A GAROTA DA BANDA estou usando um macacão florido da Patricia Field, que comprei porque me lembrava...

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A GAROTA DA BANDA Uma autobiografia KIM GORDON Tradução de Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias

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A GAROTA DA BANDAUma autobiografia

KIM GORDON

Tradução deAlexandre Matias

e Mariana Moreira Matias

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Goo eNeil Young

EM 1990, O SONIC YOUTH já estava junto há dez anos, e tínhamos final-mente assinado com uma major. Não gostamos do trabalho que a Blast First e a Capitol fizeram com o Daydream, por isso decidimos ir atrás das gravadoras major. Na época, estávamos sem empresário, então nosso advogado, Richard Grabel, espalhou a notícia. Nós tínhamos visto ou-tras bandas independentes assinarem com majors – The Replacements, Hüsker Dü – e se darem mal, por isso fomos cautelosos. Mas estávamos confiantes de que nossa banda já estava junta há tempo suficiente para garantir que, se por alguma razão o negócio com a major não desse certo, nós iríamos sobreviver, e que qualquer um que assinasse com a gente sa-beria com quem e o que eles estavam trabalhando – uma banda não-exa-tamente-comercial, com bastante credibilidade da crítica, que poderia

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talvez trazer algo para a gravadora além de estar na lista das top 10 músi-cas mais tocadas. Nós também estávamos muito curiosos para ver como mais dinheiro para a produção afetaria nosso som pouco convencional.

As críticas logo começaram. Tínhamos nos vendido. Como o Sonic Youth podia assinar com uma gravadora tão grande e empresarial como a Geffen? Não é como se a gente não tivesse ouvido todas as histórias sobre o próprio David Geffen, incluindo a briga que ele teve com Neil Young depois do lançamento dos discos Trans e Everybody’s Rockin’, do Neil. Geffen processou Neil por violar seu contrato ao lançar álbuns que eram “musicalmente destoantes das gravações anteriores de Young” ou algo assim. A ação foi resolvida, finalmente, com Geffen pedindo des-culpas. Logo depois que assinamos, Geffen vendeu a empresa e acabou fundando a DreamWorks, com Jeffrey Katzenberg e Steven Spielberg. Era o início verdadeiramente corporativo para a Geffen Records.

O adiantamento que recebemos da Geffen pelo disco significava que era hora de começar a pensar em criar raízes. Thurston e eu compramos um lugar maior, na Lafayette Street, em frente ao Puck Building. Isso foi no meio da recessão, por isso conseguimos um preço ótimo. Era hora, também: o dono do nosso apartamento na Eldrige Street tinha vendido o prédio todo, e um restaurante chinês estava abrindo no térreo.

Em 1991, o grunge estava ficando popular, graças à gravadora Sub Pop e ao Nirvana. O The New York Times publicou uma entrevista famosa com Megan Jasper, que na época era secretária da Sub Pop, de Seattle, sobre o fenômeno e a cultura do som de Seattle. O artigo dizia que o de-signer Marc Jacobs, que trabalhava para Perry Ellis na época, tinha sido aclamado pelo Women’s Wear Daily como “o guru do grunge” ao exibir manequins com os cabelos com aparência cuidadosamente suja e botas de soldado desamarradas. Megan apresentou ao Times o novo dicionário do grunge. Jeans velhos rasgados, ela disse, eram “wack slacks”. Mole-tom era “fuzz”. Sair com os amigos era “swingin’ on the flippity-flop”. E se você estivesse bêbado, você era um “big bag of bloatation”.

