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A forma de vida da mulher brasileira: da transgressão à obstinação
Lilian Maria Marques e Silva1
Resumo
Ancorados na teoria semiótica greimasiana, por meio da leitura de sete letras de
canções2, encontramos textos que nos permitiram observar as práticas semióticas do
cotidiano feminino cujas formas de vida se diferem das mulheres submissas3, sendo
uma forma de vida estabelecida pela sociedade patriarcal. Assim, descrevemos acerca
da mulher que rompe com o cotidiano e com os preceitos morais, quebrando diversos
tabus e paradigmas. Temos por objetivo, observar a ruptura do sujeito mulher (ora
enunciado, ora enunciador do texto) com a rotina estabelecida e que provoca um
acontecimento, gerando uma nova forma de vida. A mulher moderna que rompe com o
cotidiano, com os comportamentos e com as escolhas axiológicas daquelas que se
submetem à figura do homem ou daquelas que têm como forma de vida a exclusão,
configura uma nova forma de vida.
Palavras-chave: Letras de canções brasileiras. Forma de vida. Mulher. Transgressão.
Obstinação.
Abstract
While reading seven song lyrics4, we find texts that allowed us to observe the semiotic
practices of women whose everyday life forms differ from submissive women5. Thus, we
1 Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Araraquara - Faculdade de Ciências e Letras – Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa – Rua José Justino Alves Taveira, 5125 – Residencial Ana Dorothea – CEP 14412-216 - Franca - SP – Brasil. [email protected]. 2 As letras de canções analisadas são: Cabocla Tereza; Errei sim; Garota de Ipanema; Uma vida só (pare de tomar a pílula); Malandragem; Pagu e Desconstruindo Amélia. 3 Entende-se por “mulheres submissas” àquelas que eram subservientes e obedientes aos seus maridos (como seus “donos”), pois sempre existiu “culturalmente” o estereótipo de que mulher ideal era a dita “Amélia – a mulher de verdade”. 4 Analyzed song lyrics are: Cabocla Tereza; Errei sim; Garota de Ipanema; Uma vida só (pare de tomar a pílula); Malandragem; Pagu and Desconstruindo Amélia.
describe about the woman who breaks with the everyday and the moral precepts
established by patriarchal society , breaking many taboos and paradigms. To suffer this
rupture, the subject woman (sometimes enunciation, sometimes enunciator of the text),
causes an event, generating a new form of life. The modern woman who breaks with the
daily life, the behaviors and the axiological choices of those who undergo human figure
or those whose form of life the exclusion, sets up a new form of life.
Keywords: Letters of Brazilian songs. Life form. Woman. Transgression. Obstinacy.
Introdução
O objetivo deste artigo é investigar as diferentes formas de vida do cotidiano
da mulher em canções brasileiras, cujos textos são marcados pela presença da figura
feminina. Observamos, assim, como o sujeito mulher constrói e domina seu espaço no
panorama do contexto brasileiro em busca de uma forma de vida igualitária em relação
ao homem: da submissão à obstinação feminina.
A (sub) missão da mulher transgressora
O adultério foi como um grito de liberdade da mulher brasileira. A letra da
canção Cabocla Tereza, composta por Raul Torres e João Pacífico, em 1940 – mesma
década em que há registros da forma de vida da mulher submissa, como por exemplo, as
canções Emília e Ai que saudade da Amélia. Elegemos esta canção, Cabocla Tereza, de
forma proposital, visto que a figura da cabocla, a “Tereza”, diferentemente da “Emília”
e da “Amélia”, rompe com os padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal e
machista dessa época. Temos, portanto, uma mulher na década de 1940 que rompe
com a rotina, descumpre as regras da mulher como “posse do marido” e transgride
preceitos morais, cometendo o adultério.
Observamos duas vozes enunciativas masculinas em Cabocla Tereza. Uma
delas é de um homem que avista, pela réstia da janela, a morte da Tereza. A outra se
5 It is understood by " submissive women " to those who were subservient and obedient to their husbands (as their "owners " ) , it has always been " culturally " the stereotype that ideal woman was said ' Amelia - a real woman . "
configura no papel temático do companheiro da cabocla. Tereza, sujeito enunciado do
texto, é também um sujeito da ação. Evidenciamos esse sujeito da ação pelo próprio
texto, em que o sujeito enunciador afirma “Por mordi de outro caboclo/Meu rancho ela
abandonou”. Contudo, para compreendermos a essência da enunciação em Cabocla
Tereza, analisamos o seu percurso gerativo de sentido a fim de tornar claro uma forma
de vida da mulher que rompe com os preceitos morais, religiosos, sobretudo culturais,
impostos pela sociedade da década de 1940. Nessa canção temos uma enunciação
marcada por duas vozes enunciativas, sobretudo masculinas. No nível das estruturas
semionarrativas há a quebra do contrato entre marido (sujeito-enunciador) e a esposa
(objeto-valor), o que evidencia que o sujeito-marido não teve a competência para se
manter em conjunção com seu objeto. O enunciador-observador (transeunte) se depara
com uma cena trágica que está sendo cometida pelo sujeito da ação – o homem traído
pela cabocla Tereza. Contudo, o enunciador-observador resolve buscar uma autoridade,
o “dotô”, para averiguação dos fatos.
O programa narrativo se desenvolve a partir do momento em que o sujeito da
ação descobre que está sendo traído pela Tereza. Essa “substituição” do companheiro
pelo amante, patemiza esse sujeito pela paixão da cólera, da vingança e, sobretudo, da
honra “traída”. Em Retórica das paixões, Aristóteles traz a paixão da vingança como
uma variante da paixão da cólera:
“Daí o desejo de vingança: a cólera reequilibra a relação proveniente do ultraje, da afronta, do desprezo. A imaginação se exprime no propósito de vingança. Apresenta o problema resolvido e, com isso, satisfaz quem se entrega a ela ao mesmo tempo que é por ela determinado”.(2000, p. XLIII).
Em relação ao programa de vingança desenvolvido pelo sujeito que teve sua
espera frustrada, Barros (1990, p. 70) nos ensina: “Na vingança, o sujeito ‘ofendido’
assume o papel de destinador-julgador e sanciona negativamente o anti-sujeito que não
cumpriu o esperado ou que exerceu um fazer contrário e prejudicial aos seus projetos”.
