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A GESTÃO MATERIAL NO PROCESSO CIVIL E A LARISSE CAMPELO MESSIAS O MOVIMENTO OLÍMPICO E O PLURALISMO JURÍDICO Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas/Menção em Direito Constitucional JULHO/2016

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    VICTRIA HOFFMANN MOREIRA

    A GESTO MATERIAL NO PROCESSO CIVIL E A BUSCA DA DECISO JUSTA

    Mestrado em Cincias Jurdico-Civilstica/Meno em Direito Processual Civil

    JULHO/2016

    VICTRIA HOFFMANN MOREIRA

    A GESTO MATERIAL NO PROCESSO CIVIL E A BUSCA DA DECISO JUSTA

    Mestrado em Cincias Jurdico-Civilstica/Meno em Direito Processual Civil

    JULHO/2016

    LARISSE CAMPELO MESSIAS

    O MOVIMENTO OLMPICO E O PLURALISMO JURDICO

    Mestrado em Cincias Jurdico-Polticas/Meno em Direito Constitucional

    JULHO/2016

  • LARISSE CAMPELO MESSIAS

    O MOVIMENTO OLMPICO E O PLURALISMO JURDICO

    THE OLYMPIC MOVEMENT AND THE LEGAL PLURALISM

    Dissertao apresentada Faculdade de

    Direito da Universidade de Coimbra no mbito

    do 2. Ciclo de Estudos em Direito (conducente

    ao grau de mestre), na rea de Especializao

    em Cincias jurdico-polticas, meno em

    Direito Constitucional. Orientadora: Prof.

    Doutora Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares

    da Silva.

    Coimbra

    2016

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    O que importa na vida no tanto o triunfo, mas o

    combate; o essencial no ter vencido, mas ter

    lutado bem.. (Pierre de Frdy, o Baro de Coubertin)

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, Pai que sempre me levantou quando pensava no ter mais

    foras.

    Aos meus pais, Luiza de Marilac Campelo e Raimundo Jos Messias Filho, por

    me possibilitarem trilhar essa jornada com dignidade.

    Ao meu irmo Antonio Vinicius Campelo de Moraes, por ser meu melhor

    amigo, o meu companheiro de jornada.

    A todos meus queridos amigos que estiveram ao meu lado mesmo com um

    oceano entre ns. Em especial, agradeo Renata Colares Viana que, nos ltimos dois

    anos, tem sido meu infalvel porto seguro.

    Por fim, agradeo Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e aos

    meus professores: Prof. Dr. Mrio Alberto Pedrosa Reis Marques, Prof. Dr. Joo Jos

    Nogueira de Almeida, Prof. Dr. Fernando Alves Correia e, em especial, a minha

    orientadora, Prof. Suzana Tavares da Silva.

  • 4

    RESUMO

    O presente trabalho discorre sobre a possibilidade de se encarar o Movimento Olmpico

    como meio de concretizao da ordem jurdica transnacional relativa ao contexto

    desportivo, perseguindo o objetivo de analisar o contexto regulatrio criado por atores

    no estatais que desmistificam a ideia do Estado como detentor do monoplio da

    produo jurdica. Temos nossa pesquisa orientada pelo seguinte problema: sob quais

    condies podemos afirmar que a globalizao dos processos sociais, particularmente do

    desporto, tem levado emergncia de verdadeiras ordens jurdicas cuja criao ultrapassa

    a ideia de Estado? Para tanto, apresentaremos o quadro evolutivo institucional do

    desporto moderno propiciando a inteligncia de sua estrutura regulatria global hodierna.

    Na segunda parte, oferecemos os aportes tericos que viabilizam afirmar a existncia de

    um ordenamento jurdico desportivo a partir de uma leitura baseada no pluralismo

    jurdico, centrando nossa anlise na teoria do institucionalismo jurdico e na ideia de

    globalizao e transnacionalizao do direito. Por fim, apresentamos o Movimento

    Olmpico e seus aspectos jurdico-institucionais aptos a alicerarem nosso estudo, bem

    como as implicaes jurdicas que permeiam a manifestao desportiva mais universal

    do planeta: os Jogos Olmpicos.

    PALAVRAS-CHAVES: Movimento Olmpico; desporto; globalizao; Pluralismo

    Jurdico; Jogos Olmpicos;

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    ABSTRACT

    This paper discusses the possibility of facing the Olympic Movement as a means of

    implementation of the transnational legal order on the sporting context, pursuing the

    objective of analyzing the regulatory framework created by non-state actors that

    demystify the state idea as monopoly holder legal production. We have our research

    guided by the following problem: Under what conditions can we say that the globalization

    of social processes, particularly sport, has led to the emergence of true legal systems

    whose creation goes beyond the idea of the state? Therefore, we present the progressive

    institutional framework of modern sport providing the intelligence of your today's global

    regulatory framework. In the second part, we offer theoretical contributions that enable

    affirm the existence of a sports law from a reading based on legal pluralism, focusing our

    analysis on the theory of legal institutionalism and the idea of globalization and

    transnationalization of law. Finally, we present the Olympic Movement and its legal and

    institutional aspects able to consolidate our study, as well as the legal implications that

    permeate the most universal sporting event on the planet: the Olympics.

    KEYWORDS: Olympic Movement; sport; globalization; Legal Pluralism; Olympic

    Games;

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    ABREVIATURAS

    AIBA- Associao Internacional de Boxe

    AMA ou WADA- Agncia Mundial Antidoping

    CAS ou TAD- Tribunal Arbitral do Desporto

    CIAS- Conselho Internacional de Arbitragem em matria de desporto

    CIGEPS- Intergovernmental Committe for Physical Education and Sport

    CMA- Cdigo Mundial Antidoping

    CNDD- Comit Nacional de Competio e Disciplina Desportiva

    COI ou CIO- Comit Olmpico Internacional

    CON- Comit Olmpico Nacional

    CONI- Comit Olmpico Nacional Italiano

    COJO- Comit Organizador dos Jogos Olmpicos

    FI- Federao Desportiva Internacional

    FIBA- Federao Internacional de Basquetebol

    FIDEPS- International Fund for the Development of Physical Education and Sport

    FINA-Federao Internacional de Natao

    FIFA- Federao Internacional de Futebol

    JO- Jogos Olmpicos

    MO- Movimento Olmpico

    ONU- Organizao das Naes Unidas

    RFCE- Real Federao Espanhola de Ciclismo

    UCI- Unio Ciclista Internacional

    UNESCO- Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.

    USOC- Comit Olmpico dos Estados Unidos

  • 7

    NDICE

    INTRODUO ............................................................................................................... 8

    1 A RELAO ENTRE O DESPORTO E O DIREITO .......................................... 12

    1.1 A Aproximao do Estado ao fenmeno desportivo: a politizao e a

    constitucionalizao do desporto ................................................................................. 14

    1.2 O fenmeno da globalizao e o desporto ............................................................. 22

    1.2.1.Organizao Desportiva de carter intergovernamental ................................. 26

    1.2.2 Organizao Desportiva de carter no governamental .................................. 28

    1.3 Da Estruturao Global do Desporto ..................................................................... 33

    1.3.1 As Federaes Desportivas Internacionais ...................................................... 34

    1.3.2 Tribunal Arbitral do Desporto como elemento concretizador da ordem

    processual desportiva ............................................................................................... 36

    1.3.3 A agncia mundial antidoping e o Movimento Antidoping: da autorregulao

    corregulao. ......................................................................................................... 42

    2 A EXISTNCIA DE UM ORDENAMENTO JURDICO PARA O

    DESPORTO ................................................................................................................... 47

    2.1 O Ordenamento Desportivo: do positivismo jurdico ao institucionalismo

    jurdico. ........................................................................................................................ 47

    2.2 O Ordenamento Jurdico Desportivo: uma leitura na era da hipercomplexidade. . 59

    2.2.1 Digresses Conceituais ................................................................................... 65

    3 O MOVIMENTO OLMPICO e sua acepo como LEX OLYMPICA ............. 78

    3.1 O Movimento Olmpico: breve narrativa. .............................................................. 82

    3.1.2 A Carta Olmpica como instrumento de natureza universal e constitucional . 85

    3.1.3 O Comit Olmpico Internacional ................................................................... 90

    3.1.2 O exerccio de harmonizao ao sistema olmpico ....................................... 102

    3.1.3 Os Comits Olmpicos Nacionais ................................................................. 106

    3.1.4 Os Jogos Olmpicos e os Comits Organizadores dos Jogos Olmpicos ...... 109

    3.1.4.1 Candidatura organizao dos Jogos Olmpicos ....................................... 112

    3.2 A concretizao da Lex Olympica. ................................................................... 117

    CONCLUSO .............................................................................................................. 128

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 131

    JURISPRUDNCIA .................................................................................................... 141

  • 8

    INTRODUO

    No corrente ano completam-se exatos 120 anos da realizao das primeiras

    Olimpadas da Era Moderna, qual teve como sede a cidade de Atenas, Grcia e contou

    com a participao de 240 (duzentos e quarenta) atletas, todos do sexo masculino,

    representando 14 (catorze) pases, sendo disputadas 9 (nove) modalidades desportivas.

    De l pra c, fcil percebermos a evoluo em termos quantitativos desse evento ao nos

    depararmos com o nmero de 10.500 (dez mil e quinhentos) atletas, sendo estimada a

    participao de mais de 4.676 (quatro mil seiscentos e setenta e seis) mulheres1, tendo a

    representao de 206 (duzentos e seis) pases e disputas de 42 (quarenta e duas)

    modalidades desportivas na projeo para os Jogos do Rio de Janeiro 2016. O custo total

    do evento est preliminarmente orado em 39,1 bilhes de reais2.

    Observando esses dados eminentemente numricos, talvez no possamos

    imaginar o campo frtil que as Olmpiadas podem oferecer ao direito. Tais dados trazem

    consigo muito mais que a evoluo deste evento desportivo na sua corriqueira acepo de

    megaevento, sendo fruto da progressiva evoluo orgnica materializada na

    institucionalizao do Movimento Olmpico que, por sua vez, tem seu desenvolvimento

    umbilicalmente relacionado evoluo do desporto moderno. Restando nos

    questionarmos: o que o desporto tem a ver com o direito?

