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A FORMAÇÃO CONTINUADA DE EDUCADORES A PARTIR DA JORNADA DO HERÓI: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS EM FOCO Lidnei Ventura 1 , Lauro Roberto Lostada 2 , Dulce Márcia Cruz 3 1 Universidade do Estado de Santa Catarina/Departamento de Pedagogia, [email protected] 2 Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected] 3 Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected] Resumo – Este relato apresenta a experiência de formação continuada realizada no curso “Narrativa, autobiografia e formação de educadores”, ofertado pelo CEAD/ UDESC. Oferecido como extensão universitária, na modalidade a distância, nos primeiros semestres de 2016, 2017 e 2018, atualmente o curso está na sua terceira edição, que teve como público-alvo prioritário professores egressos do curso de especialização “Educação na Cultura Digital”, oferecido pela UFSC, mas também acadêmicos do curso de Pedagogia a Distância do CEAD/UDESC. O curso parte da definição de narrativa como categoria epistemológica, como metodologia de pesquisa científica e como metodologia formativa de educadores. O processo parte das histórias de formação dos cursistas como metodologia para a elaboração de um roteiro autoformativo, com base na Jornada do Herói. Os resultados indicam que os cursistas avaliaram positivamente a experiência de analisar, sob o foco da jornada do herói, sua história de formação como objeto de aprendizagem. Como indicado nas versões anteriores, constatou-se que as histórias de vida constituem alternativa relevante e eficiente aos modelos de formação de professores, pois leva-os a refletir seu percurso formativo e produzir novos conhecimentos a partir de seus memoriais autobiográficos. Palavras-chave: Formação de Educadores; Narrativas; Autobiografia; Jornada do Herói. Abstract – This report presents the experience of continuing education carried out in the course "Narrative, autobiography and training of educators", offered by CEAD / UDESC. Offered as a university extension, in the distance modality, in the first semesters of 2016, 2017 and 2018, the course is currently in its third edition, which had as a priority target audience teachers from the specialization course "Education in Digital Culture" offered by UFSC, but also academics of CEAD / UDESC Distance Education course. The course starts from the definition of narrative as an epistemological category, as a methodology of scientific research and as a formative methodology of educators. The process starts from the training stories of the students as a methodology for the elaboration of a self-formative script, based on the Hero's Journey. The results indicate that the trainees positively evaluated the experience of analyzing, within the focus of the hero's journey, their history of formation as an object of learning. As indicated in the previous versions, it was found that life histories constitute a relevant and efficient alternative to teacher training models, as it leads them to reflect their formative course and produce new knowledge from their autobiographical memorials. Keywords: Training of Educators; Narratives; Autobiography; Hero's Journey.

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A FORMAÇÃO CONTINUADA DE EDUCADORES A PARTIR DA

JORNADA DO HERÓI: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS EM FOCO

Lidnei Ventura1, Lauro Roberto Lostada2, Dulce Márcia Cruz3

1Universidade do Estado de Santa Catarina/Departamento de Pedagogia, l [email protected]

2Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]

3Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]

Resumo – Este relato apresenta a experiência de formação continuada realizada no curso “Narrativa, autobiografia e formação de educadores”, ofertado pelo CEAD/UDESC. Oferecido como extensão universitária, na modalidade a distância, nos primeiros semestres de 2016, 2017 e 2018, atualmente o curso está na sua terceira edição, que teve como público-alvo prioritário professores egressos do curso de especialização “Educação na Cultura Digital”, oferecido pela UFSC, mas também acadêmicos do curso de Pedagogia a Distância do CEAD/UDESC. O curso parte da definição de narrativa como categoria epistemológica, como metodologia de pesquisa científica e como metodologia formativa de educadores. O processo parte das histórias de formação dos cursistas como metodologia para a elaboração de um roteiro autoformativo, com base na Jornada do Herói. Os resultados indicam que os cursistas avaliaram positivamente a experiência de analisar, sob o foco da jornada do herói, sua história de formação como objeto de aprendizagem. Como indicado nas versões anteriores, constatou-se que as histórias de vida constituem alternativa relevante e eficiente aos modelos de formação de professores, pois leva-os a refletir seu percurso formativo e produzir novos conhecimentos a partir de seus memoriais autobiográficos.