Para Ditche, Fontanille e Lombardo (2005, p. 64), a cólera é constituída de três
papéis: sujeito, objeto-valor e anti-sujeito. Em Cabocla Tereza, o sujeito é o homem
traído. O objeto-valor é a Tereza e o anti-sujeito é o amante.
A paixão da honra, segundo Ditche, Fontanille e Lombardo no Dictionnaire
des passions littéraires (2005, p.101), nasce de uma sociedade em que essa paixão é um
valor, até mesmo uma obrigação. O indivíduo, assim, pode se inflamar com este valor e
não mais considerar a honra como um dever a cumprir. A partir daí, ele vai tentar se
apropriar desse bem, que para ele, excepcionalmente abalado, torna-se uma glória. Ao
usufruir da paixão da honra, torna-se um sujeito do /querer/. Sem dúvida, ele busca um
objeto abstrato (a própria paixão da honra) que deve ser ocasião de júbilo para esse
sujeito, pois a própria paixão da honra patemiza o sujeito e o modaliza por meio do
/querer/.
No programa narrativo, o sujeito-enunciador, diante ao anti-sujeito e do seu
objeto-valor, apresenta uma performance patemizado pela paixão da cólera e pela
vingança. Assim, modalizado pelo /não-querer/ perder Tereza e por /não-poder/ ficar em
conjunção com seu objeto-valor, sanciona negativamente a cabocla Tereza, revelando,
também, a paixão da honra ferida. A cabocla Tereza é, portanto, uma mulher que se
“apaixona” pelo anti-sujeito. Dessa forma, a traição é configurada pela busca do prazer
dessa mulher. Sobre o prazer, em Passions sans non, Landowski (2004, p.219) observa
sobre o prazer do sentido ao sentido do prazer. O autor diz que esse tipo de moral
implícita pode ser individual e hedônica, ou seja, que o prazer e a felicidade são
prioridades.
Tereza é uma mulher transgressora diante dos padrões da época e, dessa forma,
foi moralizada negativamente, levando o sujeito-enunciador a operar em busca de sua
honra de uma forma proeminente: pela morte de quem tanto amava. Nessa época a
honra era lavada com sangue, ou seja, através da morte. Ainda sobre o adultério
cometido pela mulher, afirma Vasconcellos, no seu artigo Não as matem, publicado pela
Fundação Casa de Rui Barbosa (s/data, p. 2-3, grifos nossos): “No que diz respeito ao
adultério, as Ordenações Filipinas (Livro V, tít. XXXVIII) estabelecem que: ‘Achando
o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como
o adúltero’".
Pereira, em sua obra Direito de Família (1918, p. 107-108), confirma que o
adultério praticado pela mulher (como na canção Cabocla Tereza) era visto como um
crime “maior” perante a um adultério do homem. O homem, durante muito tempo,
transferiu a paixão da honra para a fidelidade de sua mulher e, por esta razão, tinha o
direito de vida e de morte sobre ela. Principalmente na época do Brasil colonial, a lei
permitia que o marido matasse sua própria esposa caso fosse pega cometendo o
adultério. Era o chamado “homicídio autorizado”. Para essa questão do adultério,
cometido pela mulher, conceder o direito do marido a matá-la, existiu um documento
legal, escrito no “Quinto Livro das Ordenações Filipinas”, 5º título nº 37/38, em 1574.
O adultério, por parte da mulher, era tido como um crime de ordem maior e de que
esse “erro” permitia que seu homem/marido a matasse para lavar a sua honra.
A letra de Cabocla Tereza referenda, por parte do enunciador masculino, a
mulher ideal dos anos de 1940, do século XX, na qual ela tinha por obrigação ser
“Amélia”, submissa e não /poder-ter/ o direito de escolha. Se e mulher transgredisse
esses preceitos morais, sociais e culturais, sofria a sanção negativa. Temos, então, a
oposição semântica cujo valor fundamental é a própria honra vs. desonra que nos
revela a sequência canônica da paixão da cólera e que leva o sujeito da ação ao desejo
de vingança. Atrelada à Cabocla Tereza (1940), temos outra mulher transgressora na
década de 1950: a mulher de Errei sim, composta em 1951 por Ataulfo Alves,
encomendada propositalmente pela intérprete Dalva de Oliveira quando já estava
separada de seu esposo Herivelton (SEVERIANO, 2007). Trata-se de um samba-canção
de sucesso6, interpretado pela “musa da década de 1950”, Dalva de Oliveira (2007,
SEVERIANO) que “[...] soube imprimir às canções a dose de sentimentalismo que elas
exigiam”. (SEVERIANO, 2007, p. 279).
Esse texto foi selecionado por nós por ser uma letra de 1951 que traz uma voz
enunciativa feminina, na qual o título da canção é o próprio acontecimento da
enunciação: “a traição”.
O texto de Errei sim nos revela uma confissão de um adultério por parte do
sujeito-enunciador-mulher. A letra da canção é debreada de forma enunciativa, no
tempo presente e em primeira pessoa – o que configura, de fato, uma confissão pessoal.
O espaço da enunciação ora é o doméstico (a casa), ora é “apagado”, não revelando
onde este sujeito enunciador está. Esse espaço “apagado” é a memória discursiva do
próprio sujeito da enunciação.
O enunciador feminino se utiliza do verbo “manchei” como sinônimo de
“traição”. Contudo, relata que o culpado de tal “acontecimento” é do sujeito-enunciado:
um “ele” que cumpre o papel de marido e/ou companheiro.
O sujeito enunciador constrói a forma de vida da mulher moderna, pois
transgride o comportamento esperado pela sociedade na década de 1950, sobretudo pelo
marido.
6 Cf. em SEVERIANO, 2007, p. 280-281.
Patemizada pela paixão da coragem e da ousadia, o sujeito-enunciador-mulher
atualizado, modalizado pelo /querer-poder/ não /ser/ uma mulher submissa que fica à
espera do marido machista, rompe com a rotina de seu cotidiano de “mulher do lar”.
