A Força Normativa da Constituição - Conrad Hesse

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A Fora Normativa da Constituio

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TRADUO E NOTAS DE GILMAR FERREIRA MENDES

A Fora Normativa da Constituio

KONRAD HESSE

Em 16 de abril de 1862, Ferdinand Lassalle proferiu, numa associao liberal-progressista de Berlim, sua conferncia sobre a essncia da Constituio (Uber das Verfassungswesen) .Gesammelte Reden und Schriften, org. e introduo de Eduard Bernstein

11(1919), p. 25 s.. Segundo sua tese fundamental, questes constitucionais no so questes jurdicas, mas sim questes polticas. que a Constituio de um pas expressa as relaes de poder nele dominantes: o poder militar, representado pelas Foras Armadas, o poder social, representado pelos latifundirios, o poder econmico, representado pela grande indstria e pelo grande capital, e, finalmente, ainda que no se equipare ao significado dos demais, o poder intelectual, representado pela conscincia e pela cultura gerais. As relaes fticas resultantes da conjugao desses fatores constituem a fora ativa determinante das leis e das instituies da sociedade, fazendo com que estas expressem, to-somente, a correlao de foras que resulta dos fatores reais de poder; Esses fatores reais do poder formam a Constituio real do pas. Esse documento chamado Constituio - a Constituio jurdica - no passa, nas palavras de Lassaile, de um pedao de papel (em Stck Papier). Sua capacidade de regular e de motivar est limitada sua compatibilidade com a Constituio real. Do contrrio, torna-se inevitvel o conflito, cujo desfecho h de se verificar contra a Constituio escrita, esse pedao de papel que ter de sucumbir diante dos fatores reais de poder dominantes no pas.

Questes constitucionais no so, originariamente, questes jurdicas, mas sim questes polticas. Assim, ensinam-nos no apenas os polticos, mas tambm os juristas. Tal como ressaltado pela grande doutrina, ainda no apreciada devidamente em todos os seus aspectos afirma Georg Jellinek quarenta anos mais tarde , o desenvolvimento das Constituies demonstra que regras jurdicas no se mostram aptas a controlar, efetivamente, a diviso de poderes polticos. As foras polticas movem-se consoante suas prprias leis, que atuam independentemente das formas jurdicas Verfassungsnderung und Verfassungswandlung (1906), p. 72.

Evidentemente, esse pensamento no pertence ao passado. Ele se manifesta, de forma expressa ou implcita, tambm no presente. verdade que hoje ele surge apenas de forma mais simplificada e imprecisa, no se atribuindo relevncia maior conscincia e cultura gerais, tambm contempladas por Lassalle como fatores reais de poder. A concepo sustentada inicialmente por Lassalle parece ainda mais fascinante se se considera a sua aparente simplicidade e evidncia, a sua base calcada na realidade o que torna imperioso o abandono de qualquer iluso bem como a sua aparente confirmao pela experincia histrica. E que a histria constitucional parece, efetivamente, ensinar que, tanto na prxis poltica cotidiana quanto nas questes fundamentais do Estado, o poder da fora afigura-se sempre superior fora das normas jurdicas, que a normatividade submete-se realidade ftica. Pode-se recordar, a propsito, tanto o conflito relativo ao oramento da Prssia (Budgetkonflikt), referido por Lassalle, como a mudana do papel poltico do Parlamento, subjacente resignada afirmao de Georg Jellinek, ou ainda o exemplo da debacle da Constituio de Weimar, que, em virtude de sua evidncia, revela-se insuscetvel de qualquer contestao.

Considerada em suas conseqncias, a concepo da fora determinante das relaes fticas significa o seguinte: a condio de eficcia da Constituio jurdica, isto , a coincidncia de realidade e norma, constitui apenas um limite hipottico extremo. E que, entre a norma fundamentalmente esttica e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tenso necessria e imanente que no se deixa eliminar. Para essa concepo do Direito Constitucional, est configurada permanentemente uma situao de conflito: a Constituio jurdica, no que tem de fundamental, isto , nas disposies no propriamentte de ndole tcnica, sucumbe cotidianamente em face da Constituio real. A idia de um efeito determinante exclusivo da Constituio real no significa outra coisa seno a prpria negao da Constituio jurdica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional est em contradio com a prpria essncia da Constituio.

Essa negao do direito constitucional importa na negao do seu valor enquanto cincia jurdica. Como toda cincia jurdica, o Direito Constinicional cincia normativa; Diferencia-se, assim, da Sociologia e da Cincia Poltica enquanto cincias da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relaes fticas altamente mutveis, no h como deixar de reconhecer que a cincia da Constituio jurdica constitui uma cincia jurdica na ausncia do direito, no lhe restando outra funo seno a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional no estaria a servio de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe to-somente a miservel funo indigna de qualquer cincia de justificar as relaes de poder dominantes. Se a Cincia da Constituio adota essa tese e passa a admitir a Constituio real como decisiva, tem-se a sua descaracterizao como cincia normativa, operando-se a sua converso numa simples cincia do ser. No haveria mais como diferen-la da Sociologia ou da Cincia Poltica.

Afigura-se justificada a negao do Direito Constitucional, e a conseqente negao do prprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto cincia, se a Constituio jurdica expressa, efetivamente, uma momentnea constelao de poder. Ao contrrio, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituio contm, ainda que de forma limitada, uma fora prpria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questo que se apresenta diz respeito fora normativa da Constituio. Existiria, ao lado do poder determinante das relaes fticas, expressas pelas foras polticas e sociais, tambm uma fora determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa fora do Direito Constitucional? No seria essa fora uma fico necessria para o constitucionalista, que tenta criar a suposio de que o direito domina a vida do Estado, quando, na realidade, outras foras mostram-se determinantes? Essas questes surgem particularmente no mbito da Constituio, uma vez que aqui inexiste, ao contrrio do que ocorre em outras esferas da ordem jurdica, uma garantia externa para execuo de seus preceitos. O conceito de Constituio jurdica e a prpria definio da Cincia do Direito Constitucional enquanto cincia normativa dependem da resposta a essas indagaes.

