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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
Glória das Neves Dutra Escarião
A GLOBALIZAÇÃO E A HOMOGENEIZAÇÃO DO
CURRÍCULO NO BRASIL
João Pessoa 2006
Glória das Neves Dutra Escarião
A GLOBALIZAÇÃO E A HOMOGENEIZAÇÃO DO
CURRÍCULO NO BRASIL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Cento de Educação da Universidade Federal da Paraíba – PPGE/CE/UFPB, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientador: Dr. Roberto Jarry Richardson
João Pessoa 2006
Glória das Neves Dutra Escarião
A GLOBALIZAÇÃO E A HOMOGENEIZAÇÃO DO
CURRÍCULO NO BRASIL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Cento de Educação da Universidade Federal da Paraíba – PPGE/CE/UFPB, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Educação.
Aprovada em ___/____/____
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Dr. Roberto Jarry Richardson - Orientador
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________________ Dra. Rosa Maria Godoy Silveira -
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Dra. Luciana Rosa Marques
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________________ Dra. Janine Marta Coelho Rodrigues
Universidade Federal da Paraíba _________________________________________________
Dr. Wilson Honorato Aragão Universidade Federal da Paraíba
Ao meu marido Irapuan pelo apoio e incentivo
em todos os momentos e, principalmente, pelo
amor que sentimos intensamente.
Aos meus filhos, genro e nora, Alana e Valdemi,
Rodrigo e Valéria e Andréia pelo que
representam em minha vida: o amor como dádiva
de Deus.
Aos meus netos Matheus e Thiago que
representam à esperança de um mundo solidário.
Em especial, a minha mãe Zuleida que sabe velar,
amar e orientar os filhos, genros, noras, netos e
bisnetos.
Ao meu sogro Pedro pelo exemplo de amor a
vida.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal da Paraíba, aos professores e funcionários do Centro de Educação e,
especialmente aos colegas professores do Departamento de Habilitações Pedagógicas que
objetivaram as condições para a realização do nosso doutoramento em educação.
Ao Professor Dr. Roberto Jarry Richardson pela competência e rigor profissionais e pela
amizade que consolidamos durante todo o processo de construção da Tese.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, Dra. Adelaide Alves Dias, Dr.
Afonso Celso Scocuglia, Dra. Edna Gusmão de Gós Brennand, Dra. Elisa Pereira Gonçlaves,
Dr. Eymar Mourão de Vasconcelos, Dra. Emília Maria da Trindade Prestes, Dr. Iraquitan de
Oliveira Caminha, Dra. Janine Marta Coelho Rodrigues, Dr. José Francisco de Melo Neto,
Dra. Maria do Socorro Xavier Batista, Dra. Maria Eulina Pessoa de Carvalho, Dra. Maria
Zuleide da Costa Pereira, Dra. Marizete Fernandes de Lima, Dra. Mirian de Albuquerque
Aquino, Dr. Otávio Machado Lopes de Mendonça, Dr. Wojcech Andrzej Kulesza, Dr. Wilson
Honorato Aragão pelos ensinamentos, incentivos e apoios.
Ao professor Dr. Alexandre Gili Nader e a Professora Dra. Maria da Salete Barboza de Farias,
pelo carinho, incentivo e pelas contribuições especiais às nossas reflexões.
Aos colegas da turma de Doutorado César, Dimas, Edson, Fernando, Filomena, Galdino,
Gesuína, Graça, Iran, Jean, Kátia, Letícia, Lindemberg, Matusalém, Neuma, Patrícia, Robéria,
Ronaldo e Washington, pela amizade, companheirismo e discussões calorosas sobre as nossas
teses.
Aos meus irmãos e irmã, cunhados, cunhadas, sobrinhas, sobrinhos e tias que me apoiaram e
compreenderam as minhas ausências do convívio familiar.
À Cecília, Elba, Evelyn, Iguatemy e Ilka pelo incentivo, amizade e pelo companheirismo no
trabalho que realizamos na PRG-UFPB.
A(s) (os) colegas e amigas (os) Amparo, Arlete, Carmem, Edna, Fábio, Francineide, Graça
Alves, Graça Baptista, Lúcia, Marilene, Maria Helena Maciel, Maria Helena Virginio, Milva,
Rita de Cássia, Vânia Suely e Zilma pelos incentivos e discussões acadêmicas.
Aos funcionários da PRG-UFPB Anita, Celeste, Eliana, Elisabeth, Lourdinha, Marileusa,
Neide, Socorro, Penha, Rosário e do CE/UFPB Edseuda, Graça, Marcelo, Maria, Rosilene e
Vilma pelo apoio e atenção.
Aos meus alunos da Pedagogia que sempre estiveram motivados durante as discussões sobre a
educação e o papel do educador no mundo atual.
À professora Isabel França de Lima pelo apoio na normalização do trabalho e pelas
recomendações técnicas.
A Márcio Eduardo Carvalho Ciraulo pela revisão da língua portuguesa.
Ao Professor Frédéric Christian Louis Brighton pelas aulas de Francês e pela tradução do
resumo do Português para o Francês.
Ao Professor Alexandre Camboin pela tradução do resumo do Português para o Inglês.
“A história econômica do mundo é, portanto, toda a
história do mundo, mas vista de um certo
observatório, o da economia. Ora, escolher esse
observatório e não outro é privilegiar de antemão
uma forma de explicação unilateral (e também, por
isso mesmo, perigosa), da qual sei de antemão que
me libertarei inteiramente. Não se privilegia
impunemente a série dos fatos chamados
econômicos. Por mais que nos empenhamos em
dominá-los, reordená-los e, sobretudo, superá-los,
poderemos evitar um economismo insinuante e o
problema do materialismo histórico? É mesmo que
atravessar areias movediças".
(BRAUDEL, 1985)
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro dos Estados – Arquivo da pesquisa .... 117 Figura 2 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro do Bessa - Arquivo da pesquisa ......... 117 Figura 3 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro dos Estados - Arquivo da pesquisa .... 118 Figura 4 Anúncio na BR – 232 – Recife – Caruaru/PE - Arquivo da pesquisa ..................... 118 Figura 5 Anúncio na BR – 232 – Recife – Caruaru/PE - Arquivo da pesquisa ..................... 119
LISTA DE TABELAS
TABELA 5.1 Evolução da matrícula inicial em cursos de graduação do ensino superior por dependência administrativa (1960 –2003) .............................................................................. 108 TABELA 5.2 Evolução do Número de Instituições por Categoria Administrativa - Brasil 1997-2003 ............................................................................................................................... 116
LISTA DE SIGLAS
ALCA – Área de Livre Comércio
ANDES – Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior
ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais em Educação
AVALIES –UFPB – Avaliação Institucional da UFPB
BANDES – Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
BM – Banco Mundial
BNDS – Banco Nacional de Desenvolvimento Social
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CES – Câmara de Educação Superior
CNE – Conselho Nacional de Educação
CE – Conselho Pleno
CONSEPE- Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
FORGRAD – Fórum de Pró-Reitores de Graduação
FORUDIR – Fórum de Diretores
G7 – Grupo dos Sete
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IES – Instituição de ensino Superior
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MBA – Master in Business Administration/ Mestre em Administração de Negócios
MEC – Ministério da Educação e do Desporto
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
NAFTA – Acordo de Livre Comércio da América do Norte
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONU – Organização das Nações Unidas
PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais
PIB – Produto Interno Bruto
PNE – Plano Nacional de Educação
PRG/UFPB – Pró- Reitoria de Graduação da UFPB
PROFORMAÇÃO – Programa de Formação de Professores em Exercício
SAEB – Sistema de Avaliação de Educação Básica
SEC – Secretaria de Educação
SESu – Secretaria de Educação Superior
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
UNESCO – United nations Educational, Scientifc and Cultural Organization
RESUMO
Este trabalho doutoral apresenta a tese: O currículo da educação superior no Brasil é
homogeneizado em razão dos efeitos do fenômeno da globalização no campo do currículo.
Analisa os efeitos da globalização na homogeneização do currículo da educação superior no
Brasil: 1996 – 2001 com fundamento metodológico na dialética considerando a inter-relação
de totalidade entre hegemonia e contra-hegemonia, globalismos e localismos,
homogeneização e diversidade. Utiliza uma matriz cartográfica como instrumento auxiliar
para a análise do fenômeno tendo como referências a realidade sócio-histórica do Brasil
globalizado, o anuncio de uma globalização emergente e o compromisso solidário e ético com
a educação. Os principais conceitos que fundamentaram a tese foram baseados nas idéias de
Boaventura de Sousa Santos sobre o fenômeno da globalização. São eles: Globalização,
Localismo globalizado, Globalismo localizado, Cosmopolitismo. A tese demonstra que os
efeitos da globalização perpassam o espaço do currículo provocando a sua homogeneização.
Por outro lado, paradoxalmente, ao analisar as complexas relações de poder presentes no
campo do currículo enquanto espaço de construção do conhecimento constata que existem
evidências que revelam um currículo com base na contra – hegemonia de uma educação
emancipatória que luta pela diversidade cultural. Apresenta a discussão sobre currículo na
Universidade Federal da Paraíba para exemplificar o campo do currículo como espaço de
resistência aos processos homogeneizadores. A síntese anuncia um currículo emancipatório
com um arcabouço de conhecimentos, em construção permanente, que favorece a luta pela
emancipação humana.
RÉSUMÉ
Ce travail de doctorat présente la thèse suivante: le cursus de l’éducation supérieure au Brésil
est homogénéisé en raison des effets du phénomène de globalisation dans le domaine du
cursus. Il analyse les effets de la globalisation dans l’homogénéisation du cursus de
l’éducation supérieure au Brésil: 1996 – 2001 avec une méthodologie fondée sur la
dialectique considérant l’inter-relation de la totalité entre hégémonie et contre-hégémonie,
globalisme et “localisme”, homogénéisation et diversité. Ce travail utilise une matrice
cartographique comme instrument auxilliaire pour l’analyse du phénomène ayant comme
références la réalité socio-historique du Brésil globalisé, l’annonce d’une globalisation
émergente et le compromis solidaire et éthique avec l’éducation. Les principaux concepts qui
ont fondé cette thèse ont été basés sur les idées de Boaventura de Souza Santos à propos du
phénomène de globalisation. Ce sont les suivants: Globalisation, “Localisme” globalisé,
Cosmopolitisme. La thèse démontre que les effets de la globalisation pénètrent l’espace du
cursus provoquant son homogénéisation. D’un autre côté, paradoxalement, en analysant les
relations complexes de pouvoir présentes dans le domaine du cursus en tant qu’espace de
construction de la connaissance, on constate qu’il existe des évidences révélant un cursus basé
sur la contre-hégémonie d’une éducation émancipatrice qui lutte pour la diversité culturelle.
Cette étude discute sur le cursus au sein de l’Université Fédérale de la Paraiba pour
exemplifier le champs de ce propre cursus comme espace de résistance aux processus
homogénéisateurs. La synthèse annonce un cursus émancipateur avec une armature de
connaissances, en construction permanente, qui favorise la lutte pour l’émancipation humaine.
ABSTRACT
This Doctoral work presents the following theory: The record of college education in Brazil is
homogenized because of the globalization effects in this area. It analyzes the outcomes of the
globalization in the homogenization of the record in college education in Brazil: From 1996 to
2001 – based on the dialectics consedering the totality interrelation among hegemony and
against-hegemony, globalism, settlement, homogenization and diversity. It uses a cartographic
head office as an auxiliary instrument to analyse the phenomenom, having as references the
social historical reality of the globalized Brazil, the announcement of an emerging
globalization and the ethical and solidary commitment with education. The main concepts
which established the thesis, were based on Boaventura de Sousa Santos’ ideas about the
globalization phenomenom. They are: Globalization, globalized Settlement, settled
Globalism, Cosmopolitism. The thesis demonstrates that the effects of the globalization
tresspass the area of the record, provoking its uniformization. On the other hand,
paradoxically, when analyzing the complex relationships of power presented in the record
area, while space for the knowledgement construction, verifies that there are evidences that
shows a record based on against-hegemony of a free education that struggles for the cultural
diversity. It presents the discussion on record in the Federal University of Paraiba to
exemplify the field of the curriculum as resistance space to the homogenizers processes. The
synthesis announces a free curriculum with an outline of knowledge, in permanent
construction, that favors the fight for the human emancipation.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16 2 A GLOBALIZAÇÃO NO PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS ................................................................................................................................... 20
2.1 Boaventura de Sousa Santos: vida e obra........................................................................ 20 2.2 A transição paradigmática: a ciência moderna e pós-moderna ....................................... 22 2.3 A Razão Cosmopolita em contraposição à Razão Indolente: tentativa de superação da crise da ciência moderna? ................................................................................................. 29 2.4 Localismo globalizado ou globalismo localizado ........................................................... 34 2.5 A “Pedagogia do Conflito” para além da globalização hegemônica .............................. 49
3 A GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E HOMOGENEIZAÇÃO CULTURAL ...................... 53
3.1 Características gerais da Globalização ............................................................................ 54 3.2 A globalização econômica e o liberalismo ...................................................................... 61 3.3 A globalização e as desigualdades .................................................................................. 69 3.4 A globalização política e o Estado-nação ....................................................................... 71 3.5 A Globalização, cultura global e homogeneização ......................................................... 84
4 A MATRIZ CARTOGRÁFICA: instrumento para a análise do fenômeno da Globalização no campo do currículo da educação superior ..................................................... 97
4.1 Clarificação do conceito de campo curricular ................................................................. 98 4.2 A matriz cartográfica como instrumento de análise ........................................................ 99 4.3 A formatação da estrutura da matriz cartográfica ......................................................... 103
5 GLOBALIZAÇÃO E HOMOGENEIZAÇÃO NO CAMPO DO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL ................................................................................ 106
5.1 Sinopse histórica do campo do currículo no Brasil ....................................................... 106 5.2 A homogeneização dos currículos ................................................................................ 112 5.3 Mercadorização da educação ........................................................................................ 115 5.4 Educação cosmopolita ................................................................................................... 122
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: contribuições à produção de uma síntese .......................... 125
6.1 Resultados potenciais dos efeitos da globalização no currículo da educação superior ................................................................................................................................ 125 6.2 A discussão sobre currículo na Universidade Federal da Paraíba: uma experiência de resistência contra a homogeneização.............................................................................. 131
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 142
161 INTRODUÇÃO
O fenômeno da globalização não é um processo recente se considerarmos que a
globalização acompanha a história humana. Enquanto processo histórico atua na direção de
uma mudança estrutural das sociedades em meio aos avanços e retrocessos inseridos no
espaço-tempo que marca a história da humanidade e, nesse sentido, identificamos a sua
gênese desde a primeira tentativa de saída dos homens das cavernas.