Verificamos, também, que esse sujeito mulher é atualizado e que se mostra dominador,
resoluto e obstinado. É uma forma de vida da mulher moderna marcada pela não-
continuidade, graças ao seu comportamento e à sua escolha axiológica em romper com
sua rotina.
Ainda na segunda estrofe, o enunciador se remete ao sujeito homem para
lembrá-lo que uma mulher não é “presa” a ele apenas por este lhe oferecer casa e
comida – figuras que tematizam o cotidiano de um casal. Mas, que a mulher /quer/ estar
em conjunção com um homem que a valorize e que seja patemizado pela paixão do
amor.
No plano narrativo, temos um sujeito que não cumpre o contrato estabelecido
pelo matrimônio e/ou vida conjugal, pois o “outro” figurativizado pelo papel temático
de marido/companheiro já havia descumprido tal contrato por meio de suas orgias.
Temos, portanto, um sujeito-enunciador-feminino que /não-quer/ estar em conjunção
com o homem, pois seu objeto-valor é a liberdade.
A prática semiótica cotidiana que configura esse sujeito como uma forma de
vida da mulher moderna, na década de 1950 é o próprio ato da traição, na qual esse
sujeito mulher busca essa liberdade de /poder/ de escolha sobre si mesma. É uma
mulher que busca sua própria felicidade e completude humana. Nas palavras de
Lipovetski, essa mulher é “o novo modelo histórico” (1997, p. 227). A mulher realizada
em Errei sim é diretamente oposta às características de uma forma de vida da mulher
submissa – esperada pela sociedade da década de 1950.
Em Errei sim temos um sujeito que se automoraliza de forma eufórica como se
gritasse por sua liberdade, intimando a qualquer pessoa que queira condená-la a lhe
atirar uma pedra. Nos últimos cinco versos da letra da canção Errei sim, o texto faz
alusão ao texto bíblico “A mulher adúltera” em que a figura divina de Jesus diz ao povo
que quer apedrejar a mulher pecadora: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o
primeiro a lhe atirar uma pedra!”7. Por meio dessa analogia entre o texto da canção e o
texto bíblico, evidenciamos que o sujeito-enunciador /quer/ persuadir o enunciatário de
7 Disponível em <http://www.abiblia.org/ver.php?id=6573.> Acesso em 22 jul. 2015.
que é inocente e, assim, se eximir da culpa da traição e de uma possível vingança contra
o sujeito-enunciado (o homem), pagando a traição com a mesma moeda.
Errei sim é um texto que referenda a forma de vida da mulher que os homens e a
sociedade patriarcal tinham como ideal: aquela que ficava em casa, no espaço privado,
que se submetia ao seu marido e cumpria suas vontades. O papel desempenhado pelo
homem é o típico “machista” que se sente o dono da sua mulher e que a adula com joias
para que no plano do parecer ele seja visto como esposo exemplar. Porém, no plano do
ser, constrói um discurso mentiroso diante das orgias e do abandono da esposa no lar.
A mulher moderna em Errei sim /quer/ a não-manutenção dessa relação amorosa
e por isso rompe com a rotina de um casamento frustrado em busca de uma nova de
vida: a mulher obstinada.
A década de 1960 foi a época da garota vanguardista. De acordo com a leitura da
obra de Zuenir Ventura, 1968 – O ano que não terminou (2009), a década de 1960 foi
palco de inúmeras mudanças e revoluções no âmbito sócio-cultural do Brasil e do
mundo, sendo a década que marca, de certa forma, as práticas cotidianas da mulher
brasileira no tocante a sua forma de vida. Vários acontecimentos influenciaram
diretamente no cotidiano da sociedade brasileira e, consequentemente, nas diversas
formas de vida das mulheres dessa década até os dias de hoje.
A mulher vanguardista “que vem e que passa”
A mulher que buscamos discutir por ora é a mulher vanguardista; a que está à
frente de seus tempos e que pode se considerar “um divisor de águas” no que se referem
às formas de vida da mulher diante da época vivida (1960). Para essa análise,
selecionamos a canção Garota de Ipanema, composta em 1962 por Vinícius de Moraes
e Tom Jobim. Nela, observamos o comportamento de uma jovem que se distingue dos
padrões estabelecidos anteriormente: a mulher do espaço doméstico, considerada ideal,
pois sua forma de vida estava pautada na submissão.
Em Garota de Ipanema, a isotopia figurativa da “menina que passa”,
depreende a tematização de um período de transição significativo no tocante à forma de
vida da mulher. Ao nos remeter a essa figura da mulher “que passa pela praia”, nos
lembramos da personagem de Palomar, de Ítalo Calvino, que Greimas analisou em Da
Imperfeição (2002, p. 33). Nessa análise, Greimas trata da questão da descontinuidade e
nos explica, por meio do texto, a cotidianidade da vida em que, em Palomar, um
sujeito-observador masculino admira os passos de uma mulher que anda pela praia. O
descontínuo, nas palavras de Greimas (2002, p. 34, grifos nossos) é “uma verdadeira
fratura [...] interpretada como um desvio [...]”.
Destacamos esse período de transição, pois foi considerado de suma relevância
em diversos aspectos, sobretudo no engajamento das mulheres na sociedade brasileira
(VENTURA, 2009, p. 16).
O que torna a década de 1960 transitória é a quebra de tabus estabelecidos
até então e o desejo de mudanças norteado pela busca da igualdade de gênero - o
verdadeiro período de transição da mulher submissa, inconformada e indecisa que já
estava se descortinando e da mulher moderna, cada vez mais resoluta e obstinada.
Em Garota de Ipanema o sujeito-enunciador descreve com discurso de
admiração a forma sensual de andar dessa moça e tece elogios em relação à cor de sua
pele – dourada. Na significação das cores, o dourado “está simbolicamente associado ao
ouro, à riqueza, a algo majestoso8”. O “balançado” da garota é euforizado quando o
enunciador afirma ser superior a um poema: “O seu balançado é mais que um poema”.
