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A GAROTA DA BANDA Uma autobiografia KIM GORDON Tradução de Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias

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A GAROTA DA BANDAUma autobiografia

KIM GORDON

Tradução de Alexandre Matiase Mariana Moreira Matias

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1É ENGRAÇADO PENSAR no que você se lembra, e por quê, ou se aquilo aconteceu mesmo, pra começo de conversa. Minha primeira opinião so-bre Rochester, Nova York: céu cinzento, folhas coloridas e escuras, salas vazias, nenhum pai por perto, ninguém olhando ou tomando conta da loja. É o interior do estado de Nova York que eu estou relembrando ou alguma cena de um filme antigo?

Talvez seja um filme que meu irmão mais velho, Keller, e eu vimos na televisão – Os dedos da morte. Eu tinha 3 ou 4 anos. Peter Lorre faz o papel de um homem que é deixado de fora do testamento de seu che-fe, um pianista famoso que acabou de morrer. Ele se vinga decepando a mão do pianista, e pelo resto do filme a mão não para de atormen- tá-lo. Ela anda e se esgueira por todo o imenso casarão. Ela toca notas

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e acordes sombrios no piano, e se esconde em um armário de roupas. À medida que o filme avança, Peter Lorre vai ficando mais louco e sua-do, até que no final a mão o alcança e o estrangula.

“A mão está debaixo da sua cama”, Keller me disse depois. “Ela vai sair no meio da noite, enquanto você estiver dormindo, e vai te pegar.”

Ele era meu irmão mais velho, então por que eu não iria acreditar nele? Nos meses seguintes, eu vivi em cima do meu colchão, me equi-librando com os pés descalços para me vestir de manhã. Eu adormecia à noite cercada por um exército de bichos de pelúcia, os menores perto de mim, um grande cão com uma língua vermelha vigiando a porta, não que qualquer um deles pudesse ter me defendido contra a mão.

Keller: uma das pessoas mais singulares que já conheci, a pessoa que mais do que qualquer outra no mundo todo moldou quem eu era, e quem eu acabei virando. Ele era, e ainda é, brilhante, manipulador, sádico, arrogante, quase insuportavelmente articulado. Ele também é doente mental, um esquizofrênico paranoico. E talvez por ele ter sido tão incessantemente verbal desde o início, eu me transformei no seu oposto, a sua sombra – tímida, sensível, fechada, até o ponto em que, para superar minha própria hipersensibilidade, eu não tive escolha senão me tornar destemida.

Uma antiga foto em preto e branco de uma casa pequena é tudo o que eu tenho para provar que Rochester foi onde nasci. Preto e branco combina com a cidade, com seus rios, aquedutos, fábricas e invernos intermináveis. E quando minha família foi para o Oeste, Rochester foi esquecida como qualquer canal de parto.

Eu tinha 5 anos quando meu pai foi convidado para ser professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Los An-geles (UCLA), e nós – meus pais, Keller e eu – fomos para Los Angeles em nossa velha caminhonete. Quando chegamos aos estados do Oeste, eu me lembro de como minha mãe ficou empolgada em pedir batatas fritas no estilo hash browns em um restaurante de beira de estrada. Para ela, as hash browns eram uma coisa do Oeste, um símbolo, cheio de um significado que ela não conseguia exprimir.

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Quando chegamos em Los Angeles, ficamos em uma pocilga chama-da Motel Seagull, provavelmente um dos milhares de lugares idênticos com o mesmo nome na costa da Califórnia. Este Motel Seagull ficava à sombra de um templo mórmon, uma enorme estrutura monolítica no topo de uma colina, rodeada por hectares de grama verde, farta e bem aparada, que ninguém estava autorizado a pisar. Por toda parte havia sistemas de irrigação com sprinklers, pequenos aparelhos metálicos aqui e ali girando e trabalhando o tempo todo. Nada era originário dali – nem a grama, nem a água da irrigação, nem qualquer uma das pessoas que eu conheci. Até ver o filme Chinatown, eu não sabia que L.A. era, antes de tudo, um deserto, uma extensão infinita de vegetação rala e espaçada. Aquela foi a minha primeira impressão do paisagismo de L.A.

Também não fazia ideia de que ir para a Califórnia significava um retorno às raízes da minha mãe.

Na minha família, a história aparecia em comentários casuais. Eu estava no meu último ano do ensino médio quando minha tia me disse que a família da minha mãe, os Swalls, era uma das famílias originais da Califórnia. Pioneiros. Colonizadores. A história conta que, junto com alguns parceiros de negócios japoneses, meus tataravós administravam uma fazenda de pimenta em Garden Grove, em Orange County. Os Swalls tinham até uma fazenda em West Hollywood, na Doheny Drive e Santa Monica Boulevard, em um lugar em que hoje só há lava a jato e galerias comerciais e estuque ruim. Em algum momento a ferrovia insta-lou trilhos, dividindo a rua em Big e Small Santa Monica Boulevard. As fazendas não existem mais hoje em dia, é claro, mas a Swall Drive ainda está lá, serpenteando de norte a sul, um fóssil de DNA ancestral.

