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IX Encontro da ABCP AT: Estudos de Política Externa A FORMAÇÃO DA “POLÍTICA AFRICANA” DO BRASIL Pedro Andrade Matos/PUC-Minas Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX Encontro da ABCP

AT: Estudos de Política Externa

A FORMAÇÃO DA “POLÍTICA AFRICANA” DO BRASIL

Pedro Andrade Matos/PUC-Minas

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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A FORMAÇÃO DA “POLÍTICA AFRICANA” DO BRASIL

Pedro Andrade Matos/PUC-Minas

Resumo do trabalho: No período da Politica Externa Independente (1961-1964), formula-se a “política

africana” do Brasil. Essa política se apresenta de forma singular na história da

diplomacia brasileira, já que não existe, ou raramente é tratada pela literatura outra

política de dimensão continental. Por exemplo, raro se escuta falar de “política

asiática” ou, de “política europeia” do Brasil, dentre outras. Assim, pessoas não

familiarizadas com o tema, pensaria que no caso da África haveria (há) somente uma

politica externa do Brasil programada para quase todos os países do continente.

A proposta do artigo é analisar o que significa a política africana do Brasil. E, se

realmente o país possui uma politica africana; se não, como se pode entender a sua

formulação? A hipótese é que a “política africana” corresponde a um arquétipo

desenhando a partir da década de 1960 que ilustra a imprecisão inicial da política

externa brasileira em definir os seus objetivos e seus alcances;por outro lado, o seu

formato é também resultante da interpretação do quadro da unidade africana forjada

no processo da descolonização, culminando internamente numa imagem traduzida da

"África como um país", suscitando, a partir disso, a elaboração de uma política para

um grande e gigante país: África.

Palavras-chave:África, Brasil, Descolonização, Política Africana,

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Introdução

As relações formais entre Brasil e o continente africano se constituem a partir

de 1970 quando, praticamente, a maioria dos países daquele continente ganha a

independência, com exceção da África do Sul, Namíbia e Rodésia (atual

Zimbabué).Contudo, a inflexão na Política Externa Brasileira para aquele continente se

deu antes, com o governo de Jânio Quadros (1961), ao inaugurar a Política Externa

Independente (PEI) que abarcou também o seu sucessor, João Goulart (1961-1964), e

com respingos até nos primeiros governos militares da década de 1970. Neste viés, a

PEI conferiu bases para a formação da "política africana " do Brasil.

A sua elaboração marcariaa “quebra do silêncio” nas relações Brasil-África e

demostraria que o país desafiara a timidez e constrangimentos impostos pelo Portugal

nas décadas anteriores, natentativa de se lançar no continente e ficar a par de seus

problemas. A partir do governo Quadros depara-se com uma mudança considerável. O

Brasil começa a reconhecer a importância da autodeterminação dos povos do Terceiro

Mundo, esforça-se para um melhor diálogo entre as potências na resolução dos

conflitos coloniais,ainda que de forma tímida sem desafiar com veemência o status

quo; emboramanobras mais afinadas possam ser registradas, principalmente a partir

da década de 1970, quando no governo Médici (1974-1979) o país se torna o primeiro

a reconhecer a independênciade Angola, em 11 de Novembro de 1975; já havia

reconhecida a de Guiné-Bissau em 1974, antes da transferência de poder de Portugal

para o governo do Partido Africano de Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde

(PAIGC). Esses estratagemas inauguram uma nova fase nas relações Brasil-África.

Todavia, ao formular a política africana, conceitualmente o que ela

embute?Equivaleria às relações entre Brasil e a África? Sabe-se que aquele

continente é constituído por 54 países, com configurações internas distintas entre si,

que celebram a diversidade, riqueza de identidades; diante disso, a política africana

cobriria todos os países? E por que somente ela foi cunhada numa dimensão

continental, haja vista que não existiu pelo menos a literatura especializada não

concebeu a política asiática, ou a política americana, ou a política europeiado Brasil.

No entanto, o recorte africano, não foi feito somente pelo Brasil. É comum

encontrar, “política africana” da China, “politica africana” da França, ou “política

africana” dos Estados Unidos. Portanto, resta-se entender como que a África, um dos

maiores continentes do mundo foi-se reduzido ao discurso político ao ponto de ser

rotulado como um grande e um único país. Para isso, torna-se necessárioanalisar

como se processou a unidade africana.

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Neste trabalho, concentra-se na relação Brasil-África; dessa maneira,

interessa-se saber o que realmente foi a política africana do Brasil? Tratou-se de um

baluarte onde conformaria diversos tipos de relações para os países africanos de

acordo com o interesse de cada governo brasileiro?Ou, na sua formulação denota-se

o anseio do país de se apresentar na África, ainda que de forma titubeante, sem uma

definição coesa do seu real interesse e de seus parceiros.Este trabalho advoga que a

formação da política africana deve ser contextualizada não somente pelas

configurações internas brasileiras do período,mas também, pelo quadro da unidade

africana no momento da descolonização do continente.

O recorte temporal do artigo se refere ao período da formulação e

implementação da “política africana” do Brasil, no contexto da Política Externa

Independente (1961-1964).