Uma tentativa de resposta deve ter como ponto de partida o condicionamento recproco existente entre a Constituio jurdica e a realidade poltico-social A questo aqui apresentada sobre a fora normativa no constitui indagao da teoria das fontes jurdicas. No decisivo, assim, definir se princpios do direito suprapositivo podem integrar a Constituio jurdica. A problemtica subsiste mesmo em caso de uma resposta afirmativa. (1.). Devem ser considerados, nesse contexto, os limites e as possibilidades da atuao da Constituio jurdica (2.). Finalmente, ho de ser investigados os pressupostos de eficcia da Constituio (3.).

1. O significado da ordenao jurdica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas ordenao e realidade forem consideradas em sua relao, em seu inseparvel contexto, e no seu condicionamento recproco. Uma anlise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro aspecto, no se afigura em condies de fornecer resposta adequada questo. Para aquele que contempla apenas a ordenao jurdica, a norma est em vigor ou est derrogada; No h outra possibilidade. Por outro lado, quem considera, exclusivamente, a realidade poltica e social ou no consegue perceber o problema na sua totalidade, ou ser levado a ignorar, simplesmente, o significado da ordenao jurdica.

A despeito de sua evidncia, esse ponto de partida exige particular realce, uma vez que o pensamento constitucional do passado recente est marcado pelo isolamento entre norma e realidade, como se constata tanto no positivismo jurdico de Escola de Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no positivismo sociolgico de Carl Schmitt 4. Expressivos exemplos dessa forma de pensar podem ser identificados em P. Laband, Das Staatsrecht des Deutschen Reiches (5a. ed. 1911) 1 p. IX s.; G. Jellinek, Aligemeine Staatslehre (3a. ed. 1921) p. 20, 50 s.; C. Schmitt, Verfassungslehre (1928), p. 22 s.. Os efeitos dessa concepo ainda no foram superados. A radical separao, no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) no leva a qualquer avano na nossa indagao. Como anteriormente observado Cf. v.g. G. Leibholz, Verfassungsrecht und Verfassungswirklichkeit, edio reduzida, agora, in: Strukturprobleme der modernen Demokratie (1958), p. 279 s.; H. Ehmke, Grenzen der Verfassungsnderung(1953), p. 33; Chr. Grafv. Crockow, Die Entscheidung (1958), p. 65 s., essa separao pode levar a uma confirmao, confessa ou no, da tese que atribui exclusiva fora determinante s relaes fticas V.g.: G. Jellinek, Verfassungs nderung und Verfassungswandlung, cit., e Aligemeine Staatslehre, p. 359; C. Schmitt, politische Theologie (2a. cd., 1934), p. 18 s. Quanto crtica ao Formalismo e ao Positivismo, o necessrio foi dito j Epoca de Weimar, principalmente por E. Kaufrnann, R. Smend, H. Heiler e G. Hoistein. Cf., a propsito, as referncias bibliogrficas indicadas na nota 7 e, particularmente, ainda H. Heiler, Be merkungen zur staats- und rechtstheoretischen Problematik der Gegenwart, AR NF 16 (1929), p. 321 s., erp especial p. 343 5.. Eventual nfase numa ou noutra direo leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre o abandono da normatividade em favor do domnio das relaes fticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da realidade, de outro. Essa via somente poder ser encontrada se se renunciar possibilidade de responder s indagaes formuladas com base numa rigorosa alternativa.

A norma constitucional no tem existncia autnoma em face da realidade. A sua essncia reside na sua vigncia, ou seja, a situao por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretenso de eficcia (Geltungsanspruch) no pode ser separada das condies histricas de sua realizao, que esto, de diferentes formas, numa relao de interdependncia, criando regras prprias que no podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condies naturais, tcnicas, econmicas, e sociais. A pretenso de eficcia da norma jurdica somente ser realizada se levar em conta essas condies. H de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto , as concepes sociais concretas e o baldrame axiolgico que influenciam decisivamente a conformao, o entendimento e a autoridade das proposies normativas.

Mas, esse aspecto afigura-se decisivo a pretenso de eficcia de uma norma constitucional no se confunde com as condies de sua realizao; a pretenso de eficcia associa-se a essas condies como elemento autnomo. A Constituio no configura, portanto, apenas expresso de um ser, mas tambm de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condies fticas de sua vignia, particularmente as foras sociais e polticas. Graas pretenso de eficcia, a Constituio procura imprimir ordem e conformao realidade poltica e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relao a ela, no se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficcia das condies scio-polticas e econmicas. A fora condicionante da realidade e a normatividade da Constituio podem ser diferenadas; elas no podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.

