens pareceram uma fímbria de possibilidade de surpreender tal exagero,
funcionando como ícones por onde a agulha da análise percorresse extensos trajetos.
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Produzidas todas em poucos anos de meados do século XIX, “olhavam” para trás,
iluminando, ilustrando, verídicas para toda a história áulica brasileira posterior. A segunda
dizia respeito à própria historiografia referente ao livro didático. Em algum momento se
erradicava das análises seu caráter eminentemente ideológico, para inseri-lo em relações
de produção impostas pela lógica do mercado e esta nova forma de análise ganhou
legitimidade e autonomia em menos de uma década, de tal sorte que todos os textos
produzidos após essa mudança no olhar incorporaram tais pressupostos e qualquer
análise ideológica parecia ridícula e despropositada como um anacronismo. Contrapunha-
se à Quimera da ideologia o frio, imparcial embora nem sempre justo, Belerofonte, mítica
racionalidade do mercado. Por que, na medida em que desapareciam de cena as
imagens fundantes de nossa história pátria, caíam no ostracismo, como uma maldição, as
análises ideológicas de seus veículos principais de vulgarização?
No entanto, os poetas chamavam nossa atenção para os mistérios do passado
e para sua vida em aberto. Em Nosso tempo , Carlos Drummond de Andrade parece gritar
com professores de sua infância:
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas
rangentes, solidão e asco,pessoas e coisas enigmáticas, contai;velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira,
luto no braço, pombas, cães errantes, animaiscaçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...E muitos de vós nunca se abriram.1
Procuro, com isso, mostrar os diversos comprometimentos que os múltiplos
atores envolvidos assumem, em seu próprio tempo, com hegemonias e projetos. Nesse
sentido, é um trabalho tipicamente de desvelamento ideológico, sobretudo quando tantosanseiam por dar como superadas tais discussões em nome de um pragmatismo acrítico e
conformador.
Devo explicar o que entendo por ideologia. É o conjunto de idéias, crenças e
valores de um determinado grupo social. Mas não é só isso. É esse conjunto de idéias,
1 Mota, Carlos Guilherme e Lopez, Adriana. Brasil revisitado. Palavras e Imagens. São Paulo, Ed. Rios, 1989.
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crenças e valores em peleja com os conjuntos de ideias, crenças e valores de outros
grupos sociais, aspirando a tornar essas idéias, crenças e valores de um grupo como se
fossem as ideias, crenças e valores de toda a sociedade. É, portanto, uma batalha por
hegemonia. Mas, como as idéias, crenças e valores são muito dinâmicos, as estratégias
devem ser rotineiramente renovadas; afinal, o espaço de luta é permanente. Ora,
hegemonia, segundo Gramsci2, é a conquista das almas e deve ser efetivada também na
escola que igualmente produz ideologia que, por sua vez, escamoteia a divisão da
sociedade, segundo Marx3.
A perspectiva ideológica não significa inovação. Muitos autores já se
debruçaram sobre este tema. Tampouco o recorte dos livros didáticos ensaiam alguma
novidade. Mas será neste complexo emaranhado de reflexões que procurarei situar esta
pesquisa.
Enfatizo as mudanças em relação às permanências ocorridas nos livros
didáticos de História do Brasil, o que possibilita identificar na diacronia, na longa duração,
projetos paradigmáticos, intenções dos sujeitos envolvidos na construção de uma
determinada visão da realidade. Nesse sentido, a escola aparece como uma instituição de
caráter bastante inercial, profundamente resistente a mudanças cujos significados
impliquem alteração de suas estruturas. De certa maneira, estas permanências dizem
respeito muito mais às suas próprias estruturas. No entanto, aludem muito ao imaginário
preservado pela instituição: disposição das carteiras e dos móveis, formato das salas,
papel de professores e alunos, como se tais elementos não devessem jamais ser
questionados. Assim, todas as mudanças, que não são poucas, são insuficientes para
tocar nestes cânones. Exemplo deve ser entendido no crescente apelo à autonomia das
escolas públicas que, desde 1996, é permitido pela lei e, no entanto, permanece como
algo inalcançável nas rotinas escolares.
2 Segundo Gramsci, “as representações mecanicistas foram e continuam sendo uma necessidade, uma forma necessáriada vontade das massas populares, uma forma determinada de racionalidade do mundo e da vida, fornecendo os quadrosgerais da atividade prática. (...) Na ação prática está contida uma concepção do mundo, uma filosofia que com a históriaformam um bloco onde ocorrem diversas formas de combinações ideológicas, (...) a adesão ou não adesão a umaideologia é o modo pelo qual se verifica a crítica real da racionalidade e a historicidade dos modos de pensar”. Gramsci,A. A concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981, p.28-32.3 Ver o conceito de “imagem invertida do mundo” in: Marx, K. A ideologia alemã . Lisboa-São Paulo, Presença-MartinsFontes, 1980, p.18-19 a 25.
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Figura A (fonte: Educação para todos, caminho para a mudança . Brasília, MEC, 1985, p. 2-3)
Afirma Daniel Quinn:
A maior descoberta que qualquer antropólogo de outro planeta poderia fazer arespeito de nossa cultura é a nossa reação exagerada diante do fracasso: se nãodeu certo no ano passado, tente de novo este ano (e, se possível, empenhe-semais).Todo ano decretamos mais leis, contratamos um número maior de policiais,construímos mais prisões e condenamos os réus a penas mais longas – sem nosaproximarmos nem um milímetro do ‘acabar’ com a criminalidade. Não deu certo no
ano passado, nem no anterior, nem no outro antes deste, nem no anterior a esteúltimo, mas você pode ter certeza de que tentaremos de novo este ano, sabendo,sem a menor sombra de dúvida, que também não vai dar certo de novo.Todo ano gastamos mais dinheiro com nossas escolas, com a esperança de‘consertar’ qualquer coisa que possa haver de errado nelas, e todo ano as escolascontinuam teimosamente problemáticas. Gastar mais dinheiro não deu certo no anopassado, mas você pode ter certeza de que tentaremos de novo este ano, sabendo,sem a menor sombra de dúvida, que também não vai dar certo de novo.Todo ano tentamos acabar com os moradores de rua, e todo ano vemos que osmoradores de rua continuam entre nós. Não conseguimos ajudá-los a voltar para ‘acorrente principal’ no ano passado, nem no anterior, nem no outro antes deste, nem
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no anterior a este último, mas você pode ter certeza de que tentaremos de novoeste ano, sabendo, sem a menor sombra de dúvida, que também não vai dar certode novo.Nossa cultura tem sido evidentemente bem sucedida, no sentido de ter conquistadoo mundo. Durante a maior parte da nossa história, esse êxito foi visto apenas comoalgo inevitável, o desenrolar do destino humano. Não fazem indagações sobre ele,
como não fazem indagações sobre a lei da gravidade. Quando os europeus‘descobriram’ o novo mundo, consideraram um dever sagrado conquistá-lo. Ospovos que viviam aqui eram apenas um obstáculo, como as árvores, as pedras ouos animais selvagens. Não tinham o menor direito de estar aqui, como estavam.Para nós, conquistar esse hemisfério era apenas parte do grande plano (o planodivino, presumivelmente) de conquista do mundo inteiro – por nós.O fato de termos conseguido conquistar esse hemisfério (e, na verdade, o mundointeiro) não nos surpreende. É apenas o que tinha de ser e, por isso, ocorreunaturalmente. Ninguém se surpreende quando as nuvens produzem chuva.Antes de Newton, as pessoas não se perguntavam por que os objetos sem apoioeram compelidos a cair no chão. Só se perguntavam: ‘Que mais eles podem fazer?’Têm de cair no chão, e pronto! Nossos historiadores sempre estiveram na mesmasituação quando se trata do nosso tremendo sucesso cultural. Não se perguntam o
que nos levou a conquistar o mundo. Apenas se perguntam: ‘O que maispoderíamos ter feito?’ Tínhamos de conquistar o mundo, e pronto!4
Nessa perpetuação constrangedora estabelecemos um circuito de
configurações cujo reconhecimento aparentemente se dá por nossa voz competente,
conquistada a duras penas por alianças, acordos e afinidades eletivas, sobretudo por
dominarmos espaços de conhecimento e reflexão, bases teóricas sólidas que, de alguma
forma, garantem-nos a concretude de nosso lugar nas hierarquias sociais.