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Descolonização: a unidade africana e a África imaginada

Na reclamação da África para si mesma, os principais líderes políticos e

intelectuais africanos forjaram vários movimentos, dentre eles, um dos mais

importantes, o Pan-africanismo, como movimento da libertação intelectual e política do

continente do jugo colonial europeu. E uma vez que o inimigo era um gigante, muito

bem aparelhado, restaria ao continente defender-se, desde que todos os países

articulassem, ou amalgamasse numa grande “nação africana”, constituindo uma

unidade forte e coesa. Com isso, em algumas partes do continente, aguçou-se a

identificação com os símbolos e valores muito mais africanos, do que propriamente

nacionais, e isso teve implicação no plano nacional. “a dificuldade destes países em

estimular a identidade nacional através de mitos e heróis passados se reflete nos

hinos de cada país, que se dividem no movimento paradoxal de exaltar uma

nacionalidade africana e uma lealdade estatal.” (PINTO, 2008, p. 217). De modo que,

a crise encontra-se na identidade nacional, identificar-se como um respectivo país

africano, é mais difícil dado que também os governantes ainda executam a política

colonialista de "dividir para governar" (DENG, 1996).

Entretanto, era necessária uma África unida, ainda que ilusoriamente, para que

as revoluções africanas (Angolana, Moçambicana, e Etíope) pudessem concretizar e

os países triunfassem a liberdade política. Por outro lado, a violência neocolonial foi

muito forte, cujo objetivo desfragmentar as unidades, isso “severamente destruiu o

continente, social, económica e politicamente, e a rápida transição para a

independência tem criado uma sociedade africana sem identidades nacionais

diferenciadas.” (BERVOETS, 2011, p. 3).

Destarte, a consequência da representação da África não é a sua invenção per

se, e sim o fato que “a África é sempre imaginada, representada, e modulada como

uma realidade ou uma ficção em relação a referências principais: Europa, Branca,

cristandade, desenvolvimento, tecnologia.” (ZELEZA, 2006, p. 16). Isso reduziu o

continente a imagens particulares, a um estado de falta/falha e não de diferença, ou

até mesmo a um estado de paralisia. Neste viés, vale ressaltar o polêmico

enquadramento do Hegel, ao afirmar que o "estado negroide é comparado ao da

criança", e a "África um país da infância da história", despida de ideias maduras.

Mas, o mundo como representação é uma afirmação não absoluta, pois ele

está em constante transformação, trata-se de “um campo aberto de luta entre os

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grupos sociais e seus membros”. Na verdade, a representação acarreta duas famílias

cujos sentidos são aparentemente contraditórios “por um lado, a representação faz ver

uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é

representado; de outro, é apresentação de uma presença, a presença pública de uma

coisa ou de um uma pessoa.” (CHARTIER, 1991, p. 184).Para o autor, na primeira

família, a representação é a ferramenta do conhecimento mediato, permitindo ver um

objeto ausente, repondo-lhe uma "imagem" capaz de colocá-lo em memoria e de

"pintá-lo" tal como é.Dessemodo“a representação é perturbada pela fraqueza da

imaginação”.

Porém, para as diásporas africanas uma imagem idílica era necessária e era

essa imagem que lhes nutriam o desejo de retorno, “foi necessário idealizar essa

África da qual tínhamos sido arrancados para sempre. A África aparece, nessa visão

como um lugar quase sem tensões internas ou contradições inerentes à sua própria

experiência histórica.” (MOORE, 2010, p. 51).

Conceitualmente, a "África" é difícil de definir, obviamente, ela como uma

delimitação geográfica existe; sem embargo,“a ideia da "África" é um problema

complexo com várias genealogias e significados, de modo que, qualquer exposição,

ou termo que traz África, se tornam bastantes escorregadios, cambaleando entre os

polos de essencialismo e contingência.” (ZELEZA, 2006, p. 15).Para o autor a “África”

é uma palavra socialmente construída, principalmente pelo império europeu, ademais,

a conflação da África, com a "África subsaariana", ou com a"África Negra", tão comum

no atual discurso oferece-nos uma visão racializada da África. África como biologia,

como o “negro” continente.” (ZELEZA, 2006, p. 15).Isso trouxe uma limitação, pois

ignoraria porções gigantes de outras regiões da África, como a Árabe, a Magrebe.

Ademais, a ideia da raça encrostada na biologia“é perigosa na prática e

enganosa na teoria: a unidade africana e a identidade africana precisam de bases

mais seguras do que a raça.” (APPIAH, 1997, p. 245). Entender isso é importante

porque como avança o autor a “raça” cria uma ilusão de que as pessoas negras são

notadamente aliadas por natureza;que acaba por “nos deixar despreparados, por

conseguinte, para lidar com os conflitos “intrarraciais” que nascem das situações muito

diferentes dos negros (e brancos e amarelos nas diversas partes da economia e do

mundo).” (APPIAH, 1997, p. 245).Primariamente, aceitar que o continente tratassede

um único e grande país, seria amputar toda a pluralidade que se constituiu

comoprincipio para a formaçãodo povo em todosos continentes do mundo, e sendo a

África um continente, a pluralidade categoricamente impregna na sua constituição

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social. Todavia, a unidade não se concretizou, em parte pela base frágil em que se

assentaria como apontou o Appiah, como também, porque os pan-africanistas

"orgânicos" foram assassinados, deixando o povo órfão de uma ideologia.