2. Para usar a terminologia acima referida, Constituio real e Constituio jurdica esto em uma relao de coordenao . A despeito de todas as diferenas de ponto de vista, essa concepo da estrutura do direito no se perdeu no passado recente e no presente. Cf.v.g. O. Gierke, Die Grundbegriffe des Staatsrechts und die neuesten Sta atstheorien ZgesStW 30 (1874), p. 159; E. Huber, Recht und Rechtsverwir klichung (2. ed., 1925), p. 31 segs; 281 segs; E. Kaufmann, Das Wesen des Volkerrechts und die clausula rebus sic stantibus (1911) passim, especialmente p. 102 s., 107 s. 115, 125 s, 129 s.; idem, Untersuchungsausschuss und Staatsgerichtshof (1920), p. 68; resumindo e particularmente impressionante, com certeza, com uma tendncia fundamental pata harmoniza o: Kritik der neukantischen Rechtsphilosophie (1921) passim; D. Schin dler, Verfassungsrecht und soziale Struktur (3a. ed., 1950); com particular clareza: H. Heller op.cit. e Staatslehre (1934) passim, particularmente, p.184 s.; U. Scheuner, Beitritt der Bundesrepublik zur europischen Vertei digungsgemeinschaft und Gmndgesetz, Rechtsgutachten in: Der Kampf um den Wehrbeitrag 11(1953), p. 101 5.; idem, Grundfrage des mdernes Staates in: Recht, Staat und Wirtschaft III (1951), p. 134; J. Wintrich, Uber Eingenart und Methode verfassungsgerichtlicher Rechtsprechung in Verfassung und Verwaltung in Theorie und Wirklichkeit, Festschrift fr Wilhelm Laforet (1952), p. 229; G. Drig, Art. 2 des Grundgesetzes und die Generalermchtigung zu allgemeinpolizeilichen Ma/3r A5R 79 (1953/54), p. 67 5.; Idem, Der deutschem Staat im Jahre 1945 und sei ther, Verffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer 13(1955), p. 33 5.; G. Leibholz, Verfassungsrecht und Verfassungswirklich keit, cit. p. 280 s. A teoria da integrao (Integrationskhre) esfora-se pa ra realizaruma aproximao entre norma e fato e reduzir, assim, a necess ria tenso entre ambos, tal como ressaltado por R. Smend (Artikel Integra tionslehre in: Handwrterbuch der Sozialwissenschaften, V, p. 301), na medida em que ela vislumbra o problema como uma questo concernen te substncia especfica do Estado como objeto de disciplina jurdica na Constituio (R. Smend, Verfassung und Verfassungsrecht in: Staatsrecht. liche Abhandlungen (1955), p. 188).. Elas condicionam-se mutuamente, mas no depen dem, pura e simplesmente, uma da outra. Ainda c no de forma absoluta, a Constituio jurdica tem significado prprio. Sua pretenso de eficcia apresenta-se como elemento au tnomo no campo de foras do qual resulta a realidade do Estado. A Constituio aduire fora normativa na medida em que logra idealizar essa pretenso de eficcia. Essa constatao leva a uma outra indagao, concernente s possibilidades e aos limites de sua realizao no contexto amplo de interdependncia no qual esta pretenso de eficcia encontra-se inserida.

Como mencionado, a compreenso dessas possibilidades e limites somente pode resultar da relao da Constituio jurdica com a realidade. No se trata, evidncia, de revelao nova. Ela permanece uma obviedade para a Teoria do Estado do Constitucionalismo, para a qual uma separao entre a Constituio jurdica e o Todo da realidade estatal ainda se afigura estranha. Se estou a analisar corretamente, esse entendimento encontra a sua mais clara expresso nos escritos polticos de Wilhelm Humboldt.

Nenhuma Constituio poltica completamente fundada num plano racionalmente elaborado afirma Humboldt num dos seus primeiros esritos pode lograr xito; somente aquela Constituio que resulta da luta do acaso poderoso com a racionalidade que se lhe ope consegue desenvolver-se. Em outros termos, somente a Constituio que se vincule a uma situao histrica concreta e suas condicionantes, dotada de uma ordenao jurdica orientada pelos parmetros da razo, pode, efetivamente, desenvolver-se. (...) Cuida-se de uma conseqncia acrescenta ele da natureza completamente singular do presente (aus der ganzen Beschaffenheit der Gegenwart). Os projetos que a razo pretende concretizar recebem forma e modificao do objeto mesmo a que se dirigem. Assim, podem eles tornar-se duradouros e ganhar utilidade. Do contrrio, ainda que sejam executados, permanecem eternamente estreis... A razo possui capacidade para dar forma matria disponvel. Ela no dispe, todavia, de fora para produzir substncias novas. Essa fora reside apenas na natureza das coisas; a razo verdadeiramente sbia empresta-lhe estmulo, procurando dirigi-la. Ela mesma permanece modestamente estagnada. As Constituies no podem ser impostas aos homens tal como se enxertam rebentos em rvores. Se o tempo e a natureza no atuaram previamente, como se se pretendesse coser ptalas com linhas. O primeiro sol do meio-dia haveria de chamusc-las Ideen der Staatsverfassung, durch die neue franz Konstitution ve ranlaj3t (1791), Ges. Schriften, organizado pela Preussische Akademie der Wissenschaften 1(1903), p. 78 (Grifos meus)..

Na monografia sobre a Constituio Alem, de dezembro de 1813, desenvolveu Humboldt as seguintes reflexes. As Constituies, afirma, pertencem quelas coisas da vida cuja realidade se pode ver, mas cuja origem jamais poder ser totalmente compreendida e, muito menos, reproduzida ou copiada. Toda Constituio, ainda que considerada como simples construo terica, deve encontrar um germe material de sua fora vital no tempo, nas circunstncias, no carter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento. Afigura-se altamente precrio pretender conceb-la com base, exclusivamnte, nos princpios da razo e da experincia Ges. Schriften 11. p. 99..

Com essas assertivas, logrou Humboldt explicitar os limites da fora normativa da Constituio. Se no quiser permanecer eternamente estril, a Constituio entendida aqui como Constituio jurdica no deve procurar construir o Estado de forma abstrata e terica. Ela no logra produzir nada que j no esteja assente na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Se lhe faltam esses pressupostos, a Constituio no pode emprestar forma e modificao realidade; onde inexiste fora a ser despertada fora esta que decorre da natureza das coisas no pode a Constituio emprestar-lhe direo; se as leis culturais, sociais, polticas e econmicas imperantes so ignoradas pela Constituio, careceria do imprescindvel germe de sua fora vital. A disciplina normativa contrria a essas leis, no logra concretizar-se.