Teoria, como a concebia o pensamento cartesiano dos séculos XVII e XVIII
europeu, é o fundamento para construir verdades. Descartes, numa de suas Regras para
a direção do espírito , obra de 1628, afirma que a ciência estabelece conexões internas
entre as verdades, mas apenas a teoria oferece os fundamentos dessas verdades5.
Montaigne se contrapõe à visão cartesiana e alimenta até mesmo a
fenomenologia de Husserl:
Toda sociedade parece selvagem ou bárbara quando se julgam seus costumes
pelo critério da razão; mas, julgada por esse mesmo critério, nenhuma sociedadedeveria parecer selvagem ou bárbara, pois que, para todo costume recolocado emseu contexto, um discurso bem conduzido poderá achar fundamento.6
4 Quinn, Daniel. Alem da civilização. São Paulo, Ed. Fund. Peirópolis, 2001, p.129.5 Chauí, Marilena. A nervura do real. São Paulo, Cia.das Letras, 2000, p.352.6 Montaigne, Michel de. Os ensaios. Vol 1. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.20.
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Nesse caso temos exatamente o contrário. É a centralidade de uma cultura que
cria o espaço pernicioso do julgamento. Então, podemos auferir dois projetos
perfeitamente clarificados: de um lado, a teoria cujo potencial explicativo anseia por
construir verdades e, de outro, o olhar que compreende ser perigosa a objetividade
desmedida.
Tais bases haveriam de travar luta cerrada até fins do século XVIII para que o
século XIX emergisse plenamente demiúrgico, apto a criar um mundo aparentemente
novo e estranhamente coerente, como se houvesse ruptura com um passado e resgate
de outro.
A restrição feita aqui à história e à civilização ocidentais, mais precisamente à
Europa e, especialmente à França não deve ser entendida como limitação. É um recorte
que nos diz mais de perto e do qual somos tributários.
Traçar um painel amplo, generalizante, tem a vantagem de situar certos
registros relativos à percepção, que orientam muitos de nossos exercícios intelectuais.
Weltanschauung7 como visão de mundo, é um paradigma compartilhado por quantos
estejam submetidos à sua influência e que nos possibilita “abarcar com o olhar o conjunto
dessa vasta paisagem cultural (...) e perceber que a variedade tumultuosa de suas cores
tem uma fonte luminosa comum”8.
O paradigma, que segundo Kuhn9 pode ser representação, ou rede epistêmica,
como em Foucault, ou imaginário, como em Castoríadis, ou hegemonia, como em
Gramsci, não deixa de referir-se a valores, ideias sedimentadas como ponto de partida
para concepções teóricas. Do grego, para-deigma , ou seja, “aquilo que se mostra ao
lado”, são singularidades que se apresentam sempre ao lado de onde são esperadas e
que inebriam a visão, deslocando-a sutilmente do foco central. Einstein10, nos termos de
uma parábola, descrevia a experiência realizada por cientistas que colocaram cinco
macacos numa jaula; junto deles instalaram uma escada sobre a qual depositaram um
7 Utilizo o conceito na mesma dimenção de Lowi, Michael & Sayre, Robert. Revolta e melancolia. Petrópolis, Vozes,1995.8 Idem, ibidem, p.18-19.9 Kuhn, Thomas. The estructure of scientific revolution. Introduz o conceito de paradigma para indicar novos conjuntosde conceitos e métodos, além de práticas, artefatos culturais e valores que caracterizam um determinado período na áreada ciência.10 Alves, Rubem. Não esqueça as perguntas fundamentais. www.redepitagoras.com.br
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cacho de bananas. Quando algum macaco subia a escada atrás da desejada guloseima,
os cientistas, com um jato de água fria, atingiam os quatro macacos que estavam
embaixo. Em pouco tempo, repetidas vezes, os outros passaram a aplicar uma severa
surra, quando algum macaco subia para pegar o cacho de banana até que nenhum deles
se atrevesse mais a subir.
Então, os cientistas trocaram um dos macacos por um novato. Quando este
subiu na escada para pegar o cacho, os outros aplicaram-lhe severa surra, até que
desistisse de seu desejo, sem que fosse necessário o artifício do jato de água fria.
Um segundo macaco foi trocado e o mesmo se repetiu, só que, desta vez, o
novato que o antecedeu participou entusiasmado da surra como agressor.
Um a um, todos os cinco macacos foram trocados, até que todos que
estivessem na jaula não se atrevessem a buscar o cacho de bananas, embora nenhum
soubesse do esguicho de água fria. Se pudéssemos perguntar-lhes por que não subiam a
escada, certamente diriam que sempre fora assim.
Poderíamos questionar que tal exemplo é infeliz na medida em que coloca os
homens numa condição ridícula de espécimes irracionais. Contudo, aponta para o
ocultamento dos confrontos e das lutas que resultam em hegemonias e se nos
apresentam como condições “naturais” das regras de convívio humano e social.
Embora limitante, o conceito de paradigma aqui utilizado terá uma expansão
inusitada: pois atrelado à percepção, a uma “weltanschauung”, uma visão de mundo.
Nesse sentido, como percepção da realidade, penso em esgrimir a intersecção de dois
grandes paradigmas na visão de mundo característica da cultura ocidental. De um lado, o
paradigma religioso, que começa a entrar em colapso em fins do séc. XV, com a
recuperação monetária da Baixa Idade Média, a emergência do sistema de classes em
detrimento do sistema de ordens, a reforma religiosa, a visão heliocêntrica, a expansão
marítima, o humanismo, etc. Um novo paradigma emerge, lentamente, pelos três séculosseguintes, convivendo com o anterior em diversos níveis. Chamemo-lo de paradigma
iluminista, ou newtoniano, fundamentado na máxima do “saber é poder”, superando o
modelo de poder fundamentado na posse da terra e no poder do sangue. O tempo linear
do relógio, mecânico, que soterrou o tempo do sino das igrejas, a emergência das
chamadas “macro-solidariedades, cristalizadas pela ideologia: nacionalismo, partidos
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políticos, revolução”11, em detrimento das formas comunitárias anteriores, pautadas pelos
vínculos familiares, paroquiais ou corporativos.
Assim, paradigmático será o modelo construído de visão de mundo. Estabeleço
algo do paradigma anterior e algo do posterior. Trata-se de uma visão de mundo
exclusivamente europeia ocidental. Devemos respeitar a condição dos sujeitos
submetidos ao paradigma por sua convicção de que tal visão “é” a realidade e, embora
hegemônica, não é exclusivamente onipresente, considerando experiências e visões
distintas.
A Terra é chata como uma pizza e é o centro do universo; todas as criaturas
que nele vivem foram criadas por Deus, que, afinal, estabelece todas as regras, determina
todas as relações pelo nascimento. Nesse paradigma, a instituição mais importante é a
Igreja que determina o tempo pelas badaladas dos sinos: tempo circular como o tempo da
natureza (semeadura, colheita, etc.; primavera, verão, outono e inverno). O que não quer
dizer que não existam pessoas que vivam fora desse paradigma no mesmo tempo e
lugar. Famílias extensas regradas por entidades da natureza. A educação era
proporcionada pela relação intragrupos; ainda não existia o conceito de criança; aqueles
pequenos homens e mulheres praticavam desde muito cedo as mesmas funções do
grupo. A medicina era uma mistura de rezas e ervas que buscavam a melhoria total do
doente e não havia uma distinção maior para aqueles que prescreviam tais ervas ou
rezavam os conjuros. O céu como prêmio e o inferno como castigo eram uma realidade
tão tangível quanto a farinha e o moleiro. Tal paradigma ganha hegemonia nos mil anos
de seu confronto com outros projetos (muçulmanos, feitiçaria, panteístas, etc.). Porém,
começa a ser questionado de diversas maneiras e imediatamente aparece a Inquisição, a
força para preservar o paradigma12.
Galileu afirma que a terra não é o centro do universo e, pouco depois, Colombo
prova que a terra é redonda. Lutero, por sua vez, afirma em suas 99 teses que a riqueza éum atributo de Deus. Desde fins do séc. XIII, o dinheiro, que expressa a intensificação das
trocas comerciais revelando uma necessidade de um padrão monetário, passa a circular
11 Wehling, Arno. Estado, História, Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1999, p.24.12 Bloch, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa, Ed. 70, 1979. Ver o livro segundo, “as condições de vida e a atmosferamental”.
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pela Europa, alterando profundamente as relações. O poder como disposição divina
passa a ser questionado, embora tenhamos ainda muitos séculos para que um novo
paradigma se estabeleça.