No entanto, a"unidade" mais do que um projeto do movimento pan-africanista,

seria interessante pensá-la também, como um ideal que pudesse nortear os povos

africanos; ou, constituía-se uma armadura contra a ingerência externa no continente.

Seria acima de tudo, umdiscurso uníssono dos dirigentes africanos em torno dos

interesses de seus povos; a"unidade" plasmada numa África robusta, capaz de emitir

voz própria e proposta no tabuleiro internacional e é por essa postura que vários

dirigentes africanos, cujas ideias ambivalentes as do Ocidente tem sido assassinados.

Por outro lado, seria importante não tomar essa “unidade”como uma amálgama

de fronteiras, e justaposição dos países formando um "País África", e sim como uma

atitude ou uma postura dos povos africanos perante as ameaças e para isso ela

precisa brotar no seu nível primário, desde a comunidade, tribos.

Não obstante, a título de ressalva, rotular a “África um país” não constitui no

seu totum a ignorância; talvez, o termotorne uma pergunta ou um ponto de reflexão,

no sentido de se pensar se realmente o continente apresenta um país, ou melhor, se

algum país do continente abarca os elementos clássicos da definição de um Estado na

concepção do Max Weber; embora, a própria noção do Estado no continente seja

diferente da definição ocidental. Não obstante, por questão de critério, vale citar a

definição do autor: “Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o

monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território.” (WBER,

2003, p. 56).Alguns desses elementos escapam aos países africanos.

O território não é do povo africano, é das potências ocidentais e das suas

multinacionais quesorvem do seu solorecursose depois regurgitam neleas partes

nocivas.E isso foi comprovado desde a expansão europeia no século XV, com ápice

de exploração no século XIX, sacramentada na “partilha” da África (1884-1885)em que

sem consultarem os povos do continente as potências “partilharam” entre si os

territórios do continente. População não há, já que não um território fixo, há-se

andarilhos afugentados pela desgraça da seca, da guerra implantada pelo controle

desses recursos naturais. Soberania é ausente desde a expansão europeia no século

XV pela Costa Africana, a partir dali, o continente passou a sercontrolado pelas "mãos

visíveis" das potências mundiais; de fato “o Estado mal consegue se formar e já é

pressionado por instituições como o Banco Mundial.” (KI-ZERBO, 2006, p. 11).Do

mesmo modo a legitimidade, pois as elites que satisfazem os interesses das potências

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são mais reconhecidas pela comunidade internacional do que o governo que esforça

para salvaguardar os interesses do seu povo.

Essa é uma leitura do panorama da África neste período, contudo somente ela

não explica a formação da “política africana” do Brasil.É preciso entender como que

este panorama, ou como a África fora representada no Brasil, e ao mesmo tempo

compreender acerca da imagem que o Brasil tentou projetar a esse continente.

“África” no Brasil

Para quem está de fora, ignoraro panorama acima tratado, tende-se a construir

uma política falaciosa por um "lugar imaginado", e o seu resultado só refletiria a

incongruência com o seu próprio desenho inicial. Pois, construir uma política de

dimensão continental é demostrar,ou total conhecimento ou o contrário deste,em

relação as configurações que ornamentam o continente. E no caso do Brasil,

comoessa política tem recebido algumas críticas desde a sua formulação, talvez possa

ser resultado da não compreensão da realidade das regiões e países africanos.

Para o Brasil, seria fundamental a construção de uma estratégia e política

específica para cada um dos seus principais parceiros no continente, dado que “o

grande problema,da política externa brasileira... foi sempre a carência de um projeto e

de uma estratégica de inserção global, de médio ou de longo prazo.” (MIYAMOTO,

2011, p. 3).A política externa do país também é muito mais uma política do governo, e

para África, foi, sobretudo, de alguns agentes influentesno governo com interesse para

aquela região, do que uma política de Estado, de modo que se trona difícil apontar

para uma continuidade. Não que se torne obrigatório ao Brasil conhecer a África como

todo- a não ser que isto constitui o recorte da sua política externa-. Mas impera uma

necessidade de conhecer o espaço para onde se almeja projetar a política; seja para

um país ou para uma região. É fundamental, “superar, primeiro, essa grande

ignorância que impera entre nós sobre as realidades, tanto na África da Antiguidade

como na África da contemporaneidade.” (MOORE, 2010, p. 87).

No processoda descolonização do continente (1950-1975), a África surge como

um espaço em que movimentos de libertação nacional lutavam para as

independências politicas de seus países e se tratando da lógica da Guerra Fria (1945-

1991);a região passa a ser disputada em vários momentos por Estados Unidos e pela

União Soviética.

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A estratégia desses movimentos e partidos políticos foi continentalisar a luta,

porque o inimigo, ainda que fosseum só: Portugal, ele era manuseado pelas principais

potências imperialistas, como Estados Unidos, Grã-Bretanha, França; sendo assim,um

monstro na sua capacidade armamentista e destrutiva. Portanto, os países

precisariam comungar princípios semelhantes da luta, e condenar de um modo

uníssono o sistema colonial, para que isso reverberasse no sistema internacional. O

que de fato surtiu efeito, ganhando apoio de países como Índia, China, União

Soviética, Cuba, e sinergias em Movimento dos Não Alinhados, e em fóruns que

discutiam as causas terceiro-mundistas.