Megan inventou tudo isso, para constrangimento do The New York Times e delírio das pessoas da cena de Seattle. Mas se alguém tinha qual-quer dúvida sobre o poder da música sobre a moda, Kate Moss era um

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exemplo do grunge tanto quanto qualquer apresentação do Nirvana, e a moda pigmentada pela música se espalhou por todos os lugares. Mas a Costa Leste nunca comprou a estética grunge. Em Nova York, havia lojas como a da Patricia Field, na Eighth Street, no East Village, que vendia glitter, plataformas, penas e calças justas de couro prateadas. To-dos os travestis locais faziam compras lá. Eu recentemente vi uma foto minha dessa época, tirada pela Laura Levine para a revista Detour. Na foto, estou usando um macacão florido da Patricia Field, que comprei porque me lembrava da minha mãe nos anos cinquenta. Não que minha mãe usasse coisas floridas, mas o macacão passava uma vitalidade que me lembrava de como minha mãe ficava linda quando ela e meu pai saíam de casa à noite para ir a uma festa. Como muitas das roupas que Patricia Field vendia, era mais balada-moderna que moda-tendência. Eu sempre achei irônico que Pat Field mais tarde tivesse se tornado a figurinista do Sex and the City, levando uma sensibilidade travesti ao americano médio via Carrie Bradshaw.

Gary Gersh, nosso diretor artístico na Geffen, ficou decepcionado quando escolhemos uma ilustração em preto e branco do Raymond Pet-tibon para a capa do Goo. Tenho certeza que ele estava esperando uma foto glamorosa da banda, alguma coisa bem do momento, comigo em destaque, no meio. As ilustrações de Raymond tinham sido usadas em capas de discos de várias bandas da gravadora SST, principalmente as do Black Flag. Nós adorávamos os zines e as ilustrações do Ray e em meados dos anos oitenta eu havia escrito sobre seu trabalho na Artforum; a capa em preto e branco foi baseada no casal do filme Badlands, de Terrence Malick, enquanto o interior era colorido, uma bobagem bagun-çada e pseudo-glam.

No início dos anos noventa, fui lentamente adotando uma nova ideia: a de que se você usa roupas mais sensuais, consegue vender mú-sica dissonante mais facilmente. Eu comecei a criar um visual para mim que tinha a vibe extravagante do fim dos anos sessenta, início dos setenta. Em uma loja em Cleveland, achei uma calça flare com estrelas e listras verdes e brancas, que usei quando abrimos para o Neil Young naquele ano em sua turnê “Ragged Glory”, durante a Guerra do Golfo. Neil sem-

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pre pendurava a bandeira americana no palco. Além disso, eu sempre fui uma pessoa muito mais visual do que na moda, e meu look tinha a in-tenção de ser um pouco bem-humorado. Sempre gostei da forma como Debbie Harry tinha um certo toque de humor, mesmo quando parecia sensual e deslumbrante. Se encaixava com a genialidade de seu disfarce de protagonista feminina, a “Blondie” personagem de desenho animado, uma boneca que podia se vestir em looks e estilos diferentes.

A turnê do Neil Young foi acertada pelo selo Gold Mountain, mas eu também acho que Neil conhecia um pouco do Sonic Youth, apesar de que as outras bandas de abertura fossem todas do elenco de seu agente ou de seu empresário. Abrir para o Neil foi uma experiência maravilhosa, reveladora. Todos nós éramos fãs dele há muito tempo, e sentimos como se fosse nosso primeiro contato real com o mainstream. Obviamente, isso levava todo jornalista de música a perguntar: “Então, como é estar finalmente no mainstream?” Em resposta, posso dizer que a turnê com o Neil Young provou que o Sonic Youth não estava realmente no mains-tream, e que se estivéssemos, o mainstream nos odiava!

Neil sempre atraiu grandes multidões, incluindo legiões de hippies fiéis à sua música. Aquelas mesmas multidões ficavam incrivelmente ofendidas com a gente, ao ponto dos fãs que gostassem ou aplaudissem uma de nossas músicas serem forçados a se calar de maneira agressiva. O Cow Palace, em San Francisco, é um dos únicos espaços de show com a pista aberta, o que permite que o público fique bem próximo do palco durante o show de abertura. Normalmente, durante o que parecia ser um set torturante de vinte minutos, a gente tocava para assentos vazios na frente. Outra banda, Social Distortion, subia ao palco antes da gente, e eles eram os preferidos do diretor de palco do Neil, Tim, pois suas ta-tuagens, jaquetas de couro e cabelo arrumado com gel gritavam “rock”, enquanto Tim nos encarava como a escória de um pântano estrangeiro. Nossa música o perturbava, e ele ficava claramente incomodado porque havia uma mulher na banda. Ele sempre se referia a nós como “mole-ques” ou “punks” e parecia estar sempre esperando que a gente agisse assim, mas nós nunca lhe demos esta satisfação. Eu nunca vou esquecer do primeiro show que fizemos em Minneapolis. A banda estava no refei-