Definem-se, ao mesmo tempo, a natureza peculiar e a possvel amplitude da fora vital e da eficcia da Constituio. A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente. Tal como exposto por Humboldt alhures, a norma constitucional mostra-se eficaz, adquire poder e prestgio se for determinada pelo princpio da necessidade 10. Ideen zu einem Versuch, die Wirksamkeit des Staates zu bestimmen, Ges. Schriften 1, p. 244, 245; Vgl. auch Denkschrift ber Preuens stndis che Verfassung (1819) Ges. Schriften 12, 232.. Em outras palavras, a fora vital e a eficcia da Constituio assentam-se na sua vinculao s foras espontneas e s tendncias dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenao objetiva. A Constituio converte-se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relaes da vida.

Mas, a fora normativa da Constituio no reside, to-somente, na adaptao inteligente a uma dada realidade Com acerto observa G. Ritter sobre esse pensamento de Humboldt, que, estranhamente, nele se encontra muito pouco sbre uma vontade cria tiva capa de estabelecer grandes metas e de lutar para a superao de re sistncias. De qualquer forma, cogita-se muito mais de uma inteligente adequao a uma realidade (Stein - II - p. 260). Tambm R. Smend (Art. - Integrationslehre, p. 301) ressalta enfaticament os perigos de uma concep o constitucional que enfatiza, unilateralmente, o significado das leis ima nentes da matria e que empreste pouco significado .vontade de conformao. A Constituio jurdica logra converter-se, ela mesma, em fora ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituio no possa, por si s, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituio transforma-se em fora ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposio de orientar a prpria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juzos de convenincia, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo; pode-se afirmar que a Constituio converter-se- em fora ativa se fizerem-se presentes na conscincia geral particularmente, na conscincia dos principais responsveis pela ordem constitucional , no s a vontade de poder (Wille zur Macht), mas tambm a vontade de Constituio (Wille zur Verfassung).

Essa vontade de Constituio origina-se de trs vertentes diversas. Baseia-se na compreenso da necessidade e do valor de urna ordem normativa inquebrantvel, que proteja o Estado contra o arbtrio desmedido e disforme. Reside, igualmente na compreenso de que essa ordem constituda mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimao). Assenta-se tambm na conscincia de que, ao contrrio do que se d com uma lei do pensamento, essa ordem no logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantm sua vigncia atravs de atos de vontade . Essa vontade tem conseqncia porque a vida do Estado, tal corno a vida humana, no est abandonada ao surda de foras aparentemente inelutveis. Ao contrrio, todos ns estamos permanentemente convocados a dar conformao vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas. No perceber esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. No abarcaramos a totalidade desse fenmeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se no apenas como problema decorrente dessas circunstncias inelutveis, mas tambm com problema de determinado ordenamento, isto , como um problema normativo.

3. A fora que constitui a essncia e a eficcia da Constituio reside na natureza das coisas, impulsionado-a, onduzindo-a e transformando-se, assim, em fora ativa. Corno demonstrado, da decorrem os seus limites. Da resultam tambm os pressupostos que permitem Constituio desenvolver de forma tima a sua fora normativa. Esses pressupostos referem-se tanto ao contedo da Constituio quanto prxis constitucional. Tentarei enunciar, de forma resumida, alguns desses requisitos mais importantes.

a) Quanto mais o contedo de uma Constituio lograr corresponder natureza singular do presente, tanto mais seguro h de ser o desenvolvimento de sua fora normativa.

Tal como acentuado, constitui requisito essencial da fora normativa da Constituio que ela leve em conta no s os elementos sociais, polticos, e econmicos dominantes, mas tambm que, principalmente, incorpore o estado espiritual (geistige Situation) de seu tempo. Isso lhe h de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e a defesa da conscincia geral.

Afigura-se, igualmente, indispensvel que a Constituio mostre-se em condies de adaptar-se a uma eventual mudana dessas condicionantes. Abstradas as disposies de ndole tcnico-organizatria, ela deve limitar-se, se possvel, ao estabelecimento de alguns poucos princpios fundamentais, cujo contedo especfico, ainda que apresente caractersticas novas em virtude das cleres mudanas na realidade scio-poltica, mostre-se em condies de ser desenvolvido O fato de a Constituio americana estar assentada nesse princpio con figura no a nica, mas, certamente, a fonte essencial de sua incomparvel vitalidade. A constitucionalizao de interessesmomentneos ou particulares exige, em contrapartida, umaconstante reviso constitucional, com a inevitvel desvalorizao da fora normativa da Constituio.

Finalmente, a Constituio no deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua fora normativa num mundo em processo de permanente mudana poltico-social. Se pretende preservar a fora normativa dos seus princpios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderao, parte da estrutura contrria. Direitos fundamentais no podem existir sem deveres, a diviso de poderes h de pressupor a possibilidade de concentrao de poder, o federalismo no pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituio tentasse concretizar um desses princpios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente no mais tardar em momento de acentuada crise que ela ultrapassou os limites de sua fora normativa. A realidade haveria de pr termo sua normatividade; os princpios que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados.

b) Um timo desenvolvimento da fora normativa da Constituio depende no apenas do seu contedo, mas tambm de sua prxis. De todos os partcipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepo anteriormente por mim denominada vontade de Constituio (Wille zur Verfassung). Ela fundamental, considerada global ou singularmente.