Palavras-chave: Formação de Educadores; Narrativas; Autobiografia; Jornada do Herói.

Abstract – This report presents the experience of continuing education carried out in the course "Narrative, autobiography and training of educators", offered by CEAD / UDESC. Offered as a university extension, in the distance modality, in the first semesters of 2016, 2017 and 2018, the course is currently in its third edition, which had as a priority target audience teachers from the specialization course "Education in Digital Culture" offered by UFSC, but also academics of CEAD / UDESC Distance Education course. The course starts from the definition of narrative as an epistemological category, as a methodology of scientific research and as a formative methodology of educators. The process starts from the training stories of the students as a methodology for the elaboration of a self-formative script, based on the Hero's Journey. The results indicate that the trainees positively evaluated the experience of analyzing, within the focus of the hero's journey, their history of formation as an object of learning. As indicated in the previous versions, it was found that life histories constitute a relevant and efficient alternative to teacher training models, as it leads them to reflect their formative course and produce new knowledge from their autobiographical memorials.

Keywords: Training of Educators; Narratives; Autobiography; Hero's Journey.

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Introdução

Este trabalho apresenta o relato da experiência desenvolvida no curso de formação continuada a distância “Narrativa, autobiografia e formação de educadores”, oferecido na modalidade de extensão universitária, pelo Centro de Educação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina (CEAD/UDESC), atualmente na sua terceira edição.

As três versões de oferta do curso tiveram como objetivo refletir, problematizar e aplicar a metodologia de narrativas em processos formativos de educadores. Para tanto, o curso tem como fundamentação teórica a pesquisa narrativa, sua contextualização no cenário acadêmico atual e seus desdobramentos em processos formativos que partem de sistemas de autorreferenciamento, pautados em relatos autobiográficos, memoriais de trajetória formativa e outras ferramentas de expressão da subjetividade dos sujeitos em formação.

O campo das narrativas, em seus diferentes matizes, tem ganhado projeção e alçado novos patamares no âmbito das ciências humanas nos últimos tempos (HARRISON, 2008). Embora seja um campo em constante litígio (ANDREWS; SQUIRE; TAMBOUKOU, 2008), a exploração da narratividade tem ganhado contornos cada vez mais sofisticados na produção de conhecimentos acadêmicos, sobretudo em três dimensões quase sempre imbricadas: enquanto fundamento gnosiológico da experiência humana, como metodologia de pesquisa e como metodologia de formação.

Essas três dimensões encontram-se reunidas no verbo latino narrare, cuja raiz etimológica é gnarus (dar a conhecer), de onde provém a palavra conhecimento. O radical grego gno [relativo à cognição], foi se mantendo até chegar ao verbo latino cognoscere, que atrofiou pelo uso para dar em conhecimento, em diversas línguas, e derivar em outras palavras, por exemplo know - saber, em inglês, e kennen - conhecer, em alemão. Neste sentido, narrativas têm sido amplamente reconhecidas e adotadas nas mais diversas áreas de produção de conhecimentos científicos.

Esse status adquirido pela pesquisa narrativa tem sua origem na “virada linguística” dos anos de 1960, com desdobramentos em vários campos do saber, culminando no fenômeno chamado “redescoberta do sujeito”, que ressurge em toda sua subjetividade, depois de longa hegemonia da pesquisa quantitativa nos quadros das ciências humanas e sociais. Segundo Ventura (2018, p. 156): “As pesquisas, em ciências humanas, em suas diferentes áreas, têm discutido o papel e a importância das narrativas autobiográficas no processo de individuação e construção de identidades [...]”.