No entanto,a solidariedade internacional desses países, além de imbrincada no

interesse nacional, se mostrava destoante ainda das realidades africanas. Não havia

uma leitura objetiva do que estava acontecendo no continente, problemas desde o

acesso a informação, quanto, sobretudo se imaginava que eram essas colônias em

processo de luta nacional que precisavam de ajuda dos países do eixo socialista e

comunista; talvez for essa uma das razões do fracasso da internacionalização das

revoluções dos países desses eixos.

O continente era ainda imaginado num caleidoscópio de tribos;entretanto,

como bem ressaltou Costa e Silva, “não podem ser tribos grupos humanos de mais de

60 milhões de pessoas, como os hauçás, ou superiores ou semelhantes em número

às populações da Bélgica, do Chile e da Suécia.” (SILVA, 1994, p, 24), sem falar da

dimensão territorial que reduziria facilmente esses três países a uma escala míope.

Esse enquadramento proveioem parte dademarcação territorial. Os mapas

definidos antes da independência das colônias africanas foram mantidos. Com isso, no

processo de descolonização, somente os Estados em que os territórios estavam

reconhecidos pelo sistema internacional eram candidatos à independência (PINTO,

2008). Isso moldou o reconhecimento das organizações internacionais perante as

estruturas políticas africanas, “a Assembleia Geral da ONU aceitava como membros

pequenos Estados como Lesoto, Gâmbia e Guiné-Bissau, enquanto rejeitava outras

formas de organização muito maiores como os grupos étnicos Zulu e Ashanti, que

haviam sido grandes impérios pré-coloniais.” (JACKSON apud PINTO, 2008, p.

226).Essas imagens, essencialmente da “África tribo”,e da “África negra”, foram

interpretadas de maneira subjetiva, ao mesmo tempo constituiriam bases poucas

fincadas de modo a sustentar a projeção dos projetos nacionais de cada país em

relação ao continente.

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No caso do Brasil, esteaspirava ser a referência que pudesse representar o

mundo afro-asiático, pela sua configuração interna:vasta população negra “convivendo

harmonicamente”; ao mesmo tempo,o presidente Jânio Quadros realçava que pela

formação histórica, cultural e cristã e pela situação geográfica a nação era

notadamente ocidental. Por ter essa pegada ocidental, o país reuniria melhores

condições para representar econômica e politicamente as duas regiões,

principalmente aÁfrica,“creio que é precisamente na África que o Brasil pode prestar o

melhor serviço aos conceitos de vida e métodos políticos ocidentais.” (QUADROS,

1961, p. 6).

Entretanto, a região afro-asiática só existiria em cabeçalhos ou notícias de

jornal (FILHO; LESSA, 2007). O continente africano era um "lugar imaginário", “que se

refletia na cultura brasileira, em seu passado, em seu futuro e em seu relacionamento

com o mundo.” (DÁVILA, 2011, p. 15), mas sem um sustentáculointerno.

As informações vindas ao Brasil eram desatualizadas; no imaginário popular

recrudescia a imagem estática de uma África milenar, povoada por grandes animais,

rodeada por pobreza e por escravos.Se havia um interesse em descobrir o continente

era muito mais ligado ao“sabor dos quitutes, a sinuosidade dos requebros das

mulheres negras e os costumes bizarros da gente que ultrapassava o Atlântico tanto

tempo atrás.” (SARAIVA, 1996, p. 96).

Ainda que algumas dessas paisagens tivessem permanecidas, essa mesma

África havia mudado e evoluindo, assim como poderia acontecer com qualquer região

que reivindicasse maior autonomia na condução de seus assuntos e também pela

lógica natural, porque "a história é a vida crescente do grupo";e para o africano

também,o tempo é dinâmico.Contudo, diferentemente da visão ocidental sobre

ocontinente, o homem africano não é um prisioneiro, “de um processo estático ou de

um retorno cíclico... o tempo é o lugar onde o homem pode, sem cessar, lutar pelo

desenvolvimento de sua energia vital.” (HAMA; KI-ZERBO, 2010, p. 33).E na

realidade, o continente passava por um momento crucial em torno seu

doreposicionamento notrilho histórico, desviado pelo colonialismo no século XV e pelo

neocolonialismo noséculo XIX. Neste último, imperava a necessidade de desvencilhar

do jugo político colonial, o qual, principalmente, a África da língua portuguesa

desejaria contar com o apoio de países amigos, notadamente do Brasil. Oapoio veio

de forma remediada, atrelada a metrópole.

Nessa circunstância, o governo de Juscelino Kubistchek (1956-1961),

reproduziria a noção acima, sem capacidade de manobra, e amarrado ao governo

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português este governo assistiria de “binóculo” as atrocidades que eram cometidas

nos países africanos. Além disso, construiu uma relação externa próxima com os

países do Primeiro Mundo, essencialmente com os Estados Unidos, tendo a Operação

Pan-Americana (OPA) o eixo central da sua política externa; por outo lado, o

continente africano constituía um espaço desconhecido e, talvez, a vista disso, pouco

interessante para o desenho da referida política externa, ainda que reconhecesse a

importância da descolonização dos povos afro-asiáticos.