Todos os interesses momentneos ainda quando realizados no logram compensar o incalculvel ganho resultante do comprovado respeito Constituio, sobretudo naquelas situaes em que a sua observncia revela-se incmoda. Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que identificado como vontade da Constituio deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar alguns benefcios, ou at a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservao de um princpio constitucional, fortalece o respeito Constituio e garante um bem da vida indispensvel essncia do Estado, mormente ao Estado democrtico. Aquele, que, ao contrrio, no se dispe a esse sacrifcio, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiado, no mais ser recuperado Walter Burckhardt, Kommentar der schweizerichen Bundesverfassung (3a. ed., 1931) p. VIII.

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Igualmente perigosa para fora normativa da Constituio afigura-se a tendncia para a freqente reviso constitucional sob a alegao de suposta e inarredvel necessidade poltica. Cada reforma constitucional expressa a idia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor s exigncias de ndole ftica do que ordem normativa vigente. Os precedentes aqui so, por isso, particularmente preocupantes. A freqncia das reformas constitucionais abala a confiana na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua fora normativa. A estabilidade constitui condio fundamental da eficcia da Constituio.

Finalmente, a Interpretao tem significado decisivo para a consolidao e preservao da fora normativa da Constituio. A interpretao constitucional est submetida ao princpio da tima concretizao da norma (Gebot optlimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princpio no pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsuno lgica e pela construo conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituio, tm a sua eficcia condicionada pelos fatos concretos da vida, no se afigura possvel que a interpretao faa deles tbula rasa. Ela h de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposies normativas da Constituio. A interpretao adequada aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposio normativa dentro das condies reais dominantes numa determinada , situao.

Em outras palavras, uma mudana das relaes fticas pode ou deve provocar mudanas na interpretao da Constituio. Ao mesmo tempo, o sentido da proposio jurdica estabelece o limite da interpretao e, por conseguinte, o limite de qualquer mutao normativa. A finalidade (Telos) de uma proposip constitucional e sua ntida vontade normativa no devem ser sacrificadas em virtude de uma mudana da situao. Se o sentido de uma proposio normitiva no pode mais ser realizado, a reviso constitucional afigura-se inevitvel. Do contrrio, ter-se-ia a supresso da tenso entre norma e realidade com a supresso do prprio direito: Uma interpretao construtiva sempre possvel e necessria dentro desses limites. A dinmica existente na interpretao construtiva constitui condio fundamental da fora normativa da Constituio e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se- inevitvel, cedo ou tarde, a ruptura da situao jurdica vigente.

-III--III-

1. Em sntese, pode-se afirmar: a Constituio jurdica est condicionada pela realidade histrica. Ela no pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretenso de eficcia da Constituio somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A Constituio jurdica no configura apenas a expresso de uma dada realidade. Graas ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade poltica e social. As possibilidades, mas tambm os limites da fora normativa da Constituio resultam da correlao entre ser (Sein) e dever ser (Sollen)

A Constituio jurdica logra conferir forma e modificao realidade. El logra despertar a fora que reside na natureza das coisas, tornando-a ativa. Ela prpria converte-se em fora ativa que influi e determina a realidade poltica e social. Essa fora impe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convico sobre a inviolabilidade da Constituio, quanto mais forte mostrar-se essa convico entre os principais responsveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da fora normativa da Constituio apresenta-se, em primeiro plano, como uma questo de vontade norrnativa de vontade de Constituio (Wille zur Verfassung).

Constatam-se os limites da fora normativa da Constituio quando a ordenao constitucional no mais se baseia na natureza singular do presente (individueille Beschaffenheit der Gegenwart). Esses limites. no so, todavia, precisos, uma vez que essa qualidade singular formada tanto pela idia de vontade de Constituio (Wille zur Verfassung) quanto pelos fatores sociais, econmicos e de outra natureza. Quanto mais intensa for a vontade de Constituio, menos significativas ho de ser as restries e os limites impostos fora normativa da Constituio. A vontade de Constituio no capaz, porm, de suprimir esses limites. Nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituio, pode alterar as condicionantes naturais. Tudo depende, portanto, de que se conforme a Constituio a esses limites. Se os pressupostos da fora normativa encontrarem correspondncia na Constituio, se as foras em condies de viol-la ou de alter-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, tambm em tempos difceis, a Constituio lograr preservar a sua fora normativa, ento ela configura verdadeira fora viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbtrio. No , portanto, em tempos tranqilos e felizes que a Constituio normativa v-se submetida sua prova de fora. Em verdade, esta prova d-se nas situaes de emergncia, nos tempos de necessidade. Em determinada medida, reside aqui a relativa verdade da conhecida tese de Carl Schmitt segundo a qual o estado de necessidade configura ponto essencial para a caracterizao da fora normativa da Constituio. Importante, todavia, no verificar, exatamente durante o estado de necessidade, a superioridade dos fatos sobre o significado secundrio do elemento normativo, mas, sim, constatar, nesse momento, a superioridade da norma sobre as circunstancias fticas.

2. Tudo isso no significa mais do que uma primeira orientao bsica em relao aos problemas anteriormente enunciados. Essa orientao fornece, porm, uma resposta prvia s questes colocadas. A Constituio jurdica no significa simples pedao de papel, tal como caracterizada por Lassalle. Ela no se afigura impotente para dominar, efetivamente, a distribuio de poder tal como ensinado por Georg Jellinek e como, hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se pretende ctico. A Constituio no est desvinculada da realidade histrica concreta do seu tempo. Todavia, ela no est condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituio no deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrrio, existem pressupostos realizveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a fora normativa da Constituio. Somente quando esses pressupostos no puderem ser satisfeitos, dar-se- a converso dos problemas constitucionais, enquanto questes jurdicas (Rechtsfragen). em questes de poder (Machtfragen). Nesse caso, a Constituio jurdica sucumbir em face da Constituio real. Essa constatao no justifica que se negue o significado da Constituio jurdica: o Direito Constitucional no se encontra em contradio com a natureza da Constituio.