    O desporto nasce, em princpio, como uma atividade livre, da mesma maneira

    que ainda a simples prtica do exerccio fsico. Por isso, at dado momento de sua

    histria, apenas era encarado como projeo da liberdade e das decises individuais3

    (PALOMAR OLMEDA, 2014, pp.19-23). Destarte, numa primeira interpretao,

    descuidada, convenhamos, poderamos afirmar que o desporto e o direito sequer se

    1 Conforme informa site oficial dos Jogos Olmpicos do Rio de Janeiro A disputa pelas vagas, iniciada em 2014, est em andamento e ser finalizada pouco antes do incio dos Jogos, quando ser confirmada a lista

    oficial de atletas., mas os levantamentos jornalsticos voltam-se a ideia que Apesar de ainda no haver

    oficialmente a confirmao de todos os atletas que participaro dos Jogos Rio 2016, a expectativa que

    essa marca de 4.676 registrada em Londres seja superada, graas incluso de dois novos esportes no

    programa olmpico: o golfe e o rgbi.. (COJORIO, 2016) 2 Esta estimativa foi divulgada em janeiro do corrente ano pela Autoridade Pblica Olmpica (APO), no constituindo como valor total, tendo em vista que este s ser conhecido aps meses ao trmino dos Jogos,

    no s pela magnitude do oramento em si, mas para que tambm possam ser incorporados os eventuais

    gastos durante sua realizao que no foram previamente planejado (COSTA, 2016). 3 No mesmo sentido, Lcio Correia (2008, p.27) afirma que, tendo como provvel nascedouro a Grcia Antiga, na poca que se organizavam os Jogos Olmpico, a atividade desportiva surgiu com os primrdios

    das manifestaes humanas e sua prtica iniciou-se por motivos relacionados com religio, a defesa pessoal,

    a destreza fsica e a educao.

  • 9

    relacionavam, predominando um sentimento de ignorncia mtua ou uma recproca

    indiferena. Isso porque, poderamos achar, e at certo momento da histria esse

    pensamento prevalecia, que o desporto se resumia aos aspectos relacionados ao cio da

    recreao, divertimento e lazer. J o direito, seria relacionado aos assuntos srios da

    vida e entenderia o desporto como traduo de uma law free rea (AMADO, 2003, p.75).

    Contudo, na verdade, o desporto4 sempre esteve intimamente relacionado ao

    direito desde sua gnese em razo de sua prpria natureza, afinal, apenas com a existncia

    de regras se tem viabilizada a competio (AMADO, 2003, p.76). Logo, se temos a

    necessidade de imposio de regras, temos a imprescindibilidade de organizao capaz

    de estabelec-las. At mesmo porque, recordemos, o Direito ordenao da coexistncia

    do homem com qualquer das vertentes da vida social. (PALOMAR OLMEDA, 2014,

    p.19). E o que seria o desporto seno uma das facetas da vida social? A faceta da vida

    social que todo o globo compartilha em comum. A faceta da vida social que traz em seu

    DNA o carter da universalidade.

    Hoje, o desporto como fenmeno milenrio (CORREIA, 2004) encontra-se no

    seu apogeu, levando ao reconhecimento de que vivemos na era do desporto

    (CARZOLA PRIETO, 2013.) ou da desportivizao do planeta (CAILLAT, 1999),

    tornando-se um fenmeno que ressoa nos mais diversos campos: cultural, social, poltico,

    econmico e, conforme demonstraremos com o desenvolvimento deste trabalho, jurdico.

    Logo, este estudo trata-se, tambm, sobre desvendar o mito do no direito no desporto

    (MEIRIM, 2001). Mas vamos alm. O fenmeno desportivo ser nossa lente de estudo,

    em ltima anlise, como instrumento para se compreender ou mesmo dimensionar a

    4 Bermejo (1987, p.614) aduz que no existe uma clara identificacin de lo que por deporte deba entenderse, al menos desde la perspectiva jurdica. Si bien resulta aprehesible uma cocepcin vulgar del mismo, no

    carece de dificultades la delimitacin conceptual jurdicamente relevante, por lo que com toda frecuencia

    se generan conflitos para los que el Derecho no parece proporcionar instrumentos o parmetros de

    solucin. Joo Leal Amado (2002, p.16-17), na mesma linha, assevera: Trata-se, por conseguinte, de um

    fenmeno algo rebelde e de limites bastantes imprecisos, difcil de aprisionar numa qualquer definio. Da

    o paradoxo: sendo um fenmeno de todos conhecido e compreendido, o certo que nem os maiores

    especialistas no lograram, at hoje, defini-lo de modo inteiramente satisfatrio. Assim, e no que cincia

    jurdica diz respeito, no sem razo, que o juristas se tem limitado a pressupor o conceito de desporto,

    raramente se aventurando na busca de uma definio. Por seu turno, nos parece didtica e adequada ao

    presente trabalho o conceituao constante no artigo 2, n 1, alnea a da Carta Europeia de Desporto:

    Entende-se por desporto todas as formas de actividades fsicas que, atravs de uma participao

    organizada ou no, tm por objectivo a expresso ou o melhoramento da condio fsica e psquica, o

    desenvolvimento das relaes sociais ou a obteno de resultados na competio a todos os nveis. Sobre

    tal problemtica ver mais em: TERRET, Thierry. Histria do desporto. Traduo Luiza Mascarenhas.

    Sintra: Publicaes Europa-Amrica.2008, p.8-11 PIRES, Gustavo. Do Jogo ao Desporto, para uma

    Dimenso Organizacional do Conceito de Desporto: Um projecto Pentadimensional de Geometria Varivel.

    Ludens, vol. 14, n. 1, janeiro/maro, 1994, p. 43-60.

  • 10

    prpria complexidade e fluidez do direito na era internacional, transnacional, ps-

    nacional, cosmopolita ou simplesmente globalizada.

    Sob estes auspcios que emerge a presente dissertao, no intento de,

    avalizados por aporte doutrinrio e ftico, avaliarmos a partir de uma dedicada descrio

    do fenmeno do desporto, sob quais condies possvel afirmarmos que a globalizao

    dos processos sociais tem levado emergncia de verdadeiras ordens jurdicas cuja

    criao ultrapassa a ideia de Estado.

    Neste diapaso, optamos por trabalhar sob o enfoque do Movimento Olmpico

    como meio de concretizao da ordem jurdica transnacional relativa ao contexto

    desportivo, tambm, muito pelo fascnio a sua principal manifestao: os Jogos

    Olmpicos. Porm, desde j ressalvamos que para viabilizarmos a sua inteligncia,

    devemos, obrigatoriamente, desvendar a seara da regulao do desporto a nvel global ao

    qual pertence.

    Iniciamos nosso estudo demonstrando a to pouco conhecida relao entre o

    direito e o desporto, propiciando a realizao de um quadro evolutivo que inicia a partir

    do desenvolvimento do desporto moderno na Inglaterra do sculo XVIII, com a genuna

    espontaneidade do fenmeno desportivo que nasce como um campo autorregulado, a par

    da ingerncia estatal. Depois, a aproximao estatal ao fenmeno desportivo que o tornou

    um campo de direito heterogneo, formado por fontes pblicas e privadas. E, enfim,

    fornecemos o panorama estrutural hodierno da regulao do desporto escala global.

    Na segunda parte, nos preocupamos em fornecer os pilares tericos que nos

    permitam imprimir juridicidade ao fenmeno desportivo no sentindo de conceb-lo como

    um ordenamento jurdico. Para tanto, recorremos, sobretudo, teoria italiana do

    institucionalismo jurdico, tendo em vista a necessidade de observar o desenvolvimento

    do ramo do direito desportivo a partir de um olhar pluralstico. Em seguida, na mesma

    tendncia, fornecemos o aporte terico para inteligncia do fenmeno na to propalada

    era complexa/globalizada.

    Por ltimo, nos centraremos na figura institucional do Movimento Olmpico e

    como ponto central do nosso trabalho, investigaremos seus aspectos jurdico-

    institucionais, e, sobretudo, dimensionaremos a existncia de uma lex olympica ou um

    sistema olmpico como manifestao da ordem jurdica internacional/transnacional

    autnoma do desporto, a partir da existncia da Carta Olmpica por se tratar do

    instrumento de valor universal/constitucional no s para o Movimento Olmpico, mas

    para todo o mundo desportivo, e do Comit Olmpico Internacional, por se tratar do

  • 11

    principal constituinte olmpico. Nesse contexto, inevitavelmente, daremos certa nfase

    manifestao mais conhecida e, porque no dizer, mais universal do desporto, os Jogos

    Olmpicos, principalmente no que tange ao aspecto jurdico do ato de um Estado submeter

    uma candidatura formal visando sediar tal evento.

  • 12

    1 A RELAO ENTRE O DESPORTO E O DIREITO

    O desporto tido como um dos fenmenos de carter social, econmico, cultural

    e poltico mais marcantes da humanidade. Ora, hoje, tal qual a globalizao, este

    fenmeno tambm no possui fronteiras, justificando o maior interesse por parte da

    Cincia Jurdica, dada sua tamanha relevncia hodierna. Em razo disto, optamos por

    aclarar a relao entre o Desporto e o Direito de modo que nos permita entender como

    essa interao se estabelece. Portanto, traaremos, preliminarmente, um breve histrico

    do desenvolvimento do desporto moderno.

    De acordo com os ensinamentos de Thierry Terret (2007, pp. 6 e 14-23), a gnese

    do desporto moderno ocorrera na Inglaterra dos sculos XVIII e XIX, tendo como causa

    dois processos principais, um pela propagao da atividade fsica por meio da cultura

    corporal dos grandes proprietrios de terra e, o outro, fruto das transformaes dos jogos

    estudantis das publics schools. Portanto, o desenvolvimento do desporto se deu no seio

    aristocrtico e estudantil ingls, e contou como trs formas de difuso: do

    empreendimento colonial; da imigrao britnica; bem como entre os prprios estudantes

    britnicos em contato com os estrangeiros. Por isso a afirmao de que at a segunda

    metade do sculo XX o desporto era uma atividade restrita a esfera privada da sociedade,

    sendo estranha e indiferente a regulao do campo do direito.

    Todavia, favorecido pela condio poltica, econmica e social fomentada pela

    Revoluo Industrial, j possvel visualizarmos no sculo XIX o apogeu da organizao

    moderna do desporto, tendo a Inglaterra5 papel de destaque na propagao desse

    desenvolvimento ao figurar como nascedouro de vrias modalidades desportivas, bem

    como agente de divulgao dos mesmos pelas colnias britnicas e pelas sociedades

    industrializadas (Amrica do Norte e Europa Ocidental). (TERRET, 2007, p.15).

    Os estudiosos tambm perceberam que a propagao dos desportos esteve

    diretamente relacionada com a geografia dos interesses coloniais econmicos, sociais e

    polticos da Inglaterra. Isso explicaria a difuso do desporto no sculo XIX para pases

    como do subcontinente indiano e para Austrlia e frica do Sul por meio da divulgao

    da modalidade do crquete. J na Amrica do Sul e pela Europa Continental, foi o futebol

    que ganhou relevo nessa difuso e foi exportado por meio das rotas comerciais e

    5 Para maiores informaes sobre o temtica histrica ver tambm GRAYSON, Edward. The Historical Development of Sport and Law. Sport and the Law Journal. Volume 19, issue 2|3, 2011, pp.61-67.