Neste contexto, cada uma das três dimensões da narrativa na produção de conhecimento científico vem ganhando corpo no universo acadêmico contemporâneo. Assim, na sequência do relato, realizaremos um breve estudo da narrativa enquanto condição ontológica humana, suas contribuições como metodologia de pesquisa e processos de formação. Na sequência, descreve-se a experiência do curso de extensão em foco, apresentando-se o relato dos cursistas sobre esse tipo de formação e, por fim, aponta-se algumas considerações finais.

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Narrativa e experiência: aspectos epistemológicos

Narratividade e experiência têm sido dois pilares importantes de reflexão para pensamento contemporâneo. Da interação entre dois pilares surge a linguagem como fenômeno em que se move a produção sociocultural humana, constituindo-se como a priori ontológico de quaisquer constituições da experiência humana, pois ela “não é somente um dentre tantos dotes atribuídos ao homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os homens tenham mundo, nela se representa mundo” (GADAMER, 2014, p. 571, grifo do autor).

Na mesma linha de raciocínio segue Benjamin, quando reitera o princípio ontológico humano da narrativa em função de sua essência linguística. Conclui ele que: “[...] a essência linguística do homem está no fato de ele nomear as coisas”. E é com essa faculdade que continua a obra divina, sendo chamado a nomear as demais criaturas de Deus, continuando o verbo [logos] da criação. Neste sentido, é pela palavra, pela sua condição de narratividade, que o homem se torna um conhecedor [gnosikós] do mundo. Também para Larrosa (2004, p.12), a atribuição de significado e interpretação da própria vida humana está ligada ao apriorismo da narratividade, pois “[...] el ser humano es un ser que se interpreta y, para esa autointerpretación, utiliza fundamentalmente formas narrativas”.

A partir desses autores, percebe-se as relações de impregnação mútua entre experiência e narrativa, bem como entre narrativa e conhecimento, pois somos o que narramos e narramos o que somos.

Narrativa como metodologia de pesquisa

O pioneirismo no uso da narrativa como metodologia de pesquisa deveu-se à Escola de Chicago (HARRISON, 2008), ainda no seu período áureo de fundação (1920-1940), quando foram usadas metodologias qualitativas na pesquisa sociológica, sob a liderança de Robert Parker, relativizando-se os métodos quantitativos e estatísticos predominantes à época e aplicando-se instrumentos próprios da etnografia e da antropologia. A influência de Parker nos futuros pesquisadores foi decisiva para formar toda uma geração de sociólogos e antropólogos (BECKER, 2008) preocupados em estudar narrativas como histórias de vida, biografia e autobiografias. Dentre eles, o proeminente sociólogo Howard Becker (2008, p. 04), que atestando a influência dos métodos de Parker, afirmou que “[...] os melhores documentos de história de vida têm uma sensibilidade e um ritmo, uma urgência dramática, que qualquer romancista ficaria feliz em alcançar”.

Apesar do domínio das perspectivas funcionalistas depois dos anos de 1940, a pesquisa narrativa ganhou novo impulso nos anos de 1960 a partir da virada linguística e do entendimento da centralidade da linguagem na produção do conhecimento científico, considerando-se que “[...] o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante”, como disse Bakhtin (2003, p.395). Logo, a pesquisa narrativa trabalha com as diversas manifestações deste ser que se expressa e se comunica nas mais diversas relações dialógicas, cabendo aos pesquisadores narrativos coletar, sistematizar e recontar essas complexas expressividades.

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O campo da educação tem se revelado um vasto celeiro de experiências formativas e de pesquisas que consideram as narrativas autobiográficas como processo teórico-metodológico na formação de educadores (ABRAHÃO, 2004). Tais experiências têm sido fecundas e tendem a levar o sujeito em formação a reflexões e tomadas de decisões conscientes a respeito de sua atuação pessoal e profissional. Deste modo, o uso de narrativas produz uma inversão necessária na formação classicamente calcada na formação escolar passiva, dando ênfase numa concepção de formação autoral e investigativa (JOSSO, 2010). É justamente parte desse processo que será descrito no próximo item.