Enquanto isso, no governo subsequente, Jânio Quadros (1961), houve um

desejo deambas as partes se conhecerem melhor. De inicio, o presidente instituiu ao

Ministério das Relações Exteriores a função de criar uma missão para este trabalho.

Embora para o presidente isso não fosse muito difícil, dado que o país constituía-se

“uma sociedade multirracial tão harmoniosa e integrada que talvez não nos seja difícil

à compreensão e o respeito em toda boa amizade deve fundar-se.”(BRASIL, 2010, p.

25). A sugestão do diplomata Sérgio Corrêa do Lago, acreditando na noção de que o

Brasil fosse a única verdadeira democracia racial no mundo, surgiriacomo o baluarte

natural entre o continente afro-asiático e o mundo ocidental (DÁVILA, 2011); apontou

que a missão do Itamaraty a essas regiões deveria incluir brasileiros de origem afro-

asiática, incluindo um descendente oriental, um árabe e outro genuinamente africano

(FILHO; LESSA, 2007). O esforço do então governo era construir uma imagem

brasileira na África, em que o país pudesse ser visto como capaz de permitir os

contatos comerciais, políticos; sobretudo, resgatar a "ponte", ou "identidade cultural"

que entrelaçava as duas partes do oceano atlântico.

Para isso, o presidente identificou a ida dosretornados para a Costa Ocidental

Africana como um momento que sela essa reciprocidade, ou que inaugura a

"ponte".Pois, ainda que, o século XIX presenciasse um resfriamento nas relações

Brasil-África, com inclusive retorno forçado de vários escravos que estavam no Brasil

para o continente africano, foi especialmente este episódio que marcaria uma nova

relação entre as duas partes. Esses africanos, como observara Gilberto Freire

voltaram para África na sua maioria para o Golfo de Benin “não mais como africano e

sim como "brasileiro", ou melhor, africanos abrasileirados levando consigo hábitos e

costumes praticados aqui no Brasil.” (VERGER, 2002, p.632); e criaram várias

comunidades, chamadas de "Agudás" ou "Amarós" na Nigéria, no Benin e noTogo, e

"Tabom" em Gana.

E se havia essa ponte,Brasil precisaria atravessá-la e auxiliar os seus “irmãos”

da outra parte do oceano, a construir outra ponte: a da libertação nacional, e o próprio

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presidente se mostrava favor a esse processo, apontando que “nenhum povo logra

atingir plenitude do amadurecimento cultural e do desenvolvimento económico antes

de obter sua independência política, o que exige que esta seja provida pelos Estados

responsáveis.” (DANTAS, 2011, p. 26).No entanto, o discurso precisaria cair no campo

de teste e identificar o quão robusto e elástico ele pudesse ser. Sem embargo, este

campo era configurado pela forte pressão vinda da metrópole e dos seus principais

aliados e pressão vinda da comunidade portuguesa no Brasil. O próprio presidente

considerou que “uma política nacional como instrumento para ação parece às vezes

voltar-se contra o impulso fundamental que a criou, para melhor servi-lo: mas em

função da própria essência dessa política, a verdade de certas realidades não pode

ser refutada.”(QUADROS, 1961, p. 2).

Numa outra perspectiva, seria preciso, polir a nova (inaugural) relação formal

com a África, essencialmente porque os países da região começam a ganhar a

independência, iniciada pelo Gana (1957), Sendo assim, como relacionar com essa

“África” em transformação? Ou será que não mudara, continuava a grande região da

raça negra subjugada as mazelas do colonialismo e do imperialismo?

O ponto é que oBrasilinterpretou-as de forma dúbia, ou da forma que lhe era

conveniente e processou uma resposta de maneira literal. Em 1961, Quadros nomeia

o Jornalista Raymundo Souza Dantas, um negro, como representante do país no

Gana (1961). A nomeação fora vista como a manifestação clara de um país racista ao

olhar do então Presidente do Gana, KwameNkrumah (1960-1966),sugerindo que o

Brasil enviasse negros para a Suíça, para os países brancos.E internamente, a ala dos

estudiosos do continente africano e do seu povo, criticara essa tentativa de passar

uma imagem errada do Brasil, quando internamente o negro não participava dos

benefícios sociais e nem ocupava cargos de destaques no governo.Com a exceção do

Souza Dantas e do Professor Milton Santos que ocupou a Presidência da República

da Casa Civil na Bahia. Porém, José Honório Rodrigues, criticara a nomeação do

diplomata, salientando que ajustificativa pela cor era fraca, uma vez que o próprio

Souza Dantas não era realmente um diplomata, e sim um Assessor de Gabinete do

Presidente Quadros. Neste caso, haveria uma confusão entre o que é ser negro e o

que é representar o Brasil, reflexão que o próprio Souza Dantas salientara no seu

diário: África difícil: missão condenada, diário (1965).