Temos, na enunciação, um sujeito-observador patemizado pela admiração e pelo
encanto. Trata-se de um sujeito que não possui a competência modal de /poder-ter/ a
garota só para ele, pois a “garota de Ipanema” figurativiza a mulher “moderna, dourada
de praia, suave, mas decidida” (FAOUR, 2011, p.123, grifos nossos).
Algo inovador se instaura no panorama brasileiro na década de 1960: a mulher
se permite ocupar o espaço público (a praia). A figurativização, no plano discursivo, do
“passar dessa garota” tematiza o período de transição do comportamento feminino:
antes esperado como “servil, submissa e obediente” e que, na presente cena enunciada,
marca as “mudanças significativas nesse terreno simbólico, epistemológico, individual
fértil das narrativas sobre a condição feminina” (NEGRÃO, 2003, p. 04). De acordo
com Priore (2000, p.578-584), “as mulheres buscavam mostrar que tinham competência
não apenas para administrar o espaço doméstico, mas para conquistar e construir novos
valores sociais, morais e culturais”.
As práticas semióticas que configuram uma mulher vanguardista em 1960 se
resumem no simples gesto de “passar a caminho do mar”, ou seja, uma mulher num
8 Disponível em <http://www.significadodascores.com.br/significado-do-dourado.php)> Acesso em 20 abr.2015.
espaço público e que se permite /ser/ observada por “outros”, utilizando-se de trajes
típicos da praia, no qual é possível notar a figura do seu “corpo dourado” que tematiza a
mulher resoluta e moderna, que vai à praia se bronzear. Essa prática se destaca por não
ser ainda, na década de 1960, uma prática cotidiana (corriqueira) feminina. Dessa
forma, temos uma forma de vida da mulher moderna e que marca um período de
transição entre as mulheres submissas vs. as mulheres contemporâneas. A Garota de
Ipanema revela /ser/ uma mulher que rompe com os tabus e estereótipos estabelecidos
pela sociedade patriarcal e configura uma nova forma de vida da mulher ousada, que
busca /ser/ obstinada e moderna, abrindo as portas para a “nova mulher” passar.
A obstinação como forma de vida da mulher contemporânea
A determinação foi e ainda é a “nova marca registrada” da mulher brasileira.
Apresentamos agora, quatro canções que demonstram a determinação como novo modo
de existência da mulher contemporânea. São elas: Uma vida só (Pare de tomar a
pílula); Malandragem; Pagu e Desconstruindo a Amélia.
O texto de Odair José, de 1970, tem como núcleo da ação narrativa um
enunciador, cuja voz é masculina, modalizado pelo /querer-ser/ pai. Trata-se de um
sujeito modalizado pelo /querer-ser/ pai e pelo /não-poder/ exercer a paternidade, uma
vez que temos a figura da mulher marcada apenas pelos dêiticos dos pronomes pessoais
(você/ela) e pelos pronomes possessivos do caso reto (nossa/nossos/meu). A dêixis
enunciativa actorial cria o simulacro da mulher decidida/resolvida e que se permite ter o
/poder/ da escolha de ser ou não ser “mãe”.
A enunciação é construída por meio da debreagem enunciativa, bem
demarcada pelos verbos no tempo do presente do indicativo e na forma nominal do
gerúndio – o que concretiza a presentificação da cena. Aliado a isso, a utilização de tais
verbos em seus respectivos tempos/modos verbais, criam a instância da enunciação a
partir de suas marcas performativas.
A letra da canção possui uma característica da repetição na composição do
texto, pois o sujeito enunciador /quer/ convencer o sujeito enunciado – a mulher. Dessa
forma, o enunciador utiliza-se da estratégia da manipulação para convencer o sujeito
enunciado, por meio da intimidação “Você diz que me adora [...] Quero ver você
esperando um filho meu”. O enunciador faz uso do verbo “parar” no modo imperativo
(Pare de tomar a pílula), no qual demonstra o seu /querer-poder/ entrar em conjunção
com seu objeto-valor, o filho. Contudo, o sujeito enunciado, cujo papel temático é a
figura da mulher libertária, que se revela dotada do /não-querer-ser/ mãe e /quer-poder/
ter relações sexuais não apenas para ser progenitora da ordem familiar, mas como meio
de sentir prazer. Temos, portanto, um sujeito enunciador que não tem competência e,
assim, não cumpre a função de persuadir sua mulher (sujeito enunciado), o que
desencadeia uma sanção disfórica para este enunciador que termina a enunciação em
disjunção do seu objeto-valor: o filho. A isotopia figurativa, no próprio título da canção
(censurado9) Pare de tomar a pílula, tematiza a liberdade sexual feminina antes não
permitida e nem tão pouco aceita pela sociedade.
Na estrutura profunda do texto encontramos a oposição semântica da repressão
sexual feminina vs. a liberdade sexual feminina. A representação das oposições
semânticas nos revela um sujeito-enunciador patemizado pela paixão do desejo;
enquanto o sujeito enunciado (a mulher) é patemizada pela paixão da ousadia. Haja
vista que entre a década de 1960 e de 1970 o Brasil passava por inúmeras
transformações e implicações no que se refere à figura da mulher na sociedade. De
acordo com Lipovetsky (1997, p. 224):
[...] antes mesmo de a pílula e a irrupção das correntes contestatárias terem desencadeado a revolução dos costumes nos anos 60-70. Esta promoção do sexo é de grande importância. Dado que se, no passado, os homens se mostravam fundamentalmente hostis ao trabalho feminino, isso acontecia devido nomeadamente ao facto de ele estar associado ao desregramento sexual, à ‘sombra da prostituição’. À medida, precisamente, que a liberdade sexual feminina deixava de ser um sinal de imoralidade, de actividade profissional feminina começou a beneficiar de juízos muito mais moderados. (Grifos nossos).
Essas transformações relacionadas à figura da mulher, na sociedade brasileira,
eram inegáveis a despeito do papel e do espaço em que ela foi conquistando, sobretudo,
no cotidiano. A identidade feminina começa a eliminar, então, as máscaras de
moralidade sexual e a criar sentidos para sua a liberdade de “ser”.
9 Ao lançar a canção Pare de tomar a pílula, em 1973, o governo Médici o considerou "perigoso", uma vez que nessa época era desenvolvida uma campanha de controle de natalidade no país. Disponível em <http://www.deverdeclasse.org/news/musicas-proibidas1/.> Acesso em 30.jan.2015.