  • 13

    educativas do imprio. J no caso dos Estados Unidos, em razo de sua modernizao j

    se encontrar num estgio mais avanado na poca, no realizou um simples processo de

    assimilao, pois desde o primeiro momento se encaminharam para realizao de prticas

    desportivas autnomas (GUTTMANN,2008, p.250-253).

    Nesse cenrio, constatamos que a base do franco desenvolvimento desportista

    na era moderna foi perpetrada por meio do fenmeno do associativismo privado. Isso

    porque, notamos j na metade do sculo XIX, o incio da institucionalizao do desporto

    por meio da proliferao de entidades desportivas, sobretudo de associaes desportivas

    de carter nacional, bem como a criao de regras desportivas escritas, dando azo s

    competies nacionais (TERRET, 2007, p.08).

    Gabriel Real Ferrer (1991, p.262), que tambm considera a Inglaterra como o

    bero do movimento associativismo privado no mbito do desporto como fator decisivo

    ao seu desenvolvimento, aponta que j no sculo XVIII os primeiros clubes dessa

    natureza foram criados (Jockey Club em 1750 e o Club de Golf de San Andres em 1754),

    tendo incio o protagonismo das associaes desportivas, prtica esta que logo em seguida

    teve continuao nos Estados europeus e sul-americanos.

    J entre os anos de 1800 e 1900, como consequncia natural da proliferao de

    associaes desportivas, houve a necessidade de se constituir federaes para articular

    tais associaes, bem como promover o desenvolvimento de competies desportivas.

    Nesse sentido, em 1863 constituda a primeira federao, Football Association, seguida

    pela criao da Bycyclists Union em 1878 e a Amateur Boxing Association em 1884.

    No ano de 1904, tivemos a criao em solo francs da Federao Internacional de Futebol-

    FIFA, organizao que regula a prtica do futebol a nvel global (GONALVES, 2005,

    p.19; PESSANHA,2001, p.42). Quando da sua fundao contava apenas com sete pases

    (Blgica, Dinamarca, Frana, Espanha, Holanda, Sucia e Sua), hoje possui 209

    (duzentos e nove) membros, superando, dessa forma, o nmero de membros da

    Organizao das Naes Unidas que hoje conta com 193 (cento e noventa e trs) Estados-

    membros (ONU, 2016; FIFA,2016).

    Mas, sem dvida, o ponto auge da organizao institucional do desporto veio a

    partir da realizao do Congresso de Paris em 1894 no qual, graas aos esforos do

    entusiasta Baro de Coubertin, foi criado o Comit Olmpico Internacional (COI), o que

    culminou com o restabelecimento dos Jogos Olmpicos em 1896 em Atenas, Grcia.

    Ponto que retomaremos no ltimo captulo como concluso de nossa anlise jurdico-

    desportiva.

  • 14

    A partir de ento, o desporto desponta como forte fenmeno social,

    principalmente com sua profissionalizao6 e consequente mercantilizao7. Justificando,

    neste cenrio, a tendncia dos anos subsequentes nos quais notamos sua maior

    organizao em escala mundial no sentido de se verificar a criao de associaes e

    rgos autnomos de regulao especificamente dirigidos a seara desportiva, motivada,

    sobretudo, pela normatizao lacunosa do direito estatal. Fato este que levou a

    sedimentao de uma ordem jurdica desportiva, de formao espontnea, assente na

    vontade associativa privada, sem interferncia dos poderes pblicos8 (MERIM,2002,

    p.112).

    Desta forma, facilmente conferimos que o processo de organizao desportiva

    moderna se deu espontaneamente, a par da figura do Estado, tendo como nascedouro e

    principal impulsionador o fenmeno de associativismo privado iniciado na Inglaterra. O

    que ocasionou que a seara desportiva tivesse um direito prprio desde sua gnese

    (GIANNI, 1996, p.71). Apenas aps as Grandes Guerras Mundiais, o Estado comea a

    desempenhar papel significativo e intervm na seara desportiva, em maior ou menor

    intensidade a depender do pas em questo.

    1.1 A Aproximao do Estado ao fenmeno desportivo: a politizao e a

    constitucionalizao do desporto

    Antes de ser possvel identificar a politizao do fenmeno desportivo, conforme

    abordamos, j encontrava-se em franco desenvolvimento a criao de federaes de

    mbito nacional e, ainda, tnhamos o incio a institucionalizao do desporto a nvel

    internacional. Nesse sentido, destacamos que a primeira grande reaproximao do

    homem com o desporto em termo universais fora por intermdio da realizao do

    6 Sobre o profissionalismo do desporto ver CARAVALHO, Maria Jos. Elementos Estruturantes do Regime Jurdico Do Desporto Profissional em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora. 2009 e BERMEJO VERA,

    Jos. El deporte profesionalizado: um passado dudoso, um presente problemtico, um futuro incierto.

    Revista espola de derecho desportivo, n. 33, 2014, p. 11-44. 7 Para Joo Leal Amado (2003, p.83) O estreitamento das relaes do direito (leia-se: direito estadual) e desporto revela-se, alis, como facilmente se compreender, uma consequncia inevitvel do processo de

    profissionalizao/mercantilizao a que este ltimo foi, continua a ser e decerto ser cada vez mais,

    submetido. No que respeita ao desporto, dir-se-ia, pois, que a comercializao + mediatizao +

    profissionalizao = juridificao. 8 Nesse contexto, RIGAUX (1997, pp.386-387) sistematicamente identifica trs fases do desenvolvimento desportivo. A primeira fase da competio desportiva se caracteriza pela natureza ldica e pela no

    profissionalizao atletas. A segunda fase, j a partir dos anos sessenta, caracteriza-se pelo incio da

    profissionalizao. E na terceira e ltima fase temos a comercializao do desporto.

  • 15

    Congresso de Paris em 1894 no qual, graas aos esforos do historiador e pedagogo Baro

    de Coubertin, fora criado o Comit Olmpico Internacional (COI), o que culminou com o

    restabelecimento dos Jogos Olmpicos em 1896 em Atenas, Grcia.

    Destaca-se que o momento histrico era favorvel para o at ento

    desenvolvimento livre e independente da seara desportiva, a par da ingerncia estatal,

    pois na Europa viviam-se os valores do liberalismo. Entretanto, a politizao desta seara

    tem incio na metade do sculo XX, com a transio do Estado Liberal para o Estado de

    Bem Estar Social, sobretudo por meio de vrios regimes ditatoriais europeus que o

    instrumentalizaram como veculo de popularizao de sua ideologia (VIEIRA DE

    ANDRADE, 2006, p.23;)

    Talvez o exemplo mais marcante da politizao do desporto tenha ocorrido na

    Alemanha nazista, na qual o desporto funcionou como verdadeiro veculo do pensamento

    do nacional-socialismo, o que fica patente ao rememorarmos a histria dos Jogos

    Olmpicos de 19369 realizados na capital alem, quando o Estado alemo quis passar ao

    mundo a imagem poltica de paz, tolerncia, ordem e disciplina partindo do pensamento

    do prprio Hitler (1925, p.307) de que a propaganda estimula a coletividade no sentido

    de uma ideia, preparando-a para a vitria da mesma; a organizao tem de ganhar a vitria

    mediante concentrao dos adeptos corajosos, capazes de combater pelo triunfo comum.

    A vitria de uma ideia ser mais fcil quanto mais intensa for uma propaganda (...).

    Em solo espanhol, a ingerncia do Estado se deu a partir do regime ditatorial de

    Franco, no qual, por meio do Decreto de 1941, criou-se a Delegacin Nacional de

    Deportes com o objetivo de representar e dirigir o desporto no pas, com a

    particularidade de que todas as federaes desportivas passassem a ser submetidas

    hierarquicamente a esta instituio estatal.

    Em Portugal, tambm sob regime ditatorial, vislumbramos a aproximao do

    Estado a este fenmeno em 1942, por meio do Decreto-Lei 32.241 de 5 de Setembro, o

    qual instituiu a Direo Geral da Educao Fsica, Desportos e Sade Escolar com

    objetivo de promover e orientar a prtica desportiva sem o escopo, segundo seu

    preambulo, de substituir qualquer organizao preexistente formada de maneira

    espontnea ou sem a interveno do Estado. J no ano seguinte, a interveno do Estado

    9Sobre esse momento histrico mpar ver: MOSTARO, Felipe Fernandes Ribeiro. Jogos Olmpicos de

    1936: o uso do esporte para fins nada esportivo. Comunicao e Entretenimento: Prticas Sociais, Indstrias

    e Linguagens. Vol.19, N 01, 1 semestre 2012 e MANDELL, Richard D. The Nazi Olympics. Ballantine

    Books: New York, 1971.

  • 16

    se intensifica por meio do o Decreto n. 32.946, de 3 de Agosto, o qual promoveu a

    regulamentao do Decreto-Lei 32.241.

    Restou patente o interesse do Estado de utilizar o desporto como instrumento do

    regime ao ressalvar que no teria inteno de eliminar os elementos de organizao

    desportiva que j existiam, mas, aproveit-los desde que tornasse possvel dirigir-lhes a

    atividade e orient-los no sentido de sobreporem aos interesses clubistas o interesse geral,

    substiturem a poltica da vitria do clube seja como for por uma poltica desportiva de

    sabor verdadeiramente nacional. Retratando a submisso do desporto poltica do

    Estado, Jos Manuel Merim (2002, p.108) aponta que teria sido o momento de

    escravido do desporto no cenrio lusitano.

    Fora do contexto europeu, a ditadura brasileira (1964-1985) tambm utilizou o

    desporto como instrumento poltico, nomeadamente o futebol que, como sabemos, tem

    um espao de alto destaque no Brasil. Talvez a conquista da Copa de 70 tenha sido o mais

    marcante acontecimento, pois a seleo de futebol, poca, teve sua imagem e prestgio

    relacionada aos militares, o que favoreceu a chancela do governo de Emlio Garrastazu

    Mdici ao auxiliar no fomento da ideologia do Estado-nacional desenvolvimentista10.