O foco central das preocupações daquelas sociedades transfere para o homem
a primazia de seu destino. As universidades assumem outra função: a de centralidade na
produção do saber que, paulatinamente, será sinônimo do poder. O tempo,
instrumentalizado por novas convenções, ganha sua dimensão mecânica e disciplina os
homens. A medicina segmenta os cadáveres atrás das especialidades. A escola fratura o
real em inúmeras perspectivas. A família assume sua condição nuclear.
Tal paradigma ganha cada vez maior hegemonia, convive com os restos do
paradigma anterior e disputa no plano concreto com outros projetos (os confrontos de
Willian Blake com Isac Newton, entre tantos outros). A centralidade da cultura escrita fará
surgir a figura social do analfabeto, além de outras hierarquias. Poderíamos chamar de
paradigma científico a este modelo que se hegemoniza. Nele a racionalidade erradica
todos os fenômenos que não podem ser explicados. Muitas das suas instituições ainda
coexistem com outros projetos paradigmáticos que igualmente anseiam por ganhar o
estatuto de realidade.
Desde a bomba atômica, desde Einstein ou, mesmo, Nietzsche, a fé cega na
ciência vem sofrendo sérios ataques. A medicina holística e a visão sistêmica ganham
cada vez mais terreno. A instituição da família nuclear sofre seus mais sérios revezes,
enquanto a escola, como uma instituição que veicula o paradigma iluminista se mostra em
frangalhos, embora resista. O neoliberalismo parece funcionar como o baluarte mais
severo em defesa do paradigma iluminista, levando a racionalidade a um verdadeiro
paroxismo. A descoberta do neutrino joga a versão clássica do átomo na lata do lixo.
Cientistas se voltam para a busca de Deus e de suas manifestações. Os fractais e a teoria
do caos, a teoria de Gaia dentre tantos outros fenômenos apontam para o esgotamentodo paradigma da dominação13. Apesar de todas as teorias econômicas e sociais, se
indagarmos a um trabalhador comum a razão pela qual trabalha, certamente receberemos
como resposta: “Ora, porque preciso!”
13 Capra, F. Ponto de mutação. Hawkins, S. Breve história do tempo.
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É no interior dessa generalidade que me coloco, quando a visão de mundo
científica é questionada “de dentro” (Prigogine, Einstein, Maturana, Capra, dentre tantos
outros em diversas áreas14) e os projetos que aspiram a hegemonia dão a todos nós uma
responsabilidade de sujeitos de seu próprio tempo, já que não creio que a teoria da
evolução seja algo mais que teoria, ou seja, na garantia de que, se nada fizermos, o
mundo da experiência ainda assim caminhará para a melhoria da humanidade. Acredito,
por outro lado, que as complexidades do real ganham cada vez mais evidência.
Talvez seja chegada a hora de esclarecer o conceito de ideologia. É um
conjunto de estratégias historicamente construídas cujo objetivo é o estabelecimento de
um centro, que apenas circunstanciadamente será europeu ou étnico.
Conceitos, como o de civilização e selvageria, utilizados para justificar a
expansão imperialista na África, Oriente Médio e Ásia, em fins do séc. XIX, de tradição e
modernidade, que embalaram a 1ª Guerra Mundial, de sanidade e insanidade ou
doença15, que justificaram as atrocidades que marcaram a 2ª Guerra Mundial inserem-se
nesta lógica. Também o de cultura erudita e cultura popular, alfabetizados e analfabetos,
bipolaridades, que, pela expansão do conceito de Organização16 (como aponta Marilena
Chauí em O Discurso Competente ), podem colocar o centro dentro do indivíduo e a
periferia em toda parte. Esse didatismo é um dos elementos centrais da ideologia.
Como se vê, tal conceito de ideologia não se confunde com a ideologia
burguesa nem com a ideologia marxista, mas surpreende estruturas de hierarquizações
presentes em cada indivíduo, distribuídas por todo o corpo da sociedade até
“naturalizarem-se”.
Quais motivações engendraram tais estratégias? Originalmente a dominação
era uma prerrogativa e um projeto (de projectum : apontar para o futuro) de classe. Daí
emerge o conceito de luta de classes.
Com tais estratégias, inocula-se o indivíduo com as vestes da competência: aluta perde todo o seu significado, embora a dominação se torne legitima. Não me parece
adequada a denominação “ideologia da classe dominante”, mas talvez “ideologia da
14 Steve Johnson demonstra em seu livro Emergência: a dinâmica da rede em formigas, cérebros, cidades (Rio deJaneiro, Zahar, 2004) como sistemas complexos podem se organizar sem hierarquia.15 Black, Edwin. A guerra contra os fracos – A Eugenia e a Campanha Norte-Americana para criar uma raça superior.16 Ou, como chamavam os frankfurtianos, “sociedade totalmente administrada”. Matos, Olgária. Os arcanos dointeiramente outro. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.16.
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dominação” e ao paradigma como paradigma da dominação, isso se quisermos escapar
do vaticínio da dominação como algo a-histórico.
Entender a dominação como paradigma é considerar que
(...) o exercício da dominação/resistência não se encontra localizado em nenhumponto específico (Estado, instituições, partidos, associações, etc.); não se manifestaem momentos diferenciados (o tempo da dominação, o tempo da resistência); não éexercido de forma exclusiva por grupos determinados (grupos dominantes, gruposdominados); não mantém uma relação causal (a uma dominação surgem reaçõesde resistência); não têm existência concreta, nem carrega necessariamente noçõesde positividade e negatividade.O exercício da dominação e da resistência se dissemina por toda a estrutura social,é inerente às lutas cotidianamente travadas, adquirindo expressão em práticas eestratégias, simultaneamente presentes na multiplicidade das experiênciashistoricamente vivenciadas.17
Localizemos, agora, a escola como discurso e imaginário de instituição
geradora de competência e onde as estruturas da dominação e, portanto, das
hierarquizações estão consolidadas.
Para tanto, pretendo cruzar três elementos aparentemente díspares a fim de
refletir sobre a questão central da escola como veículo principal da manutenção do
paradigma e de seu plausível discurso da competência. Utilizarei três conjuntos de dados:
ampliação de acesso das pessoas à escola, os resultados a partir do conceito de
analfabetismo funcional e a questão da empregabilidade resultante do que já foi chamado
de liberalização à brasileira . A questão aqui é desmascarar a funcionalidade escolar como
elemento de conquista de cidadania, segundo o último discurso oficial.
Num percurso de 40 anos (1950-1990), a taxa de escolarização da população
brasileira passou de 36,2% para 86,9%, contemplando, em 1990, 26.812.800 de pessoas
entre os 7 e os 14 anos18. Os investimentos públicos para que tal se operasse têm
declinado, de 1989 para 1992, de 4.3% para 3.8% do PIB, algo em torno de 300 bilhões
de dólares anuais.Com todo esse esforço crescente, o percentual de analfabetismo na mesma
época (1990) era de 8,8% da população brasileira, segundo dados do IBGE.
17 Proposta curricular para o ensino de História – 1º grau, São Paulo, CENP, 1989, p.11.18 Plano decenal de educação para todos. Brasília, MEC, 1993, p.110.
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Ora, o conceito de analfabeto vem sendo alterado principalmente a partir de
meados do século passado. Em 1958, a UNESCO definia como alfabetizada uma pessoa
capaz de ler um bilhete simples. Vinte anos depois, a mesma entidade apresentava o
conceito de analfabetismo funcional que escancarava os limites dos sistemas educativos
em sua missão de letrar o mundo. No Brasil, desde 2001, o INAF (Indicador Nacional do
Analfabetismo Funcional) vem apresentando o desempenho deste indicativo. De algum
modo, podemos inferir daí o desempenho de nosso sistema de ensino, a despeito das
avaliações (SARESP, ENEM, etc.) implementadas no mesmo período.
A pesquisa apontou um percentual de 8 pontos para o analfabetismo absoluto
entre pessoas de 15 a 64 anos.
Quanto ao analfabetismo funcional, foi dividido em três níveis: 1. aqueles que
só são capazes de localizar informações simples em enunciados com uma só frase, num
anúncio ou chamadas de capa de revista: 30% da população encontravam-se nesse nível
em 2003, contra 31% do ano anterior. 2. aqueles que são capazes de localizar
informações em textos curtos. 37% da população brasileira encontram-se nesse grau de
alfabetização. Ou seja, se somarmos os três níveis anteriormente expostos, 75% da
população brasileira ainda não está inserida na centralidade da cultura escrita e não
domina totalmente os seus códigos. Portanto, apenas 25% da população é capaz de
usufruir plenamente da habilidade de escrita e de leitura19.