A década de 1970 foi um período com um determinado valor de conquista na
busca pela igualdade de gênero. Eis a época “da livre posse do eu e desvaloriza o
esquema da subordinação do feminino ao masculino” (LIPOVETSKY, 1997, p. 225).
De acordo com o artigo “Depois do Super Homem, a Mulher Maravilha”
(NEGRÃO, 2003, p. 11), nessa época das transformações, “O orgasmo já era visto
como coisa natural [...].” A mulher que se busca nessa época é a que está em trânsito,
em constantes mudanças, que busca se satisfazer, que é pode e consegue ocupar
diferentes esferas sociais e que não é apenas dotada de uma diferença sexual biológica,
mas de um sujeito capaz.
Em Uma vida só (Pare de tomar a pílula), o sujeito mulher demonstra ter o
controle sobre sua vida sexual indo de encontro aos tabus estabelecidos pela sociedade
da época, sobretudo contrariando a vontade do sujeito-enunciador, figurativizada pelo
seu companheiro/marido. Temos, portanto, uma forma de vida da mulher moderna, que
sabe o que /quer/ e não se submete nem ao seu marido, nem aos ditames impostos pela
sociedade.
Sob a ótica do sujeito-enunciador, a moralização axiológica do sujeito mulher é
negativa, pois ela /não-quer/ o que ele /quer/: conceber um filho. Dessa forma, ela é
sancionada disforicamente – o que evidencia o comportamento ousado da mulher
autônoma e moderna.
Sobre a busca pela satisfação de si mesmo, a canção Malandragem, composta
por Cazuza e Frejat em 1988, nos revela a figura de um indivíduo figurativizada, na
primeira estrofe, por uma “garotinha”. O substantivo no grau diminutivo é utilizado de
forma pejorativa e irônica. Esse recurso gramatical exposto na primeira estrofe do texto
da canção configura um sujeito enunciador dotado do /saber/, pois se revela
decepcionado com o “estado das coisas” no tocante a sua ótica e percepção.
Nas estruturas discursivas, as figuras (substantivadas) “a garotinha, o ônibus, a
escola, os cantos, a menina, o príncipe, o chato, o saco e por fim, a figura da própria
vida” remetem à construção do sentido de um sujeito-enunciador que consegue observar
uma sociedade alienada, que vive a sonhar ao invés de encarar a realidade, muitas
vezes, fria e dificultosa. Faz-se importante destacar que esse texto foi composto durante
um período em que o Brasil passava por inúmeros problemas de ordem social e
financeira. Diante disso, as pessoas optavam por viver nesse “sonho” em que ainda se
/quer-crer/ nas utopias apresentadas na forma do “sonho” coletivo. Dessa forma, cria-se
um simulacro em que a vida se assemelha a um conto de fadas e/ou contos fantásticos,
no qual a “garotinha” ainda acredita na existência do seu príncipe.
O texto de Malandragem está estruturado sob o recurso da debreagem
enunciativa (eu/aqui/agora) e o sujeito-enunciador se encontra fortemente patemizado
pela insatisfação, consequentemente, pela revolta. “A insatisfação se caracteriza pelo
/querer-ser/ e pelo /saber-nãopoder-ser/, ou seja, o sujeito sabe que não vai ter
reconhecida sua grandiosidade. A satisfação, pelo /querer-ser/ e pelo /saber-poder-ser/.”
(SILVA, 2009, p. 58). “A insatisfação conduz ao sentimento de falta, de ausência do
objeto” (CASSIOTORRE. 2001-2004, p. 71).
A paixão da revolta é uma variante da cólera. Bertrand (2007, p.1) discorre
sobre a revolta que podemos chamar de uma “emoção ética”:
Os sentimentos de revolta ou impotência, de compaixão ou de desprezo, de admiração ou de repulsa, o remorso, a vergonha, o arrependimento, a indignação diante do escândalo, etc. Aí estão algumas palavras pelas quais se expressa o movimento de uma emoção ética.” (Tradução nossa10, grifos nossos).
O enunciatário do texto só sabe que a voz enunciativa é feminina ao observar,
na primeira estrofe, a utilização dos substantivos femininos “garotinha”, “sozinha” e
“menina”.
Já na segunda estrofe, o enunciador utiliza o lexema “criança”, que é um
substantivo comum de dois gêneros e, a partir daí, a enunciação se apresenta com uma
voz indefinida ao que se refere o gênero. Esse recurso da construção textual cria o
simulacro de uma voz que /quer/ representar o indivíduo face ao coletivo de uma
sociedade, independente de gênero.
Na terceira estrofe do texto, o sujeito-enunciador busca por meio da
performance a realização de sua própria completude humana para tentar reverter o
estado disfórico da insatisfação.
No nível narrativo, o sujeito-enunciador descreve um momento de
questionamento da própria vida. Ele não aceita sua condição estabelecida pela rotina e
pelo seu modo de existência e, assim, faz inúmeros questionamentos: “Quem sabe eu
10 Texto original: Les sentiments de révolte ou d’impuissance, de compassion ou de mépris, d’admiration ou de dégoût, celui du remords jusqu’à la honte et la repentance, ou celui de l’indignation devant le scandale, etc., voilà quelques termes par lesquels s’exprime spontanément le mouvement d’une émotion éthique.
ainda sou uma garotinha (...)/Quem sabe o príncipe virou um chato(...)/Quem sabe a
vida é não sonhar”, o que configura a insatisfação da maneira como o sujeito-
enunciador observa o “outro” e a sua própria vida. O sujeito “garotinha” de
Malandragem, na última estrofe, dá vazão a um sentimento de frustração atrelado à
rebeldia por não estar em conjunção com a “felicidade fabricada”.
O sujeito-enunciador de Malandragem é também sujeito-destinador de si
mesmo, pois estabelece um contrato fiduciário sob uma nova perspectiva de encarar o
mundo e enxergar a realidade. Trata-se de um sujeito que está disjunto do seu objeto-
valor: a satisfação.