Sobre as algumas complexidades da pesquisa narrativa, Torril (2008) aponta o fato dessa metodologia de investigação ser ao mesmo tempo o quadro teórico da investigação, um método de pesquisa e também a sua forma de exposição, o que lhe parece ser um tanto “avassalador” e que pode causar confusão e até mesmo algum preconceito com relação à cientificidade desta forma de pesquisa.

Esse aspecto “avassalador” levantado pela autora é reforçado por Andrews, Squire e Tamboukou (2013, p. 01), quando dizem que “[...] a pesquisa narrativa, embora seja popular e envolvente, é difícil [...]. Os dados narrativos podem facilmente parecer esmagadores: suscetíveis a intermináveis interpretações, por sua vez, triviais e profundamente significativos”. Apesar dessas e de outras dificuldades levantadas pelas autoras, pesquisadores narrativos estão mais preocupados em levantar questionamentos do que em responder perguntas e resolver problemas. Isso porque têm clareza de que toda linguagem remete ao surgimento de paralinguagens que são corporificadas nas narrativas (HYDEN, 2008).

Narrativa como metodologia de formação

Dentre os importantes campos abertos pela redescoberta da narrativa, na contem-poraneidade, está no seu uso como metodologia de formação, sobretudo no campo educacional.

A constatação de que os processos de formação inicial e continuada baseados na perspectiva instrumental (JOSSO, 2010; PIMENTA; LIMA, 2014; NÓVOA, 2010) vêm demonstrando fragilidades na formação inicial e continuada de educadores, diversos autores têm proposto que esses processos, para serem estáveis e duradouros, devem partir do próprio sujeito, numa perspectiva de que “formar é sempre formar-se” (NÓVOA, 2010, p.25). Neste contexto, em função das pesadas críticas aos modelos instrumentais baseados na “concepção de formação escolar” (NÓVOA, 2010, p.17), de caráter instrucional e tutelar, tem crescido o interesse por percursos formativos pautados em autobiografias e histórias de vida, de modo a exercitar com os sujeitos processos de autoformação (NÓVOA; FINGER, 1988; JOSSO, 2010).

A proposta consiste em se trabalhar a formação inicial e continuada a partir de histórias de vida e relatos autobiográficos, considerando-se dimensões esquecidas da subjetividade, tais como a imaginação, afetividade, sensibilidade, emoção e todas aquelas outras que foram banidas do processo formativo (JOSSO, 2010) em nome de uma inalcançável objetividade do sujeito, construída historicamente pela hegemonia do instrumentalismo positivista aplicado à formação.

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Desdobramentos para a formação: curso de extensão “Narrativa, autobiografia e formação de educadores”

As edições do curso de “Narrativa, autobiografia e formação de educadores” ocorreram nos primeiros semestres dos anos de 2016, 2017 e 2018. Cada uma dessas versões teve público diversificado, considerando-se que há implicações entre a metodologia de formação e metodologia de pesquisa narrativa (SOUSA; PASSEGGI, 2010), de modo que o curso também serviu como repositório de pesquisas de seus proponentes. Assim, a primeira edição, teve como público 50 egressos do curso de Pedagogia a Distância (CEAD-UDESC); a segunda, atendeu 50 graduandos do mesmo curso; já a terceira, que detalhamos melhor na sequência, teve como principal público alvo egressos do curso de especialização “Educação na Cultura Digital” oferecido pela UFSC, com algumas vagas disponibilizadas para graduandos do curso de Pedagogia a Distância.

A terceira edição foi oferecida prioritariamente para egressos do curso de especialização “Educação na Cultura Digital”, na modalidade EaD, disponível em Ambiente Virtual Aprendizagem (AVA), em sala específica para esta oferta, na Plataforma Moodle. Todos os recursos de conteúdos e ferramentas interativas foram criados especificamente para esta oferta por seus proponentes.