Tais números apontam para uma realidade que representa um afastamento da
escola idealizada que normalmente freqüenta os discursos.
Professores exauridos por jornadas desgastantes, por excessivo número de
alunos, por indisciplina perigosa, atulhados por burocracias poderosas, alunos enfastiados
com a inutilidade dos ensinamentos escolares, depredando os ambientes como se não
fossem públicos, gestores acomodados com o que acreditam não ter conserto.
19 Segundo dados do MEC, em 1990 apenas19% da população possuía o 1º grau completo; 13%, o nível médio e 8%, osuperior. In: PCN, Introdução, Brasília, Mec, 1997, p.21.
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Figura B (fonte: Educação para todos, caminho para a mudança. Brasília, MEC, 1985, p. 4-5)
Pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no mesmo
período (1990-2001), aponta os efeitos da modernização tecnológica nesta mesma
sociedade.A chamada abertura econômica iniciada por volta de 1990, com toda a
estratégia de privatizações e importações, erradicou algo próximo de 11 milhões de
empregos. Em números absolutos, ou seja, sem considerarmos a variação populacional,
em 1990, 59,42 milhões de pessoas estavam empregadas, enquanto, em 2001 esse
número era de 64,42 milhões20.
O governo Lula gaba-se de ter criado 13 milhões de vagas de trabalho durante
seus dois mandatos. Mas isso não é suficiente sequer para atender aos 1.8 milhões de jovens que batem à porta do mundo do trabalho todos os anos.
20 A mesma pesquisa revela que foi o setor agropecuário aquele que mais perdeu postos de trabalho e que ainda detem26% de todo o pessoal ocupado, enquanto em países desenvolvidos esse percentual não passa de 6%. Daí infere-se queo número de postos de trabalho nesse setor ainda deverá ser em muito enxugado.
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Com o incremento do agro negócio, só na década de 2000 outras 11 milhões de
vagas de trabalho desapareceram do campo. Esta é uma visão do dramático custo social
de nossa modernização21 e do papel da escola neste panorama conjuntural.
Para atenuar, se é que é possível, esse drama, criou-se o prêmio de
consolação dos programas de renda mínima, já que a desestruturação do universo do
trabalho é irreversível.
A conjunção entre neoliberalismo, globalização e a economia de países
emergentes governados pela “esquerda”, pelo menos para o caso brasileiro, tem
funcionado da seguinte maneira: Tomando-se o aspecto de aporte tecnológico, a devassa
de fronteiras nacionais e a desregulamentação do trabalho, transferiu do primeiro mundo
para o terceiro as etapas da produção fragmentada, afastando-se dos altos custos do
trabalhador ainda protegido por fortes resquícios do modelo de bem-estar no primeiro
mundo europeu e norte americano, gerenciadores do capitalismo típico da economia
mundo e desembocando por aqui num movimento que acompanha igualmente a
desestruturação do mundo do trabalho, oferecendo como compensação, de um lado os
programas de renda mínima, e do outro, escassas vagas no mundo dos serviços.
Além do mais, com o achatamento crescente dos salários, fortes estímulos de
consumo via facilidade de financiamento, promoveu o consumo a níveis consideráveis, o
que implicou em uma situação paradoxal. A redução do ganho via salários, aliada aos
programas de renda mínima, cerceados por gigantescas ofertas de crédito, com grandes
reservas de euforia e ufanismo oriundas da festa consumista, acabou funcionando como
um capital político devastador.
Importante destacar que as elevadas taxas de impostos acabaram por fazer
retornar capital suficiente para ampliar programas como o bolsa-família, dentre outros,
enquanto as altas taxas de juros cobradas pelos bancos conferiram uma ampliação
desmedida de concentração de renda nas mãos de poucos, alargando ainda mais o fossosocial.
Também é razoável considerar que o consumo não promove ascensão social,
mas aprisiona ainda mais o trabalhador numa malha de dívidas e prestações sem fim.
21 Jornal Folha de S.Paulo, 18/01/04, p.B 1.
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Entretanto, a sensação do ponto de vista do trabalhador é de melhoria das
condições de vida e de promoção social, a despeito de todos os aparelhos públicos,
educação, saúde, segurança, saneamento, continuarem a declinar incessantemente de
qualidade.
É nesse quadro complexo e fortemente ideologizado que devemos entender a
educação e seus derivados.
Talvez por isso mesmo me afasto de periodizações que apontam as inúmeras
tensões das diversas pedagogias que de modo geral influíram (como discurso, pelo
menos) na pratica educativa brasileira. Refiro-me às pedagogias tradicional, libertadora,
crítico-social dos conteúdos, construtivista, sendo que o que tem prevalecido em nosso
sistema de ensino é a pedagogia em que a figura central é o professor e o ensinar limita-
se à exposição oral dos conteúdos,
numa seqüência predeterminada e fixa, independentemente do contexto escolar;enfatiza-se a necessidade de exercícios repetidos para garantir a memorização dosconteúdos. A função primordial da escola, nesse modelo, é transmitirconhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, formação esta que olevará, ao inserir-se futuramente na sociedade, a optar por uma profissãovalorizada. Os conteúdos de ensino correspondem aos conhecimentos e valoressociais acumulados pelas gerações passadas como verdades acabadas e, emboraa escola vise à preparação para a vida, não busca estabelecer relação entre osconteúdos que se ensinam e os interesses dos alunos, tampouco entre esses e osproblemas reais que afetam a sociedade. Na maioria das escolas essa práticapedagógica se caracteriza por sobrecarga de informações que são veiculadas aosalunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos,muitas vezes burocratizado e destituído de significação. No ensino dos conteúdos,o que orienta é a organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral,disciplinado e esforçado.22
Esse repertório tradicional está vitalizado na escola brasileira. Os livros
didáticos aqui apresentados serão prova cabal desta afirmação, supondo que ainda
grande parte de nosso professorado se guia pelo seu sumário para elaborar os
planejamentos anuais.
O século XIX constitui-se no ponto mais alto deste paradigma. As elaborações e
abstrações ali construídas ganharam legitimidade rapidamente e nas instituições
22 Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, MEC, 1997, p.40.
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primordiais do paradigma, dentre elas a escola, a despeito de suas muitas
transformações, continuam respondendo basicamente à mesma estrutura.
O objetivo aqui é estabelecer uma rede de referências que nos possibilite
compreender que a história construída no século XIX acabaria por atingir a condição,
inclusive para aqueles que produzem livros didáticos, de verdades consagradas ou
conhecimento socialmente adquirido, desconsiderando que os homens e os historiadores
observam o passado, seguindo os constrangimentos próprios de seu tempo. Em outros
termos, a história construída no século XIX diz muito mais a respeito do século XIX que
daquilo que se propunha a estudar, compondo uma história basicamente etnocêntrica:
As diferentes formas deste etnocentrismo escondem-se por trás de uma história
geral que é, aproximadamente, a mesma em Malet e Isaac, em França, La Storiadell’Uomo , na Itália, e por aí adiante. Nestes casos a história ‘nasce’ com o Egitoantigo, a Caldéia e Israel, e desenvolve-se com a grandeza da Grécia e de Roma. A‘Idade Média’ começa com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, comas grandes invasões e conclui-se com a queda do Império Romano do Oriente, em1453, e com a conquista turca. As grandes descobertas, o humanismo e a Reformaprotestante dão início aos ‘tempos modernos’, os quais, por sua vez, cedem lugar àépoca contemporânea que se inicia com a revolução de 1789.23
Quando pensamos na naturalização da dominação como um processo
civilizador, ou seja, presente em toda a história ocidental, por vezes esquecemos que a
“história intelectual da humanidade pode ser considerada uma luta pela memória”, nas
palavras de Lotman24 e que tanto a história romana quanto a grega foram escritas
basicamente após a constituição das chamadas Bibliotecas de Fabricius: biblioteca latina
(1697), biblioteca grega (1705-1728) e biblioteca latina média (iniciada em 1734)25 e que
podemos inserir o alerta oriental de que, ao contrário dos historiadores, “os literatos não
tomam por modelo o presente e só estudam a Antiguidade para denegri-la”26, o que
equivale dizer que o estudo da antiguidade só tem sentido para (e na medida em que
pode) justificar o presente em que aqueles autores dos séculos XVI, XVII e XVIII
23 Ferro, Marc. Falsificações da História. Lisboa, Publicações Europa América, s/d, p.18-19.24 Cânfora, Luciano. Livro e liberdade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra e Ateliê Editorial, 2003, p.80.25 Idem, ibidem. P.57.26 Idem, ibidem, p.77.