A respeito das modalidades veridictórias, no plano do parecer, o sujeito se
revela insatisfeito e, no plano do ser, se concretiza este estado disfórico da insatisfação.
Portanto, o discurso em Malandragem é verdadeiro. Temos, assim, isotopias actoriais e
temporais que presentificam a cena enunciativa, imprimindo ao texto a modalidade
veridictória da verdade. Contudo, vale ressaltar que não há uma espacialização
explicitada no texto.
Em síntese, o sujeito-enunciador rompe com o paradgma de “menininha boa e
ingênua” que /quer/ /não-crer/ nas ilusões impostas pela vida, como a de que toda garota
deva permanecer no estado de espera pelo seu príncipe encantado. Dessa forma,
compara a figura do “príncipe” à figura do “chato”. Ao utilizar o lexema “saco”, o
sujeito-enunciador /quer/ desconstruir a imagem desta “menininha que reza baixo pelos
cantos” atrelando a ideia de “brutalizar” a si mesmo e viver a realidade.
Durante o percurso da narrativa, temos um sujeito dotado de competências para
realizar a ação e romper com os estereótipos com os quais a sociedade obrigá-la-ia a
/fazer/ o que é programável e aceitável. Temos, então, um sujeito da enunciação que não
se encaixa dentro dos paradigmas da “maioria” da população feminina da época em
questão (final da década de 1980).
Malandragem traduz o sentido da fusão dos termos modais /poder-fazer/, que
corresponde à “liberdade” e a “satisfação”.
O rompimento de paradigmas se torna evidente na construção do segundo
parágrafo em que o texto nos revela as atitudes do sujeito enunciado que se encontra na
busca em atingir a quebra da cotidianidade por meio de uma ruptura, fazendo com que o
sujeito da enunciação seja responsável por uma nova aspectualização do seu próprio
/ser/, totalmente diferente da aspectualização na qual era situada sua condição de /ser/
enunciado que é representado no início da letra da canção.
O sujeito-enunciado faz uso durante toda cena enunciativa de um recurso de
figura de linguagem representado pela ironia. Ele busca alento na figura divina,
clamando por ajuda e redenção. Essa figura de linguagem com a finalidade de ironizar é
perceptível na construção do texto pela forma como o apelo a divindade é apresentada:
o sujeito-enunciador (também enunciado) pede a “deus” um pouco de malandragem e
não a redenção por /ser/ uma menina má. O sujeito é modalizado pelo /querer/ e pelo
/poder-fazer/ e, ainda se configura como um sujeito cognitivo, modalizado pelo /saber/ e
patemizado, somente na última estrofe, pelas paixões da coragem e pela ousadia. O
modo de /ser/ da coragem, mesmo em disjunção do seu objeto-valor, luta e busca a
conjunção por meio da resistência. Só é ousado o sujeito que é patemizado pela
coragem.
A figura “malandragem” nessa letra, no nível discursivo, corresponde ao
significado de “esperta e perspicaz” e recobre o tema da busca da própria felicidade que
permeia toda a enunciação. No nível das estruturas profundas, deparamo-nos com a
construção das oposições semânticas entre a opressão vs. a liberdade e a satisfação vs. a
insatisfação.
O sujeito-enunciador se automoraliza de maneira eufórica, pois de acordo com
o texto, ele possui a competência para mudar significativamente o seu modo de
existência, configurando uma nova forma de vida da mulher resoluta e obstinada –
caracterizada pela mulher que não se conforma ao observar a realidade utópica a sua
volta (do “outro”) e se mostra /ser/ capaz de romper com essa utopia e construir, assim,
uma nova forma de vida pautada na vida como ela é, e não da forma como os “outros”
querem que ela seja.
O sujeito da enunciação na próxima letra que analisamos, Pagu (Zélia Duncan
e Rita Lee, 2000), reforça a questão da mulher determinada e decidida. Pagu se
configura uma mulher determinada em “Sou Pagu indignada no palanque” e uma
mulher moderna em “fama de porra louca, tudo bem”. Mostra-se modalizada pelo
/saber/: “Meu buraco é mais em cima”. A análise da letra da canção se dá por meio da
espacialização, da temporalidade, da actorialização e das isotopias enunciativas que nos
leva apreender a forma de vida do sujeito mulher obstinada. Pagu configura a forma de
vida da mulher moderna e desenvolve o papel temático da “mulher que trabalha” (“Eu
sou pau pra toda obra”), que se compara ou tenta igualar ao homem no que se refere à
capacidade física de /fazer/ (“minha força não é bruta”) e que revela ser desprendida na
questão da sexualidade nos seguintes versos “não sou freira/ nem sou puta”.
Sobre a obstinação, Greimas e Fontanille (1993, p. 63, (grifo dos autores)
explicam que “A ‘obstinação’, definida em língua como ‘disposição para prosseguir
num caminho previamente traçado, sem deixar desencorajar pelos obstáculos’,
apresenta a particularidade de manter o sujeito em estado de continuar a fazer [...].”
Um sujeito modalizado pela obstinação é dotado da modalização de um
/querer-ser/, na qual “o sujeito insiste de todo jeito em ser conjunto e tudo fará para
isso.” (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 63, grifos nossos). Os semioticistas
completam “Embora o conjunto da definição oriente-se por um projeto de fazer, o
dispositivo modal característico da paixão “obstinação” constitui-se por modalizações
do ser; com efeito, um simples querer-fazer”.
Sobre o espaço dado às mulheres nessa época, afirma Corrêa (1993, p.9, grifos
nossos) em seu artigo “A propósito de Pagu”: “[...] diz Wolff: ‘Os espaços pintados por
mulheres, a quem era negado acesso igual ao dos homens à esfera pública, eram
principalmente espaços domésticos’”. O espaço da mulher “Pagu” é tanto doméstico
(“sou rainha do meu tanque”), quanto público, pois se mostra ser uma mulher que
trabalha. Dessa maneira, temos um modo de existência cuja forma de vida é
representada pela mulher moderna.