O fenômeno da globalização é intensificado a partir da reestruturação econômica
global que emergiu como resultado da crise do petróleo desencadeada no início da década de
1970, sustentado na tripla aliança entre informática, telecomunicações e mercado.
Esse fenômeno continua a ser expandido no tempo presente por meio de um conjunto
de mudanças econômicas que desencadeou uma das suas mais significativas mudanças para a
área educacional: a nova organização da produção em suas relações com o conhecimento que
passa a exigir trabalhadores profissionalizados em razão dos interesses do mercado.
A política neoliberal que sustenta o ajuste estrutural no mundo, identificada
facilmente pelos ajustes da economia efetivados no contexto da nova divisão internacional do
trabalho, determinou a integração econômica de mercados nacionais em desenvolvimento aos
mercados comuns e acordos comerciais internacionais. As medidas tomadas pelos governos
dos países “ajustados” em prol da produtividade e superávits financeiros, principalmente, a
desregulamentação da economia geraram, entre outros, desemprego, recessão e exclusão
social.
Além dos problemas citados, outros são agravados em razão, principalmente, da
diminuição do Estado-nação e da conseqüente redução das políticas públicas e da sua
vinculação aos interesses dos grandes capitais globalizados e transnacionalizados.
Nesse contexto, as políticas educacionais e, particularmente, o currículo incorporam
os efeitos da globalização.
A escolha da globalização como fenômeno a ser estudado e a análise da
homogeneização do currículo no Brasil, objeto de estudo da tese, representa o nosso
compromisso político-pedagógico com a educação pública.
17Argumentamos que o currículo brasileiro na educação superior é homogeneizado. No
entanto, em meio à resistência vem emergindo um currículo na direção da emancipação
humana.
Justificamos o nosso trabalho em razão de dois motivos principais: um existencial -
lutar pela reinvenção da emancipação humana; o outro acadêmico-profissional - pesquisar o
processo de homogeneização do currículo da educação superior no Brasil, nos anos 1996-
2001, considerando o espaço-tempo que vivemos como professora da Universidade Federal
da Paraíba, notadamente como coordenadora do processo de construção dos projetos político-
pedagógicos dos cursos de graduação dessa Universidade.
Definimos como objetivo:
Analisar os efeitos da globalização no campo do currículo da educação superior no
Brasil: 1996-2001.
Nessa perspectiva, elegemos como ponto de partida as idéias de Boaventura de Sousa
Santos que utiliza como premissas para os seus estudos: “[...] intensificação das relações transfronteiriças e as novas tecnologias da
comunicação e da informação; 2. a voracidade com que a globalização hegemônica
tem devorado, não só as promessas do progresso, da liberdade, da igualdade, da não
discriminação e da racionalidade representada pelo processo de regulação social-
hegemônica que neutralizou os projetos de emancipação social, principalmente, pela
imposição dos mercados financeiros”. (SANTOS, 2002c, p.17).
Acreditamos na possibilidade de contribuir no aspecto específico do domínio social
da educação e do currículo, em evidência no Brasil, e que se interpenetram aos demais
problemas ou a outros domínios sociais como na cultura, na produção do conhecimento e nos
processos de ensino.
Nessa direção, pautamos três referências para analisar o fenômeno e os seus efeitos
no currículo: 1. a realidade sócio-histórica do Brasil globalizado; 2. o compromisso solidário e
ético com a educação; 3. o anúncio de uma globalização emergente e em construção,
comprometida com os anseios coletivos e forças sociais que lutam politicamente por um
mundo mais solidário e justo.
Os postulados epistemológicos, acima referidos, revelam a importância de um
referencial metodológico que privilegie a análise no contexto da complexidade do fenômeno
estudado. Em decorrência dessa posição, adotamos como recurso metodológico uma matriz
cartográfica baseada nas idéias de Santos (2002) e Cortesão e Stoer (2002), os quais
18consideram esse instrumento um recurso com potencial para ser aplicado na complexidade do
campo educativo.
A tese se divide em cinco capítulos:
Capítulo um: a introdução.
O capítulo dois objetiva apresentar o ponto de partida da base teórica da tese que dá
sustentação aos argumentos de uma globalização hegemônica e contra-hegemônica segundo
as idéias de Boaventura de Sousa Santos.
Os estudos do autor confrontam os argumentos da globalização dirigida para os
processos de regulação e, contraditoriamente, para os processos emancipatórios e de
resistência, que traduzem as posições que se opõem ao projeto hegemônico de uma sociedade
globalizada.
No capítulo três, aprofundamos a discussão do fenômeno da globalização e
analisamos aspectos tais como o globalismo localizado, o localismo globalizado, o
cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade. Além disso, consideramos alguns dos
seus efeitos, tais como, a homogeneização da cultura, a mercadorização do conhecimento e a
cultura global.
No capítulo quatro, explicamos a matriz enquanto instrumento de análise. Nesse
capítulo, descrevemmos os parâmetros utilizados, a saber, dimensões da globalização e os
tipos de globalização. Essas categorias permitem captar a complexidade da globalização e
suas relações com o currículo da educação superior no Brasil com destaque para o período
1996-2001.
No capítulo cinco, apresentamos o fenômeno da globalização no currículo, expondo
a sua face globalizada e homogeneizada, como resultado da análise descritiva que
apresentamos na matriz cartográfica.
No capítulo seis, discutimos os resultados potenciais relacionando-os a uma visão de
currículo comprometida com a emancipação humana. Nesse capítulo, apresentamos a síntese
que nos permite analisar as possibilidades de um currículo emancipatório na mesma
concepção de Santos, para o qual traduzir significa a oportunidade de utilizar um
procedimento que permite “[...] criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do
mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e da
sociologia das emergências”. (2006, p. 123). Apresentamos como exemplo a discussão sobre
currículo na Universidade Federal da Paraíba
19Assim, a síntese se constitui em uma alavanca para suscitar o debate que impulsione
a produção da epistemologia de um currículo comprometido com a emancipação humana.
As referências são reveladoras da nossa opção ética e social. Muitos outros autores
poderiam ser citados e referenciados na nossa tese. Fizemos a nossa escolha intencionalmente.
202 A GLOBALIZAÇÃO NO PENSAMENTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Esse segundo capítulo objetiva apresentar a base teórica que dá sustentação aos
argumentos de uma globalização hegemônica e contra-hegemônica a partir das idéias de
Boaventura de Sousa Santos.
Os estudos do autor que são apresentados nas páginas seguintes confrontam os
argumentos da globalização dirigida para os processos de regulação e, contraditoriamente,
para os processos emancipatórios e de resistência que traduzem posições opostas ao projeto
hegemônico de uma sociedade globalizada.
Se as reflexões do autor, como ele afirma, “[...] sempre tiveram origem na
necessidade de resolver problemas novos e concretos com que a investigação empírica
freqüentemente surpreendeu e confrontou” podem ser aplicadas à problemática educacional e,
especificamente, ao campo do currículo. (2004a, p. 46).
Por conseguinte, a perspectiva apresentada por Santos sobre a crise da ciência e o
fenômeno da globalização permite o aprofundamento do pensamento contra-hegemônico
sobre globalização pela possibilidade que ele apresenta para avançar na produção do
conhecimento, tendo por base os conceitos sobre globalização e emancipação entre outros
conceitos que são submetidos ao “trabalho de tradução entre saberes”. (2004a, p.803).
2.1 Boaventura de Sousa Santos: vida e obra
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra em 15 de
novembro de 1940. É licenciado em Direito desde 1963 pela Universidade de Coimbra e foi
aluno do Curso de pós-graduação em Filosofia na Universidade Livre de Berlim. A partir de
1969, morou nos Estados Unidos onde obteve o grau de Mestre e Doutor em Sociologia do
Direito na Universidade de Yale, em 1970 e 1973, respectivamente.
Durante a pesquisa que realizou para fundamentar a sua tese de doutoramento, viveu
a experiência de morar cerca de um ano e meio na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro,
em meados dos anos 70. Em 1970, foi professor visitante da Pontifícia Universidade Católica
21do Rio de Janeiro e regente do Seminário sobre Sociologia do Direito. Em 1980, foi Consultor
Científico do projeto de investigação “Conflitos de Propriedade no Grande Recife” no âmbito
do mestrado de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Atualmente, Santos é catedrático da Faculdade de Economia de Coimbra e professor
visitante da Universidade de Winsconsin-Madison, da London School of Economics, da
Universidade de São Paulo e da Universidade de Los Andes. Destaca-se, desde 1978, como
diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do Centro de
Documentação 25 de abril, da mesma instituição. È diretor da Revista Critica de Ciências
Sociais.
Santos congrega um grupo de cientistas que pesquisam o processo de globalização
neoliberal e estudam alternativas para a sua superação apoiando o movimento de reação que
vem emergindo através de um processo constituído de, " [...]alianças transfronteiriças entre os movimentos, lutas e organizações locais ou
nacionais que nos diferentes cantos do globo se mobilizam contra a exclusão social,
a precarização do trabalho, o declínio das políticas públicas, a destruição ambiental
e da biodiversidade, o desemprego, a contra-reforma agrária, as violações dos
direitos humanos, as pandemias, os ódios interétnicos produzidos direta ou
indiretamente pela globalização neoliberal”. (2002c, p.13).
Estuda o impacto da globalização neoliberal nas sociedades tomando como
referência a sociedade portuguesa e o seu engajamento nos processos de resistência que vem
sendo construído no mundo, no curso da história humana. Entretanto, as suas reflexões não
conclusivas se fundamentam teoricamente nas sociedades “semiperiféricas” com identidades
semelhantes em relação aos aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais. Entre estas
sociedades, destaca-se o Brasil.
O projeto “Reinventar a emancipação social: para novos manifestos” coordenado
pelo professor Santos aponta como perspectiva a consecução de dois objetivos: analisar
iniciativas e movimentos de resistência e formulação de alternativas por parte das classes
populares e dos grupos sociais subalternos em vários domínios sociais nos seguintes países:
África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal.
As questões sobre a modernidade, pano de fundo deste projeto, têm centralizado a
produção acadêmica do autor junto a outros intelectuais e, principalmente, junto às
populações que lutam pela democracia plena ancoradas na realidade de um mundo em que a
22maioria das pessoas vive na pobreza e em condições brutalizantes, denunciadoras do
barbarismo que caracteriza os tempos atuais.
Ao enfrentar a crítica à racionalidade da modernidade, o autor propõe um arcabouço
teórico com vistas à superação da racionalidade que caracteriza a hegemonia universal.
Santos tem como ponto de partida para as suas reflexões as questões que alimentam a
discussão sobre a racionalidade técnica que permitiu o avanço do capitalismo em suas formas
mais complexas como as promessas que legitimaram o privilégio epistemológico do
conhecimento científico a partir do século XIX, as promessas da paz e da racionalidade, da
liberdade e da igualdade, do progresso e da partilha do progresso, as quais não se realizaram
sequer no centro do sistema mundial ou no que se chamou de Terceiro Mundo. (2002c, p.14).
Santos é considerado um dos mais destacados analistas de uma nova esquerda
mundial, reconhecido como ideólogo de uma globalização alternativa, constituída por redes e
alianças transfronteiriças entre movimentos e organizações que lutam, entre outros, contra a
exclusão social, o desemprego, e a violação dos direitos humanos, características da
globalização neoliberal.