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tório, na fila, esperando nossa vez de comer, quando Tim apareceu atrás da gente e disse: “Andem logo – vocês estão atrasando tudo. O que vocês pensam que estão fazendo, afinal?” Nós nos sentimos literalmente como se estivéssemos na lanchonete da escola, sendo hostilizados por um va-lentão. Durante toda a turnê, quase nunca tivemos a permissão de passar o som, então houve várias noites que cada guitarra que Thurston pegava estava desafinada, já que Keith, um amigo que se tornou nosso primeiro roadie, não tinha nenhuma experiência com nossas afinações e encordo-amentos não convencionais. Às vezes Thurston ficava tão frustrado no palco que quebrava sua guitarra.

Mas o cara das guitarras do Neil, Larry, era incrível, e no dia seguin-te a guitarra do Thurston sempre estava consertada. Pelo baixo ser o úni-co instrumento com afinação normal, eu escapei do drama da guitarra, mas ficava rezando para que nenhuma corda arrebentasse e para que, durante o show, a guitarra do Thurston não voasse e me acertasse. Eu vi-via com medo que ele caísse e se machucasse subindo num amplificador, e às vezes isso me distraía na hora de tocar, imaginando se o show ia ser bom ou ruim pra ele. Tá, então eu sou codependente, porque quando eu olho para trás, para essa turnê, percebo que eu simplesmente queria que tudo funcionasse do melhor jeito que conseguíssemos, mas talvez o rock seja isso, também.

A turnê com o Neil Young foi cansativa: no auge do inverno, um oceano congelado de infinitos vestiários de ginásios. Chegou uma hora em que trouxemos um toca-discos e um abajur, para deixar nossos cama-rins mais aconchegantes, o que ajudou. E sempre havia a esperança de que Neil apareceria antes de entrar no palco, o que aconteceu algumas vezes. Mas a pessoa que passava mais tempo com a gente era o guitarris-ta de longa data do Neil, Frank Sampedro, mais conhecido como Pon-cho. Poncho era os ouvidos de Neil, e praticamente tudo o que dissemos na frente dele acabou chegando ao Neil. Eis um exemplo. Nossa amiga Suzanne estava cuidando da iluminação de nossos shows e Poncho ou-viu a gente comentando que nós duas achávamos que Neil devia cortar o cabelo. Um dia, durante a turnê, Poncho foi até Suzanne e perguntou se ela estava a fim de dar uma aparada no cabelo do Neil.

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Tem duas coisas específicas que eu me lembro sobre o Poncho. A primeira é o quanto ele gostava “das moças”, o que significava que to-das as vezes que alguém da equipe ou da banda de Neil fazia aniversário, strippers se materializavam ao lado do palco. A segunda é que depois de cada show, Poncho preparava um jantar para Neil em seu ônibus. Uma noite eu disse que eu cozinharia – Poncho poderia escolher quando. O antigo motorista do ônibus de Neil, que era sempre simpático com a gente, se ofereceu para buscar os ingredientes para o prato de frango que eu planejava fazer. Infelizmente ele se esqueceu, e acabou fazendo uma viagem de emergência ao KFC para comprar uma porção de asinhas de frango cruas. Eu fiquei nervosa pensando se elas iriam fazer Neil pas-sar mal, mas felizmente isso não aconteceu.