Na letra da música Pagu, as compositoras utilizaram-se da debreagem
enunciativa, o “eu-aqui-agora”, que produz um efeito de sentido de
realidade/proximidade. Utilizam em toda a canção verbos no tempo do presente do
indicativo: “mexo, remexo, sou, dá, e é”. Esse recurso temporal torna o texto mais
próximo ao enunciatário e, como estratégia de persuasão, temos um texto que simula
uma veridicção verdadeira. O uso do verbo de ligação “ser” (sou, é) torna o texto mais
pessoal, pois esse tipo de verbo possui significação precisa e sempre liga um sujeito a
um predicativo.
Essa figura do passado, metaforicamente, corresponde ao espaço também do
“aqui” que se refere a uma sociedade contemporânea hipócrita, na qual ainda existe
lugar para pensamentos machistas e posturas de pessoas (homens e mulheres) fúteis,
que se preocupam com o aspecto físico do corpo, como se toda brasileira tivesse a
obrigação de ter as nádegas do tamanho grande; os peitos siliconados e com total beleza
(estética) física/exterior. A mulher que não se enquadra nesse padrão de beleza pode ser
queimada na fogueira da inquisição. Contudo, a letra da canção já inicia a enunciação
com um sujeito “mulher” indignada, revoltada, patemizada pela paixão da cólera.
Temos, assim, um sujeito-enunciador moderno, frente a uma cultura machista
instaurada pela sociedade patriarcal. Por isso, o enunciador afirma que “Nem toda
feiticeira é corcunda”, pois as mulheres que encantam são dotadas do /saber/ encantar e
não precisam /fazer/ parte do sistema capitalista, que nos tempos de hoje vende corpo
bonito e “sarado” a todo custo, pois para esse sistema o importante é ser magra (o),
bonita (o) e sensual.
O próprio título da canção cria o efeito de sentido do sujeito/enunciador, de
uma forma de vida: um novo molde de mulher, a mulher ousada, ativa, poderosa,
determinada e moderna. Isso explica o motivo pelo qual a figura de “Pagu” foi
retomada pelas compositoras Rita Lee e Zélia Duncam, nos anos 2000. Elas tentam
criar, despertar o sentido e o sentimento de liberdade feminina e o /poder/ de escolha: a
nova mulher do final do século XX e início do XXI. Patrícia Galvão foi uma mulher à
frente de seu tempo; era dona de seus atos e escandalizava a sociedade da época, assim
como deve /ser/ a mulher moderna.
A paixão da revolta/indignação é uma variante da paixão da cólera que se
manifesta por meio do sujeito-enunciador em toda a canção. Assim, a paixão da cólera
prevê várias variantes consequentes dela mesma, como a rivalidade, a exigência, a
confiança, a espera, a frustração, o descontentamento, a agressividade, a explosão, a
impaciência, a aflição, o ressentimento, o ódio, a agitação, o desespero, o despeito, a
vingança, a inquietude e a revolta. Na letra de Pagu, temos um sujeito-enunciador
patemizado pelas paixões do descontentamento e da revolta, sinônimo de indignação.
De acordo com Houaiss (2004, p.648) a revolta é a “[...]1.Manifestação coletiva contra
qualquer autoridade; motim, rebelião.2.Desordem, tumulto. 3.Sentimento de raiva,
indignação[...]” (grifos nossos). Ainda acerca da indignação, Aristóteles afirma em
“Retórica das Paixões” (2000, p.59): “[...] Opõe-se a compaixão sobretudo o que se
chama indignação [...]”.
No texto, o dêitico “Ela” /quer-ser/ um sujeito libertário, livre de todas as
repressões do passado e censuras e ao mesmo tempo, se coloca como uma figura
feminina superior e/ou igual ao homem. Trata-se de um sujeito mulher simples, comum
e que discorda de todo capitalismo contemporâneo. No texto, há quebras de paradoxos e
paradigmas que se estabeleceram ao longo do tempo entre a mulher de outrora, antiga e
a mulher contemporânea, moderna.
Nos dispositivos das categorias aspectualizantes, temos um actante que é
enunciador, é sujeito do /fazer/ e, ao mesmo tempo, um sujeito cognitivo, pois possui /o
saber/ quando na enunciação reitera com veemência as questões da figura da mulher
moderna e da mulher de outrora. Temos uma forma de vida bem demarcada já no
primeiro verso da letra da canção, pois o sujeito enuncia, ousadamente, que ele mexe e
remexe na inquisição - que significa um aspecto de sujeito provocador. Visto que no
período da inquisição não era permitida a manifestação de ideias e ideais, pois as
mulheres eram vistas como bruxas e feiticeiras, assim, queimadas na fogueira em praça
pública.
É traçada, na letra, uma forma de vida da mulher que contradiz com todo o
sistema patriarcal estabelecido pela sociedade. A comparação com a figura histórica
brasileira de “Pagu” é um recurso enunciativo de aproximação da realidade, para
tornar o texto mais veridictório possível, já que ela foi uma mulher que sofreu torturas
tais quais as da inquisição.
No enunciado “só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão”
evidencia-se que a própria figura do carvão tematiza o sofrimento da mulher daquela
época, pois o carvão nada mais é do que a madeira queimada. Comparam-se as
mulheres ditas hereges, bruxas ou feiticeiras, com a figura do carvão. Assim, se explica
como vivia a mulher de outrora: sem voz e sem vez.
A forma de vida da mulher projetada em “Pagu” é da mulher corajosa,
perigosa, astuta: “Sou mais macho que muito homem”. O sujeito-enunciador subestima
a figura do homem e se impõe, ironicamente, como superior já que por muitos anos a
mulher sempre foi vista como um ser inferior, que servia somente para cuidados
domésticos, satisfação dos desejos sexuais masculinos e para reprodução (progenitora).
A partir da análise das paixões na letra da canção Pagu, depreendemos um
sujeito da enunciação patemizado pela paixão da obstinação, da indignação e pelo
descontentamento que se manifesta pela revolta que se configura ao longo do texto por
meio das figuras de oposição semântica como, por exemplo, “Deus e cobra”; “freira e
puta” e “rainha e tanque”.
A canção Pagu é um texto predominantemente figurativo e recoberto pelos
temas da mulher moderna, simples e inteligente – são essas figuras que criam o efeito de
sentido de verdade do texto.