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produziram os textos sobre a história ocidental como sendo a história da dominação que
era o que experimentavam então27.
Quando pensamos no caráter relativamente subjetivo das pesquisas, hoje já
relativamente aceito, esquecemos que esta subjetividade já estava colocada. Lucien
Febvre, em curso no College de France ministrado entre fins de 1942 e meados de 1943,
propôs-se a demonstrar como Michelet inventara o conceito da Renascença e o
apresentara neste mesmo College cem anos antes.
Mas não foi somente a Renascença objeto de invenção. Também a Idade
Média.
De ser que nasce e, debruçando-se atentamente sobre o nascimento da Idade
Média, procura-se-lhe a data precisa, as circunstâncias e os antecedentes. De serque vive: e fica-se preocupado com as fases sucessivas dessa existência. De serque declina e que morre: e descrevemos o outono da Idade Média, o declínio daIdade Média, o fim da Idade Média, em livros inumeráveis. Assim, existem asidades da Idade Média; as estações da Idade Média; as idéias da Idade Média. Háos homens da Idade Média. Da Idade Média que parece não sei que força obscura,poderosa e coercitiva, que modela os homens à sua maneira, amolda-os,comunica-lhes caracteres comuns, dotados das mesmas virtudes e das mesmasdeficiências.28
Uma teoria ganha estatuto de verdade, quando vence as resistências de duas,
três gerações. Outros projetos que, uma vez consagrada essa teoria, serão arremessados
para o fundo do baú, local de esquecimento. A história ocidental prevalecente foi uma
disputa de discursos que se hegemonizaram até atingirem a condição de verdade.
Alguns conceitos se tornariam tão hegemônicos que hoje ainda vibram de
vitalidade29. O primeiro é o de evolução, de progresso30, afinal, “poucos de nós não o
consideraríamos como uma melhoria potencial ou concreta”31. Tal postura nos coloca,
sempre, como os privilegiados do tempo e, por extensão, nossa própria sociedade como a
resultante “natural” dessa evolução.
27 O Príncipe, de Maquiavel; Leviatã , de Thomas Hobbes, Discurso da Servidão Voluntária, de Etienne de La Boétie, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Jean-Jacques Rousseau, dentre outros.28 Febvre, Lucien. Michelet e a Ranascença. S.Paulo, Ed.Pagina Aberta, 1995, p.30.29 Não me parece exagerado recordar que estou me referindo exclusivamente à história perpetrada pelos livros didáticos,aquela história didatizada, rígida, eivada da compostura que a instituição escolar exige.30 Embora não tratem da mesma coisa, são conseqüentes.31 Hobsbawm, Eric. Sobre História. S.Paulo, Cia das Letras, 1998, p. 43. O grifo é meu.
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Falamos freqüentemente da máquina que criamos e que nos escraviza. Não hámáquinas só de aço: as máquinas intelectuais que forjamos nas oficinas do cérebroimpõem-se a nós com a mesma tirania. E, de resto, vivem uma vida tenaz, de outromodo. Porque não há exemplo de que alguma vez naufraguem.32
A data, os fatos e a cronologia. Esta parece ser a seqüência que, no magnífico
caldeirão de meados do século XIX com Augusto Comte, Spencer, Darwin e outros,
conferiu à teleologia toda a centralidade de um pensamento, criando uma
wertanschauung absolutamente hegemônica.
O historiador Nelson Werneck Sodré comenta:
Nada empresta um caráter mais falso às narrativas históricas do que aapresentação pura e simples dos seus diversos episódios, sem o encadeamentoque os liga na continuidade que é o dogma da evolução das sociedades. Desse
modo, quando estudamos o colapso do império romano nos livros didáticos parece-nos, à primeira vista, que as invasões bárbaras se processaram pela violência epela brutalidade, num rápido avanço sobre a península. Ora, a decadência romanaé um acontecimento que evolui em decênios. As invasões bárbaras se fizeram pelainfiltração e pela extensão do direito aos adventícios. Eles se enquistaram noimpério cujas instituições iriam derrocar. Entre o fim do poderio romano e o início domedievalismo paira o tempo, em cujo ventre se desenrolaram as transformações dasociedade, culminando com a ruína das instituições antigas e com o advento denovos padrões humanos.33
A despeito de seu alerta acerca das temporalidades estendidas que
caracterizam as passagens históricas, segundo o autor, devemos aceitar o vaticínio daevolução das sociedades sem questionamento.
Mas, afinal, a quem serve o conceito de progresso, de evolução?
Dizer que a ideologia não tem história significa apenas dizer, em primeiro lugar, queas transformações ocorridas em um discurso ideológico não dependem de umaforça que lhe seria imanente e que o faria transformar-se e, sim, que taistransformações decorrem de uma outra história que, por meio da ideologia, a classedominante procura escamotear; em segundo lugar, e mais profundamente, significaque a tarefa precisa da ideologia está em produzir uma certa imagem do tempo
como progresso e desenvolvimento de maneira a exorcizar o risco de enfrentarefetivamente a história.34
32 Febvre, Lucien. op.cit., p.175.33 Sodré, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. Rio de Janeiro, Graphia, 1998, p.77.34 Chauí, Marilena. O discurso competente. In: Cultura e democracia. São Paulo, Cortez, 2000, p.4.
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Daí se infere que o caráter evolutivo e progressivo35 com o qual o século XIX
revestiu o real tem um princípio de dominação e que essa dominação, engendrada por
uma classe historicamente determinada, clama pela História justamente para furtar-se a
um confronto com a história.
No prefácio à edição de 1868 de sua História da Revolução Francesa , escrevia
Jules Michelet:
A história contestada dos velhos tempos esclareceu-se por si mesma, de ano emano, por um grande número de documentos dados a público. Mas nós,historiadores, fizemos alguma coisa por isso. Adotando cada um seu ponto devista, nós a pusemos (por nossos próprios exageros) em plena luz. É interessantever quanto essa diversidade foi útil. Desejaria que uma mão hábil esboçasse ahistória da história, quero dizer, o progresso feito em nossos estudos sobre aRevolução.36
De alguma forma, em 1868 já estava plenamente consagrada uma “evolução”
no fazer histórico em relação a Guizot, Sismondi, Barante, Augustin Thierry. Mas a
palavra evolução não pode ser entendida sem o seu forte conteúdo político.
Porque a palavra evolução não é uma vã palavra para o historiador dascivilizações... História, ciência do homem, ciência da perpétua mutação dassociedades humanas, do seu perpétuo e necessário reajustamento a novascondições de existência material, intelectual, moral, religiosa, econômica, política e
social.37
O conteúdo político do termo evolução fica mais claro ainda quando Pierre
Leroux, contemporâneo de Michelet, que em 1840, na obra l’Humanité , escrevia:
Há uma primeira maneira de classificar os homens: é dividir os homens no tempo,vale dizer, não reconhecer a cada um por antepassados senão os seusantepassados naturais, negar qualquer reversibilidade de uma família sobre outra;estabelecer, pelo contrário, a absoluta reversibilidade de cada família, atribuir tudoao nascimento, subordinar o filho ao pai que o concebeu, e fazer do homem um
herdeiro. Há uma segunda maneira de classificar os homens. É dividir os homensno espaço, compor agregados de homens, não somente distintos entre si, mas
35 Tampouco aqui há uniformidade. Herder, por exemplo, se colocava contrário a qualquer idéia de progresso ou deevolução histórica. Para ele, o específico deve ser valorizado em detrimento do universal, sendo impossível dispor ascivilizações numa ordem cronológica. Daí que, como para os românticos, o caráter nacional somente poderia ser dadopela vertente da cultura popular. In: Herder, J.G. Une autre philosophie de l´histoire. Paris, Aubier, 1964.36 Michelet, Jules. História da Revolução Francesa. São Paulo, Cia. das letras, 1998, p.26.37 Febvre, Lucien, op.cit. p.33.
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hostis uns aos outros, sob o nome de nação, subordinar o homem à nação e fazerdo homem um súdito.38
A família nuclear burguesa e a nação serão as resultantes “naturais” desta
“evolução”.
Tal “evolução” não pode ser escamoteada pelos atores que a engendraram.