Destaca-se como um dos principais autores do novo pensamento crítico que assume a
exaustão do paradigma da ciência moderna e procura um alternativo, que inclua um
paradigma científico (prudente) e um paradigma social (para uma vida decente). Para isso é
necessário desenvolver desde a base ao topo da sociedade, um conhecimento científico e
humanístico em que os objetos de conhecimento são sujeitos de conhecimento que pensam-
agem coletivamente resolvendo problemas de tradução, inclusão, comunicação.
Fazendo uma análise dialética dos fenômenos estudados, considera que, “[...]o único caminho para pensar o futuro parece ser a utopia. E por utopia entendo
a exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas
formas de vontade;....na transição paradigmática, o pensamento utópico tem um
duplo objetivo: reinventar mapas de emancipação social e subjetividades. Nenhuma
transformação paradigmática será possível sem a transformação paradigmática da
subjetividade.” (SANTOS, 2001: p.332-333).
2.2 A transição paradigmática: a ciência moderna e pós-moderna
A discussão sobre a transição paradigmática entre a ciência moderna e a ciência pós-
moderna foi abordada por Santos (1989), inicialmente, no seu livro “Introdução a uma ciência
23pós-moderna”. Estamos vivendo uma época de transição entre o paradigma da ciência
moderna e um novo paradigma emergente que começa a dar sinais de ciência pós-moderna,
incluindo as correntes epistemológicas da ciência moderna ao submetê-la a uma crítica
sistemática.
Reconhecendo a hermenêutica como método, afirma Santos que: “A reflexão hermenêutica torna-se, assim, necessária para transformar a ciência, de
um objeto estranho, distante e incomensurável com a nossa vida, num objeto
familiar e próximo, que, não falando a língua de todos os dias, é capaz de nos
comunicar as suas valências e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza
aquém e além deles, um objeto que, por falar, será mais adequadamente concebido
numa relação eu-tu (a relação hermenêutica) do que numa relação eu-coisa (a
relação epistemológica) e que nessa medida, se transforma num parceiro da
contemplação e da transformação do mundo”. (1989, p.13).
A reflexão hermenêutica tem dupla finalidade: tornar compreensível o que as
ciências sociais são na sociedade e o que elas dizem dessa mesma sociedade, além de tentar
compreender porque o conhecimento científico-social é a um só tempo elemento constitutivo
íntimo e ignorado na sociedade. Permite romper o círculo vicioso do objeto-sujeito-objeto,
ampliando o campo da compreensão.
Com esse entendimento, Santos procura compreender as causas e conseqüências da
crise paradigmática da racionalidade enquanto construtor teórico e ideológico da ciência
moderna. Por isso, questiona: “Estamos numa crise de crescimento ou de degenerescência da
ciência moderna?”. O próprio autor responde ao questionamento afirmando que: “A crise da
ciência é, assim, também a crise epistemológica"; “nos encontramos numa fase de
degenerescência e que essa fase determina o tipo de reflexão epistemológica”. (1989, p.19).
Considerando esses argumentos, a hermenêutica é a mais adequada para propiciar a
transição para a epistemologia pragmática.
Continuando com a sua argumentação afirma que: “A ciência, para se constituir, tem de romper com essas evidências e com o código
de leitura do real que elas constituem; tem, nas palavras de Sedas Nunes, ‘de
inventar um novo código’ – o que significa que, recusando e contestando o mundo
dos ‘objetos’ do senso comum ou da ideologia, tem de constituir um novo ‘objeto
conceptual’, ou seja: todo um corpo de novos ‘objetos’ e de novas relações entre
‘objetos’, todo um sistema de novos conceitos e de relação entre conceitos”.
(SANTOS, 1989, p. 32).
24O argumento que fundamenta a epistemologia pragmática supõe a ruptura com o
senso comum, o que significa, transportando para a educação, atitudes de rejeição aos saberes
vindo das camadas populares.
No nosso entendimento, existe uma falsa dicotomia entre os saberes produzidos
socialmente pela humanidade e apropriados pelos detentores do poder econômico e
defensores de uma globalização posta em razão dos seus interesses. Fazer a ruptura entre o
senso comum e o conhecimento vulgar é uma primeira ruptura epistemológica necessária para
promover o reencontro da ciência com o senso comum e depois realizar uma segunda ruptura
epistemológica, ou seja: “a ruptura com a ruptura epistemológica” explicitado claramente no
seguinte postulado que recupera a importância do senso comum sem recair numa “concepção
fixista”: “A oposição ciência / senso comum não pode equivaler a uma oposição luz / trevas,
não só porque, se os preconceitos são as trevas, a ciência, como hoje se conhece e se
verá adiante, nunca se livra totalmente deles, como, por outro lado, a própria ciência
vem reconhecendo que há preconceitos e preconceitos e que, por isso, é simplista
avaliá-los negativamente.” (SANTOS, 1989, p.38).
É importante destacar que nessa concepção a dupla ruptura supõe transformar o
senso comum e a ciência para promover um reencontro entre os dois, como afirma Santos
com o qual concordamos: “Com essa dupla transformação pretende-se um senso comum esclarecido e uma
ciência prudente, ou melhor, uma nova configuração do saber que se aproxima da
phronesis aristotélica, ou seja, um saber prático que dá sentido e orientação à
existência e cria o hábito de decidir bem”. (SANTOS,1989, p.41).
A transformação do senso comum em “ciência prudente” refere-se à ciência que não
basta ser internamente coerente, mas uma ciência da realidade, portanto uma ciência enquanto
prática da realidade submetida a um regime metodológico que lhe confere o status de ciência,
à medida que não renuncia ao procedimento metódico e à exatidão conceitual exigidos pela
ciência.
A teoria prática será, então, convertida em sabedoria prática, ou seja, em phronesis
aristotélica. Ao conceber a phronesis ou a sabedoria prática como estrutura dianoética
fundamental do agir ético, Aristóteles retoma a empiricidade do ethos que, de forma alguma,
pode ser caracterizado como puro empirismo do senso comum.
25Portanto, o senso comum esclarecido pode ser comparado com a sabedoria prática
representada pela produção material e simbólica construída pela pessoa humana e traduzida
pelos costumes, saberes, tradições e códigos da moral e da ética.
A ciência prudente representa o agir humano ético que decide pelo bem comum.
Aproximar esses saberes representará o rompimento com a concepção da ciência que
desconsidera todo o saber que vem do povo. Na área da educação, implicará aproximar os
diversos saberes que os alunos trazem para a escola e que representam as suas aspirações,
interesses, cultura e a própria história de vida.
A superação da crise paradigmática que envolve a questão da ciência não pode se dar
no âmbito do paradigma da ciência moderna, porque é indispensável expor a verdade
científica e a verdade social, quando estas não são assumidas por esse paradigma. O autor
opta pelo círculo hermenêutico com a justificativa de que esta reflexão objetiva transformar o
distante em próximo, o estranho em familiar pelo discurso racional orientado pelo diálogo.
(SANTOS, 1989, p.12).
Assim, a transição paradigmática assenta na tensão entre regulação e emancipação
em conseqüência da degradação do paradigma da modernidade ocidental com o seu
ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural. O paradigma da modernidade é ainda
dominante em razão da inércia histórica.
Em síntese, a regulação privilegia o saber constituído em razão do projeto político-
social dominante e, portanto, coerente com a globalização liberal. A emancipação representa
todas as expressões de resistência a esse projeto.
Segundo Santos, o colapso da emancipação na regulação desmonta o poder do
paradigma da modernidade de “renovar-se e entra em crise”. Pressente a emergência de um
novo paradigma em meio à transição paradigmática. Citando Mallarmé, compara o tempo
como ‘interregno’, um tempo entre ‘trop de désuétude’ e ‘effervescence préparatoire’ (2001,
p.15-16).
Nesta percepção, a transição paradigmática se distingue por duas dimensões: a
epistemológica e societal.
A primeira acontece entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma
emergente “de um conhecimento prudente para uma vida decente”, ou seja, o conhecimento
ético que é produzido em razão de uma sociedade solidária para com toda a população do
mundo. Essa sociedade é sempre um vir a ser humano.
26A segunda transição paradigmática é a societal, menos visível, e ocorre entre o
paradigma dominante caracterizado pela sociedade patriarcal, produção capitalista;
consumismo, individualismo e mercadorização, identidades-fortaleza, democracia autoritária
desenvolvimento global desigual e excludente para um paradigma ou conjunto de paradigmas,
ainda pouco manifestos.
Ao apresentar a crítica ao paradigma dominante, o autor se insere na tradição crítica
da modernidade, porém desvia-se dessa crítica em três aspectos. O primeiro desvio é que a
teoria crítica moderna é subparadigmática em razão de procurar desenvolver possibilidades
emancipatórias. Defende a tese de que: “[...] deixou de ser possível conceber estratégias
emancipatórias genuínas no âmbito do paradigma dominante” e que todas essas estratégias
“estão condenadas a transformar-se em outras tantas estratégias regulatórias”. (SANTOS,
2001, p. 16).
O segundo desvio diz respeito ao “estatuto e objetivos da crítica”, ou seja: Todo
pensamento crítico é centrífugo e subversivo considerando que visa criar “desfamiliarização”
em relação ao estabelecido e convencionalmente aceito como normal virtual inevitável
necessário. (2001, p.16).
O terceiro desvio fundamenta-se na auto-reflexividade da teoria crítica moderna.
Nesse aspecto, Santos denuncia um paradoxo: a teoria moderna, ao tempo em que denuncia as
“opacidades”, “falsidades”, “manipulações” do que critica, não é crítica de si mesma e não
assume o grau de exigência a si mesma. (2001, p.17).
Cita Kierkegaard: ‘A maioria das pessoas são subjetivas a respeito de si próprias e
objetivas – algumas vezes terrivelmente objetivas – a respeito dos outros. O importante é ser-
se objetivo em relação a si próprio e subjetivo em relação aos outros’. (SANTOS, 2001, p.17).
Continua argumentando essa tese a partir de John Dewey: ‘É uma história velha. Os
filósofos, tal como os teólogos e os teóricos sociais, estão tão seguros de que os hábitos
pessoais e os interesses condicionam as doutrinas dos seus opositores como estão seguros de
que as suas próprias crenças são ‘absolutamente’ universais e objetivas’.(SANTOS, 2001,
p.17).
Apresenta a preocupação de Bourdieu quando afirmou, seguindo o mesmo raciocínio
de Kierkegaard, que os sociólogos “[...] tendem a ser sociólogos em relação aos outros e
ideólogos em relação a si próprios”. (Apud SANTOS, 2001, p.17).
27Com esses argumentos, Santos propõe uma teoria crítica que parte do
reconhecimento da dificuldade de se auto-criticar para superar essa mesma dificuldade.
Afirma: “A auto-reflexidade é a atitude de percorrer criticamente o caminho da crítica. Esta
atitude é particularmente crucial quando o caminho é a transição paradigmática
porque, nesse caso, a dificuldade é dupla: a crítica corre sempre o risco de estar mais
perto do paradigma dominante e mais longe do paradigma emergente do que supõe”.
(2001, p.17).
Nesse contexto, Santos desenvolve o conceito da transição paradigmática
considerando que o capitalismo, apesar de mostrar-se forte, na realidade dá sinais de fraqueza,
já que não conseguiu cumprir o seu projeto civilizacional.
Na direção de uma concepção paradigmática contra-hegemônica construída para
favorecer a transformação e emancipação da sociedade, os conceitos e princípios teórico-
científicos são entendidos como unitários e universais. A busca é pela superação das
polaridades entre o conhecimento geral e o específico, entre o teórico e o prático. O
conhecimento concebido como emancipação supõe atitudes e ações solidárias e como uma
prática social: “Existe na medida em que é protagonizado e mobilizado por um grupo social,
atuando num campo social em que atuam outros grupos rivais protagonistas ou
titulares de formas rivais de conhecimentos. Os conflitos sociais são, para além do
mais, conhecimentos de conhecimento. O projeto educativo emancipatório é um
projeto de aprendizagem de conhecimentos conflituantes com o objetivo de, através
dele, produzir imagens radicais e desestabilizadoras dos conflitos sociais que se
traduziram no passado, imagens, capazes de potenciar a indignação e a rebeldia”.
(SANTOS,1996:17).
Para Santos, a ciência está vinculada aos privilégios que lhe são peculiares.
Afirma: “[...] pode-se dizer que, desde sempre, as formas privilegiadas de conhecimento,
quaisquer que elas tenham sido, num dado momento histórico e numa dada
sociedade, foram objeto de debate sobre a sua natureza, as suas potencialidades, e os
seus limites e o seu contributo para o bem estar da sociedade. De uma forma ou de
outra, a razão última do debate tem sido sempre o fato de as formas privilegiadas do
conhecimento conferirem privilégios extracognitivos (sociais, políticos, culturais) a
quem as detém. Só assim não seria se o conhecimento não tivesse qualquer impacto
na sociedade, ou tendo-o, se ele estivesse eqüitativamente distribuído na sociedade.
Mas não é assim.” (2004a, p.17).