A letra da canção que analisamos para reforçar a ideia de tudo que já fora
exposto é a configuração de uma nova mulher: a “Amélia” desconstruída. A letra de
Desconstruindo Amélia, composta por Martin Mendonça e Pitty Leone, nos remete
imediatamente à correlação com a letra da canção Ai que saudade da Amélia, de Mário
Lago e Ataulfo Alves. Na verdade, as duas canções tratam do mesmo tema: a mulher.
Contudo, na canção Desconstruindo Amélia temos a desconstrução de estereótipos e a
ruptura com a concepção do conceito “Amélia” - verbete utilizado nos dicionários da
língua portuguesa como sinônimo de mulher submissa e responsável pelo lar.
O próprio título do texto da canção nos revela que a mulher contemporânea
busca destruir e desconstruir a concepção de que se tem em relação às mulheres
submissas, ou seja, uma mulher servil que vive para o homem e para o lar.
No texto da canção, temos a projeção de um sujeito enunciado que ainda se
encontra dentro dos padrões estabelecidos na concepção de mulher caracterizada nos
seguintes versos: “Já é tarde, tudo está certo/cada coisa posta em seu lugar/Filho dorme,
ela arruma o uniforme/Tudo pronto pra quando despertar/[...]Ela foi educada pra cuidar
e servir/De costume esquecia-se dela/Sempre a última a sair”.
O trecho “O ensejo, a fez tão prendada/Ela foi educada pra cuidar e servir”
nos mostra o condicionamento imposto à mulher pela sociedade para que esta seguisse
os preceitos de docilidade e do servilismo que deveriam ser características imanentes da
mulher ideal.
A mulher que /deveria-ser/ o esteio da casa, cuidadora do lar, dos filhos e do
marido. Evidenciamos tais fatos quando analisamos os versos “Já é tarde, tudo está
certo/Cada coisa posta em seu lugar/Filho dorme, ela arruma o uniforme/Tudo pronto
pra quando despertar”.
A mulher em Desconstruindo Amélia, no primeiro momento da enunciação, se
configura como uma mulher criada sob os preceitos da antiga Amélia que deixa de viver
a sua vida em detrimento da vida dos que lhe são próximos. Assim, vive integralmente
para os “outros”, esquecendo-se de si mesma como podemos notar na comparação entre
os trechos de Ai que saudade da Amélia e Desconstruindo Amélia, respectivamente:
“Amélia não tinha a menor vaidade/Amélia é que era mulher de verdade”, “De costume
esquecia-se dela/Sempre a última a sair”. Entretanto, o sujeito mulher acaba se cansando
de viver a rotina em que está. Movida pelo cansaço de todo dia ter de se sujeitar a tal
rotina, rompe com a vida que leva, “Disfarça e segue em frente/Todo dia, até se
cansar/E eis que de repente ela resolve então mudar/Vira a mesa,/Assume o jogo”. Esta
ruptura com a rotina faz com que o sujeito-enunciador vá de encontro com a concepção
de mulher estabelecida e propagandeada por décadas pela canção Ai que saudade de
Amélia.
A partir do processo de ruptura/fratura sofrido pelo sujeito enunciado, sua
concepção pessoal do que era sua vida também muda. Temos, portanto, um
acontecimento: ela passa a assumir o controle da sua própria vida; a viver as inúmeras
discriminações e desrespeitos pelos quais muitas mulheres passam: “A despeito de tanto
mestrado/Ganha menos que o namorado”, mostrando as disparidades entre homens e
mulheres existentes na sociedade ainda nos dias de hoje. Essa busca de igualdade de
gêneros nos revela que a mulher ainda não conseguiu se igualar ao homem no que se
referem os direitos e salários, por exemplo.
O sujeito mulher mostra-se um ser que prefere se inserir em uma sociedade
moderna do que viver como a figura feminina de outrora. Revela-se, portanto, uma
mulher que além de cuidar da casa e de ser mãe, ela /pode/ e /quer/, também, se cuidar.
Modalizada pelo /não-ser/ submissa e ter/buscar uma forma de vida igualitária em
relação ao homem. Trata-se de um sujeito que, após a ruptura, possui uma nova
forma de enxergar a rotina, suas atribuições, e assim, dá uma nova significação a sua
forma de vida.
A figura enunciada representa um indivíduo moderno que busca viver sua vida
da melhor forma possível e que se permite não ocupar apenas o papel temático “mulher
dona de casa”. Ela é um sujeito modalizado pelo /querer-fazer/. Dessa forma, faz valer
sua vontade, representado pelo trecho “Depois do lar, do trabalho e dos filhos/Ainda vai
pra night ferver”.
Considerações finais
A vontade do sujeito “mulher obstinada” de /poder-ter/ liberdade e de /poder/
viver a vida intensamente é perceptível, diferentemente da “mulher submissa”, que
preferia se anular pelos os outros e pelo desejo de ser casada. Os sujeitos das letras
das canções aqui analisadas revelam ter adquirido um amadurecimento pessoal, o que
imprime no texto o molde da mulher moderna. E mais do que amadurecimento pessoal,
mostra como os valores axiológicos no tocante à idade e à época também se
transformam. Hoje em dia, uma mulher de trinta anos já não é mais vista como uma
“senhora”. Isso se deve às conquistas femininas, pois hoje a mulher tem direito de
trabalhar, de se divertir, de escolher sua forma de vida, de se permitir entrar em
conjunção com o prazer sem precisar oficializar uma relação amorosa. Hoje, a mulher
de trinta anos ocupa cadeiras das universidades e cargos privilegiados no mercado de
trabalho.
Esse comportamento resoluto e decidido, cuja prática semiótica do seu cotidiano
é /poder-ser-fazer/ suas próprias vontades é o que define a forma de vida de uma mulher
obstinada e transgressora: uma mulher contemporânea; a figura da própria “Amélia
desconstruída” que se permite /ser/ a dona de sua casa, /ser/ mãe, /ser/ profissional, /ser/
esposa (se quiser) e /ser/ livre, o que nos mostra que a mulher moderna é multifacetada
e /pode/ cumprir diversos papéis temáticos e, ainda sim, /ser/ feliz e realizada.
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