A metodologia que norteia o projeto do curso tem base na pesquisa de narrativa autobiográfica e o objetivo é contribuir com a formação de educadores a partir da criação de um espaço biográfico, experienciando essa metodologia de formação a fim de que narrativas autobiográficas sejam valorizadas em processos de ensino e aprendizagem com crianças, jovens e adultos. Ao todo, foram oferecidas 68 vagas para educadores egressos da especialização, sendo o público convidado através de lista de contato, com cerca de 232 endereços eletrônicos. Também foram disponibilizadas cerca de 30 vagas para acadêmicos da Pedagogia a Distância, com convite realizado pelo proponente. O curso teve duração de 60 horas e foi dividido em três módulos, no primeiro semestre de 2018, sendo os participantes certificados de acordo com sua participação nas atividades.

Ao todo, foram inscritos 73 cursistas no projeto: 47 egressos da especialização e 26 da Pedagogia, concluindo com 23 certificações. Dos inscritos, 14 nunca entraram na sala do curso e 32 cursistas, embora tivessem realizado o acesso, não realizaram as atividades obrigatórias. Um pequeno grupo de 5 cursistas, apesar de acompanharem os debates até praticamente o final das atividades, também não realizaram as tarefas necessárias à certificação.

Os dados de evasão apontados acima certamente servirão de reflexão para os proponentes do curso, mas especula-se que estão ligados tanto às condições do calendário escolar, especificamente em relação às atividades docentes de final de bimestre, quanto às condições de certificação estabelecidas, que exigiram dos cursistas estudos e produções autobiográficas qualificadas, como requerido na metodologia de formação narrativa.

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Por não ser uma perspectiva de formação instrucional e instrumental, neste tipo de formação, como foi visto, o sujeito tem que sair de sua zona de conforto, de seu estado passivo, para um sujeito ativo e produtor de conhecimento acadêmico. Por não se tratar de uma formação aligeirada e superficial, que mexe e remexe com questões da subjetividade, o percentual de evasão tende a aumentar, ainda que o memorial de formação acadêmica seja construído paulatinamente ao longo do curso.

Nesta terceira edição, o conteúdo do curso foi ampliado para três módulos de ensino, ganhando em densidade teórica. Os recursos didáticos também foram ampliados, passando-se a contar com dois livros digitais, sendo o segundo voltado para a Jornada do Herói.

A jornada do herói como metodologia autobiográfica de formação

Enquanto metodologia de formação, a narrativa autobiográfica consiste num importante espaço onde, através da descrição de experiências, atitudes, aspirações e objetivos, o sujeito pode referenciar-se enquanto fonte de conhecimento. Conhecendo-se melhor, tanto pessoal quanto profissionalmente, o narrador autobiográfico tem a oportunidade de elaborar um projeto de formação mais dinâmico e individualizado, decorrendo em melhores resultados. Lembremos, por exemplo, que Bakhtin (2003) compara a visão retrospectiva da autobiografia com o olhar-se no espelho, que possibilita ao indivíduo definir-se e construir uma identidade, ainda que móvel e sujeita à interpelação constante (HALL, 2001).

E este é o pressuposto para compreender a Jornada do Herói como um importante recurso analítico, afinal, Campbell (2007) diz que uma boa vida seria aquela com uma jornada do herói após a outra, em que atendemos o chamado da aventura para buscar novos horizontes.

Assim, sob a perspectiva autobiográfica, concebe-se que o sujeito pode assumir a responsabilidade por seu processo formativo de maneira permanente e autônoma, porque a “autoformação pressupõe uma experiência com o conhecimento, uma reorganização interna do sujeito frente à vida, à produção de sentidos, à transformação pessoal” (CHENÉ, 1988, p. 89).

Em linhas gerais, todas as histórias constituem-se por elementos estruturais comuns, identificados inicialmente nos trabalhos de Vladimir Propp, mas cuja ênfase foi obtida através da obra de Joseph Campbell (2007), que acabou descortinando a noção de monomito, ou seja, de que todas as histórias na verdade seguem um padrão comum e universal recorrente em todas as culturas e épocas, recontado em variantes infinitas, constituindo aquilo que conhecemos como a Jornada do Herói. Para nossa análise, contudo, utilizamos os referenciais de Christopher Vogler (2015), por tratar-se de um guia prático para escritores de fácil compreensão e, portanto, facilmente adaptável para um projeto de formação em EAD.