    Hodiernamente, no vislumbramos esse tipo de maniquesmo por parte do

    Estado11. Por outro lado, ainda persiste o prestgio internacional gozado pelo Estado

    quando alcana os primeiros lugares em nmeros de medalhas olmpicas, haja vista que

    tido como sinnimo de desenvolvimento econmico, social e cultural12 (PESSANHA,

    2001, p.19). No por acaso, nas ltimas edies dos Jogos Olmpicos, assistimos a China

    10Sobre o assunto: RAMOS, Roberto. Futebol e Ideologia do Poder. Petrpolis: Vozes, 1984; SALDANHA,

    Joo. Futebol e Outras Histrias. So Paulo: Record, 1998 e FICO, Carlos. Reinventando o otimismo:

    ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. 11No obstante se referirem ao direito lusitano, torna-se interessante a observao sobre o reconhecido

    poder desportivo realizada pelos mestres J.J Canotilho e Vital Moreira (2014, p.937) o desporto hoje

    um fenmeno de massas, dado o nmero de praticantes, de adeptos e espectadores, sendo por isso muito

    tentador o seu aproveitamento ou instrumentalizao para efeitos polticos e partidrios a todos os nveis

    de poder (local, regional e nacional). Por isso, poderia justificar-se o estabelecimento de algumas garantias

    tendentes separao do e poder poltico, quer atravs de incompatibilidade cargos

    nos dois campos, que atravs de medidas de transparncia obrigatria das relaes financeiras entre os

    Estados, as regies autnomas e a autarquias locais, por um lado, e os clubes desportivos, por outro lado.

    Esta incompatibilidades so particularmente delicadas relativamente aos magistrados que no raro

    acumulam os cargos jurisdicionais do Estado com cargo na (separao entre o e o do Estado). (grifo do autor) 12No por acaso, observa-se na prtica um demasiado e intenso envolvimento dos Governos nas

    candidaturas aos Jogos Olmpicos, principalmente no que tange aos aspectos jurdicos e polticos.

    Reforaremos essa anlise no ltimo captulo ao tratarmos sobre a natureza da Submisso formal de um

    Estado quando d a candidatura organizao dos jogos olmpicos.

  • 17

    e os Estados Unidos disputando o primeiro lugar no ranking sendo caracterizada a prtica

    do nacionalismo desportivo nos dias atuais.13

    Ademais, tendo como fundamento que o desporto assunto de interesse

    pblico14, como ntida e definitiva aproximao do Estado ao mundo desportivo, nas

    ltimas dcadas verificamos o fenmeno da constitucionalizao do desporto. Por isso,

    compreensvel o entendimento de que a constitucionalizao do desporto no um

    acontecimento espontneo e, sim, uma evoluo dos deveres e direitos pblicos frente a

    sociedade (CARZOLA PRIETO, 2013, pp. 220-225). Vejamos alguns exemplos deste

    acontecimento.

    A Constituio portuguesa prev no seu artigo 79, ttulo III (Direitos e Deveres

    Culturais) da Parte I (direitos e deveres fundamentais), impondo ao Estado o dever de

    fomentar e proteger a atividade fsico-desportiva e, ainda, reconhece expressamente que

    Todos tm direito cultura fsica e ao desporto. Para Carzola Prieto (2013, p.223), esse

    reconhecimento do desporto como direito de todos leva constatao de que o mesmo

    passa a ser tido como direito do homem pelo ordenamento jurdico portugus.

    J a Constituio espanhola de 1978 dispe no seu ttulo I (direitos e deveres

    fundamentais), captulo III (princpios gerais da poltica social e econmica), artigo 43,

    n.3 que Os poderes pblicos fomentaro a educao sanitria, a educao fsica e o

    desporto. De igual modo facilitaro a fruio do cio. Destarte, podemos abstrair que

    o direito do desporto tem natureza de princpio diretor da poltica do Estado espanhol e

    este tem como obrigao promov-lo ou foment-lo (PESSANHA,2001, p.25).

    13Devemos sair do pressuposto de quase a totalidade do pases do globo utiliza ou j utilizou o desporto

    profissional como ferramenta de promoo do nacionalismo no plano interno e prestgio internacional no

    plano externo. Nesse sentido Koller (2008) afirma que por vrias vezes lderes polticos utilizaram o

    desporto para demonstrar a superioridade de seu sistema poltico, prtica que fica mais evidente no contexto

    do Movimento olmpico (j citamos aqui exemplos como o da Alemanha Nazista). Mas, faz a ressalva de

    que, naturalmente, a prtica do nacionalismo desportivo ganha uma roupagem diferente em cada pas a

    depender da natureza do governo. Sobre a prtica do nacionalismo desportivo ver: BAINER, Alan. Sport,

    Nationalims and Globaization: Relevance, Impact, Consequences. Hitotsubashi Journal of Arts and

    Sciences, 49 (1), 2008, p. 43-53. KOLLER, Dionne L. H. How the United States Government Sacrifices

    Athletes' Constitutional Rights in the Pursuit of National Prestige, 2008. RODRIGUES, Csar.

    Nacionalismo desportivo ps Primeira Grande Guerra: Sucesso em ano de Jogos Olmpicos (1928). Revista

    Portuguesa de Histria, n. 45. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. 14Com a queda dos regimes ditatoriais a postura do Estado alterou-se, terminando o perodo de

    instrumentalizao poltica sistemtica do desporto. No entanto, a hegemonia e independncia alcanadas

    pelo movimento associativo desportivo durante o Estado liberal no voltaria a repetir-se. A massificao e

    a planetarizao conquistadas pelo desporto ao longo do presente sculo no permitiria o regresso s

    origens. Definitivamente, o desporto transformou-se num assunto de interesse pblico, passando a integrar

    o conjunto das preocupaes polticas do Estado contemporneo. (PESSANHA, 2001, p.19)

  • 18

    Ademais, vale pontuar a ingerncia pblica do desporto na Espanha quando

    sabemos que as federaes desportivas so entendidas como entidades privadas investidas

    de poderes pblicos (BERMEJO VERA,1991, p.299).

    Assinala Jos Carlos Vieira de Andrade (2006, p.25) que diferentemente da

    Constituio lusitana, que dispe expressamente do direito do desporto como direito

    fundamental, a constituio espanhola de 1978, em que pese elenc-lo no ttulo dos

    direitos e deveres dos cidados, o faz como uma concepo associada ao direito

    proteo sade, a par da educao sanitria e da educao fsica.

    A Constituio brasileira de 198815 trata de maneira indita o Direito Desportivo

    no ttulo VIII (Da ordem social), captulo III (Da Educao, da Cultura e do Desporto),

    artigo 217, pargrafos 1, 2 e 3, dispondo no caput que dever do Estado fomentar

    prticas desportivas formais e no-formais, como direito de cada um, observados,

    chamando ateno, sobretudo, o inciso I por dispor autonomia das entidades desportivas

    dirigentes e associaes, quanto a sua organizao e funcionamento.

    Para o jurista brasileiro lvaro Melo Filho (2003, p.55), sendo inclusive o

    redator do supracitado inciso I, o aspecto da autonomia desportiva por fora

    constitucional goza de importncia substancial por ser a pedra de toque ou a medula

    espinhal do sistema desportivo nacional e isto foi assim colocado com o escopo de,

    nomeadamente, propiciar s entidades desportivas dirigentes e associaes uma plstica

    organizao e um flexvel mecanismo funcional que permitam o eficiente alcance de seus

    objetivos.

    Em que pese sua relevncia social, pblica e privada, importante pontuar que na

    grande maioria das Constituies dos pases do bloco europeu ocidental no

    vislumbramos qualquer referncia ao desporto (VIREIRA DE ANDRADE, 2006, p.25).

    Por outro lado, isto no significa que os ordenamentos jurdicos de tais pases no

    atribuam status constitucional ao desporto e que os poderes pblicos no esto aptos a

    intervirem nessa seara (MEIRIM, 2002, p.43).

    15 Para Jos Manuel Merim (2004, p.249) inegvel a pujana dos desporto, como facto social total, nas actuais sociedades. A sedimentao na sociedade de um valor do desporto conduziu a que, em alguns

    pases, os textos constitucionais dedicassem espao a essa dimenso da vida humana. Nessa

    constitucionalizao do desporto, Portugal, os pases africanos de expresso oficial portuguesa e o Brasil,

    ocupam lugar mpar no contexto internacional. A constitucionalizao do desporto operou-se, numa

    moldura democrtica, em primeiro lugar no nosso pas e, paulatinamente nos outros textos fundamentais

    que consideramos. Bem se pode dizer, em suma, que o acesso ao desporto encarado como direito

    fundamental, representa um acquis lusfono. (grifos nossos). Essa constitucionalizao, no se limitou,

    porm, a esse grupo de pases. Tambm no centro e leste da Europa, se assistiu ao mesmo :

    Bulgria (1991), artigo 52, Crocia (1990), artigo 68, Litunia (1992), artigo 53 pargrafo terceiro,

    Macednia (1991), artigo 1947, pargrafo quinto e Rssia (1993), artigo 41, n.2.

  • 19

    A Constituio Italiana de 1947, em seus artigos 32, 33 e 34, por exemplo, no

    faz qualquer referncia direta ao termo desporto, entretanto, estabelece que o Estado

    tem o dever de dirigir sade uma proteo adequada. O que faz doutrinadores como

    Real Ferrer (1991, p.225-226) afirmarem que sobre tal dispositivo constitucional

    podemos inferir que ao Estado cabe o dever de promoo e fomento da atividade fsico-

    desportiva por ser instrumento de desenvolvimento sociocultural.

    No obstante a falta de referncia explcita, o carter pblico do direito do

    desporto acentuado na Itlia. O exemplo nota-se a partir da definio, por lei, em 1942,

    das federaes desportivas como rgo integrantes ao Comit Olmpico Italiano (CONI),

    entidade que em princpio (1914) nasceu com a natureza privada, mas que posteriormente

    fora lhe designada personalidade de direito pblico. Atualmente, temos a realidade das

    federaes desportivas como possuidoras de natureza de direito privado, mas que

    continuam obrigadas a observar as deliberaes e instrues do CONI (GONALVES,

    2005, p.845).

    Pessanha (2001, p.24) tambm traz a lume o exemplo da constituio francesa

    que igualmente no traz referncia explcita ao desporto, entretanto, para este sistema, o

    mesmo tido como consequncia natural da prpria condio humana. Destarte,

    entendido que a interveno dos poderes pblicos neste campo foi legitimada por meio

    do espontneo processo de desenvolvimento social e de conformao social.

    Outrossim, vale uma ressalva quanto ao Estado francs. Destaca-se a publicao

    da Ordannance de 28 de Agosto de 1945 por meio da qual fora atribudo aos poderes

    pblicos o direito exclusivo de organizar as competies desportivas, bem como de

    realizar a seleo dos atletas e das equipes que representariam a Frana em competies

    internacionais. As legislaes posteriores (leis de 1975, de 1984 e de 2000) no

    modificaram o carter altamente publicista do desporto no pas, podendo concluir-se que

    no direito pblico francs as federaes desportivas so exemplares representativos de

    raa dos organismos privados que gerem servios pblicos administrativos

    (GONALVES, 2005, p.844).