Naquela noite, Thurston e eu fomos ao ônibus de Neil para cozi-nhar e bater papo. Thurston estava em casa: Neil e ele conversaram sobre punk rock, assunto que Thurston poderia ficar falando por dias a fio. Neil era incrível. Ele ficou lá sentado ajustando o som de uma vaca que mugia de um de seus trens elétricos. “Você acha que está muito agudo?”, disse. “Que tal assim? Está melhor?”, e então pegou a chave de fenda e fez os ajustes. Neil gostava muito da nossa música “Expressway to Yr. Skull” – ele diria mais tarde que achava que era a melhor música jamais escrita para guitarra – e comentou que de vez em quando ia até o palco se alon-gar durante o longo final daquela música. Isso pode parecer ridículo, e até um completo eufemismo, mas Neil sempre nos deu um grande apoio.

Naquela noite ele também nos mostrou o filme inédito de sua turnê de retorno pela Europa, “Muddy Tracks”, que ele mesmo havia filmado com uma câmera que levava para toda parte. Ele chamava a câmera de “Auto”, o que eu achava fascinante. Durante os shows, Neil a colocava em cima de seu amplificador. No ônibus, ele a deixava no para-brisa enquan-to dirigiam de cidade em cidade, capturando as impressões da estrada à noite. Como era de se esperar, o áudio era barulhento, mas ótimo. Thurs-ton disse a Neil que ele devia lançar um single com exatamente aquilo, um som industrial chiado, como microfonia no vento. Em resposta, Neil acabou gravando um álbum inteiro de microfonia ao vivo chamado Arc.

Voltei a pensar em Bruce Berry, o roadie do Crosby, Stills, Nash & Young que teve uma overdose, e de como ele tinha sido a inspiração para

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Neil em sua música “Tonight’s the Night” e seu LP homônimo. Eu fiquei espantada ao perceber como o mundo era pequeno. Ícones que eu nun-ca imaginei que conheceria agora faziam parte da minha vida. Quando o Social Distortion saiu da turnê, Thurston e eu demos fitas cassete do Nirvana e do Dinosaur Jr. para o Neil. Eu não sei se ele chegou a ouvir, mas seis meses depois, o álbum Nevermind, do Nirvana, estourou. Seguin-do a tradição de como o rock corporativo funcionava, uma outra banda da agência que marcava os shows do Neil, Drivin’ N’ Cryin’, foi quem se juntou à turnê. O Sonic Youth pode não ter conquistado nenhum fã enquanto excursionou com Neil, mas nossa visibilidade aumentou. De repente, revistas como a Spin entravam em contato comigo para fazer ensaios fotográficos, e mais tarde naquele ano Neil nos convidou para tocar em seu show em benefício da Bridge School. Neil e sua esposa, Pegi Young, começaram a fazer shows beneficentes para a Bridge School no meio dos anos oitenta para ajudar a fundar e financiar a escola em Hillsborough, Califórnia, que presta assistência a crianças com problemas de comunicação e deficiências físicas. Neil tem dois filhos, Zeke e Ben, que possuem paralisia cerebral. É um evento de caridade estritamente acústico, e o Sonic Youth nunca tinha tocado de forma acústica antes. Eu tinha trazido uma guitarra para destruir, porque eu tinha uma estranha sensação naquela noite de que as coisas estavam fadadas a falhar.

Durante a passagem de som, nós conseguimos ouvir nossas guitarras, mas, quando fomos tocar, não ouvimos nada. Para nós, uma banda que dependia da interação das guitarras, era a pior situação possível, além disso, estávamos tocando para um público que gostava de rock tradicio-nal. Tínhamos chegado no meio de uma versão cover de “Personality Crisis” quando eu gritei “Foda-se!” no microfone e destruí o violão que estava ao lado. Willie Nelson então apareceu para tocar um pot-pourri de suas músicas, seguido por Don Henley, acompanhado por uma banda inteiramente elétrica. Eu me senti péssima por ter gritado “Foda-se!”, principalmente quando saímos do palco e vi uma fileira de crianças em cadeiras de rodas no backstage. Eu havia me esquecido de que elas esta-vam lá. Mais tarde, Ben, o filho de Neil, veio até mim em sua cadeira de rodas. “Todo mundo tem um dia ruim às vezes”, ele me disse.