28Essa questão da vinculação da ciência aos privilegiados da sociedade representa o
âmago da crítica à modernidade e ao fenômeno da globalização em razão do seu caráter,
amplamente divulgado, de última opção das sociedades para a libertação humana.
A crítica à modernidade parte do seu entendimento sobre o valor, o reconhecimento e
a capacidade reprodutivista da ciência para conferir “[...] inteligibilidade ao seu presente e ao
seu passado e dar sentido e direção ao seu futuro”. (2004a, p. 17).
É evidente que a distribuição do conhecimento, em suas diferentes áreas não é
eqüitativa e, ainda mais, tende a ser menos distribuído, à medida que ocupa lugar de destaque
nas sociedades e grupos também privilegiados.
Nessa direção, aponta o autor, a ciência e os cientistas formam o arcabouço
epistemológico de um saber que privilegia. A ciência “[...] é feita no mundo, mas não é feita
de mundo”. (2004a, p. 18).
Assim podemos afirmar que:
1. A ciência intervém eficazmente no mundo quanto mais independente dele;
2. A ciência opera automaticamente segundo as suas próprias regras e lógicas para
produzir um conhecimento verdadeiro ou tão próximo da verdade quanto é humanamente
possível;
3. A evolução dos debates sobre a ciência foi impulsionada pelo crescimento da
produção científica e da comunidade científica; o avanço da tecnologia decorrente do
conhecimento científico tanto é colocado em razão da guerra como da paz.
Santos evidencia o acirramento do debate conhecido como “guerra das ciências”,
iniciada em 1990, no Reino Unido e nos Estados Unidos – Caso SOKAL1 - foi impulsionada
pelos questionamentos explicitados por ele ainda sem respostas: “Qual é a relação entre
conhecimento científico e a realidade que pretende conhecer?”; “O conhecimento científico
aspira à verdade, à eficácia, à verossimilhança, à coerência, à referencialidade?”; “Quais as
relações entre a ciência e outras formas de conhecimento?”; “Qual o verdadeiro papel do
conhecimento científico?”. (2004a, p.19).
1 Segundo Santos, “o caso SOKAL” se constituiu a partir da publicação, em 1992, na Inglaterra, do livro do embriologista Lewis Wolpert intitulado: “ The Unnatural of Science” que apresentou uma investigação na Sociologia do Conhecimento Científico. A investigação incluiu a “Escola de Endimburgo e o seu “Programa Forte” e a “Escola de Bath”. Diz Santos que: “ O debate, na altura, tinha toda aparência de um remake da discussão sobre as duas culturas: a humanista e a científica. Ver texto – Introdução - do autor, 2004, p. 20-26, citado nas referências.
29Assim, o debate sobre a ciência tem a ver com uma pluralidade de fatores, com
destaque para o crescimento da produção científica, com o aumento da eficácia da tecnologia,
ora posta a serviço da guerra, ora da paz; e com o conhecimento científico ao ser
transformado em força de produção submetida ao mercado.
2.3 A Razão Cosmopolita em contraposição à Razão Indolente: tentativa de superação da crise da ciência moderna?
Uma das contribuições mais importantes de Santos é a tentativa de superar uma
ciência moderna ocidentalizante e absolutista, procurando alternativa à globalização
neoliberal.
Para o autor, o termo globalização evoca visões diferenciadas que, ao longo da
história, controlam, regulam, libertam e escravizam a humanidade. Exemplos dramáticos da
história universal, como as duas guerras mundiais, entre tantas outras que aconteceram no
século passado e ainda hoje, registram as conseqüências da opressão e violência, praticadas
pelo próprio homem, em decorrência das relações de poder autoritárias e desumanizantes.
Afirma Santos (2002c, p.14): “[...] As promessas que legitimaram o privilégio epistemológico do conhecimento
científico a partir do século XIX – as promessas da paz e da racionalidade, da
liberdade e da igualdade, do progresso e da partilha do progresso – não só não se
realizaram sequer no centro do sistema mundial, como se transformaram, nos países
da periferia e da semiperiferia – o que se convencionou chamar Terceiro Mundo -,
na ideologia legitimadora da subordinação ao imperialismo ocidental.”
Ao concordar com o autor, devemos acreditar em três afirmações. Em primeiro lugar,
a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição
científica ou filosófica ocidental considera relevante. Em segundo lugar, esta riqueza social
está sendo desperdiçada. É dessa situação que se aproveitam os que proclamam, entre outras,
que não há alternativa e que a história chegou ao fim Em terceiro lugar, para combater o
desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos sociais contra-
hegemônicos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a
conhecemos. É necessário um modelo diferente de racionalidade. (Santos, 2004a).
30É necessário superar o modelo ocidental dominante para que as propostas
alternativas não tendam a reproduzir as análises atuais, produzindo o mesmo efeito de
ocultação e descrédito.
Santos chama de “Razão Indolente” ao modelo vigente e propõe uma “Razão
Cosmopolita”. Essa nova razão considera que todo conhecimento científico-natural é
científico-social, e, nessa direção, a distinção dicotômica entre ciências sociais e naturais não
se aplica. O conhecimento tem como horizonte a totalidade universal:
A “Razão Cosmopolita” fundamenta-se em três procedimentos sociológicos: a
sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução. Nas suas
palavras, “[...] para expandir o presente, proponho uma sociologia das ausências; para
contrair o futuro, uma sociologia das emergências, e em vez de uma teoria geral,
proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar uma
inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua
identidade”. (SANTOS, 2004a, p.779).
Os pontos de partida são três. Em primeiro lugar, a compreensão do mundo excede
em muito a compreensão ocidental do mundo. Em segundo lugar, a compreensão do mundo e
a forma como ela cria e legitima o poder social tem muito que ver com concepções do tempo
e da temporalidade. Em terceiro lugar, a característica mais fundamental da concepção
ocidental de racionalidade é o fato de, por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir
o futuro. A contração do presente, ocasionada por uma peculiar concepção de totalidade,
transformou o presente num instante fugidio, entrincheirado entre o passado e o futuro. Do
mesmo modo, a concepção linear do tempo e a planificação da história permitiram expandir o
futuro indefinidamente. Quanto mais amplo o futuro, mais radiantes são as expectativas
confrontadas com as experiências do presente.
A “Razão Cosmolopita” terá de seguir a trajetória inversa: expandir o presente e
contrair o futuro.
Cabe destacar que a “Razão Indolente” é aquela que não se exerce porque pensa que
nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; não sente
necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre; que se reivindica
como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos
de racionalidade ou, se o faz, é apenas para torná-la matéria prima. (SANTOS, 2004a).
31Já argumentamos que a “Razão Indolente” sustenta o conhecimento hegemônico
científico e filosófico produzido no Ocidente. A consolidação do Estado liberal na Europa e
na América do Norte, as revoluções industriais e o desenvolvimento capitalista, o
colonialismo e o imperialismo constituíram o contexto para o desenvolvimento da razão
indolente.
Em geral, essa razão foi a base para grandes debates filosóficos e epistemológicos
dos dois últimos séculos. Por exemplo, o debate entre modernidade e teoria crítica, realismo e
construtivismo e estruturalismo e existencialismo.
Para o autor, “[...] a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de começar
por um procedimento que designo por sociologia das ausências. (SANTOS, 2004a, p. 786).
“A sociologia das ausências” é conceituada como uma investigação que objetiva:
demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, ou
seja, o seu objetivo é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles
transformar as ausências em presenças. (SANTOS, 2004a). Para o autor, “[...] a ampliação do
mundo e a dilatação do presente têm de começar por um procedimento que designo por
sociologia das ausências”. SANTOS, 2004a, p. 786).
Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade,
produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-crível ao que existe. O seu
objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a
sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. A sociologia das ausências
procura transformar objetos, considerados “impossíveis” em possíveis e com base neles
transformar as ausências em presenças. Por exemplo, o que é que existe no Sul que escapa à
dicotomia Norte/Sul? O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia
medicina moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é independente da
sua relação com o homem?
Santos afirma que “há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é
desqualificada e tornada invisível ou descartável” e distingue cinco lógicas ou modos de
produção da não-existência. (2004a, p. 787).
A primeira lógica deriva da monocultura do saber e do rigor do saber. É o modo de
produção de não-existência mais poderoso. Consiste na transformação da ciência moderna e
da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente. Ambas
se arrogam, cada uma no seu campo, regras exclusivas de produção de conhecimento ou de
32criação artística. O que a regra não legitima ou reconhece é declarado inexistente. A não-
existência assume aqui a forma de ignorância ou de incultura.
A segunda lógica baseia-se na monocultura do tempo linear, a idéia de que a história
tem sentido e direção únicos e conhecidos. Esse sentido e essa direção têm sido formulados de
diversas formas: progresso, revolução, modernização, desenvolvimento, crescimento,
globalização. Comum a todas estas formulações é a idéia de que o tempo é linear e de que na
frente do tempo seguem os países centrais do sistema mundial com seus conhecimentos,
instituições e cultura. Esta lógica produz não-existência declarando atrasado tudo o que não
comporta a sua definição de avanço. Por exemplo, do ponto de vista dos “especialistas” dos
países ou instituições hegemônicas, as técnicas de produção de um camponês do Terceiro
Mundo são consideradas primitivas, subdesenvolvidas ou tradicionais.
A terceira lógica é a lógica da classificação social, baseada em uma monocultura que
naturaliza as diferenças. Consiste na distribuição das populações por categorias que
naturalizam hierarquias. Por exemplo, a classificação por raça ou cor e a classificação por
sexo. Essa classificação fundamenta-se em atributos que negam a intencionalidade da
hierarquia social. A relação de dominação é a conseqüência, e não a causa dessa hierarquia, e
pode ser mesmo considerada como uma obrigação de quem é classificado como superior. Por
exemplo, o «fardo do homem branco» em sua missão civilizadora. De acordo com essa lógica,
a não-existência é produzida pela inferioridade insuperável, por ser algo natural. Quem é
inferior, não pode ser uma alternativa crível a quem é superior, naturalmente pode ser
desconsiderado.
A quarta lógica da produção da inexistência é a lógica da escala dominante. A partir
desta lógica, a escala principal determina a irrelevância de todas as outras possíveis escalas.
Na modernidade ocidental, a escala dominante aparece sob duas formas principais: o
universal e o global. O universalismo que, pela sua natureza, independe de contextos
específicos tem, por isso, precedência sobre todas as outras realidades particulares que
dependem de contextos.
Para Santos, a globalização é a escala que, nos últimos vinte anos, adquiriu uma
importância sem precedentes. Trata-se de uma escala que privilegia as entidades ou realidades
que alargam o seu âmbito a todo o globo e, ao fazê-lo, adquirem a prerrogativa de designar
entidades ou realidades rivais como locais (por exemplo, relações ou modos de produção).
Nesta lógica, a não-existência toma a forma do particular e do local. As entidades ou
33realidades definidas como particulares ou locais são integradas a escalas que as incapacitam
de serem alternativas críveis ao que existe de modo universal ou global.
Finalmente, a quinta lógica de não-existência é a lógica produtivista. Baseia-se na
monocultura dos critérios de produtividade capitalista. Nos termos desta lógica, o crescimento
econômico é um objetivo racional inquestionável e, como tal, não se deve questionar o
critério de produtividade que melhor se ajusta a esse objetivo. Esse critério aplica-se tanto à
natureza como ao trabalho humano. A natureza produtiva é a natureza mais fértil em um
determinado ciclo de produção (por exemplo, no Brasil, a “terra roxa”), enquanto o trabalho
produtivo é o trabalho que maximiza a geração de lucros, igualmente, em um determinado
ciclo de produção (por exemplo, o “trabalhador esforçado”). Segundo esta lógica, a não-
existência é produzida na forma do improdutivo que, aplicada à natureza, é esterilidade e,
aplicada ao trabalho, é preguiça ou desqualificação profissional.
Essas são para Santos as cinco principais formas sociais de não-existência produzidas
ou legitimadas pela razão indolente: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o
improdutivo. Trata-se de formas sociais de inexistência, porque as realidades que elas
conformam estão apenas presentes como obstáculos em relação às realidades que contam
como importantes, sejam elas realidades científicas, globais ou produtivas. “São o que existe
sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir”. (2004a, p. 789).
Assim, a sociologia das ausências procura libertar as práticas sociais do seu estatuto
de resíduo, devolvendo-lhes a sua temporalidade própria e sua possibilidade de
desenvolvimento autônomo. Por exemplo, a importância dos antepassados, em diferentes
culturas, deixa de ser uma manifestação de primitivismo religioso ou de magia para se tornar
uma outra forma de viver a contemporaneidade.
Um outro aspecto importante da razão indolente, além de contrair o presente (um
momento passageiro entre o passado e o futuro), dilata o futuro. Assim, a história tem o
sentido e a direção que lhe são conferidos pelo progresso, e o progresso não tem limites, o
futuro é infinito. Como afirma Marramao, só existe para se tornar passado. Um futuro assim
concebido não tem de ser pensado. (Apud Santos, 2004a, p.794).