    Dessa forma, de modo geral, mesmo no caso desses ltimos pases nos quais a

    presena do Estado na seara jusdesportiva mais intensa, nota-se frequentemente que o

    Estado resiste em imiscuir-se diretamente nos pormenores organizatrios, regulatrios e

    mesmo de superviso, optando por formas de administrao e de regulao pblica

    delegada ao reconhecer as federaes desportivas como entidades privadas e lhe conferir

  • 20

    exerccio de poderes pblicos e de autoadministrao delegada (GONALVES,

    2005, p.845).

    Assim, nem mesmo os modelos regulatrios exercidos por tais pases esto a par

    do fenmeno de internacionalizao e transnacionalizao do direito do desporto,

    medida que as federaes nacionais esto integradas s federaes internacionais as quais

    possuem poderes normativos e sancionatrios sob primeira, caracterizando-se o

    fenmeno de administrao transnacional no estadual do desporto (J.J CANOTILHO,

    MOREIRA, 2014, p.936).

    Por outro lado, nem todos os ordenamentos so marcados pela macia ingerncia

    pblica. Devemos excepcionar o modelo alemo e ingls nesse processo de

    publicizao do direito do desporto, tendo em vista que se mantiveram fiis as suas

    origens e, segundo a doutrina, portanto, seguem o princpio da subsidiariedade da

    interveno do Estado na matria do desporto como manifestao de autonomia16.

    Outro modelo a ser excepcionado o americano marcado pelas concepes

    liberais, tendo como ponto de partida a mnima interveno estatal, sendo as entidades

    desportivas de natureza privada e a seara desportiva encarada como verdadeiro

    empreendimento privado, inexistindo qualquer instituio do governo destinada a este

    assunto, seja agncia oficial ou mesmo um ministrio do desporto. A instituio

    americana do desporto mais expressiva a USOC (Comit Olmpico do Estados Unidos)

    que conta com estrutura de empresa privada e o exclusivo responsvel pela gesto do

    desenvolvimento de atividade desportiva amadora, bem como pela seleo dos atletas aos

    Jogos Olmpicos17. (KOLLER, 2008, pp.94-95).

    16Explica Gonalves (2005, p.837), embasado na doutrina do alemo Stern, K em sua obra intitulada

    Verfassungsrechtliche und verfassungspolitische Grundfrangen zur Aufnahme des Sports in die

    Verfassung des Landes Nordrhein-Westfalen, Com efeito, na Alemanha, onde no existe qualquer

    referncia ao desporto na GG, a Autonomie des Sports aparece enfatizada pela doutrina, que explica

    constituir o princpio da subiariedade de interveno do Estado em matria de desporto como expresso

    dessa autonomia. Salvo por solicitao das prprias associaes desportivas, limitando as suas misses

    promoo e ao fomento das prticas desportivas. J sobre o caso ingls Pessanha (2001, p. 36), faz uma

    pequena ressalva a estudos mais profundos sobre o tema: genericamente apontado como forte abolicionista

    apresenta particularidades que o distinguem do modelo alemo. De todo o modo, a forte tradio associativa

    e a clara separao entre o Estado e sociedade que em matria desportiva sempre se fez sentir, separam-no

    claramente do modelo, no qual se inclui nomeadamente o sistema portugus, que espelha a preocupao de

    racionalizar normativamente a actividade desportiva. Entretanto, correto entender que semelhana do

    que se verifica no sistema alemo, o papel do Estado resume-se ao de mero promotor da actividade

    desportiva. 17 Entretanto, at o caso dos Estados Unidos, onde verificamos grande autonomia concedida a desportiva e onde o recebimento de subvenes pblicas pelo USOC se apresenta como exceo, tem-se a imposio

    legal de que esta entidades apresente Cmara do Representantes, ao Senado e aos Presidentes do EUA

    uma relatoria de atividades a cada quatro anos (MESTRE, 2010, p.78).

  • 21

    Por outra banda, cumpre destacarmos que a atuao pblica no sentido de

    estimular, promover e/ou proteger o desporto, principalmente no que tange ao aspecto da

    sade pblica, se encontra presente nos ordenamentos jurdicos contemporneos que

    explicitamente preveem isto e at mesmo naqueles onde o legislador se manteve silente

    (PESSANHA, 2001, p.24).

    Logo, a partir da percepo da maior ou menor aproximao do Estado

    regulao desportiva, temos a classificao generalista dos pases em jusplublicistas e

    jusprivatistas, por bvio, que em cada pas essa interveno se realiza em menor ou

    maior grau, a depender de diversos fatores como suas culturas, sistema de governo e

    estruturas polticas e at mesmo da forma que se deu o desenvolvimento histrico desse

    fenmeno.

    Os pases juspublicistas so aqueles que possuem a ingerncia estatal em matria

    desportiva intensificada, se destacando os pases europeus: Portugal, Espanha, Itlia e a

    Frana. J os pases jusprivatistas so aqueles nos quais a presena regulatria do Estado

    nesta matria se mostra em menor grau, tendo como exemplo o Brasil, Alemanha,

    Inglaterra e os Estados Unidos.

    Aps dimensionarmos o desenvolvimento do desporto por meio do

    associativismo privado, bem como a aproximao do Estado ao fenmeno desportivo,

    verificamos que o processo de organizao desportiva se apresenta plural, tendo em vista

    que possvel visualizarmos esse processo arredio do Estado e pelo Estado. justamente

    a que observamos o direito desportivo como um direito conflitivo desde seu

    desenvolvimento. O que nos provoca maior interesse pois, em razo desse crescente

    exponencial do fenmeno desportivo e sua origem fincada nos pressupostos de autonomia

    e autorregulao, por muitas vezes a relao Direito e Desporto no tem sido fcil.

    Ora, percebemos que desde os seus primrdios, o sistema desportivo se

    desenvolveu margem dos Poderes Pblicos e do Estado, por isso criou para si uma

    lgica prpria, de carter privado e de racionalidade independente. Por outro lado,

    notamos que os Estados cada vez mais interpretam que nesse sistema se desenvolvem

    atividades de interesse pblico e, por isso, tendem, hoje, a promover interferncia direta

    nesta seara. Resguardada a especificidade normativa de cada pas, certo que facilmente

    notamos o carter dual do Direito do Desporto que, por vezes, se apresentar pblico, por

    vezes, privado.

    Fornecido esse panorama geral do desporto, trataremos a seguir sobre a

    internacionalizao desportiva como consequncia do fenmeno da globalizao, a fim

  • 22

    de demonstrarmos a inexistncia de fronteiras para a realidade desportiva que veio a

    instigar um mbito de direito desportivo internacional a cargo de organizaes

    internacionais de carter intergovernamental.

    1.2 O fenmeno da globalizao e o desporto

    Como j dito outrora, o desporto um dos fenmenos que mais repercute nas

    relaes sociais e, nas ltimas dcadas, tem sido fortalecido por meio da globalizao.

    nesse contexto globalizado que o desporto18, fenmeno que pela sua prpria

    natureza se apresenta universal, teve reforado seu crescimento social, econmico

    (GULIANOTTI, ROBERTSON, 2007, p.31) e porque no dizer jurdico escala

    global, tendo em vista que hoje conta com uma desenvolvida configurao jurdico-

    institucional de ndole internacional que, conforme iremos perceber ao longo do trabalho,

    d azo a preocupao de organizaes de carter intergovernamental, bem como a um

    grande campo setorizado formado por organismos privados que criam uma dinmica

    prpria a gerir o complexo movimento desportivo que se tem hoje. Fato este que,

    conforme demonstraremos a seguir, pode ser notado por meio da regulao do desporto

    por entidades privadas transnacionais.

    No por acaso, que expresses como desportivizao do planeta (CAILLAT,

    1999) ou era do desporto (CARZOLA PRIETO, 2013), bem como a prpria atribuio

    a este fenmeno como globalizao desportiva (BELOFF,2009) esto em voga.

    Segundo o professor Joseph Marguire (2008, p.356-358), no sculo XIX que

    se verifica com maior nitidez a disseminao global do fenmeno desportivo por meio da

    criao as organizaes desportivas de carter internacional, o estabelecimento de

    competies mundiais, com destaque para o restabelecimento dos Jogos Olmpicos em

    1984, bem como se nota que os pases, em sua grande maioria, passam a aceitar o

    complexo da regulao desportiva de cunho privado.

    18 Interessante a observao realizado pelo professor lusitano Antnio Marques de Se a economia hoje

    a frente mais visvel do lan globalizador, suscitando legtimas preocupaes entre aqueles que no aceitam

    que os donos do dinheiro sejam os donos do mundo, impondo, de uma forma arbitrria e ilegtima, os

    modelos de organizao e de governo nas sociedades em que vivemos, outros aspectos da globalizao no

    so hoje to estigmatizados. E entre eles est o desporto. Como poucas actividades, o desporto tem

    explorado desde o incio o potencial da globalizao. E, contrariamente ao que tem acontecido em outros

    domnios, o desporto tem escapado inclume s ondas de protesto pblico associados globalizao,

    excepo de algumas campanhas de activistas contra produtos comerciais. (grifos do autor) (MARQUES,

    2006, p.25).

  • 23

    Outrossim, aponta, ainda, que no final do sculo XX verificam-se as

    consequncias deste desporto global relacionado rede mundial de cadeias de

    interdependncia ocasionada pela globalizao. Nesse toar, temos a sua repercusso em

    cinco dimenses: i) no movimento internacional de pessoas (turistas, migrantes, exilados

    e trabalhadores convidados); ii) dimenso tecnolgica, devido ao fluxo de trocas de novas

    tecnologias, mquinas e equipamentos desportivos; iii) dimenso econmica tendo em

    conta ao j citado processo de mercantilizao do desporto e sua indstria que movimenta

    bilhes de dlares; iv) dimenso miditica, ocasionado pelo fluxo de imagens e de

    informaes entre pases que produzido e distribudo por jornais, revistas, rdio, cinema,

    televiso, vdeo, satlite, cabo e rede mundial de computadores e v) dimenso ideolgica,

    relacionada ao fluxo de valores relacionados com ideologias contra ou a favor do Estado

    (MARGUIRE, 2008, pp.357-358).

    De todos os aspectos ora destacados, sem dvida, o financeiro que ganha maior

    relevo. O desporto teve seu potencial de movimentao financeira assustadoramente

    alargada em razo da profissionalizao bem como por meio do desporto espetculo19.

    Levando a constatao de que vivemos na era do business sport, tendo, irrefutavelmente,

    o desporto lugar de destaque no mundo dos negcios20 sendo visto como mais do que um

    simples jogo por ser enorme produto de consumo, um meio fantstico de publicidade e

    uma importante alavanca de poder (AMADO, 2003, p.82).