Eu sempre achei que há algo geneticamente incutido e inato nos californianos – que a Califórnia é um lugar de morte, um lugar para o qual as pessoas são atraídas porque não percebem, no fundo, que elas na verdade têm medo do que querem. Tudo é novidade, e elas estão fugin-do de suas histórias enquanto ao mesmo tempo correm em direção à sua própria extinção. Desejo e morte se misturam com a emoção e o risco do desconhecido. É uma variação do que Freud chamou de “instinto de morte”. Nesse sentido, os Swalls provavelmente não eram diferen-

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tes de qualquer outra família da Califórnia daquela época, demarcando um novo lugar, atraídos pela corrida do ouro e atingindo uma muralha de oceano.

Do lado dos Swalls também havia o pai da minha mãe, Keller Eno Coplan, um bancário. Diz a lenda que um dia ele falsificou um cheque que pertencia a seus próprios sogros e foi preso. Meu pai sempre ria quando falava do meu avô, dizendo coisas como “ele não era burro, só não tinha nenhuma noção”. Era estranho, portanto, e não exatamente uma bênção, que meus pais tenham dado ao seu único filho o nome dele. Tradição de família, eu acho.

Com o marido na prisão, minha avó se mudou com os cinco filhos, incluindo minha mãe, que era jovem na época, para o norte da Califór-nia, para ficar mais perto do clã, em Modesto. Durante a Depressão, mi-nha avó fez as malas e mudou-se novamente, desta vez para o Colorado, onde a família de seu marido tinha raízes. Quando meu avô não estava na prisão, ele vagava pelo país à procura de trabalho. Sem dinheiro e com cinco filhos para alimentar, ela deve ter sofrido bastante.

A única razão pela qual eu sei disso é porque minha tia descobriu que um de seus trabalhos temporários era vender lápis. Acontece que apenas ex-presidiários conseguiam esses trampos.

Em algum momento, minha avó e seus filhos acabaram transfor-mando o Kansas em seu lar permanente. Foi lá que meus pais se co-nheceram quando tinham vinte e poucos anos, em uma pequena cidade chamada Emporia, onde os dois faziam faculdade.

Meu pai, Wayne, era do Kansas, de uma grande família de agriculto-res, com quatro irmãos e uma irmã. Ele era frágil quando pequeno, com um problema no ouvido médio que o impediu de se alistar nas Forças Armadas ou ser convocado. Ele foi a primeira pessoa de sua família a fre-quentar a faculdade, e sonhava em um dia dar aulas na universidade. Para ajudar a pagar a mensalidade, ele foi professor do ensino fundamental em uma escola com uma única classe em Emporia, do primeiro ao sexto ano, ensinando desde formas e cores até ortografia, história e álgebra.

Meus pais se casaram durante a faculdade, e depois de se formarem pela Universidade de Washington em Saint Louis, onde Keller nasceu,

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foram para o norte do estado de Nova York e Rochester, onde meu pai começou a escrever sua tese de doutorado. Três anos depois, eu cheguei. A história de como meus pais se conheceram vinha à tona apenas em coquetéis, com detalhes sempre incompletos. Meu pai era desmiolado, minha mãe gostava de dizer, acrescentando que seu hábito de fazer pi-poca na casa dela sem colocar a tampa na panela na época do namoro quase a fez repensar a ideia de se casar com ele. Ela sempre dizia isso rindo, embora o que ela tentasse dizer, talvez, era que meu pai não era tão centrado e responsável como parecia.

Os nomes na nossa família – Keller, Eno, Coplan, Estella, Lola – sempre me fazem pensar se há algo mediterrâneo na mistura. Há tam-bém o lado “de Forrest”, da mãe da minha mãe, que era francês e ale-mão, mas com um traço italiano também, olhos brilhantes e sobrancelhas estilo Groucho Marx misturados com toda a lisura do Kansas. O Kansas foi onde, até morrer no ano passado, aos 92 anos, a irmã da minha mãe – a fonte de tudo o que sei sobre a história da minha família – viveu em uma casa de fazenda no final de uma longa estrada de terra. Ela foi uma mu-lher que durante toda a vida eu nunca ouvi dizer sequer uma palavra de autopiedade. Com ela morreram todas as histórias do passado da minha família. Meus pais não me contaram quase nada.

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