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Em princípio, apesar das inúmeras variantes possíveis, a história de um herói é sempre caracterizada por uma jornada na qual um indivíduo, por alguma motivação, abandona seu ambiente confortável e comum para se aventurar em um mundo desafiador e desconhecido, onde forças antagônicas irão agir. Em toda história, o herói sempre segue em transformação, num processo de crescimento e de amadurecimento. Há que se destacar, contudo, que quando falamos em heróis, não estamos reverenciando figuras sobre-humanas, pois consideramos que essa figura representa o protagonista de uma história, seja ela qual for.

Assim, a jornada a qual empreenderá o herói esforços em busca de um objetivo, pode ser resumida da seguinte forma: 1. Os heróis são introduzidos no mundo comum, onde 2. recebem o chamado à aventura, mas 3. ficam relutantes no início ou recusam o chamado; contudo, 4. são incentivados por um mentor a 5. cruzar primeiro limiar e entram no Mundo Especial, onde 6. encontram provas, aliados e inimigos. 7. Aproximam-se da Caverna Secreta, cruzando um segundo limiar, 8. onde passam pela provação. Por terem seguido em frente 9. tomam posse da recompensa e 10. são perseguidos no caminho de volta ao Mundo Comum. 11. Cruzam o terceiro limiar, vivenciam uma ressurreição e são transformados pela experiência. E, por fim, 12. Retornam com o elixir, uma bênção ou tesouro para beneficiar o Mundo Comum (VOGLER, 2015).

As histórias também contam com personagens arquétipos, que são aquelas figuras que representam padrões antigos de personalidade e que cumprem a função de uma herança compartilhada da humanidade em seu inconsciente coletivo, classificados conforme suas funções na narrativa: herói, mentor/sábio, guardião do limiar, arauto, camaleão, sombra, aliado, pícaro (VOGLER, 2015).

Entretanto, a Jornada do Herói não é uma fórmula matemática a ser aplicada com rigidez numa narrativa, mas seus elementos podem ser arranjados de forma livre, cumprindo sua função na tessitura do drama, cuja matriz coordena a busca de um objetivo, fio condutor daquela aventura.

São estes os aspectos que nos levam a considerar a Jornada do Herói como um guia narrativo de grande valor para aplicar numa proposta de autoreferenciamento formativo para professores com base em suas histórias de formação.

A visão dos cursistas sobre o curso

O curso “Narrativa, Autobiografia e Formação de Educadores” foi organizado em torno de uma reflexão sistematizada sobre um recorte de formação dos cursistas envolvidos, especificamente aqueles egressos do Curso de Especialização em Educação na Cultura Digital da UFSC.

Para a elaboração de uma narrativa centrada no recorte de formação sugerido, curso foi projetado em torno de três grandes eixos, a saber: 1. Narrativa, pesquisa e história de vida; 2. A narrativa autobiográfica à luz da jornada do herói; 3. Construção do memorial de formação acadêmica. Em geral, os cursistas foram convidados a seguir uma trilha onde foram apresentadas questões referentes à narrativa de vida enquanto metodologia de formação, cujos aspectos foram então aprofundados com as discussões sobre a jornada

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do herói. Em fóruns específicos, cada um foi convidado a apresentar um breve relato em que fossem identificados os passos de sua jornada e os arquétipos envolvidos. Em posse deste esquema narrativo, os cursistas passaram a descrever sua jornada de forma detalhada e elaborada, construindo, portanto, seu memorial formativo.