    Por outra banda, o desporto apontado como fenmeno capaz de transpor

    barreiras de ordem cultural (lingustica ou religiosa), geogrfica e at mesmo a estimular

    o nacionalismo e o conhecimento mtuo das naes, sem contar o espetacular poder de

    propiciar dilogos internacionais chegando a ter casos em que se pode afirmar o exerccio

    de uma espcie de diplomacia desportiva que nada menos que o reflexo da prpria

    essncia desportiva que Bondux (1986, p.13) definiu por meio da frase potica A

    vocao do desporto a de facilitar a aproximao do homem, humanizar os seus

    encontros.

    19 No mesmo sentido o autor brasileiro Manoel Jos Gomes Tubino (1992) realiza reflexo que nos permite

    afirmar tal contexto do esporte-espetculo comercial, acaba por o resultado da descoberta de que o desporto

    pode ser um produto rentvel, a partir da relao deste com os meios de comunicao. Assim, a

    mercantilizao do desportiva abarca desde o alto rendimento espetacularizado at a criao e

    comercializao de produtos voltados a praticantes de lazer que j movimentam cifras milionrias no

    mundo todo. 20 Sobre a movimentao financeira no mbito desportivo ocorrida nos anos de 2006-2015, destacamos as

    projees realizadas pela PricewaterhouseCoopers em seu estudo denominado Changing the game.

    Outlook for the global sports market to 2015.

  • 24

    Nesse contexto, com intuito de destacarmos um exemplo dessa espcie de

    diplomacia exercida pelo desporto relembremos o caso conhecido na doutrina como

    ping-pong diplomacy que reflete exatamente a ideia que o desporto tem o poder de

    ingerncia no somente nas reas social ou econmica mas, tambm, na poltica, inclusive

    em casos considerados delicados no contexto internacional. Vejamos.

    No ano de 1976, em Nagoya, Japo, durante o 31 Campeonato de Tnis de

    Mesa, o atleta americano Gleen Cowan perdeu o transporte de sua equipe que lhe levaria

    ao local onde estavam ocorrendo as competies, fato que levou um atleta chins a lhe

    oferecer transporte junto a seleo chinesa. Durante a conversa informal travada, o atleta

    chins realiza convite ao americano para visitar seu pas. Acontecimento que acabou por

    servir de combustvel para retomada das relaes internacionais entre os Estados

    Unidos e a China, tendo em vista que culminou com o convite formal de Mao Ts-Tung

    seleo americana para que visitasse a China e, ato contnuo, os Estados Unidos no

    somente aceitou o convite como tambm o retribuiu, ao convidar a seleo chinesa para

    realizar uma visita oficial ao pas. (BELOFF,2009, p.41)

    Logo, um desporto (tnis de mesa) apontado na histria como o responsvel

    pelo arrefecimento das tenses que impediam relaes diplomticas entre esses dois

    pases, bem como via preparatria para aes de reaproximao mais contundentes como

    visita oficial do Secretrio de Estado americano Henry Kissinger, apontado como o

    grande arquiteto da posterior visita do Presidente Richard Nixon ao gigante asitico

    (BELOFF, 2009, p.41).

    Outro exemplo prtico no sentido do desporto possuir a capacidade de suavizar

    conflitos foi a constituio de uma delegao conjunta dos atletas olmpicos da Coreia do

    Norte e da Coreia do Sul, desfilando sob uma nica bandeira na cerimnia de abertura

    dos JO de Sidney (2000), com escopo de transmitir mundialmente a esperana numa

    unificao das duas naes que j vivenciaram tantos momentos de tenso desde a Guerra

    Fria.

    Por fim, como olvidar do emblemtico caso da poltica de segregao racial na

    frica do Sul, apartheid (1948-1994), no qual o desporto teve importante papel em termos

    de pacificao social. Destacando-se a realizao do Copa do Mundo de Rgbi (1995) em

    solo sul africano que ocasionou sentimento de unio nacionalista. Se ainda eram marcados

    pela forte segregao de cunho racista, este momento entrou para histria como a

    propagao de sentimento de unio provocado pela fora do desporto nacional, que

  • 25

    ganhou maior significncia quando a seleo sul africana contou com um atleta negro que

    fora decisivo para vitria da seleo na partida final contra a seleo da Nova Zelndia21.

    Nesse sentido, entendemos que na atualidade o desporto tem lugar de destaque

    at no mbito de representao internacional, servindo aos Estados da popularidade em

    massa potencializado pela influncia da expanso audiovisual dos acontecimentos

    desportivos que acabam propiciando autnticas amostras do poder ou da debilidade

    daqueles que o representam. Por isso, mesmo nos dias atuais, l-se o desporto como um

    fenmeno de ferramenta de fcil politizao, de plstica representao dos problemas

    internos dos Estados, bem como das suas relaes internacionais conflitivas com outros.

    (VALLV, 2008, p.111)

    Por outra banda, devemos nos atentar que sendo veculo e instrumento do

    processo de globalizao, a manifestao deste fenmeno na sociedade se mostra difusa,

    repercutindo nos mais diversos assuntos e pormenores do cotidiano que, por vezes, pode

    passar desapercebido, tais como publicidade, direitos de transmisso televisivos,

    contratos laborais, at mesmo sobre os fluxos migratrios.

    Dessa feita, a colocao de Jnatas Machado (2015, p.57) nos apresenta

    cirrgica ao sublinhar que o direito internacional do desporto , antes de mais, o

    resultado do fenmeno da globalizao, desencadeado pela alterao significativa das

    circunstncias da vida poltica, econmica, social e cultural num mbito planetrio.

    Posto isto, a partir de agora no dedicaremos a identificar como o desporto

    encontra-se organizado a nvel internacional utilizando duas divises: da organizao

    desportiva de carter intergovernamental e da organizao desportiva de carter no

    governamental. Isso porque, entendemos ser necessrios fazer tais distines para que

    possamos compreender, mais a frente, a natureza e as discusses que cercam o direito de

    desporto a nvel global, sobretudo, no campo do Movimento Olmpico.

    21Por conta da poltica de segregao racial, a frica do Sul foi banida em 1964 de participar dos Jogos

    Olmpico pelo Comit Olmpico Internacional (COI), s retornando no ano de 1992, nos Jogos Olmpicos

    de Barcelona. Foi banida, tambm, pela FIFA (Federao Internacional de Futebol) em 1974 da

    participao das competies internacionais oficiais sob sua responsabilidade. Inclusive, a FIFA negou

    pedido realizado pelo pas de que pudesse competir na Copa do Mundo de 197 representado por duas

    selees (uma negra e outra branca) o que foi rechaado por completo pela federao. Ver mais em

    BLACK, David. R; NAURIGTH, Jonh. Rugby and South African nation. Sport, cultures, politcs and power

    in the old and new South Africas. Manchester and New York: Manchester University Press. 1998

  • 26

    1.2.1.Organizao Desportiva de carter intergovernamental

    E nesse universo de internacionalizao do desporto verificamos certa

    organizao de carter intergovernamental que influi sobre a matria na comunidade

    internacional como um todo. Destacamos nesse sentido as seguintes organizaes

    universais: Organizao das Naes Unidas (ONU) e pela Organizao das Naes

    Unidas para Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO).

    Consultando os instrumentos normativos da Organizao das Naes Unidas em

    matria de desporto, notamos que sua ateno no est voltada a este fenmeno como um

    fim em si mesmo, mas na sua to propalada fora social. Vejamos.

    Verificamos que as primeiras resolues da ONU sobre a matria eram voltadas

    ao combate discriminao racial, destacando-se: Resoluo n. 2.775-D, de 29 de

    Novembro de 1971, Resoluo n. 3.411-E, de 28 de novembro de 1975 e a Resoluo

    n.32/105-M, de 14 de Dezembro de 1977 que d azo Declarao Internacional contra

    o apartheid no desporto.

    Por conseguinte, quando nos deparamos com a Resoluo 40/64-G de 10 de

    Dezembro de 1985 da ONU, que tambm versa sobre combate discriminao racial, por

    meio da qual foi elaborada um Projeto de Conveno Internacional que era dirigida

    somente aos Estados, notamos que partiu do pressuposto de que os Estados exerciam

    controle total sobre a estrutura desportiva, o que j na poca no condizia com a realidade

    tendo em vista que os agentes desportivos privados j tinham destacado protagonismo no

    mundo desportivo. (FERRER, 1991, p.401). Por outro lado, a Conveno Internacional

    contra o Apartheid nos Desportos de 1985 passou a vigorar com a clara aluso e aderncia

    ao princpio olmpico de que nenhum tipo de descriminao seja permitida, quer por razo

    de raa, religio ou afiliao poltica.

    Por outra banda, j no ano de 2013 a Assembleia Geral da ONU proclamou o dia

    06 de abril como o dia internacional do desporto ao servio do desenvolvimento e da

    paz. O presidente da Assembleia Geral poca destacou o desporto como um poderoso

    aliado da paz e da reconciliao, ressaltando que em vrios aspectos representa valiosas

    caratersticas da humanidade por meio de seus valores universais por ser algo que requer

    perseverana e disciplina, encorajando os princpios da integridade, jogo limpo, e

    competio honrada, inspirando-nos a esforarmo-nos alm dos nossos limites e

    afirmando que todas as sociedades de sucesso se baseiam neles, e quanto mais

  • 27

    incutirmos o respeito por estes ideias, melhor ser o mundo que deixamos aos nossos

    sucessores22.

    Em novembro de 2014 temos o reconhecimento histrico pela ONU da

    autonomia e independncia do desporto e da misso Comit Olmpico Internacional na

    liderana do Movimento Olmpico reafirmando a inestimvel contribuio do desporto

    para a promoo da paz e do desenvolvimento. Ainda quando das discusses

    preliminares, na oportunidade de pronunciar sobre o reconhecimento na Assembleia da

    ONU, o Presidente do COI assinalou O desporto realmente a nica rea da existncia

    humana que alcanou uma lei universal. Entretanto, ressalvou Mas, para aplicar esta lei

    universal em todo o mundo, o desporto tem de ter uma autonomia responsvel. A poltica

    deve respeitar essa autonomia desportiva23.

    No mbito da UNESCO, conforme seus objetivos primordiais de cooperao

    internacional volta para reas da educao, cincia e cultura, destacam-se a criao em

    1977 do CIGEPS (Intergovernmental Committe for Physical Education and Sport) e do

    FIDEPS (International Fund for the Development of Physical Education and Sport), alm

    da aprovao da Carta Internacional de Educao Fsica e Desporto em 1978, bem como

    sua atualizao em 1991 e a reviso que culminou a nova Carta Internacional do Desporto

    j em novembro de 201524 . Ademais, no de 2005 a organizao adotou a primeira

    Conveno Internacional contra o doping.