Numa carta escrita em uma de suas inúmeras viagens, Michelet se pronuncia em 1830:
Vejo muitos ingleses que viajam com sua família e eu estou longe da minha: issome faz sentir duramente a minha pobreza. E digo-me muitas vezes: que queres tu,se queres atingir a mesma cultura intelectual que a dos ricos, não será senão aopreço de grandes sacrifícios.39
Se é certo que a geração de 1820 (Guizot, Victor Cousin, Villemain, Mignet,
Quinet e o próprio Michelet) consagra alguma reação à escolástica de um Voltaire, à
severidade de uma cultura aristocrática e que a revolução francesa e principalmente o
período pós-napoleônico exigiram a presença dos pobres na história, é igualmente certo
que a centralidade da cultura escrita havia se tornado irremediavelmente hegemônica e a
máxima do saber é poder ainda prevalecia e ganhava novos contornos.
É preciso lembrar que Michelet criou o conceito de Renascença e o fez
segundo sua própria convicção e suas idiossincrasias. Conjunto explicativo coerente, a
Renascença, contudo, fora a consagração de uma história.
Lucien Febvre aponta que o século XIX francês ansiava por criar uma tradição,
produzindo documentos duvidosos, como o Précis, de Crapelet, sobre a Idade Média:
Isso não era um documento histórico, mas um verdadeiro código de honra, válidotanto para o homem do século XIX, quanto para o homem do século XIII, tanto parao francês da Restauração, quanto para o francês do tempo de São Luís.40
Assim, será através de Turgot, que em 1751 publica Plan de deux discours surl´histoire universelle , que uma massa documental há de amparar o fazer histórico.
Por essa mesma medida, e seguindo os historiadores do século XIX francês,
“houve a Esparta de Napoleão, pregada nas escolas; houve a Roma de David, triunfante
38 Idem, ibidem, p.127.39 Idem, ibidem, p.151.40 Idem, ibidem, p. 402
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nos ateliês, nos salões de pintura”41. Mas não será, justamente, por uma impossibilidade
empática, ou seja, uma incapacidade que temos em compreender não somente o “outro”,
mas outra cultura, quanto mais outra temporalidade, que a história, mesmo eivada de
documentos, seria, acima de tudo, subjetiva? Ainda Febvre: “Daí o caráter
necessariamente subjetivo de toda história por mais objetiva que diga ser e que possa
ser. No fundo, só uma forma de história é objetiva (e ainda!): a cronologia.”42.
Michelet, de quem Febvre faz apologia, ignorou “os falsos mestres e os vãos
pedagogos”43 para criar a Renascença:
Mas o homem cria um nome, e eis que este lhe escapa, põe-se a viver a suaprópria vida, e já não se contenta em servir de etiqueta: põe-se a constituir, aengendrar um sistema de noções que logo assume figura de realidade, de ser de
razão, de verdadeiro ser dotado de todos os atributos da existência.44
A História de Jules Michelet foi também a dos homens do seu tempo, a História dosseus contemporâneos, que a adotaram e que a propagaram. E assim secompreende por que o conceito elaborado por Michelet em 1840 tem tido vida tãolonga e carreira tão brilhante: Michelet, envolvendo-se por inteiro no assunto, neleenvolveu concomitantemente todos os homens do seu tempo, fê-los participar dasua criação, e tornou o conceito, ao mesmo tempo, forte, vivaz e fecundo.45
Eric Hobsbawm atualiza o papel do historiador:
Os historiadores são o banco de memória da experiência. Teoricamente, o passado – toda e qualquer coisa que aconteceu até hoje – constitui a história. Uma boa partedele não é da competência dos historiadores, mas uma grande parte é. E, namedida em que compilam e constituem a memória coletiva do passado, as pessoasna sociedade contemporânea têm de confiar neles.46
Como chegamos a essa legitimidade e qual a responsabilidade que daí
decorre?
41 Idem, ibidem, p. 396. Veja o que diz Laymert Garcia dos Santos sobre a tradução do Discurso da servidão voluntária,
de Etienne de La Boétie: “A simples comparação do manuscrito De Mesmes com sua transcrição na mesma língua, feitapor Charles Teste, já testemunhava a traição. Traição grosseira, que manifesta a dupla incapacidade do século XIX, eque é uma incapacidade histórica: por um lado, incapacidade de compreender o estatuto do destinatário do discurso,demonstrado pela insistência de Charles Teste em querer ‘simplificá-lo’ e ‘explicá-lo’; por outro, a impossibilidade deler, de ouvir, o que o manuscrito De Mesmes está dizendo. (...) Não se trata mesmo de uma transcrição: Charles Teste,soberana e paternalmente, corrige o texto desse ‘bom Etienne’, adaptando-o às verdades do século XIX.” (p.9).42 Idem, ibidem, p. 13243 Idem, ibidem, p. 6244 Idem, ibidem, p.3045 Idem, ibidem, p. 12046 Hobsbawm, Eric. Sobre História. São Paulo, Cia. das Letras, 1998, p.37.
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Responde Hobsbawm:
Por que (...) todos os regimes fazem seus jovens estudarem alguma história naescola? Não para compreenderem sua sociedade e como ela muda, mas paraaprová-la, orgulhar-se dela, serem ou tornarem-se bons cidadãos dos EUA, daEspanha, de Honduras ou do Iraque. E o mesmo é verdade para causas emovimentos. A história como inspiração e ideologia tem uma tendência embutida ase tornar mito de autojustificação. Não existe venda para os olhos mais perigosaque esta, como o demonstra a história de nações e nacionalismos modernos.47
Uma indagação se coloca: há verdadeira separação entre uma história áulica e
outra história, mais acadêmica, elaborada por sujeitos convictos de sua condição política
e que estabeleça alguma massa crítica em relação à doutrina que caracteriza a função da
escola? A resposta deve ser positiva, ainda que cautelosa.
Duas condições traduzem essas duas “histórias”: o histórico ou instituinte e o
institucional ou instituído nos termos em que se apresentam em “O Discurso
Competente”, de Marilena Chauí:
A ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou fundador, e só podeincorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já instituído. Por essavia podemos perceber a diferença entre ideologia e saber, na medida em que,neste, as idéias são produto de um trabalho, enquanto naquela as idéias assumema forma de conhecimentos, isto é, de idéias instituídas.48
A transposição didática como estratégia conduz as pesquisas acadêmicas para
o interior do livro didático de história, entendido ora como “tentativa de condensar e
simplificar num espaço mínimo e portátil o que se teria necessidade de conhecer e utilizar
na atividade escolar”49, ora como “instrumento auxiliar do professor e do aluno no
processo de aprendizagem, veiculando o conteúdo da disciplina, de acordo com
determinada metodologia”50. Nestes termos, o livro didático é o instituído, conhecimento
socialmente divulgado, território consagrado do qual se extraditou em grande medida aspossibilidades de interrogação.
47 Hobsbawm, E. idem, ibidem, p.47-48.48 Chauí, Marilena. op.cit. p. 5. No entanto devemos considerar que “não se deve imaginar um mundo do discursodividido entre o discurso acolhido e o discurso excluído ou, entre o discurso dominante e o discurso dominado; mascomo uma pluralidade de elementos discursivos que podem atuar em estratégias diversas”, In: Sader, Emir. Quandonovos personagens entram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p.58-59.49 Leite, Mirian Lifchitz Moreira. Produção, consumo e distribuição do Livro Didático. Plural, ano 3, n. 6, p.9.50 Takahashi, Jiro. A editoração do livro didático. Plural, ano 3, n. 6, p.23.
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Quando ocorre a transposição didática51, ou seja, quando o conhecimento
produzido na universidade chega pelo didatismo e pela simplificação ao livro didático, tal
incorporação ocorre como conhecimento legítimo, como essência.
Nestes termos, as mais recentes pesquisas sobre o livro didático de História
têm apontado para as significativas mudanças ao longo do século XX.
A partir de seu incremento na década de 1960 temos a inclusão de temas mais
culturalistas e de um novo arsenal conquistado principalmente pela proximidade entre
seus autores e as pesquisas acadêmicas.
Entretanto devemos atentar para a estrutura uniforme preservada, pautada pela
rígida divisão entre Colônia, Império e República, no caso brasileiro, o que é um sintoma
da permanência de uma leitura institucional formulada com a instituição do Estado-nação.