Essa relação, evocando a dimensão cultural não foi barrada mesmo com o

golpe militar de 1964. Segundo Saraiva (1993) décadas subsequentes, o Brasil tentou

aproximar da África numa base discursiva cultural. No governo Médici (1974-

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1979),Brasil busca projetar na África uma imagem de um poder industrial tropical e

miscigenado racialmente e ganhava contorno especial quando se posicionava a favor

das independências dos países da língua Portuguesa.

Todavia, a exaltação culturalista e uma imagem harmônica do Brasil multirracial

também contrastavam com a realidade interna. Essa incoerência foi duramente

criticada por intelectuais de fora e principalmente os nacionais. Em 1977, Abdias do

Nascimento, criticou veemente o discurso culturalista do Itamaraty.E a

vindadeestudantes africanos, no quadro de cooperação educacional, iniciada na

década de 1960, eles passaram a constatar por si mesmos a dificuldade de se

inserirem na sociedade brasileira; vários alunos eram barrados em eventos e alguns

espaços públicos.

Portanto, do mesmo modo que imaginaram uma África unida, ao ponto de

apontar que se tratava de um grande e único país, habitado somente pela raça negra

em várias tribos, fustigada pela guerra. Brasil tentou criar um antídoto a esse quadro

africano, apresentando-se como uma nação multirracial, de dimensão continental onde

essas raças viviam de forma harmônica, e por isso, constituiria o país capaz de

compreender as realidades africanas, criando um projeto enorme para subsidiar esse

processo: apolítica africana.

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“Os interesses materiais não conhecem doutrina...” (Jânio Quadros, 1961).

Política Africana do Brasil

As relações entre Brasil e os países da África pareciam ser naturais, e por

isso,criou-se um discurso para consumo interno e externo, com o objetivo de introduzir

a nova política, como resultado natural dos contatos entre Brasil e África, séculos

antes.Apesar disso, “constitui-se ilusões e ações que tornaram a política africana do

Brasil um capítulo especial e distinto das demais políticas externas brasileiras.”

(SARAIVA, 1993, p. 219).

A referida política foi formulada num período importante para os dois lados, a

década de 1960. Enquanto no continente africano desencadeava as lutas para a

libertação nacional, no Brasil, Jânio Quadros (1961) ascende ao poder formulando a

sua Política Externa Independente (PEI), que reduziria o alinhamento automático aos

Estados Unidos:

Abandonamos a diplomacia subsidiária, e inócua de uma nação jungida a interesses dignos, mas estrangeiros e, para proteger nossos direitos, colocamo-nos na primeira linha, convencidos que estávamos de nossa capacidade para contribuir com nossos próprios meios para compreensão entre os povos. (QUADROS, 1961, p. 1).

A base da PEI havia sido iniciada década antes, em 1950, pelos projetos

nacionalista e desenvolvimentista de Vargas e Kubitschek; enquanto a sua

formulaçãoe implementaçãoviriam no governo Quadros aoreforçar as relações com

países do Terceiro Mundo, ainda que numa lógica de interesse nacional; e isso se

plasmou na tímida posição em relação aos problemas desses países que imaginaram

contar com apoio brasileiro nadescolonização das suas nações. Por fim, a

operacionalização dessa política e seus resultadossurgiriam na década de 1970, no

governo de Ernesto Geisel (1974-1979), sob o corolário do Pragmatismo Responsável.

Contudo, assumir a Política Externa Independente como uma unidadeque

atravessou o governo de Quadros e Goulart seria um erro de acordo com a Leticia

Pinheiro; haja vista que no mandato de Quadros houve um esforço paraa conservação

da paz, e na tentativa de encaixar a uma postura neutralista no contexto da Guerra

fria. Enquanto, no mandato do seu sucessor, o desenvolvimento se tornou o objetivo

do governo, “e a independência não era mais pensada em termos neutralistas... mas

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simem vis a vis a capacidade de atuação autônoma do país por meio da ampliação de

seus recursos.” (PINHEIRO, 2004).

A PEI não foi uma manobra ao capricho de um presidente de esquerda, setores

importantes, não meramente de esquerdas ovacionaram a nova política.Intelectuais

importantes como “Bezerra de Meneses, Oswaldo Aranha e Álvaro Lins, os quais

haviam antes advogado uma política africana, e políticos como Afonso Arinos de Melo

Franco e San Tiago Dantas, ambos participantes da própria formulação da Política

Externa Independente.” (SARAIVA, 1993, p. 221).Por isso, sendoa PEI a base para a

formulação da política africana, pois exaltava a solidariedade moral que unia os povos,

ao mesmo tempo conseguir por meio dessa solidariedade um espaço no mercado e

fonte de matérias. Um dos princípios da PEI era a procura não somente de ganhos

relativos, quanto absolutos, permitindo ganhos para outros Estados.

Desse modo,não era uma "solidariedade platônica", Jânio Quadros, afirmava,

“mas porque está de acordo com os interesses nacionais brasileiros.” (QUADROS,

1961). E, enfatizou "mesmo de um ponto de vista puramente egoísta", Brasil, estaria

empenhado na melhoria social e no aprimoramento das técnicas de produção no

continente africano.