    Destacamos primeiramente a nova Carta Internacional de Educao Fsica e

    Desporto que baseada no mesmo esprito universal Carta original de abarcar o desporto

    como um direito fundamental do ser humanos e, portanto, figurando como verdadeiro

    instrumento de desenvolvimento de sua personalidade (FERRER, 1991, p.401). Inova ao

    introduzir princpios universais como a igualdade de gnero, no discriminao e incluso

    social por meio do desporto, alm de amplo destaque aos benefcios da atividade fsica, a

    sustentabilidade do esporte, a incluso de pessoas com deficincia e a proteo das

    crianas.

    22Tal proclamao foi materializada por meio da Resoluo n.67/269 de 23 de agosto de 2013. Ver tambm

    a Resoluo 68/9 de 06 de novembro de 2013 sobre construo de um mundo pacfico e melhor atravs do

    desporto e do ideal olmpico. 23Entendimento materializado na Resoluo da 69 Assembleia Geral da ONU. 24 Alm dos mecanismos citados, apontamos a existncia de outros no mbito da UNESCO no que tange a

    seara desportiva: The International Convention against Doping in Sport; The Conference of Parties to the

    International Convention against Doping in Sport; Fund for the Elimination of Doping in Sport. Para

    maiores.

  • 28

    O CIGPES um comit de carter intergovernamental composto por

    representantes de dezoitos Estados Membros Unesco, especialistas na rea Educao

    Fsica e do Desporto, eleitos para uma mandato de quatro anos. Possui como objetivos

    gerais a promoo do valor desportivo com o fim de fomentar sua incluso nas polticas

    pblicas, facilitar o relacionamento entre os Estados ou organizaes intergovernamentais

    e as organizao desportivas no governamentais, difundir os valores contidos na Carta

    Internacional de Educao Fsica e Desporto, bem como gerir a execuo do FIDEPS.

    J FIDEPS trata-se de fundo internacional criado para o desenvolvimento da

    educao fsica e do desporto, tido como primeiro instrumento de carter de cooperao

    econmica voltado para esta seara. Ressalvamos que os recurso angariados so

    prioritariamente destinados aos pases subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.

    Por fim, no ano de 2007 entrou em vigor a Conveno Internacional contra o

    doping, a qual acaba por obrigar que os Estados-partes realizem e adotem medidas

    polticas, legislativas, administrativas e/ou de regulao voltadas ao controle e combate

    da dopagem de acordo com os parmetros adotados pelo Cdigo Mundial Antidoping da

    Agncia Mundial Antidoping.

    Notamos que, de maneira geral, a exceo da Conveno Internacional

    Antidoping, o material normativo produzido pelas citadas organizaes de carter

    intergovernamental de cunho diretivo e orientador, mas, por outra banda, no podemos

    ignorar sua fora de governana em mbito global posto que so organizaes formadas

    pelos Estados e que acabam por transparecer, em grande medida, o parecer da

    comunidade internacional (FERRER, 1991, p.398).

    1.2.2 Organizao Desportiva de carter no governamental

    Conforme ressalvamos na parte introdutria do trabalho, nosso contributo para

    o estudo da seara jurdico-desportiva se dar por meio de uma anlise macro, pois

    partiremos da investigao das estruturas e regramentos a nvel mundial. Por isso, neste

    ponto, ainda que j tenhamos elencado algumas pinceladas sobre, nos ateremos a

    apresentar como se encontra institucionalizado o desporto neste mesmo nvel mundial.

    Entretanto, desde j ressalvamos que no adentramos nas minudncias jurdico-

    institucionais pois esta ser abordada em tpico prprio.

    Assim, a organizao desportiva de carter no governamental fica a cargo

    justamente da j citada estrutura do desporto, que se formou a partir do fenmeno do

  • 29

    associativismo privado iniciado na Inglaterra, ou seja, fica no plano do desenvolvimento

    espontneo, tanto de natureza institucional, como de natureza jurdica. Logo, o

    problema se inicia justamente na constatao da existncia de um sistema jurdico-

    institucional que rege o desporto no plano mundial, e que formado por entidades de

    natureza privada com sede, via de regra, na Sua. Vejamos.

    Podemos pensar o ordenamento jurdico desportivo mundial como uma estrutura

    piramidal, onde encontramos em seu vrtice o Comit Olmpico Internacional (COI)

    ser objeto de estudo, por razo de organizao textual, no captulo referente ao MO e

    as Federaes Desportivas Internacionais (FIS), sendo que estas ltimas encontram-se

    numa relao de subordinao com o primeiro. Por conseguinte, temos as Federaes

    Nacionais sendo subordinadas s Federaes Internacionais e o Comits olmpicos

    nacionais subordinados ao Comit Olmpico Internacional. possvel tal concluso em

    decorrncia da disposio do instrumento normativo desportivo da Carta Olmpica que

    por sua fora universal dentro do contexto desportivo, chega a ser denominada at mesmo

    como Constituio do Desporto (J.J CANTOILHO, 2011, P.154 e 156).

    Para sanar questes conflitivas, sob o impulso do COI, fora criado o Tribunal

    Arbitral do Desporto (TAD), que figura como pea fundamental para a eficcia e o

    fortalecimento do sistema jurdico desportivo mundial. Tanto o COI como as FIS

    conferem-lhe a ltima palavra na resoluo do conflitos. Da mesma forma, procedem

    com o afastamento da jurisdio do tribunais nacionais. Na opinio de um dos maiores

    estudiosos lusitanos, Jos Manuel Meirim (2010, p.39) a criao do tribunal seria uma

    resposta credvel e autnoma, procurando, desta forma, dotar o sistema desportivo

    internacional com um rgo que se adequasse s exigncias prprias das competies

    desportivas.

    Logo, quando observamos o conjunto normativo que regula o desporto no plano

    global, o qual advm de organizaes de natureza privada (COI e FIS), vislumbramos

    um regramento de aplicao universal com o carter da desterritorializao (para alm

    das fronteiras nacionais). Ou seja, o direito do desporto a nvel mundial ter efetividade

    em toda parte do mundo onde se tenha a prtica de um desporto que esteja sob a gide de

    uma federao desportiva nacional, tendo em vista que esta est, obrigatoriamente,

    associada a uma FI. Porquanto, o alcance da efetividade da norma desportiva se d por

    meio da projeo desta norma em um dado territrio que, por sua vez, possui seu prprio

    direito, podendo acolh-la ou at mesmo recha-la em determinado caso concreto

    (MEIRIM, 2010, p,36).

  • 30

    Por outro lado, vale destacarmos o interessante entendimento de Jos Manuel

    Meirim (2010, p.36) no intuito de apontar uma justificao estadual para o ordenamento

    desportivo mundial, quando aduz que as normas desportivas no dependem de um

    territrio e da nacionalidade do sujeitos para sua aplicao por possurem uma raiz

    estadual, o mesmo dizer, acabarem por ter por parmetro da sua validade um direito

    interno de um Estado e os respectivos tribunais como fiscalizadores do respeito do

    respectivo ordenamento. Tal afirmao justificada pelo autor por meio de quatro

    constataes: i) em razo das entidades desportivas que regulam o desporto a nvel

    mundial terem natureza privada com sede, via de regra, na Sua; ii) a obrigatoriedade

    impressa nos regulamentos de tais entidades de que os conflitos sejam dirimidos num

    concreto tribunal arbitral, bem como que as associadas a estas entidades (federaes

    desportivas nacionais) sejam obrigadas a inclurem tal norma em seus estatutos. iii) a

    competncia do Tribunal Arbitral do Desporto com sede na Sua, que j se consolidou

    como o tribunal desportivo por excelncia e, por fim, em razo iv) das normas suas

    sobre associaes privadas e arbitragem.

    Por oportuno, citamos aqui a existncia, ainda, da Agncia Mundial Antidoping

    (AMA), que possui uma natureza mpar ao ser uma organizao desportiva hbrida,

    pblico e privada, formada tanto por constituintes do Movimento Olmpico como por

    representantes de governos nacionais, sendo responsvel por coordenar e supervisionar

    todas as formas de dopagem em escala mundial, realizando este papel pautado pelo

    Cdigo Mundial de Antidoping.

    Levando em conta a realidade pluriforme e heterognea do contexto desportivo

    como um todo (pblico e privado), o espanhol Alberto Palomar Olmeda (2010, p.15) nos

    ajuda a sistematizar tal panorama como marcado pela: i) disperso normativa devido a

    existncia de vrios pontos de produo da mesma; ii) disperso dos produtores das

    normas j que a legitimidade das mesmas no homognea, de modo que a disperso

    muitas vezes ocasiona o estabelecimento de medidas heterogneas e descoordenadas; iii)

    disperso dos aplicadores das normas jurdicas e de organizao; iv) disperso dos

    controladores; v) heterogeneidade no estabelecimento de sistemas de soluo de

    conflitos.

    Dito isto, fica mais fcil visualizarmos as mincias da organizao jurdico-

    desportiva no contexto macro de anlise que propomos. Previamente, notamos a atividade

    desportiva como uma atividade social fortemente regulamentada por meio de diferentes

    nveis de poder, porquanto por distintos processos de produo normativa. Isso

  • 31

    naturalmente torna complexa a gesto desportiva como um todo no que tange ao aspecto

    jurdico. Tanto que no raramente se verificam os diferentes nveis de poder

    legislando sobre a mesma matria especfica ou, at mesmo, reivindicando prevalncia

    normativa em determinado assunto ou caso concreto.

    Neste sentido, preocupado com a complexidade da dinmica normativa deste

    esquema ordenamental dual a partir de suas indiferenas e interferncias, analisando

    pela perspectiva da existncia de uma comunidade jurdica transnacional e centralizado

    na ideia de pluralismo jurdico e pluralidade de ordenamentos jurdicos, J.J Gomes

    Canotilho (2011, p. 156-157) formula dois questionamentos que inevitavelmente ecoam

    no presente estudo: como articular as normas do ordenamento desportivo com as normas

    do ordenamento estadual? como se caracteriza o contacto dos ordenamentos estaduais

    com o ordenamento desportivo mundial?

    Para a primeira assertiva, lana duas hipteses, a do reconhecimento recproco

    entre os ordenamentos estaduais e desportivo ou o mtuo no reconhecimento. Logo, aqui

    a problemtica gira em torno da existncia ou no de um verdadeiro reconhecimento

    jurdico. J em relao segunda assertiva, o autor afirma que a melhor forma de

    aproximao ou de contacto entre os ordenamentos seria visualizada a partir do carter

    heterogneo das normas, inerente a ambas as ordens. Nessa situao temos trs hipteses.

    Verificamos normas exclusivamente estatais, a exemplo do regime fiscal e

    tributrio de matria desportiva, normas exclusivamente desportivas, como as chamadas

    regras do jogo25. E as normas mistas, de cunho estatal-desportivo, dado como exemplo

    das normas de polcia, sanes disciplinares e qualificao jurdica dos rgos.