Portanto, o Direito Constitucional no est obrigado a abdicar de sua posio enquanto disciplina cientfica. Se a Constituio jurdica possui significado prprio em face da Constituio real, no se pode cogitar de perda de legitimidade dessa disciplina enquanto cincia jurdica. Ele no no sentido estrito da Sociologia ou da Cincia Poltica uma cincia da realidade. No mera cincia normativa, tal como imaginado pelo positivismo formalista. Contm essas duas caractersticas, condicionada tanto pela grande dependncia que o seu objeto apresenta em relao realidarie poltico-social, quanto pela falta de uma garantia externa para a observricia das normas constitucionais Em verdade, esse fato mostra-se mais evidente na Cincia do Direito Constitucional do que em outras disciplinas jurdicas. A ntima conexo, na Constituio, entre a normatividade e a vinculao do direito com a realidade obriga que, se no quiser faltar com o seu objeto, o Direito Constitucional se conscientize desse condicionamento da normatividade. Para que as suas proposies tenham consistncia em face da realidade, ele no deve contentar- se com uma complementao superficial do pensamento jurdico rigoroso atravs da adoo de uma perspectiva histrica, social, econmica, ou de outra ndole R Smend, Ar. Integrationslehre, p.300. Devem ser examinados todos os elementos necessrios atinentes as situaes e foras, cuja atuao afigura-se determinante no funcionamento da vida do Estado. Por isso, o Direito Constitucional depende das cincias da realidade mais prximas, como a Histria, a Sociologia e a Economia.

Isso significa que o Direito Constitucional deve preservar, modestamente, a conscincia dos seus limites. At porque a fora normativa da Constituio apenas uma das foras de cuja atuao resulta a realidade do Estado. E esta fora tem limites. A sua eficcia depende da satisfao dos pressupostos acima enunciados. Subsiste para o Direito uma enorme tarefa, sobretudo porque a fora normativa da Constituio no est assegurada de plano, configurando misso que, somente em determinadas condies, poder ser realizada de forma excelente. A concretizao plena da fora normativa constitui meta a ser almejada pela Cincia do Direito Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada no quando procura demonstrar que as questes constitucionais so questes do poder, mas quando envida esforos para evitar que elas se convertam em questes de poder (Machtfragen).

Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as condies sob as quais s normas constitucionais podem adquirir a maior eficcia possvel propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmtica e da interpretao constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realar, despertar e. preservar a vontade de Constituio (Wille zur Verfassung) que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua fora normativa. W. Hennis ressaltou, corretamente, que, em fac do fascnio e pela fora normativa das relaes fucas, cabe cincia a misso de recordar o significado da fora normativa da Norma (Meinungsforschung und reprsentative Demokratie (1957) p. 52; Cf. tambm W. Kgi, Rechtsfra gen der Volksinitiative auf Parualrevision, in: Verhandlungen des Schweize rischen Juristenvereins, (1956), p. 741 s.

. Essa orientao torna imperiosa a assuno de uma viso crtica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de iluses sobre questes fundamentais para a vida do Estado.

-IV--IV-

Tendo tido oportunidade de conscientizar-nos dessa problemtica, tentarei, finalmente, demonstrar a sua relevncia com base na anlise da ordem constitucional vigente.

Pode-se imaginar que o status dominante repudia, de forma clara, todo e qualquer questionamento da Constituio jurdica. Em verdade, existem elementos que ressaltam o peculiar significado atribudo Constituio jurdica na vida do Estado moderno. A poltica interna afigura-se, em grande medida, juridicizada. A argumentao e discusso constitucional assumem particular significado tanto na relao entre a Unio e os Estados, quanto na relao entre diversos rgos estatais e suas diferentes funes: Embora elas paream, por natureza, refratrias a uma regulamentao jurdica, at mesmo as foras que imprimem movimento e direo vida poltica os partidos polticos esto submetidas ordem constitucional. Os pincpios basilares da Lei Fundamental no podem ser alterados mediante reviso constitucional, conferindo preeminncia ao princpio da Constituio jurdica sobre o postulado da soberania popular O significado superior da Constituio normativa manifesta-se, finalmente, na quase il mitada competncia das Cortes Constitucionais princpio at ento desconhecido , que esto autorizadas, com base em parmetros jurdicos, a proferir a ltima palavra sobre os conflitos constitucionais, mesmo sobre questes fundamentais da vida do Estado. A Constituio no ficou limitada a esses aspectos. At mesmo no mbito do Direito Civil, que antes parecia rigorosamente isolado, assegura-se-lhe, atravs da jurisdio dos Tribunais Federais, uma posio de relevo.

Todo esse complexo no deve ser subestimado. Ns no devemos, todavia, olvidar que estamos colocados, de forma particular, diante do problema relativo fora normativa da Constituio. Tal como acentuado, a fora normativa da Constituio depende da satisfao de determinados pressupostos. atinentes praxis e ao contedo da Constituio. Esses pressupostos no foram ainda totalmente satisfeitos.

Aquela posio por mim designada vontade de Constituio (Wille zur Verfassung) afigura-se decisiva para a prxis constitucional. Ela fundamental, considerada global ou singularmente. O observador crtico no poder negar a impresso de que nem sempre predomina, nos dias atuais, a tendncia de sacrificar interesses particulares com vistas preservao de um postulado constitucional; a tendncia parece encaminhar-se para o malbaratamento no varejo do capital que existe no fortalecimento do respeito Constituio. Evidentemente, essa tendncia afigura-se tanto mais perigosa se se considera que a Lei Fundamental no est plenamente consolidada na conscincia geral, contando apenas com um apoio condicional. As cticas observaes de W. kgi(op. cit. p. 762 e s.) demonstram que essa constatao expressa uma tendncia geral, que no se limita Re pblica Federal da Alemanha e sua pouco tradicional Constituio. Anteriormente, H.Huber, Niedergang des Rechts und Krise des Rechtsstaates, in: Demokratie und Rechtstaat, in: Festgabe fr Z. Giacometti (1953) p. 71 segs e, particularmente, W. Kgi, Die Verfassung als rechtliche Grund ordnung des Staates(1945), p. 9 s.