A segunda questão que chama a atenção é a própria função do livro didático
em sala de aula. Está pautado num conhecimento supostamente adquirido e acumulado
pela sociedade e que deve ser compartilhado com o aluno. A inclusão de temas mais
leves não resolve o problema. Nesse passado fechado, integralizado em sala de aula, o
professor possui o código para decifrar as informações, enquanto ao aluno compete se
apropriar dos conhecimentos. Há uma hierarquia entre esse saber e aquele que o aluno
constrói na escola e fora dela, numa teia informacional altamente dinâmica e que se
manifesta através dos vários sentidos. A centralidade da cultura escrita, sua suposta
sacralidade, que está sendo reforçada. É o momento em que ao aluno compete submeter-
se, acreditando que aquelas coisas escritas são, afinal de contas, verdadeiras. Mas esse
discurso da autoridade já não compactua com os interesses dos freqüentadores da
escola. Tal discurso colhe muitas vezes ou a indiferença ou o discurso da violência.
Tais incorporações não representam nenhum risco à ordem instituída. Mesmo
admitindo sua condição igualmente dinâmica, a ordem é uma ambição política que supõe
uma tendência ao equilíbrio.
51 Existem duas maneiras de se compreender a transposição didática. Em Chavellard, Y. A transposição didática, aprodução acadêmica acaba por ser reformatada e inserida na escola de ensino fundamental e médio. No caso deChervel, História das disciplinas escolares, está inserida na malha de experiências e de saberes produzidos pela escola,na qual os conhecimentos científicos produzidos nas universidades ganham existência nestas instâncias não por decreto,mas pela incorporação seletiva que a escola opera e realiza. Neste último caso não se poderia sequer falar detransposição didática.
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Assim, os livros didáticos não podem ser entendidos apenas como instrumentos
pedagógicos, “são produtos de grupos sociais que procuram, por intermédio deles,
perpetuar suas identidades, seus valores, suas tradições, suas culturas”52.
Embora tenhamos que concordar que tais estratégias não representam uma
relação causal, já que os envolvidos são também sujeitos, agentes históricos ativos,
não podemos afirmar que o que está ‘nos’ textos é realmente ensinado. Nempodemos achar que o que é ensinado é realmente aprendido. Como mostro nadescrição que faço de algumas salas de aula, (...) os professores têm uma longahistória de mediar e transformar o material dos textos quando os empregam na salade aula. Os estudantes trazem consigo, também, suas biografias de classe, raça,religião e gênero. Eles, também, aceitam, reinterpretam e rejeitam seletivamente oque é considerado como conhecimento legítimo. Como etnografias críticas têmmostrado, (...) os estudantes (e os professores) não são recipientes vazios no qual
o conhecimento é derramado. Muito mais do que receptores num processo deeducação bancária, assim chamada por Freire, os estudantes são ativosconstrutores de significados da educação que enfrentam.53
O painel das pesquisas sobre livros didáticos no Brasil54, contudo, aponta
noutra direção.
De modo bastante abrangente podemos dividir as pesquisas sobre livros
didáticos no Brasil em dois grandes blocos55. O primeiro percorre uma temporalidade de
trinta anos, ou seja, dos finais dos anos 1950 a finais dos anos 80 marcado por análises
tipicamente ideológicas, enquanto o segundo inaugura os anos 90, submetido às teses
culturalistas de Roger Chartier56 e Robert Darnton que apresentam o livro didático na
lógica da história do livro, ou seja, sua produção, distribuição e consumo. A ideologia cede
lugar à racionalidade do mercado e à sua suposta isenção, como se o editor de livro
didático publicasse qualquer coisa que lhe desse lucro, desde que houvesse demanda,
típica equação capitalista, que a tudo reifica. Chamo a atenção para os signos fundantes
52 Choppin, Alain. Manual scolaires, etats te societe (XIXeme-XXeme siècles). Histoire de l´educacions. Paris, INRP,n.58, mai 1993, p.19.53 Apple, Michael W. Conhecimento oficial. A educação democrática numa era conservadora. Petrópolis, Vozes, 1997,p.55.54 Entre 1981 e 1998 e seguindo a base de dados da ANPED, foram produzidas 114 teses e dissertações cujo tema é olivro didático no Brasil.55 Até certo ponto, quem já havia percebido esta polaridade foi Antonio Augusto Gomes Batista em texto Um objetovariável e instável: textos, impressos e livros didáticos. In: Campanello, Bernardete Santos et alii. Formas de expressãodo conhecimento: introdução às fontes de informação. Belo Horizonte, Faculdade de Biblioteconomia da UFMG, 1998,p.219-247.56 Chartier, Roger et Martin. Henri-Jean. Histoire de l´éditin française. Paris, Promodis, 1982 a 1985 – 4 vol.
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dos anos finais da década de 80, ou seja, o esgotamento da bipolaridade planetária, a
queda do muro de Berlim, o restabelecimento democrático no Brasil. Assim, um dos
objetivos desta pesquisa será confrontar essa produção historiográfica, matizando as
diferenças entre os dois grandes blocos e os componentes de cada bloco.
O primeiro trabalho de pesquisa sobre livros didáticos é de Dante Moreira Leite,
cujo título Preconceito racial e patriotismo em seis livros didáticos primários brasileiros , de
1950; depois, só em 1957, com a obra de Brazzanella, Valores e esteriótipos em livros de
leitura , seguido no mesmo ano da obra Estereótipos e valores nos compêndios de história
destinados ao curso secundário de Sérgio Buarque de Holanda, ligados ao Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), sendo que os dois últimos foram feitos sob
encomenda da UNESCO57. Ainda em 1957, sai Um quarto de século de programas e
compêndios de história para o ensino secundário brasileiro (1931-1956)58 , com ênfase às
ações do Estado e aos programas de ensino, sobretudo às reformas que haviam marcado
o período analisado.
O livro de Ana Lúcia G. de Faria, Ideologia no Livro Didático 59 , tem como
proposta perceber como é apresentado o conceito de trabalho em livros didáticos de
“Comunicação e Expressão”, “Educação Moral e Cívica” e “Estudos Sociais”, da 2ª a 4ª
séries, em 35 dos títulos mais vendidos de 1977. A autora considera sua fundamentação
teórica explicitamente marxista desvelando a estrutura de dominação tipicamente
burguesa, apresentada aqui como atributo da classe dominante.
O livro didático aparece como um dos instrumentos dessa dominação,
operando no interior de uma instituição tipicamente classista, a escola, reprodutora da
lógica da dominação que não se esgotará, “enquanto o dominado não dominar o que o
dominador domina”60, ou seja, será justamente na alteração dos conceitos trabalhados
pelo livro didático que reside a mudança.
57 Rosemberg, Fulvia; Chirley, Bazilli; Baptista, Vinicius. Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: umarevisão da literatura. Texto ainda inédito a sair pela Revista de Educação da USP.58 Hollanda, Guy de. Um quarto de século de programas e compêncios de História para o ensino secundário brasileiro (1931-1956). Rio de Janeiro, INEP/MEC, 1957.59 Faria, Ana Lúcia G. de. Ideologia no livro didático. S.Paulo, Cortez, 1989.60 Faria, Ana. op.cit. p.79
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Não vamos ficar de braços cruzados esperando a mudança do modo de produção,nem vamos jogar fora o livro didático, nem continuar – nós também – transmitindopara os alunos a ideologia dominante.61
O livro de M.L.C.D. Nosella, As belas mentiras, encampa discurso semelhante,
exceto por dar ênfase ao afastamento da realidade concreta, de sua condição
eminentemente arcaica.
Na mesma linha, Maria Kátia Abud assim inicia seu texto O livro didático e a
popularização do saber histórico :
Salienta-se muito o papel do professor e da escola na difusão e manutenção daideologia da classe dominante. Poderíamos acrescentar que, para isso, tanto aescola como o professor contam com um importante elemento de veiculação: o livrodidático.62
Esse livro, que, muitas vezes, será o único lido por uma grande parte das
pessoas que freqüentam escolas, constitui-se numa história povoada de vultos históricos
e de fatos que, encadeados, tornam-se a própria história do Brasil. Da mesma forma
como instrui os alunos, instrui também os professores, que se pautam em suas
informações para o preparo das aulas.
Para a autora, o grande problema é que tais procedimentos acabam
instaurando a História Factual, que
se crê objetiva, verdadeira – e de fácil assimilação pelo educando, porque não seexplicam nem se analisam os fatos, que são apenas narrados, constituindo em simesmos o cerne da História.63
Como nos casos anteriores, trata-se apenas de alterar o procedimento. O fato
está dado, basta analisar mais criteriosamente. Um pouco mais adiante, a autora deixa
claro que tais simplificações são próprias dos livros didáticos voltados para o 1º grau. Já
os de 2º grau, dado o amadurecimento dos alunos, incorporam produções e inovações
historiográficas produzidas na universidade.