Como já vimos, Santos propõe a sociologia das ausências para dilatar o presente.
Para contrair o futuro, propõe a “sociologia das emergências”. A sociologia das emergências
consiste em substituir um futuro linear por um futuro de possibilidades plurais e concretas,
que podem ser utópicas ou realistas, construídas através do presente.
34A sociologia das emergências é a investigação das alternativas que cabem no
horizonte das possibilidades concretas.
Enfim, para reafirmar a “Razão Cosmopolita” como forma de superação da “Razão
Indolente” deve-se realizar o trabalho da tradução tanto sobre os saberes como sobre as
práticas e os seus agentes, como já foi explicitado.
Portanto, a “Razão Cosmopolita” é aquela que: “[...] desconfia das aparências e das fachadas”, “procura a verdade nas costas dos
objetos”, “assenta na distinção entre o relevante e o irrelevante”, “avança pela
especialização e pela profissionalização do conhecimento, com o que gera uma nova
simbiose entre saber e poder”, “se orienta pelos princípios da racionalidade formal e
instrumental” e “produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário, sem
imagens nem metáforas, analogias ou outras figuras da retórica”. (SANTOS, 1989,
p.34-35).
E a tradução entre saberes consiste na interpretação entre duas ou mais culturas com
vista a identificar preocupações semelhantes e respostas diferentes que se fornecem para elas.
Assim, as culturas podem ser enriquecidas pelo diálogo. (2004a, p. 803).
Enquanto método, o trabalho de tradução reafirma a possibilidade do diálogo entre os
saberes hegemônicos e contra-hegemônicos, criando um “consenso transcultural” que consiste
em uma teoria sobre como não adotar uma teoria geral sobre o mundo, as pessoas, a cultura,
considerando que o mundo é enriquecido pela multiplicidade e diversidade. Assim, o trabalho
de tradução é complementar da sociologia das ausências e da sociologia das emergências. É o
trabalho que visa outorgar inteligibilidade aos movimentos sociais, povos, grupos e
organizações que envolvem culturas e saberes diversificados.
2.4 Localismo globalizado ou globalismo localizado
Na perspectiva da “Razão Cosmopolita”, Santos revisa o fenômeno da globalização
na tentativa de superar o conceito e as formas de globalização hegemônica para contribuir
com o processo de fazer emergir da própria história humana uma outra globalização – a
globalização contra-hegemônica, constituída e reconstruída pelas lutas, movimentos locais e
nacionais que emergem em diferentes partes do mundo motivados pela possibilidade concreta
35de construção da democracia participativa em função da emancipação social dos excluídos em
todo o mundo. (SANTOS, 2002a).
Santos apresenta conceitos de globalização que, na essência, confirmam os mesmos
fundamentos epistemológicos:
A globalização enquanto “conjuntos diferenciados de relações sociais (2002a, p. 55-
56); “globalização como um conjunto de relações sociais que traduzem na intensificação das
interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou
práticas sociais e culturais transnacionais (2002a, p. 85); “significa uma expansão exponencial
das relações transfronteiriças, umas voluntárias, outras forçadas, como conseqüente
transformação das escalas que têm dominado até agora os campos sociais da economia, da
sociedade, da política e da cultura” (2002a, p. 16); “A globalização é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de considerar como sendo local outra condição ou entidade rival”.
(2003, p. 433).
Estes conceitos sinalizam quanto é falsa a idéia do paradigma moderno ocidental de
que a globalização é um fenômeno linear, monolítico e inequívoco. Trata-se de “um
paradigma local que se globalizou com êxito, um localismo globalizado. (SANTOS, 2001, p.
18).
Concordamos com Santos em relação às características desse processo: “[...] a globalização dos sistemas produtivos e financeiros à revolução nas
tecnologias, práticas de informação e de comunicação, da erosão do Estado
nacional e redescoberta da sociedade civil ao aumento exponencial das
desigualdades sociais, das grandes movimentações transfronteiriças de pessoas
como emigrantes, turistas ou refugiados, ao protagonizo das empresas
multinacionais e das instituições financeiras multilaterais, das novas práticas
culturais e identitárias aos estilos de consumo globalizado”. (2002a, p.11).
Assim, a partir dessas idéias de globalização e os seus efeitos, devemos considerar os
seus dispositivos ideológicos e políticos eivados de intencionalidades. Entre essas
intencionalidades, podemos destacar:
1. a falácia do determinismo que consiste na idéia de que a globalização é um
processo espontâneo, automático, inelutável e irreversível, que é intensificado a partir da
lógica e de uma dinâmica próprias que se impõem às interferências externas;
2. a falácia do desaparecimento do Sul nega o conflito entre as relações Norte/Sul.
Essa falácia reforça a idéia de que o impacto da globalização é uniforme em todas as regiões
36do mundo e de que os seus idealizadores e as empresas multinacionais são inovadoras e detêm
capacidade organizativa para transformar a economia global numa única opção do mundo em
termos de oportunidades.
Ambas as falácias têm caído no descrédito à medida que a globalização tem se
transformado num campo permanente de contestação social e política em razão de provocar o
aumento da exclusão, ainda que, para alguns, a globalização continua a ser considerada “[...] o
grande triunfo da racionalidade, da inovação e da liberdade capaz de produzir o progresso
infinito e abundância ilimitada”. (SANTOS, 2002a, p. 53).
Diante de tantas posições e das circunstâncias adversas e contraditórias do mundo
atual, entre a exclusão e a riqueza, o poder e a opressão, surgem discursos diversos e
antagônicos sobre a globalização.
Santos cita entre eles o discurso asiático – o discurso europeu ocidental; o discurso
latino-americano que põe em relevo o confronto entre a globalização e as especificidades
regionais; o discurso disciplinar, que é o discurso das ciências sociais; o discurso pró-
globalização, o discurso anti-globalização, o discurso feminista que destaca aspectos
comunitários e privilegia o local e atribui o global a uma preocupação/idéia masculina.
(2002a, p.53-54).
Nessa perspectiva, Santos apresenta uma proposta teórica com o objetivo de realizar
uma reflexão teórica sobre globalização para captar a complexidade do fenômeno a partir da
análise de três contradições as quais passamos a explicar.
A primeira contradição é entre globalização e localização, baseada no argumento do
tempo presente dominado por um movimento dialético em que ocorrem os processos de
localização e globalização.
Destacamos um exemplo: os localismos territorializados protagonizados pelos povos
indígenas da América Latina os quais, após séculos de genocídio e de opressão cultural,
conseguiram êxito nas lutas pelo direito à autodeterminação nos seus territórios ancestrais.
A segunda contradição é entre o Estado-nação e o Não-Estado transnacional. Na
perspectiva do primeiro, o Estado é obsoleto e em vias de extinção; na perspectiva do
segundo, continua a ser considerado como entidade política central, principalmente porque é
responsável para institucionalizar a própria globalização, responsabilizando-se pelas agências
financeiras e a desregulação da economia.
37As duas posições são contraditórias e não captam a totalidade das questões
envolvidas no seu conjunto pelas controvérsias que provocam em razão da tentativa de
classificá-los como se fosse possível demarcar linha divisória absoluta entre as duas posições
demarcadas como Estado-nação e o Não-Estado-nação. O primeiro seria o Estado-nação em
crise - entre eles o Brasil, e o segundo, o Estado-nação soberano, poderoso, rico, líder mundial
da economia, da democracia e do poder econômico, político e cultural, entre eles, os Estados
Unidos e os demais sete países que formam o G-8: Inglaterra, Alemanha, Japão, França,
Canadá, Itália e a Rússia.2
E a terceira é de natureza político-ideológica, ou seja, é a contradição entre aqueles
que vêem na globalização a energia incontestável e imbatível do capitalismo e os que vêem na
globalização uma nova oportunidade para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade
transnacional e as lutas anticapitalistas.
Santos, ao propor a sua teoria sobre globalização argumentada no conceito de
“Sistema Mundial em Transição” – SMET, afirma que esta teorização deve dar conta da
pluralidade e da contradição dos processos de globalização. Antes da apresentação do quadro
teórico, explica o porquê da transição: “[...] esta contém em si o sistema mundial velho, em
processo de profunda transformação, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou
não conduzir a um novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistemática ou
não”. (2002a, p. 56).
Nessa perspectiva teórica, o “Sistema Mundial em Transição” é constituído por três
constelações de práticas coletivas:
1. a constelação de práticas interestatais que dizem respeito ao papel dos Estados no
sistema mundial moderno, considerados protagonistas da divisão internacional do trabalho
onde se estabelecem a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia;
2. a constelação de práticas capitalistas globais que se referem às práticas dos agentes
econômicos, cujo espaço é o planeta;
3. a constelação de práticas sociais e culturais transnacionais que são os fluxos
transfronteiriços de pessoas e de culturas, de informação e de comunicação. (Santos, 2002).
Essas três práticas são reapresentadas com exemplificação nos capítulos seguintes,
quando analisamos o fenômeno da globalização e a homogeneização do currículo.
2 G7 quando não se inclui a Rússia no grupo; G8 quando a Rússia está incluída entre os países do grupo.
38Porém, anteciparemos ainda neste capítulo a síntese da perspectiva teórica do
“sistema mundial de transição” a partir dos seguintes argumentos apresentados por Santos, a
saber:
1. Cada uma dessas constelações de práticas é constituída por um conjunto de
instituições que garantem a sua reprodução, a complementariedade e a estabilidade entre elas;
2. Uma forma de poder que produz a lógica das interações e legitima as
desigualdades e as hierarquias;
3. Uma forma de direito que produz a linguagem das relações intrainstitucionais e
interinstitucionais e o critério da divisão entre as práticas permitidas e proibidas;
4. Um conflito estrutural que concentra as tensões e contradições matriciais das
práticas;
5. Um critério de hierarquização que define o modo como se cristalizam as
desigualdades de poder e os conflitos em que se traduzem;
6. Diferença de intensidade no nível de envolvimento dessas práticas em todos os
modos de produção. (SANTOS, 2002a).
É importante identificar as diferenças entre o “Sistema Mundial em Transição” –
SMET e o “Sistema Mundial Moderno” – SMM, pois, enquanto o primeiro tem como eixo
três pilares: constelações de práticas sociais e culturais transnacionais, o segundo tem como
eixo dois pilares: a economia-mundo.
Santos observa que as interações entre os pilares do “Sistema Mundial em
Transição” são mais intensas que no “Sistema Mundial Moderno”.
Enquanto, no “Sistema Mundial Moderno”, os dois pilares apresentam contornos
claros e distintos, no “Sistema Mundial em Transição”, há uma interpenetração permanente e
intensa entre as constelações de práticas.
Por essa razão, existem zonas cinzentas e híbridas. Por exemplo, a Organização
Mundial do Comércio que se caracteriza como uma instituição híbrida constituída por práticas
interestatais e por práticas capitalistas globais.
Porém, ainda sobre as questões que envolvem os dois sistemas, observa-se que
muitas das instituições centrais do “sistema mundial moderno” que permanecem no “sistema
mundial em transição” desempenham, nos dias de hoje, funções diferentes, sem que sejam
afetadas, a exemplo do Estado o qual, no “sistema mundial moderno” assegurava a integração
39da economia, da sociedade e da cultura nacionais. Nos dias de hoje, contribui para a sua
desintegração contraditoriamente, em nome da integração.
Os processos de globalização decorrem das formas de poder e das desigualdades na
distribuição desse poder, em conseqüência das interações que se dão entre as constelações de
práticas e as tensões e contradições, tanto no interior de cada uma dessas constelações como
nas relações entre elas.
Portanto, identifica-se, em cada constelação de práticas, um conflito estrutural que
organiza as lutas em volta dos recursos que são objeto de trocas desiguais que põe em relevo a
contradição entre o capital global e o trabalho como recurso global.
Santos apresenta a transconflitualidade como a forma “[...] de assimilar um tipo de
conflito a outro e em experenciar um conflito de certo tipo como se ele fosse de outro
tipo”(2002a, p. 60). A transconflitualidade ocorre em razão dos tempos, durações e ritmos que
caracterizam as dimensões que compõem os conflitos multifacetados e complexos que
originam a hierarquia entre classes, grupos, interesses e instituições no interior dos processos
de globalizações. (SANTOS, 2002a, p.60-61).
Como resultado dessa hierarquização, é possível estabelecer os critérios global/local,
ainda que sobre hipótese, e ratificar os critérios centro/ semiperiferia/periferia mantidos pelo
“sistema mundial em transição”, enquanto período transicional, para manter e aprofundar as
hierarquias alterando a lógica interna da produção e reprodução, já que estas são as suas
características.
O global e o local são socialmente produzidos no interior dos processos de
globalização concebido por Santos como:
“[...]o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefato, condição,
entidade ou identidade local estende a sua influência para além das fronteiras
nacionais e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro
artefato, condição, entidade ou identidade rival”. (SANTOS, 2002a, p. 63).