No menos significativo afigura-se o questionamento da fora normativa de vrias disposies constantes da Lei Fundamental. Muitas vezes foram ressaltadas as tenses existentes entre o Direito Constitucional e a realidade constitucional no sistema da Repblica Federal da Alemanha. Cf. particularmente W. Weber, Spannungen und Krft im westdeutschen Verfassungssystem (2a. ed., 1958). O exemplo mais conhecido ainda que no constitua exemplo fundamental refere-se ao art. 38, I da Lei Fundamental, no qual se estabelece que os deputados do Parlamento alemo so representantes de todo o povo, no estando vinculados a ordens ou instrues A propsito, Cf. sobretudo: G. Leibholz, Der Strukturwandel der modernen Demokratie in Strukturprobleme p. 78segs; especialmente p. 112. No se considera, todavia, que o art. 38 1 da Lei Fundamental deve desempenhar uma nova e essencial funo na moderna democracia instituda pe la Constituio. Ele no est em contradio com o art. 21, seno que con figura uma conseqnia desse dispositivo, particularmente do seu pargrafo 10, 30 perodo, na medida em que assegura a democracia interna nos partidos, garantindo o desenvolvimento intrapartidrio e o processo de li vre formao de opinio pblica. Esse aspecto foi ressaltado por O. Kirch heimer (Parteistruktur und Massendemokratie in Europa, AR 79 (1953 / 54), p. 310 s., 315 s.). Embora passe muitas vezes despercebido, o perigo do, divrcio entre o Direito Constitucional e a realidade amea a um elenco de princpios basilares da Lei Fundamental, particularmente o postulado da liberdade. Este se torna um srio problema no contexto da profunda mudana de concepo de vida do homem moderno, resultante das condies impostas pela sociedade industrial. A propsito, principalmente, H. Freyer, Das soziale Ganze und die Freihet der Einzelner unter den Bedingungen des industriellen Zeitalters (1957); E. Fechner, Die soziologische Grenze der Giundrechte (1954), R. Guardini, Das Ende dei Neuzeit (1950), p. 66 s.

Aqui se encontra o presente confrontado, em toda profundidade, com a indagao sobre a efetividade das normas jurdicas no contexto de uma realidade dominada por correntes e tendncias contraditrias. O questionamento da Constituio no decorre de um estado de anormalidade. Ao contrrio da Constituio de Weimar, a Lei Fundamental (Grundgesetz) promulgada numa poca de inesperado desenvolvimento econmico e sob a influncia de relaes polticas relativamente estveis no foi submetida a uma prova de fora. Como referido, as situaes de emergncia no mbito poltico, econmico ou social configuram a maior prova desse tipo para a fora normativa da Constituio, uma vez que elas no podem ser resolvidas com base no exerccio das competncias convencionais previstas na Constituio. A Lei Fundamental (Grundgesetz) no est preparada para esse embate Cf. a propsito: K. Hesse, Ausnahmezustand und Grundgesetz, DV 1955, 741 s. A crtica desse artigo por A. Hammann (Zur Frage eines Aus nahme- oder Staatsnotstandsrechts, DVBI. 1958, p. 405 segs) no levou em conta os objetivos visados por esse trabalho. Trata-se de uma tentativa de esclarecer a problemtica fundamental e suscitar discusso a propsito,, antes de examinar questes particulares. Por isso, fiz, na introduo do trabalho, uma apresentao exemplificativa e no um catlogo exaustivo das possveis situaes de emergncia, acentuado que, hodiernamente. Esses casos no se deixam mais determinar previamente (p. 741 s.). No me pare ceu, portanto, decisivo emprestar uma determinada conformao ao direi to do estado de necessidade (Recht des Ausnahmezustandes), afigurando- se-me suficiente que o problema seja identificado e levado a srio.

Em virtude da experincia colhida com o art. 48 da Constituio de Weimar, a Lei Fundamental (Grundgesetz) no adotou qualquer clusula especial para o estado de necessidade. Para essas situaes, dispe ela apenas de competncias isoladas e estritamente limitadas, que no se afiguram suficientes para arrostar situaes de perigo relativamente srias . A questo sobre o estado de necessidade no precisava ser decidida definitivamente em 1949, uma vez que, nos termos do Estatuto de Ocupao, esse tema integrava as matrias reservadas competncia das Foras de Ocupao. Nos termos do art. 50 II do Tratado sobre a Alemanha (Deutschlandsvertrag) , essa reserva somente haver de extinguir-se quando as autoridades alems receberem a correspondente autorizao legal, passando a dispor de condies para enfrentar srios distrbios da segurana ou da ordem pblica (II).

Essa autorizao no existe, subsistindo, portanto, a clusula autorizativa da interveno das Foras de Ocupao. Todavia, ela somente deveria tornar-se atual em caso de uma ameaa externa ou de uma agresso contra a Repblica Federal da Alemanha. Outros casos de ameaa para ordem e segurana pblicas ou para a vida constitucional, decorrentes, por exemplo, de profunda crise econmica (wirtschafdicher Norstand) no foram contemplados, pelo menos em primeiro plano, pelo art. 50 do Tratado sobre a Alemanha (Deutschlandsvertr2g,). Resta indagar se as trs Potncias, eventualmente, faro uso de seu poder de interveno. No se pode, portanto, negar que, ressalvadas as excees referidas, a Repblica Federal da Alemanha no dispe de um estatuto jurdico sobre o estado de necessidade (III).