De forma geral, os cursistas descreveram certa dificuldade em se autoreferenciar enquanto objeto de estudo de formação, o que podemos ler no seguinte comentário: “O curso foi um tanto desafiador, afinal é muito diferente de tantos outros, pois falar de nós mesmos, muitas vezes, parece muito difícil” (Cursista C). Apesar da dificuldade, contudo, houve um resultado positivo frente à proposta, de modo que um dos cursistas relatou que “[...] repensar nossos momentos que passamos durante o curso de formação, nos traz momentos bons e momentos que queremos esquecer, mas acima de tudo, nos traz a vontade de fazer mais, traz à tona pensamentos que oportunizam nosso crescimento [...]” (Cursista A).

Na avaliação do curso, 71,4% dos participantes consideraram o curso excelente e, 28,6%, o consideraram bom. A respeito do conteúdo do curso como referencial de escrita e análise formativa, 64,3% consideraram excelente, enquanto que 35,7% acharam bom. Sobre metodologia utilizada no curso como referencial de escrita e análise formativa, 71,4% acharam excelente, 21,4% bom e 7,1% razoável. O acompanhamento dos professores aos cursistas foi considerado bom por 14,3 % dos cursistas e excelente por 85,7% dos avaliadores.

O que pudemos observar é que o curso teve uma boa receptividade e que fomentou reflexões importantes para que os cursistas pudessem olhar para sua própria história de vida e formação como fonte de conhecimento e aprendizagem, de tal forma que quando perguntados se consideravam que o curso conseguiu fornecer novos conceitos, habilidades ou compreensões para a prática docente, 93% dos cursistas disseram que sim e 7% não sabiam responder. O resultado foi idêntico ao do questionamento sobre a satisfação do cursista diante de suas expectativas iniciais com relação ao curso.

O retrato da formação oferecida pode ser apresentado de forma mais efetiva através do seguinte comentário de um dos cursistas: “Precisamos realizar mais formações como esta. Uma reflexão sobre os caminhos por nós percorridos torna-se fundamental. Com este exercício conseguimos olhar para nós e observar nossos avanços no processo de aprendizagem individual”. (Cursista B).

Tais relatos nos fazem crer que a narrativa autobiográfica consiste numa importante ferramenta de formação, cujos resultados precisam ser apreciados com maior ênfase nas propostas de ensino com foco na formação de professores.

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Considerações finais

A formação de professores tem reiterado a reprodutibilidade de um modelo educacional centrado no poder, estruturalmente hierarquizado. Acontece que, diante das novas tessituras decorrentes do cenário mais atual, vivemos a iminência de identidades mais voláteis, cada vez mais cambiantes com o universo situacional, o que tem colocado em questão a manutenção de projetos educativos centrados num padrão tradicional de escola e de educador.

Neste cenário, temos assistido à projeção das narrativas de vida como uma alternativa interessante para fomentar as experiências individuais, o que projeta a oportunidade de se valorizar a própria existência como objeto de aprendizagem e de autoaprendizagem. Este é, em linhas gerais, o embasamento que sustenta a proposta de trabalho desenvolvida no curso ofertado.

A proposta, por apresentar um referencial pouco conhecido pelos professores, obteve significativa recusa de parcela dos inscritos, que acabaram abandonando o projeto. Também houve um número considerável de professores que, mesmo tendo solicitado inscrição, nunca adentraram à plataforma de aprendizagem. Supomos que a desistência, a ser comensurada futuramente, também tem relação direta com o período de realização do curso, ou seja, no final do bimestre escolar, quando os professores estão absortos em suas atividades avaliativas, com prazos extremos e ritmo desenfreado, o que certamente compromete qualquer planejamento formativo.

Os professores concluintes, por sua vez, indicaram em suas análises e avaliações grande aproveitamento da experiência narrativa para reflexão de suas rotinas, histórias e rumos. Assim, consideramos que a proposta atende a necessidade de formação continuada e também tenciona os professores em suas práticas para refletirem, fomentando um projeto autoformativo que possa ir além do período do curso, constituindo-se como uma guia de formação continuada autoaplicável permanentemente e também replicável de forma fácil entre os educandos e colegas de profissão.

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