61 Idem, ibidem, p.84.62 Abud, K. In: Silva, Marcos A. da. Repensando a História. Rio de Janeiro, Ed. Marco Zero, s/d. pp.81.63 Idem, ibidem, p.82.
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Em 1986, um grupo de professoras avançou significativamente em suas
reflexões sobre o papel tanto da escola quanto dos livros didáticos. Conceição Cabrini,
Helenice Ciampi, Maria do Pilar Vieira, Maria do Rosário Peixoto e Vavy Pacheco Borges
lançaram o livro Ensino de História, revisão urgente 64 .
Nesse texto a relação professor-aluno é definida como uma relação de
autoridade e de poder, delimitado pelo saber de um diante do não-saber do outro. Da
mesma forma, a relação entre o ensino, a pesquisa, a produção do 3º grau, quando
chegam nas séries inferiores conferem outras instâncias de poder e submissão.
Geralmente, o que é apresentado aos alunos são conteúdos já cristalizados noensino da história e que parecem muito distantes da realidade imediata por elesvivida. Talvez já há décadas ouvem-se reclamações, em todos os graus de ensino,
de ‘não se passar da Segunda Guerra Mundial’ ou da ‘Revolução de 30’...Em outraspalavras, os alunos reclamam uma história que, para eles, tenha a ver com o seupresente, com a realidade que conhecem um pouco mais de perto. No entanto, éuma história acabada, ‘verdadeira’, cujo conteúdo parece distante no tempo, que éapresentada aos alunos. Não parece necessitar que eles a repensem: é aceitá-la econsumi-la, quem sabe para quê?...Esse é o ensino da história que prevalece hojenas escolas de 1º e 2º graus, e que nós, professores de universidade, muitofreqüentemente, acabamos por reforçar, ao desenvolver no 3º grau um ensinosemelhante. Temos consciência de que mudar tudo isso será uma longa luta [daqual estamos vivendo apenas o início] e que, como tudo o que se refere ao ensino,tem de ser levada simultaneamente em todos os seus graus.65
É necessário considerar o interesse dos alunos, cunhado em sua própriarealidade, independentemente do grau de ensino a que está submetido. Dessa forma o
aluno seria, também ele, produtor de conhecimento histórico66.
As autoras se insurgem contra a estrutura hierárquica do saber e do não saber:
Ensinar história partindo-se dessa nítida divisão entre o saber e o não saberconfigura um produto acabado e pronto, como que uma verdade absoluta trazidapelo professor ou livro didático ao aluno, cabendo a este último consumi-lopassivamente.67
64 Cabrini, Conceição et alii. O ensino de História, revisão urgente. São Paulo, Brasiliense, 1986.65 Idem, ibidem, p.21.66 Marcos A. Silva aponta a necessidade de unir ensino e pesquisa. Trata-se do mesmo princípio que torna impossíveldissociar, em qualquer nível, pesquisa e ensino. In: Silva, Marcos A. História, o prazer em ensino e pesquisa. SãoPaulo, Brasiliense, 1995.67 Idem, ibidem, p.20-21.
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Carlos Alberto Vesentini, em Escola e livro didático de história 68 , transcrição de
conferência realizada no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense,
em 1982, lança importantes fundamentos para um criterioso enfrentamento da postura
ideológica que impregna esse produto. Seu alerta também vale para nosso tempo:
Tentarei inicialmente relacionar livro didático e escola. Não como mero capricho,seu significado pode ser diferente em contextos diversos. Trata-se de uma certaescola, numa dada situação e onde professores e alunos, por sua vez, padecem depressões igualmente específicas. E desejo observar o livro didático num conjuntode nexos que lhe dão um colorido e um peso, os quais, talvez, em outrascondições, tendessem a outros significados.69
A historicidade do livro didático amplifica um conjunto de relações muito
peculiares, caprichosamente urdidas para uma finalidade: se não aprendemos aperguntar, se nos aferramos a uma realidade sem indagação, na qual tudo está pronto e
acabado, disponível para nosso consumo imediato, sacrificamos não somente nossa
criatividade e autonomia intelectual, mas naturalizamos a obediência70. “Sente-se e cale-
se!”, diz-nos a voz da autoridade, quando todo o imperativo da vida aponta para o
movimento e para a fala, para o crescimento do corpo e do cérebro. “Ouça!” É nessas
condições específicas que esse produto aparece. De certa maneira e a despeito de todas
as mudanças operadas na escola, tais relações têm sido fonte de conflitos crescentes.
Vesentini circunscreve sua análise às escolas públicas da periferia de São
Paulo em inícios dos anos 80, revelando as reações dos alunos ao autoritarismo e à
burocracia. Hoje, vinte anos depois, as relações ainda mais se deterioraram e se tornaram
dramáticas, superando em muito a indisciplina e o desrespeito de então. Os conflitos na
escola têm levado não poucos atores à morte.
Não me parece que essa situação seja decorrente de mera inabilidade do
professor, de incompetência da direção das escolas, ou da falta de normasadequadas por parte do Estado. Há mais. É que esse espaço é político e neleexpressa-se a dominação.71
68 In: Silva, Marcos A. Repensando a história. Rio de Janeiro, Marco Zero, s/d.69 Idem, p.70.70 A escola ainda conserva o mesmo sinal criado para preparar os futuros operários aos apitos reguladores da fábrica queem inícios do século XX regulavam o comportamento esperado dos alunos.71 Idem, p.72.
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Marilena Chauí considera esse nó que extrapola a dominação como uma
simples estratégia de classes.
À medida que a complexidade da vida social cresce no modo de produção
capitalista e nas formações históricas ditas ‘socialistas’, o Estado se expande emtodos os setores, encarregando-se de uma parte considerável da vida humana, detal modo que, por sua mediação, o tecido da sociedade civil torna-se cada vez maiscerrado e encerrado sobre si mesmo. A ideologia dispõe, então, de um recurso paraocultar essa presença total ou quase total do Estado na sociedade civil: o discursoda Organização.72
Com o discurso da organização e suas estruturas bastante reais, a hierarquia
se pulverizou por toda a sociedade, escamoteando pela função aquilo que é ainda e mais
do que nunca a dominação. Daí ser preciso refinar como um falso problema as oposições
elite-massa ou elite-popular como hierarquias historicamente datadas e de há muito
introjetadas pela estratégia organizacional nas relações pautadas por miríades de
micropoderes. Hoje poderíamos afirmar que tal emanação se deve à onipotência do
mercado como o espaço legítimo das organizações.
Embora disponível a todo ser, a dominação produz e reproduz privilégios de
casta que, no caso brasileiro, apresenta um dos mais profundos fossos sociais do mundo.
Uma estratégia, dentre muitas, torna a dominação plausível:
A idéia de um saber definido, pronto, acabado, acompanhado do ‘lugar dacompetência’ (existe sempre quem já sabe) parece-me uma delas, clara no ensinode história. Quando esse saber e essa ‘competência’ formam uma hierarquia, aimplicação imediata é a contínua possibilidade da transferência da reflexão, daanálise, do reexame, para outra instância da mesma cadeia. Sei a violência de dizeristo, mas não consigo afastar a impressão de que a interiorização do conhecimentocomo pronto, acabado, já localizado em algum lugar, tratando-se apenas deapreendê-lo, acumplicia-se com aversão à reflexão e com acriticismo. E não sei seo transferir a responsabilidade do pensar não implica aceitar a transferência deoutras responsabilidades.73
Entramos num terreno que torna legítimo o poder do professor sobre o aluno, já
que, sob essa perspectiva, existe um conhecimento “correto” sobre o qual não há
discussão.
72 Chauí, M. op.cit., p.8-9.Texto apresentado primeiramente na 29ª reunião anual da SBPC, em 1977.73 Idem, ibidem, p.72-73.
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Como expressão de recusa talvez reste o grito. Mas quem grita contra esse
desígnio?
No discurso acadêmico não há lugar para o grito. Mais do que isso: o estudo
acadêmico nos proporciona uma linguagem e uma maneira de pensar que dificultaainda mais a expressão do nosso grito. O grito, se é que aparece, o faz sob a formade algo que deve ser explicado, não como algo a ser articulado. De sujeito danossa pergunta pela sociedade se converte no objeto da análise. Por que gritamos?Ou melhor, dado que agora nós somos cientistas sociais, por que eles gritam?74
Entre os anos de 1986 e 1987 um grupo de projetos financiados pelo