Sem dvida, a existncia de competncia excepcional estimula a disposio para que dela se faa uso. Esse perigo existe. Maiores riscos podero advir, todavia, da falta de coragem de enfrentar o problema. Trata-se de um terrvel engano imaginar que, por no ser esperada, uma ameaa no se dever concretizar. Caso se verifique essa situao, faltar uma disciplina normativa, ficando a soluo do problema entregue ao poder dos fatos. As medidas eventualmente empreendidas podiriam ser justificadas com base num estado de necessida suprapositivo. Ressalte-se que o contedo dessa regra jurdica suprapositiva somente poderia expressar a idia de que a necessidade no conhece limites (Not kennt kein Gebot). Tal proposio no conteria, portanto, regulao normativa, no podendo, por isso, desenvolver fora normativa. Assim, a renncia da Lei Fundamental (Grundgesetz) a uma disciplina do, esta. do estado de necessidade revela uma antecipada capitulao do Direito Constitucional diante do poder dos fatos (Macht der Fakten) O desfecho de uma prova de fora decisiva para a Constituio normativa no configura, portanto, uma questo aberta: essa prova de fora no se pode sequer verificar. Resta apenas saber se, nesse caso, a normalidade institucional ser restabelecida e como se dar esse restabelecimento.

No se deve esperar que as tenses entre ordenao constitucional e realidade poltica e social venham a deflagrar srio conflito. No se poderia, todavia, prever o desfecho de tal em bate, uma vez que os pressupostos asseguradores da fora normativa da Constituio no foram plenamente satisfeitos. A resposta indagao sobre se o futuro do nosso Estado uma questo de poder ou um problema jurdico depende da preservao e do fortalecimento da fora normativa da Constituio, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituio. Essa tarefa foi confiada a todos ns.

Notas do Tradutor

(1) A Lei Fundamental consagrou, no art. 79, III, clusula ptrea que considera inadmissvel qualquer reforma constitucional que pretenda introduzir alterao na ordem federativa, modificar a participao dos Estados no processo legislativo, ou suprimir os postulados estabelecidos nos arts. 1 (inviolabilidade da dignidade humana) e 20 (estado republicano, federal, democrtico e social, diviso de poderes, regime representativo, princpio da legalidade). Segundo a jurisprudncia da Corte Constitucional alem (Bundesverfassungsgericht) essa disposio tem por escopo impedir que a ordem constitucional vigente seja destruda na sua substncia ou nos seus fundamentos, mediante a utilizao de mecanismos formais, permitindo a posterior legalizao do regime totalitrio (BVerfGE 30, 1 (24) (Cf. a propsito, nosso Controle de Constituciona lidade, So Paulo, 1990, p. 96, 100 s.).

(II) Na declarao de 27.09.1968 reconheceram as trs antigas Foras de Ocupao que, com a entrada em vigor da 17a. Emenda Lei Fundamental e da Lei que disciplina o sigilo de correspondncias postais, das comunicaes telegrficas e telefnicas, ter-se-ia verificado a extino do seu direito de interveno (Cf., sobre o assunto, Hesse, Konrad, Grundzge des Ver fassungsrechts, Heidelberg, 16. ed., 1988, p. 286, n 762).

(III) Como ressaltado por Hesse, a Lei Fundamental no estabeleceu, inicialmente, um estatuto sobre o Estado de necessidade. Limitou-se a disciplinar o chamado Estado de necessidade interno (innerer Notstand) (art. 37; art. 91). Competncias mais amplas, nesse aspecto, foram asseguradas pela Reforma Constitucional sobre a Defesa (Verteidigungsnovdle) de 19.03.1956. A Emenda Constitucional n 17, de 24.O6.1 introduziu na Lei Fundamental a base de um estatuto do Estado de necessidade, com a modificao ou a introduo de 28 artigos na Constituio. O Estado de necessidade envolve

(a) Estado de necessidade para afastar ameaas ou perigos advenientes de catstrofes, acidentes graves ou atentados contra a ordem fundamental do Estado liberal-democrtico, no plano federal ou estadual (innerer Notstand); (b) Estado de necessidade determinado por razes externas (usserer Notstand), nos casos de defesa (Verteidigungsfall) (LF, art. 115a par. l e 3), tenso externa (Spanungsfall) ( LF, art. 80a par. 1), ou deciso da Organizao Internacional de Defesa (Bndnisklausel) (LF, art. 80a par. 3). Ademais, prev-se, no art. 81, da Lei Fundamental, o estado de necessidade legislativo (Gesetz gebungsnotstand), em caso de que moo de confiana do Chanceler Federal no seja aprovada pelo Parlamento (art. 68) e, mesmo assim, o Presidente da Repblica no determine a sua dissoluo, configurando a necessidade de formao de um Governo de Minoria. Nesse contexto, se um projeto de lei considerado urgente pelo Governo no for aprovado pelo Parlamento, poder o Presidente da Repblica, com a aprovao do Conselho Federal (Bundesrat), declarar o estado de necessidade legislativo. Nesse caso, rejeitado, uma vez mais, o projeto de lei em apreo, aprovado com modificaes consideradas inaceitveis pelo Governo, ou ainda, se no lograr o Parlamento concluir a deliberao sobre o projeto no prazo de 4 semanas, ter-se- por encerrada a sua tarefa, considerando-se a lei aprovada no casos de sua simples aprovao pelo Conselho Federal (Bundesrat) (LF, art. 81 par. 2).

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