Portanto, não existe globalização genuína, pois o que denominamos de globalização
é sempre a globalização de determinado lugar que foi bem sucedida; a globalização pressupõe
a localização; vivemos num mundo de localização como num mundo de globalização; o
processo que cria o global é o mesmo que produz o local; por essa razão, o global requer
acentuação do local.
Assim, identificamos duas formas de globalização: o “localismo globalizado” que
consiste no processo pelo qual um fenômeno local é globalizado e o “globalismo localizado”
40que consiste no impacto do global nas condições locais, ou seja: o que foi globalizado no
processo de localismo globalizado atua vorazmente no local em forma de globalismo
localizado como agem os países ricos e poderosos politicamente nos países periféricos e
semiperiféricos. (SANTOS, 2002a).
Essas duas formas de globalização agem integradas, sem perderem as suas
especificidades considerando que os fatores, agentes e conflitos são distintos.
É importante assinalar que a divisão internacional da produção da globalização
caracteriza-se pelo seguinte padrão, ou seja: os países centrais são especialistas em localismos
globalizados e os países periféricos de globalismos localizados e os semiperiféricos
caracterizam-se pela coexistência de localismos globalizados e globalismos localizados e
pelas tensões entre eles, o que sugere afirmar que o sistema mundial “[...] é uma trama de
globalismos localizados e localismos globalizados”. (SANTOS, 2002a, p. 66).
Salientamos exemplos de localismos globalizados: a música popular brasileira
reconhecida em grande parte do mundo e a música e o artesanato nordestino, reconhecidos no
país por ultrapassarem as fronteiras da região. Porém, é fácil constatar que tanto a música
brasileira como a música e o artesanato nordestinos incorporaram expressões da cultura
global.
Evidentemente, o localismo globalizado faz-se presente nos currículos por meio do
confronto de saberes que são incorporados, principalmente, por meio das novas tecnologias da
comunicação e informação, nos conteúdos curriculares, nas metodologias utilizadas pelos
professores, nos livros e matérias didáticos e nas expressões culturais dos alunos, professores,
famílias e sociedade.
Esse confronto de saberes pode ser identificado como resultado da luta pela
superação do rigor da ciência na concepção moderna como critério de verdade absoluta.
Nesse contexto das resistências, surge como alternativa contra-hegemônica o cosmopolitismo
que tem como objetivo tratar da organização transnacional da resistência de Estados-nação,
regiões, classes, grupos sociais, que são vitimados permanentemente pelas desigualdades.
Essas desigualdades reforçam os localismos globalizados e os globalismos
localizados contando para a consecução dos seus intentos com as possibilidades das relações
transnacionais, inclusive as novas tecnologias da informação e da comunicação. (SANTOS,
2002a).
41A globalização das resistências ocorre nos países periféricos e semiperiféricos contra
os globalismos localizados e contra os localismos globalizados. A repercussão mundial mais
contundente dessas resistências vem acontecendo no Fórum Social Mundial, entre 2001 e
2006, que é considerado um dos pilares e símbolo do movimento global e fenômeno político-
social contra a globalização neoliberal e contra o pretensioso triunfo histórico do capitalismo
como a única opção humana.
O cosmopolitismo pode ser conceituado como a resistência para transformar as
trocas desiguais em trocas compartilhadas e em lutas contra a exclusão, a dependência, a
desintegração. Essa resistência como expressão do cosmopolitismo se efetiva por meio de
atividades lideradas, articuladas e realizadas pelos movimentos, organizações, redes de
solidariedade transnacional não desigual entre o Norte e o Sul que operam em todos os países.
São redes internacionais de direitos humanos, de movimentos feministas, organizações não
governamentais (ONGs)3, redes de movimentos e associações de indígenas, ecológicas, entre
muitos outros movimentos e organizações de resistência que lutam no mundo contra a
exclusão social que se agrava no mundo, em razão das políticas implementadas pelas
instituições financeiras a serviço da globalização neoliberal.
O cosmopolitismo com toda a variedade de lutas pela emancipação das classes
dominadas representa uma tradição da modernidade ocidental que foi suprimida e
marginalizada pela tradição hegemônica que, ao longo da história, provocou a expansão
européia, o colonialismo e o imperialismo e hoje provoca os localismos globalizados e os
globalismos localizados. (SANTOS, 2002a).
Diferente do marxismo, o cosmopolitismo integra grupos sociais que se constituem
independentemente das classes sociais. As questões que unem os grupos são motivadas pela
discriminação sexual, étnica, racial, religiosa, etária, etc.
As lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, das
entidades, artefatos e ambientes considerados essenciais para a sobrevivência da humanidade
compõem “o patrimônio comum da humanidade”. Fazem parte do patrimônio comum da
humanidade: as lutas ambientais tais como, a preservação da Amazônia, da Antártida, da
biodiversidade dos fundos marinhos, da lua, dos planetas e todos os recursos comuns da
humanidade.
3 As Organizações não Governamentais as quais nos referimos são aquelas que lutam efetivamente contra a exclusão e favor da emancipação humana. Não desconhecemos as ONGs que atuam na contramão da resistência e que desempenham o papel de reforço à globalização liberal hegemônica.
42Os conflitos, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do patrimônio
comum da humanidade confirmam o conceito de globalização como um campo de lutas
transnacionais que se travam no campo social.
Por essa razão, deve-se distinguir “a globalização de-cima-para-baixo” ou
“globalização hegemônica”, que são os localismos globalizados e os globalismos localizados,
e a “globalização de-baixo-para-cima” ou “globalização contra-hegemônica”, que são o
cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade. (SANTOS, 2002a, p. 71).
Enfim, o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade se constituem fortes
resistências e ataques contra os detentores do poder econômico, sobretudo aos Estados Unidos
que conduzem a globalização neoliberal.
Entretanto, contraditoriamente, há caminhos que estão sendo construídos expondo as
tensões e os conflitos de um jogo político na perspectiva da superação da lógica de um
Estado-nação regulatório para a lógica de um Estado-nação emancipatório o qual, como já
afirmamos no corpo do capítulo, assume, via de regra, um papel ambíguo em razão da luta
política que empreende frente aos processos de homogeneização e diferenciação da cultura.
Ora assume a autenticidade das culturas nacionais, ora promove a homogeneização e
uniformidade dessas mesmas culturas com repercussões no campo da educação e do currículo.
Contudo, em meio à análise do fenômeno da globalização, nas suas várias vertentes e
expressões, tentaremos não cair na armadilha das ortodoxias que fazem uma leitura
unidimensional de um processo tão complexo.
Mesmo assim, ratificamos a evidência da centralidade exercida pelas forças
econômicas nacionais, supranacionais e transnacionais em operar e provocar os efeitos na
definição e implementação de políticas públicas no campo educacional e no campo do
currículo.
Porquanto, a busca das respostas para os problemas sociais gera o inconformismo
resultante das provocações de uma realidade ainda excludente, que se apresenta com inúmeras
interfaces contraditórias que mexem com as emoções daqueles comprometidos com a utopia
de transformar a realidade no presente com a possibilidade do futuro.
Esse inconformismo, expresso nas ações sociais e coletivas de resistência, é
alimentado pela luta contra a opressão das formas de poder: “[...] patriarcado”,
“exploração”,“fetichismo das mercadorias”,“diferenciação identitária desigual, “dominação e
troca desigual”. (SANTOS, 2002a).
43Como afirma Santos:
“Na minha concepção, as ações rebeldes, quando coletivizadas, são a resistência
social a estas formas de poder e, na medida em que se organizam segundo
articulações locais-globais, constituem a globalização contra-hegemônica”. (2002a,
p. 26).
Apresenta uma proposta teórica a partir do que considera “três aparentes
contradições”: “Globalização e localização”; “Estado-nação e o não-Estado transnacional”; e
a “Globalização como energia incontestável e imbatível do capitalismo”. (2002a, p. 54-55).
“O Estado-nação e o não-Estado transnacional” é o mais controverso em razão dos
debates relativos ao papel do Estado na era da globalização. Ora o Estado é considerado uma
entidade absoleta em processo de extinção, ora o Estado continua a ser a entidade política
central em razão do caráter seletivo do processo de erosão da soberania e pela paternidade que
lhe conferem as agências financeiras e multilaterais à desregulação da economia, visto que
são criadas pelos estados nacionais. (2002a, p. 55).
A “globalização como energia incontestável e imbatível do capitalismo” tem caráter
político-ideológico. Caracteriza-se como uma oportunidade para ampliar a solidariedade
transnacional e as lutas anticapitalistas e o seu contrário, ou seja: a energia incontestável e
imbatível do capitalismo. Esta contradição é defendida pelos que conduzem à globalização e
dela se beneficiam como por aqueles que sentem a globalização como a “[...] mais virulenta
agressão externa contra os seus modos de vida e o seu bem estar”. (SANTOS, 2002a, p. 55).
Este conjunto de análises de Santos o faz afirmar que estas contradições “[...]
condensam os vetores mais importantes dos processos de globalização em curso”. Afirma o
autor: “À luz delas, é fácil ver as disjunções, as ocorrências paralelas e as confrontações
são de tal modo significativas que o que designamos por globalização é, de fato,
uma constelação de diferentes processos de globalização e, em última instância, de
diferentes e, por vezes, contraditórias, globalizações”. (2002a, p. 55).
O projeto sócio-cultural é redefinido centrado em dois pilares constituídos por
princípios e racionalidades (SANTOS, 2001):
441. O pilar da regulação, constituído pelo princípio do Estado concebido por Hobbes,
do Mercado segundo Locke e Adam Smith e da Comunidade pensada por Rousseau 4.
2. O pilar da emancipação constituído pelas lógicas definidas por Max Weber: a
racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivo-
instrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito5.
Sobre o projeto sócio-cultural da modernidade Santos o caracteriza como rico,
complexo, ambicioso e revolucionário “e tão susceptível de variações profundas como de
desenvolvimentos contraditórios”. (SANTOS, 2001, p. 50).
Ao explicar as contradições desse projeto, o autor admite os excessos e os déficits da
matriz paradigmática da modernidade ao pretender um desenvolvimento harmonioso e
recíproco do pilar da regulação e do pilar da emancipação. Esse desenvolvimento deve ser
traduzido pela completa racionalização da vida coletiva e individual. “Esta dupla vinculação –
entre os dois pilares, e entre eles e a práxis social – vai garantir a harmonização de valores
sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e
identidade, igualdade e liberdade”. (SANTOS, 2001, p.50).
O que caracteriza a condição sócio-cultural no final do século passado “[...] é a
absorção do pilar da emancipação pelo da regulação, fruto da gestão reconstrutiva dos déficits
e dos excessos da modernidade confiada à ciência moderna e, em segundo lugar, ao direito
moderno”. (SANTOS, 2001, p. 55).
A rendição da emancipação moderna à regulação moderna foi provocada pelos
seguintes efeitos: o desequilíbrio entre os pilares da regulação e emancipação e as promessas
não cumpridas pelo projeto sócio-cultural da modernidade; a redução da emancipação
4 Ao citar Hobbes, Locke e Rousseau, Santos nos remete às concepções sobre Estado, Mercado e Comunidade como veremos: o Estado em Hobbes compreende a absorção de todos os elementos sociais pela autoridade estatal. Hobbes conclui que o homem não é nobre e é inclinado aos vícios e à maldade e, por conseguinte, a sociedade tinha de ser governada com pulso de ferro, por um Estado forte, governado por um soberano severo que deveria impor a disciplina pela força por meio do Estado; ao contrário de Hobbes, Locke considerava que o homem é bom, que as leis, o arbítrio do Estado o tornavam mau. A concepção de Mercado em Locke baseia-se nas suas idéias sobre a liberdade dos indivíduos, considerando que, na sua concepção, o homem teria direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à felicidade. O Estado deveria assegurar a máxima liberdade ao homem em troca do lucro econômico; para Rousseau, o "homem natural" exprime todo o seu pensamento político. Partindo de um mesmo princípio, o naturalismo, fala do Contrato Social como expressão da liberdade não como uma licença para os indivíduos agirem por vontade própria, mas como a oportunidade de fazer o que é certo já que ele advogou que há uma vontade comum e uma vontade de todos os indivíduos. Hobbes e Locke são adeptos do Estado Liberal. Tanto Hobbes como Locke e Rousseau podem ser considerados precursores do capitalismo e, conseqüentemente, do fenômeno da globalização na concepção hegemônica. 5 O pilar da emancipação é trabalhado por Santos como forma de superação da “razão indolente”, suporte da modernidade em crise, para construir uma globalização contra-hegemônica. O autor baseia-se em Max Weber
45moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência; a submissão ao princípio do
mercado aliado a conversão da ciência em força produtiva.
O paradigma em crise da ciência moderna desafia a construção de outros paradigmas
sucedâneos que suscita o debate epistemológico impulsionador das pesquisas, das revisões
conceituais e dos postulados teóricos da ciência que sustentam o fenômeno da globalização
hegemônica o qual ganhou sustentação política nos anos 80 com a ascensão do projeto
neoliberal, após o colapso do socialismo entre 1989-1991.