No seu discurso proferido em 1961, Quadros ressalta o esforço brasileiro no

continente naquele período como uma modesta retribuição, um pagamento mínimo da

imensa dívida que o Brasil tem para com o povo africano. Numa mensagem dirigida ao

Congresso Nacional em 15 de março de 1961, Jânio Quadros definiu a política

africana como um “instrumento contra o colonialismo e o racismo e sublinhou o apoio

brasileiro à autodeterminação dos povos da África.” (SARAIVA, 1993, p. 221).

Ao passo que no governo Goulart, embora o tom aumentasse em prol da

libertação dos povos,em 1963, numa mensagem presidencial anual ao congresso,

exaltava-se a “independência de todos os povos coloniais e demais territórios de

Portugal, o Itamaraty foi obrigado a desmentir publicamente a mensagem.” (DÁVILA,

2011, p. 143), demostrando como que no campo o anseio do governo era constrangido

pelas forças concêntricas.

Era também uma política com “inclinação africanista” (SARAIVA, 1996).

Todavia, o que corresponderia a postura africanista? Neste prisma, o anticolonialismo

emerge como o fio condutor da política externa, seapresentandocomo um desafioà

metrópole portuguesa, apesar da referida política não fosse amplamente reverberada

pelo governo brasileiro, haja vista que o país ainda sofria constrangimentos de

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Portugal, e de própria comunidade portuguesa no país. Sendo assim, em vários casos,

Brasil ainda dependia da metrópole para sua inserção no continente e uma posição

coesa em face ao problema nunca houve: ao mesmo tempo em que se discursava a

favor de autodeterminação dos povos, realçava-se o elo perene que unia Portugal e

Brasil. Enquanto isso, líderes de movimentos nacionais, principalmente em

Moçambique e em Angola criticavam a falta de comprometimento brasileiro nas

reivindicações africanas naquele momento.

In totum, a política "africana" do governo Quadros continuada por Goulart foi

marcada por equívocos e poucos resultados concretos, “não foi mais além da

abstenção dos votos na ONU referente aos assuntos angolano e argelino; o Brasil

vacilara, em detrimento das suas relações anteriores com o Portugal.” (CERVO;

BUENO, 2002, p. 321). Porém, vale reconhecer a inovação do Presidente Quadros em

relação à África num espaço de tempo tão curto, pois o seu governo teve menos de

sete meses. E o governo subsequente não contava com muita margem de manobra

para “sustentar uma política externa coerente com relação à descolonização

Portuguesa.” (DÁVILA, 2011, p. 142).

Além do mais, a relação do Brasil com a África era um tema que não cabia

somente ao governo,aobliteração brasileira das mazelas do colonialismo africano

ilustra também a posição da sua sociedade, principalmente da sua elite. Perante isso

se forçara em passar para o continente uma imagem deturpada do Brasil, que

esmiuçando as políticas anteriores do país podia-se confirmar isso sem muito esforço.

Iniciadas de forma contundente com a política de branqueamento no século XIX,

permitindo a imigração de europeus no país, explicada para melhorar a raça brasileira.

E ao longo do século XX, a elite política, em especial a diplomática cultuavam os

modelos e valores ocidentais.

Neste sentido, a política africana do Brasil fora construída num vácuo de

concretude, em um momento de euforia em que elementos africanos não eram

reconhecidos internamente: o negroera um figurante sem nenhum papel numa peça

trágica, se não cómica em que também na ornamentação do palco elementos das

culturas negras eram postos de lado.

Silvio Romero, na introdução dolivro de Nina Rodrigues: Os africanos no

Brasil, publicado em 1933, fora enfático, ao reconhecer, "é uma vergonha para a

ciência no Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das

línguas e religiões africanas”. (ROMERO, 1932). Entretanto, vozes dissidentes, como

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movimentos negros, e alguns intelectuais começaram a ter uma preocupação com os

eventos do outro lado do Atlântico Sul.

Na época, a África era muito importante para nós, intelectuais pessoas que nos julgávamos mais de esquerda... Mas vendo as coisas com os olhos de hoje percebo bem que não dá para levar a sério. Era uma coisa de pessoas muito honestas muito sérias, muito dignas, mas era uma ingenuidade. (LINHARES1 apud DÁVILA, 2011, p. 69).

Em 2008, Yedda ressaltou ao Dávilaque a ingenuidade da época, era factível

porque os interessados sobre África não sabiam muito bem do que estavam

acontecendo no continente, o interesse era embalado pelo "idealismo e não pela

experiência prática". “Era uma intelectualidade que se dizia de esquerda, mas não

tinha nenhuma esquerda combatente. Combater o que? Como?” (LINHARES apud

DÁVILA, 2011, p. 70).

Pois, a imagem africana estava imbrincada na estrutura social brasileira, sendo

esta destoante daquela em construção nos países africanos, naquele momento.

Destarte, uma mudança para uma imagem melhor, ou real, e para um maior

comprometimento com as causas africanas, só surtiriam efeitosse a sociedade

estivesse engajada, o que não aconteceu. Na altura, cria-se umaimagem do Brasil que

pudesse agradar, ou encaixar numa realidade africana inventada, como subterfugio

para a conformação de interesses nacionais, principalmente em momentos de

instabilidade com os Estados Unidos.