    Chega-se concluso que os problemas centrais advm da terceira hiptese,

    quando ocorre o contato entres os dois ordenamentos gerando o concurso de normas

    25 Resta pontuar a existncia de normas que no possuem natureza jurdica no mbito desportivo, conhecidas como lei do jogo e que possuem carter estritamente desportivo. So regras especficas,

    atinentes diferenciao das modalidades desportivas e de regras que viabilizem sua prtica. Como

    exemplo, temos as regras que definem as dimenses de um campo de futebol e da baliza ou mesmo o peso

    da bola. Podemos assim afirmar que tratam das minucias prticos desportivas de carter tcnico. Pedro

    Gonalves (2006, p. 55-56) resume o abordado realizando uma diferenciao entre a trs categorias de

    normas que o desporto abrange as diferenciando em aco do direito pblico aco do direito privado

    e as aco no mbito desportivo. A primeira trata de normas de regulao pblica, enquanto a segunda

    trata de relaes jurdicas estabelecidas com terceiros que tem sua regulamentao cardo do direito

    privado. J a terceira tratam das regras tcnicas, das leis do jogo. Logo, visualizamos um entendimento

    que distingue a ideia de direito do desporto e regras particulares sobre o desporto. Na mesma linha de

    pensamento, afirmando que as regras do jogo esto situadas num campo muito diferente do direito,

    constituindo a pare do no direito temos o grego Panagiotopulus (2014, p.04) que se embasa na obra

    daquele refere como autor que iniciou a reflexo obre tal diferenciao Max Kummer (1973), Spielregel

    und Rechtsregel, Staempfl i & Cie AG, Berne

  • 32

    contrastantes e de conflitos normativos. Isso, pois, acarreta duas hipteses, ambas aptas

    a gerarem conflitos. Pode ocorrer, tambm, que o ordenamento desportivo e o estadual

    at cheguem a atribuir a mesma qualificao jurdica aos fatos, mas atribuam distintas

    consequncias jurdicas. O mestre portugus nos d como exemplo a expulso da

    associao desportiva imposta pelo ordenamento estadual e, por outra banda, o

    ordenamento desportivo aplicaria apenas desqualificao para a mesma conduta

    praticada. H, ainda, como terem os mesmos resultados ou consequncias jurdicas,

    entretanto com medidas distintas para a tutela de direitos, como no exemplo clssico do

    conflito de competncia entre os rgos jurisdicionais dos Estados e a justia desportiva.

    Ou ento, cabe questionarmos, ainda, como podemos entender o tamanho

    poderio das instituies desportivas que faz com que notemos certas situaes em que

    pases submeteram sua ordem jurdica como um todo ao poderia das mesmas quando da

    organizao de um grande evento desportivo?

    Entre tanto casos, aqui citamos os exemplos mais recentes e amplamente

    conhecidos da frica do Sul26 e do Brasil que, motivados pelo interesse de recepcionar a

    Copa do Mundo de Futebol, aceitaram condies que iam contra sua prpria ordem

    interna27. No nos parece que a justificativa fincada apenas no interesse financeiro supra

    a questo. Urge nos questionarmos sobre a estruturao e a lgica de funcionamento da

    ordem desportiva mundial a cargo das entidades privadas para entendermos como fora

    possvel chegarmos nesses casos.

    Por enquanto, com a realizao da parte preliminar do presente trabalho

    procuramos demonstrar principalmente que: i) o desenvolvimento do desporto moderno

    e de sua estruturao tem suas origens fincadas na espontaneidade e autorregulao ; ii)

    26 Exemplo contundente sobre o poderio das entidades desportivas e dos interesses que o desporto mundial centraliza o da frica do Sul quando recepcionou a Copa do Mundo de 2010 que promoveu a destruio

    de parte da maior reserva natural (Parque Kruguer) do continente africano para construir um dos estdio da

    Copa na cidade de Nelspruit (Estdio Mbombela) . 27 No caso brasileiro (copa de 2014), a problemtica girou em torno da promulgao da Lei n 12.663/2012, alcunhada como Lei Geral da Copa, que fora recebida pela maioria como um ataque direto Constituio

    do Brasil pois suspendeu direitos bsicos do consumidor durante a realizao do evento, bem como

    promoveu a liberao do consumo de bebidas alcolicas no estdios brasileiros durante o perodo mesmo

    na vigncia do Estatuto do Torcedor que proibia tal conduta fundada na premissa da segurana. Outra

    questo alvo de muita discusso foi a tributria (regulamentada pelo Decreto n 7.578, de 11 de outubro de

    2011) em razo da FIFA e seu parceiros terem sido isentados da cobrana de diversos tributos. A Lei da

    Copa foi objeto de Ao direta de Inconstitucionalidade n.497, perante o Supremo Tribunal Federal, de

    autoria da Procuradoria da Repblica, porm a Corte julgou improcedente, considerando a Lei

    constitucional. Tambm houve grande mobilizao popular com sries de manifestaes nas ruas de vrias

    capitais brasileiras. Por outro lado, convm pontuar que no Brasil a cultura do futebol se mostra to forte

    que levam a afirmao do plano das relaes internacionais que, ao lado da cultura popular do carnaval,

    integra como elemento essencial do soft power (NEY, 2012, p.224).

  • 33

    que a partir do sculo XIX o Estado comea a se imiscuir no mbito do fenmeno

    desportivo tornando-se um campo de atuao hbrida (pblica e privada) e iii) que o

    fenmeno desportivo encontra-se mais fortalecido do que nunca com o advento da

    globalizao, sobretudo devido a maximizao de seu aspecto econmico.

    1.3 Da Estruturao Global do Desporto

    Uma vez j visto o fenmeno evolutivo do desporto em sua matriz terica no

    que diz respeito ao sistema organizacional, de maneira global, temos que, para o

    desencadeamento lgico e um ideal desenvolvimento textual, cumpre-nos a demonstrao

    concreta de como se estrutura o desporto. Isso, tendo em conta que o objetivo fulcral do

    presente texto explorarmos todas as vicissitudes que eclodem do estudo da

    transnacionalizao do desporto, sua hodierna situao, a manifestao inata ao

    movimento olmpico e todos os consectrios que emanam da relao entre todos os

    elementos de estudo ora em apreo, e, para tanto, nesta marcha, importa esta estruturao

    seja descrita de maneira robusta para que o leitor adequadamente se situe28. Vejamos,

    pois.

    Conforme fora possvel constatar at aqui, a regulao do desporto a nvel

    global se apresenta extremamente complexa em decorrncia da sua heterogeneidade,

    abrangendo todo o conjunto de normas produzidas e implementadas a nvel internacional

    e a nvel domstico. Logo, temos a presena de organismos privados tais como as

    Federaes Internacionais, Comit Olmpico Internacional e o Tribunal Arbitral do

    Desporto regulando o desporto a nvel internacional, ao passo que existe regulamentao

    internacional, sobretudo, a cargo da ONU, por meio da Conveno Mundial Antidoping,

    e cada Estado tem sua prpria regulamentao interna. Sem falar na existncia de

    organismo desportivo de natureza pblico-privada, a Agncia Mundial Antidoping.

    Por bvio, por questo de espao e foco, no adentraremos nas mincias

    jurdicos-institucionais de cada componente do movimento desportivo, nos importando

    apenas compreender como o mesmo consolidou seu funcionamento como uma ordem

    jurdica transnacional que no conta com a participao essencial dos Estados e de que

    28 Estes vetores de anlise sero devidamente explorados quando do momento oportuno no que diz

    respeito pedagogia textual, pelo que somente foram referidos neste prembulo.

  • 34

    forma a mesma se impe e se relaciona com estes. Assim, tencionaremos buscar um

    sentido mais concreto para o direito desportivo global.

    Sem perder de vista que, o foco do nosso trabalho no mbito de compreenso

    do Movimento Olmpico (MO), desde j faremos links sua inteligncia. Ou melhor,

    na verdade somos forados a faz-lo tendo em vista que a j referida Constituio do

    Desporto, que serve de parmetro jurdico para o Movimento Desportivo como um todo,

    nada menos que a Carta Olmpica, instrumento de parmetro constitucional mximo ao

    MO, de onde advm a legitimidade no s dos Estatutos e regulamentos internos do

    Comit Olmpico Internacional e dos Comits Olmpico Nacionais, assim como das

    Federaes Internacionais e Nacionais.

    Dito isto, cabe frisarmos que justamente a partir da Constituio do Desporto

    que retiramos a ideia de que o ordenamento jurdico desportivo mundial pode,

    parcialmente, ser visto como uma estrutura piramidal, onde encontramos em seu vrtice

    o Comit Olmpico Internacional (COI) e as Federaes Desportivas Internacionais

    (FIS), sendo que estas ltimas encontram-se numa relao de subordinao com o

    primeiro. Por conseguinte, temos as Federaes Nacionais sendo subordinadas s

    Federaes Internacionais e o Comits olmpicos nacionais subordinados ao Comit

    Olmpico Internacional. (J.J CANTOILHO, 2011, pp.154 e 156).

    Em que pese ser correta tal perspectiva se nos restringirmos ao contexto das

    relaes entre o COI e as FIs, notaremos que essa estrutura piramidal ainda no

    representa a pluralidade dos atores no mbito da regulao do desporto a nvel global,

    assim como no representa a complexidade das interaes estabelecidas entre os mesmos.

    Posto isto analisaremos o Direito Desportivo Global a partir de 4 (quatro)

    grandes espcies de subcategorias: i) o campo de regulao cargo das FIS ii) o campo

    de concretizao processual cargo do TAD- Lex Sportiva o iii) movimento antidoping

    iv) o campo de regulao cargo do Movimento Olmpico- Lex Olympica, o qual ser

    tratado de maneira apartada por ser a ferramenta de anlise derradeira desta investigao

    no sentido de estarmos ou no diante de uma manifestao concreta no que diz respeito a

    ordem jurdica transnacional relativa ao contexto desportivo.

    1.3.1 As Federaes Desportivas Internacionais

    Como uma das consequncias da globalizao do desporto, temos o surgimento

    da necessidade de se padronizar a organizao das modalidades desportivas em especfico

  • 35

    a nvel global para que fosse possvel viabilizar no somente as competies

    internacionais, mas, tambm, a coerncia e a coeso do movimento desportivo como um

    todo. Assumindo este papel fundamental na regulao desportiva, temos a figura das FIs

    (LATTY, 2012, p.43-45).

    As FIS so organizaes de natureza no-governamentais internacionais que

    regulam as competies internacionais que digam respeito ao desporto que gerem29. Em

    regra geral, possuem personalidade jurdica de direito privado albergado pelo direito

    suo. Isso porque um expressivo nmero de FIs possuem sua sede na Sua30. Dentre

    elas esto as mais importantes, destacando-se: Federao Internacional de Futebol

    (FIFA); Federal Internacional de Basquetebol (FIBA), Federao Internacional de