Entretanto, em meio ao contexto da globalização na sua face excludente, discute-se a
emancipação. Essa discussão vem acontecendo de forma tão intensa adquirindo novos
contornos, redefinindo contextos, objetivos e meios, inclusive as subjetividades das lutas
sociais e políticas (SANTOS, 2002a).
Numa perspectiva contra-hegemônica em oposição ao paradigma da modernidade,
apresenta propostas alternativas como forma de superação por meio da análise crítica da
realidade atual assentada na análise crítica que afirma o pressuposto de que a existência não
esgota as possibilidades da própria existência. “O desconforto, o inconformismo ou a
indignação perante o que existe suscitam o impulso para teorizar a sua superação”. (SANTOS,
2001, p. 23).
Nessa perspectiva, o cosmopolitismo significa o trabalho de tradução segundo
concepção já explicitada anteriormente.
A importância do trabalho de tradução se dá na definição ou redefinição de cada
momento histórico a partir do processo de reconceituação das idéias, concepções sobre o
mundo, a natureza, a pessoa humana, a sociedade, a educação e a própria vida, no exercício
permanente de uma contra-hegemonia em razão da emancipação humana.
Os desafios que se destacam no momento atual centralizam a luta em razão da
construção de uma nova sociedade que supere a opressão e a exclusão sociais. O movimento
de reação contra a globalização neoliberal está emergindo por meio de um outro processo
constituindo que, para o autor, supõe alianças entre movimentos, lutas, organizações contra a
exclusão social que acontecem em todas as partes do mundo.
O surgimento de novos estudos sobre o processo de globalização vem apontando um
outro horizonte como resultado de resistências que se fortalecem e que se configuram em um
outro paradigma denominado de “Paradigma de um conhecimento prudente para uma vida
46decente”. Um paradigma científico – um conhecimento prudente - e um paradigma social –
uma vida decente. (SANTOS, 2001, p.74).
A globalização traduzida na perspectiva desse novo paradigma é construída a partir
da organização “da base para o topo da sociedade” e visa a analisar iniciativas, organizações e
movimentos progressistas nos cinco domínios sociais: democracia participativa; sistemas
alternativos de produção; multiculturalismo; justiça e cidadania culturais; luta pela
biodiversidade entre conhecimentos rivais e novo internacionalismo operário.
Na atualidade, podemos considerar que a hierarquia social se manifesta “[...] de duas
formas: na dicotomia global-local em que o local é a forma subordinada da realidade ou
entidade com capacidade para se autodesignar como global; e na tricotomia centro,
semiperiferia e periferia que se aplica especialmente, mas não exclusivamente, a países”.
(SANTOS, 2002d, p.19).
Segundo Santos, devemos acreditar na viabilidade e no potencial emancipatório das
múltiplas alternativas de formas de organização econômica baseadas na igualdade, na
solidariedade e na proteção do meio ambiente. Contudo, faz a observação de que o
“pensamento crítico consiste na asserção de que a realidade não se reduz ao que existe” e,
nesse sentido, as práticas e o pensamento emancipatórios consistem em ampliar as
possibilidades por meio da experimentação e da reflexão sobre alternativas que apontem
sociedades justas. (SANTOS, 2002d, p.25).
Nessa concepção, o potencial emancipatório das propostas alternativas econômicas
não capitalistas, em curso, aponta a perspectiva dos movimentos sociais, das comunidades e
das organizações que resistem à hegemonia do capitalismo e aderem às alternativas
econômicas baseadas nos princípios não capitalistas.6
As tensões entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da
diferença e de redistribuição são hoje expressas pelos termos multiculturalismo, justiça
multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais. Os movimentos e as iniciativas
6 O livro de Santos “Produzir para viver: os caminhos da produção capitalista”, V. 2 da Coleção “Reinventar a emancipação social: para novos manifestos” trata especificamente da base teórica sobre novas formas alternativas de produção e das experiências sobre essas alternativas de produção, entre estas as experiências brasileiras escritas pelos autores Paul Singer: “A recente ressurreição da economia solidária no Brasil”; Zander Navarro “Mobilização sem emancipação” – as lutas sociais dos sem-terra no Brasil e “O MST e a canonização da ação coletiva”; e João Marcos de Almeida Lopes, “O dorso da cidade: os sem terra e a concepção de uma outra cidade” que apresenta a experiência de uma cidade da reforma agrária construída a partir do Assentamento Ireno Alves dos Santos, no Estado do Paraná.
47emancipatórias enfrentam as tensões ao indicarem noções e concepções inclusivas a partir de
lutas coletivas que respeitem as diferenças e a dignidade humanas.
Na sua origem, o multiculturalismo designa “[...] a coexistência de formas culturais
ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades modernas”.
(SANTOS, 2003b, p.26).
Percebemos que o multiculturalismo é apresentado com muitos sentidos como o
conceito de cultura considerado como um conceito estratégico e central para a definição de
identidades e de alteridades no mundo de hoje. Da mesma forma, o conceito
multiculturalismo é controverso e é permeado de tensões, tanto pelos conservadores como
pelos grupos de progressistas de diferentes correntes.
Entretanto, destacamos as versões emancipatórias do multiculturalismo que se
baseiam no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou
construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos. (SANTOS, 2003, p.
33-34).
O multiculturalismo conservador é conceituado como, “[...] o que consiste, primeiro, em admitir a existência de outras culturas apenas
inferiores. Segundo, a cultura eurocêntrica branca nunca é étnica – étnicos são os
não brancos, em princípio, e, portanto, não admite a etnicidade, o particularismo da
cultura branca dominante. Terceiro, não admite a incompletude dessa cultura. Essa é
uma cultura que em si mesma contém tudo o que melhor foi dito ou pensado no
mundo”. (SANTOS, 2003a, p.12).
O multiculturalismo emancipatório como o que procura por uma equação. Sem
dúvida política, científica, intelectual e cultural; mas, o multiculturalismo emancipatório que
merece a pena ser um objeto de luta e de tensão política. Uma política com dois objetivos: a
redistribuição social-econômica e o reconhecimento de diferença cultural.
A globalização contra-hegemônica fundamenta-se na construção de cidadanias
emancipatórias que interligam o local com o global por meio de redes e de coligações
policêntricas, para salvaguardar o caráter emancipatório das lutas locais. Se for necessário que
a direção e coordenação dessas lutas fiquem nas mãos dos que as protagonizam localmente, as
alianças translocais e transnacionais, as redes internacionais de informação e de solidariedade
48são indispensáveis para evitar a particularização, a reprodução de hierarquias e formas de
dominação que subvertem o caráter emancipatório dessas lutas (SANTOS, 2003b). 7
O domínio do internacionalismo operário parte da análise das novas formas do
conflito capital/trabalho expresso numa das maiores dimensões – o contraditório conflito
Norte/Sul. As formas do conflito vêm em decorrência, por um lado, do fim da Guerra fria e
por outro, do trabalho ter se constituído num mercado global. É visível a solidariedade
operária em processo de reconstrução sob novas formas e princípios emancipatórios.
Em geral, as iniciativas e alternativas de ação contra-hegemônicas que vão à direção
da emancipação social baseiam-se em dois pressupostos: um epistemológico e outro
sociopolítico. Esses dois pressupostos direcionaram tanto as reflexões sobre o processo de
globalização como as análises críticas que denunciaram a crise da ciência de maneira geral e
das ciências sociais em particular.
Pressuposto epistemológico
O pressuposto epistemológico é o que evidencia a discussão sobre a crise da ciência,
particularmente, das ciências sociais em meio a uma grande crise.
Pressuposto sociopolítico
O pressuposto sociopolítico discorre sobre a globalização enquanto fenômeno que
possibilita a concretização do capitalismo neoliberal e de todas as formas utilizadas pelos
países e grupos que detêm o poder para legitimar um projeto hegemônico de sociedade. Nas
palavras de Santos “[...] nunca tantos grupos estiveram tão ligados ao resto do mundo por via
do isolamento, nunca foram integrados por via do modo com que são excluídos”. (SANTOS,
2002c, p.17).
As discussões e as análises desses estudos enfocam problemas de ordem geral que
confirmam o pressuposto epistemológico: a crise da sociedade moderna, os impasses e os
desafios decorrentes do momento atual sustentam propostas elitistas, discriminatórias e
excludentes, considerando entre outras questões, que a crise civilizatória representa a crise
orgânica da sociedade, ainda convivendo com a fome, miséria, violência, desemprego, falta de
habitação, saúde e educação.
Acreditamos na possibilidade de construção de um novo projeto de sociedade a partir
da superação do projeto que está posto e que precisa ser reavaliado criticamente para surgir
7 O autor publicou no livro v. 3 da Coleção já citada várias experiências de lutas emancipatórias. Destaco a experiência no Brasil publicada no mesmo livro por Lino João de Oliveira Neves: Olhos mágicos do Sul (do SUL): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil.
49um novo projeto de sociedade, visto que há, neste início da primeira década do século XXI,
segundo Santos, “[...] o reconhecimento de que há conhecimentos rivais alternativos à ciência
moderna e de que mesmo no interior desta há alternativas aos paradigmas
dominantes. Com isto, a possibilidade de uma ciência multicultural, ou melhor, de
ciências multiculturais é hoje mais real do que nunca”. (Santos, 2002c, p.15).
A globalização não é um processo radicalmente novo. O novo é a globalização
reconceitualizada e distinta da “globalização hegemônica” que exige das camadas populares a
continuidade da luta pela cidadania alicerçada pela consciência das condições de
marginalização a que estão submetidos. Supõe resistência à “voracidade com que a
globalização hegemônica tem devorado, não só as promessas do progresso, da liberdade, da
igualdade, da não discriminação e da racionalidade, como a própria idéia da luta por elas”.
(Santos, 2002c, p.17).
O autor citado, a partir da crítica à globalização hegemônica e ao processo de
exclusão social no âmbito da ofensiva neoliberal, procura desvelar as dimensões político-
ideológicas e socioculturais e, sobremaneira, econômicas, presentes nas formas de
combinação da globalização hegemônica neoliberal.
2.5 A “Pedagogia do Conflito” para além da globalização hegemônica
No campo da educação Santos propõe uma “Pedagogia do Conflito” em conseqüência
ao inconformismo gerado pela indignação do sofrimento humano que, ao ser trivializado pela
teoria da historia da modernidade, “traduze-se na morte do espanto e da indignação”.
Nesta perspectiva, Santos anuncia a questão central de um projeto educativo
emancipatório e adequado ao tempo presente. O autor direciona esse projeto para “[...]
combater a trivialização do sofrimento humano, por vias de imagens desestabilizadoras a
partir do passado concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana”
(1996, p. 17).
Afirma o autor: “[...] Deste modo, o objetivo principal do projeto educativo emancipatório consiste
em recuperar a capacidade de espanto e de indignação e orientá-la para a formação
de subjetividades inconformistas e rebeldes. (1996, p. 17).
50Para Santos, “[...] a educação parte da conflitualidade dos conhecimentos e deverá,
em última instância, conduzir à conflitualidade entre sensos comuns alternativos.”
O autor descreve os conflitos de conhecimentos que devem orientar um projeto
educativo:
O conflito caracterizado pela aplicação técnica e a aplicação edificante da ciência.
Esse não é um conflito de conhecimentos, mas da sua aplicação que é moldada por um único
conhecimento – o conhecimento científico. O autor constata na sua pesquisa que a criação
moderna dos sistemas educativos consolidou a ciência moderna como modelo hegemônico de
racionalidade – a racionalidade.
Segundo Santos: “[...] O fato de um modelo de aplicação técnica da ciência instrumental hoje a
subjazer ao sistema educativo só é compreensível por inércia ou por má fé, ou por
ambas: pela inércia da cultura oficial e das burocracias educativas, pela má fé da
institucionalidade capitalista que utiliza o modelo de aplicação técnica para ocultar o
caráter político e social da desordem que instaura”. (1996,p. 20).
Contrapondo-se a esta racionalidade instrumental (“Razão Indolente”) sugere o
projeto educativo emancipatório como modelo de aplicação edificante da ciência com as
seguintes características: a aplicação da ciência dar-se-ia sempre numa situação concreta e
quem aplica estará ética e socialmente comprometido com o impacto da sua aplicação; os
meios e os fins não estão separados; os fins se concretizam à medida que se discutem os
meios; a aplicação é um processo argumentativo e o consenso não é média e nem é neutro; o
cientista se envolve na luta pelo equilíbrio do poder em contextos diferentes; para isso, deve
tomar partido pelos que têm menos poder para os que estes, por meio da aplicação edificante
da ciência, revelem os seus argumentos e legitimem o seu uso; a aplicação edificante reforça
as alternativas emergentes e alternativas da realidade e, para alcançar os seus objetivos,
deslegitima as formas institucionais e os modos de racionalidade; nessa direção, combate a
violência, o silenciamento, o estranhamento ao tempo que valoriza a argumentação, a
comunicação e a solidariedade.