Perante isso, constata-se que aÁfrica nunca ocuparia um lugar de destaque

nos governos brasileiros. Ela foi usada em vários momentos da política externa como

“espaço natural” emque o Brasil pudesse conjecturara “independência”da sua política

externa em momentos de retrocesso com os seus tradicionais parceiros, notadamente,

os Estados Unidos, o que também, nunca se confirmou: a independência dos Estados

Unidos. Nos 15 pontos2 do governo de Quadros, havia explicitamente um esforço para

continuação da Operação Pan-Americana, sinceras relações e colaboração com os

Estados Unidos.

E com o golpe militar de 1964, Brasil é redirecionado, mais uma vez ao trilho

estadunidense e português e isso ficou plasmado no discurso do Ministro de Relações

Exterioresdo governo de Castelo Branco (1964-1967), Juracy Magalhães: “Tudo que é

bom para os Estados Unidos também é bom para o Brasil”...“Tudo o que acontece de

1 Entrevista com Maria Yedda Linhares, realizada por Jerry Dávila, 22 de maio de 2008. 2 Mais detalhes em:<http://pei61a64.weebly.com/jacircnio-quadros.html>. Acesso em: 20 Jun. 2014.

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bom para Portugal é recebido com imenso agrado pelo Brasil.” (DÁVILA, 2011, p. 52).

Em 1972, fora instituído o "Ano da Comunidade Luso-Brasileira". Na ocasião foram

assinados alguns acordos permitindo a atuação das empresas brasileiras nas colônias

portuguesas africanas, principalmente em Moçambique e em Angola,e não meramente

num comprometimento na descolonização dessas colônias.

E frente à crise de petróleo de 1973, Brasil reforça a sua relação Sul-Sul, e

África renasce no quadro de Pragmatismo Responsáveldo governo Geisel. Embora,

não a África na sua dimensão continental, países como Nigéria, passam a constituir

um mercado importante para a exportação de produtos e serviços brasileiros e fonte

de insumos, enquanto preparava-se a expansão para outros países, notadamente

Angola eMoçambique; e para isso urgia repensar a postura diante da luta de

independência dos referidos países, a despeito da insustentabilidade do regime

colonial português fosseclaro nesse momento, ao ponto dacomunidade internacional

ser obrigada a reconhecer luta legítima dos dominados,a qualquer hora.

Em 1974, Brasil reconhecea independência de Guiné-Bissau, antes da

transferência de poder por parte de Portugal ao Partido Africano de Independência de

Guiné e CaboVerde (PAIGC). Em 1975, reconhece a independência de Angola, ainda

que perpetuada por um governo de esquerda. Na verdade, Médici percebia no

reconhecimento da independência do país, uma chance importante para a expansão

da economia brasileira no continente africano, principalmente na altura em que se

ansiava uma diminuição da dependência com os Estados Unidos.

Considerações finais

Esse trabalho se propôs a analisar o contexto da formulação da política

africana do Brasil, no quadro da Política Externa Independente, inaugurada pelo

governo Quadros. Para entender a formulação da política africana, que evoca no

próprio nome uma dimensão continental: África, ao ponto de se confundir “África como

um País”, pois normalmente se observa equacionamento de política para um país ou a

um conjunto de países, não para um continente. É preciso compreender como que a

ideia de uma África unida foi construída no processo da descolonização africana e

como essa união foi importante para a vitória dos movimentos e partidos nacionais.

Por outro lado, merece-se compreender o modo que essa imagem fora transportada

ou brotada no imaginário social brasileiro no mesmo período; atrelado ao espaço que

os afrodescendentes (os negros) ocupavam na mesma sociedade.

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Pois, a confusão de uma África unida como sendo um grande país, levou-se a

formulação de uma política africana que se perde em alguns pontos, tais como: o que

realmente é uma política africana? Os seus objetivos, seu alcance. Ou em vez de

política africana, existiriam políticas africanas, com desenhos diferentes para os

principais parceiros brasileiros no continente? É preciso enfrentar e polir de melhor

maneira o tema.

Porque isso tem produzido, considerações e conclusões deturpadas ao longo

da sua formulação. Por exemplo, em se tratando do tema de comércioexterior, no

governo Lula (2003-2010) afirma-se que a balança é deficitária para o Brasil. Porém,a

importação brasileira originária do continente africano corresponde a dois grupos:

óleos brutos de petróleo e naftas para petroquímica (83,1%)e adubos, juntoseles

representam 91% da totalidade das importações brasileiras originárias da África.

(MRE, 2013).Segundo os dados, durante este períodoo saldo balança comercial

Brasil-África foi deficitário para o Brasil, exceto o período de 2009, quando houve um

superávit de US$ 227 milhões (MDIC, 2013). Esta leitura negligencia informações e

dados discriminados,e reduz o continente a principais produtores de petróleo (Nigéria,

Argélia e Líbia), sendo petróleo, o principal item da pauta de importação

brasileiraoriginária da África, além do adubo vindo por meio da atuação da mineradora

Vale em Moçambique. Deste ponto de vista, o saldo obviamente é deficitário para o

Brasil. Contudo, ao analisarde forma discriminada, com cada país o déficit do saldo da

balança comercial cai infalivelmente sobre as economias africanas de forma absoluta.

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