O autor reafirma que se deve ampliar o espaço de comunicação e distribuir
equitativamente as competências argumentativas, as deficiências dos saberes locais
transformando-os por dentro incluindo outros saberes locais pela crítica científica. Nesse
sentido, a aplicação da ciência exige pessoas socialmente competentes considerando que os
51mecanismos de poder tendem a alimentar-se “[...] da incompetência social e, portanto, da
‘objetivação’ dos grupos sociais oprimidos”.(1996, p.21 )
Entre outras questões abordadas pelo autor sobre a construção do conhecimento
destacamos o seu projeto pedagógico centrado no pressuposto da reconstrução do conflito
entre o conhecimento-como-regulação e o conhecimento-como-emancipação. Segundo Santos
“[...] o conflito pedagógico será, pois, entre as duas formas contraditórias de saber, entre o
saber como ordem e colonialismo e o saber como solidariedade e como caos”. (1996, p. 25).
Porém, adverte o autor: “[...] A pedagogia do conflito é uma pedagogia de alto risco contra o qual não há
apólices de seguro. Tal como no conflito anterior, a luta é, à partida, desigual, entre
uma forma de conhecimento dominante - o conhecimento –como-regulação – e uma
forma de conhecimento dominada, marginalizada, suprimida –– o conhecimnto-
como emancipação – que o campo pedagógico reconstitui por meio da imaginação
arqueológica”. (1996, p. 25).
Portanto, deve-se reconhecer essa assimetria entre os dois conflitos para buscar o
equilíbrio entre eles para imaginar formas de atuação que reduza essa assimetria no campo
pedagógico (SANTOS, 1996, p. 25).
Um outro conflito é argumentado pelo autor: o imperialismo cultural e
multiculturalismo. Esse conflito é mais amplo que os anteriores em razão de transbordar os
limites da modernidade eurocêntrica já que envolve o conflito e a turbulência entre culturas.
A diversidade cultural tem estado ausente dos sistemas educativos e o debate sobre
essa questão, quando acontece, “[...] ocorre nas margens do sistema em iniciativas
extracurriculares dos professores e dos estudantes, mas, raramente penetram no currículo”.
(SANTOS, 1996, p. 29).
O autor propõe: Projeto pedagógico conflitual e emancipatório cujo perfil
epistemológico considera esses conflitos e os coloca no centro de toda experiência
pedagógica com o objetivo de desestabilizar os modelos dominantes de formação humana
(SANTOS, 1996, p. 18-32).
Nesse contexto de propostas alternativas ele propõe a educação para o
inconformismo, ou seja, a sala de aula como um campo de possibilidades para a produção do
conhecimento que se baseia em todo o seu referencial teórico já construído. Nessa direção o
autor sinaliza com Ecologia dos saberes centrado no postulado de que “[...] toda ignorância é
52ignorante de um certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância particular.” (1995,
p. 25).
Algumas propostas são colocadas pelo autor: a definição entre o imperialismo
cultural e o multiculturaismo; a criação de uma conflitualidade que é negada pelo modelo
hegemônico e a criação de espaços desestabilizadores para ajudar a criar o espaço pedagógico
para o modelo alternativo de relações interculturais, o multiculturalismo.
Portanto o autor defende que esses conflitos devem ocupar o centro de toda
experiência pedagógica emancipatória e que um relacionamento igualitário mais justo que
promova o ato de “[...] aprender o mundo de modo edificante, emancipatório e multicultural
será o critério da boa e má aprendizagem” (1996, p. 33).
Em suma, o autor fala da ecologia dos saberes como possibilidade do
reconhecimento da pluralidade de saberes que constituem o sistema aberto do reconhecimento
em processo constante da criação e renovação do conhecimento enquanto interconhecimento,
ou seja: reconhecimento é auto-conhecimento.(SANTOS, 2006).
Como procuramos inferir neste capítulo, reafirmamos que hoje, mais do que antes, as
políticas liberais impõem uma globalização excludente de caráter hegemônico, por meio de
estratégias próprias ao processo de intervenção do globalismo localizado. No entanto, o
impacto da globalização hegemônica nas estruturas e práticas nacionais e locais não é
monolítico, de fato, é contraditório e heterogêneo, porque é o produto de uma relação
conflitual que não é assumida pelos detentores do poder político-financeiro e cultural que se
arvoram como defensores da humanidade e como detentores do único e definitivo projeto de
sociedade.
No capítulo seguinte, trataremos do fenômeno da globalização e da homogeneização
cultural a partir do aprofundamento desse fenômeno da globalização, das suas diversas formas
de atuação e de seus efeitos no currículo do ensino superior brasileiro.
533 A GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E HOMOGENEIZAÇÃO CULTURAL
Ao teorizar sobre um fenômeno tão complexo como a globalização, homogeneização
e a cultura consideramos pertinente conferir-lhe a mesma característica da história, como
assim se expressou Braudel: “[...] Numa história completa do mundo há, porém, razões para
desencorajar os mais intrépidos e até os mais ingênuos. É um rio sem margens, sem começo
nem fim. E a comparação ainda é inadequada: a história do mundo não é um rio, são rios”.
(1998, p. 8).
O mesmo autor completa a frase anterior com uma reflexão sobre o tempo que
transpomos para as muitas realidades do mundo em tempo de globalização. “[...] E podemos distinguir um tempo vivido nas dimensões do mundo, o tempo do
mundo, que no entanto não é, não deve ser, a totalidade da história dos homens. Esse
tempo excepcional rege, conforme os lugares e as épocas, certos espaços e certas
realidades. Mas outras realidade, outros espaços lhe escapam e lhe são estranhos”.
(BRAUDEL, 1998, p.8).
Ao longo das páginas que se seguem, apresentamos as características gerais sobre a
globalização e, considerando a base teórica sobre globalização apresentada por Santos,
seguiremos quase que na totalidade o esquema apresentado por ele no texto “Os processos da
globalização”. (2002a, p. 25-102).
Destacamos, nesse capítulo, os conceitos sobre globalização, localismo globalizado,
globalismo localizado, cosmopolitismo considerados centrais na análise dos efeitos da
globalização/homogeneização no currículo, objeto de análise dos capítulos seguintes.
Outrossim, tomamos a decisão de acrescentar neste capítulo referências sobre o
fenômeno da globalização que foram apresentadas por outros intelectuais, entre os muitos que
foram citados por Santos, a exemplo de Appadurai (1996), Stoer (2001, 2002), Cortesão
(2001, 2002), Wallerstein (1999, 2002) e Dale (2004). Citaremos também autores brasileiros
entre eles Ianni (1994, 1996, 2000, 2001, 2002), Furtado (1976, 1998, 2001 ) e Santos, Milton
(1998, 2000).
543.1 Características gerais da Globalização
Na contra-hegemonia do pensamento neoliberal, o mundo é movimento e é
constituído pela diversidade potencialmente infinita; o homem é um ser histórico-social que
faz a sua própria história; é inventivo, lutador, participativo, crítico, propositivo.
Caracteriza-se também pela conflitualidade e contradição que, a um só tempo,
reproduzem e provocam mudanças; a realidade é um vir a ser em permanente construção e é
espaço social e político de possibilidades; a sociedade caracteriza-se pela complexidade
cultural e administrativa; pela pluralização cultural – multiculturalismo; é concebida como
centro de exercício da soberania, da democracia e da emancipação social; deve se basear no
diálogo cultural e se organizar tendo como princípios: a igualdade, a solidariedade, a
emancipação, a eqüidade e o respeito à natureza e a pessoa humana.
Entretanto, o mundo hoje vive o avanço do fenômeno da globalização na sua face
neoliberal invadindo fronteiras na contramão dos anseios da humanidade pela superação da
exclusão social. A destruição das fronteiras entre os países e as culturas ocorre
permanentemente, pelos caminhos abertos das redes virtuais facilitadas pelas novas
tecnologias da comunicação e informação. A globalização na sua fase liberal hegemônica
alimenta o acirrado conflito entre a homogeneização da cultura e a resistência pela
preservação da diversidade cultural.
Na globalização liberal, o capital e o mercado impõem o ser competitivo que se
insere no mercado mundial por meio do livre comércio. A ordem social mundial decorrente da
globalização liberal ruirá, quando o sistema político-econômico – o capitalismo - entrar em
colapso ao ultrapassar os limites suportáveis pela humanidade, face às desigualdades sociais
que destroem a dignidade humana, em razão da eclosão de guerras sangrentas e includentes,
aliadas aos tumultos sociais protagonizados pelos fluxos migratórios que serão intensificados
entre o Norte e o Sul, ou seja, são conflitos entre os países ricos e pobres e, mesmo
internamente, nos países ricos como os Estados Unidos. (WALLERSTEIN, 1999).
O fenômeno da globalização na sociedade moderna traz a dominação do mercado
caracterizado pela idéia do lucro especulativo que enfraquece o Estado-nação, sobretudo, o
Estado-nação dos países pobres e desiguais como o Brasil, dominados pelos países ricos e
55pelos vultosos empréstimos financeiros, os quais vêm atrelados às imposições econômicas,
políticas, sociais, educacionais e culturais.
Porém, evidencia-se o movimento da crise paradigmática da modernidade entre as
forças da globalização hegemônica e as forças da globalização contra-hegemônica. Esse
movimento contraditório e heterogêneo apresenta-se com características peculiares às diversas
realidades e afeta todos os países e povos do mundo.
Existem condições transnacionais na crise mundial provocada pela globalização que
afetam o Estado-nação moderno em razão da perspectiva da formação da produção
globalizada da localidade no mundo contemporâneo. Os movimentos humanos próprios do
mundo contemporâneo representam uma ameaça ao Estado-nação.
No entendimento de Appadurai, “[...] A constituição do Estado-nação pressupõe o isomorfismo entre povo, território
e soberania legítima, que se encontra ameaçado pelas formas de circulação de
pessoas características do mundo contemporâneo. Tornou-se notável como, no
mundo em que vivemos, o movimento humano costuma ser decisivo na vida social,
e não algo excepcional”. (1996, p.1).
A globalização se caracteriza pela identificação de campos sociais em permanente
conflito e crise que quase destroem o isomorfismo entre povo, território e soberania legítima,
como nos fala o autor citado, com quem concordamos.
A realidade objetiva é histórica e apresenta-se paradoxal. As pessoas vivem
momentos de inconformismos e indignação em razão dos graves problemas sociais, políticos,
econômicos, culturais aliados aos problemas de saúde, moradia, alimentação, trabalho e
educação que excluem uma grande parcela da humanidade do direito à dignidade e a
emancipação social.
Por outro lado, convive-se com os privilégios, com a pujança, com o desperdício,
com a riqueza, com a concentração de renda e poder centralizado nos países e pessoas ricas e
poderosas, tanto do ponto de vista político como econômico.
O fenômeno da globalização é multifacetado e complexo com dimensões
econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas; em razão da sua complexidade
e múltiplas características, as “explicações monocausais” e “interpretações monolíticas” deste
fenômeno parecem pouco adequadas, em razão de não se enquadrarem em um mesmo padrão
moderno ocidental de uma globalização homogênea e uniforme, como argumentaram Leibniz
56e Marx com base nas teorias da modernização e nas teorias do desenvolvimento dependente.
(Apud SANTOS, 2002a, p. 26).
O fenômeno da globalização “parece combinar” a universalização e a destruição das
fronteiras nacionais com o particularismo, a diversidade local, identidade étnica e a volta ao
comunitarismo. (SANTOS, 2002a, p. 26).
Esta combinação vai além, ao se observar que a globalização interage de modo
diversificado com as mudanças que ocorrem no sistema mundial e demonstram o aumento das
desigualdades entre os povos e nações.
As desigualdades entre os países e pessoas ricas e pobres, a exploração do meio
ambiente, os conflitos étnicos, a proliferação dos conflitos, dos crimes organizados, a
migração internacional, entre outras mazelas desqualificam a vida humana.
O processo de globalização perpassa as mais diversas áreas da vida social desde “[...] a globalização dos sistemas produtivos e financeiros à revolução nas
tecnologias, práticas de informação e de comunicação, da erosão do Estado nacional
e redescoberta da sociedade civil ao aumento exponencial das desigualdades sociais,
das grandes movimentações transfronteiriças de pessoas como emigrantes, turistas
ou refugiados, ao protagonizo das empresas multinacionais e das instituições
financeiras multilaterais, das novas práticas culturais e identitárias aos estilos de
consumo globalizado”. (SANTOS, 2002a, p. 11).
O impacto da globalização nas estruturas e práticas nacionais e locais é
aparentemente monolítico, quando, de fato, é contraditório e heterogêneo e é produto de, “[...] uma negociação conflitual e de resultados relativamente indeterminados entre
o que é concebido como local ou endógeno e o que é concebido como global ou
exógeno, entre rupturas e continuidades, entre novos riscos e velhas seguranças,
entre mal-estares conhecidos e mal-estares desconhecidos, entre emergências e
inércias”. (SANTOS, 2002a, p. 11).
Um sentimento de frustração e de perplexidade domina a humanidade, uma vez que
o capitalismo globalizado continua produzindo miséria, exclusão e concentração de renda e
não conseguiu eliminar os problemas sociais que assolam os povos.
Consideramos que o debate é central nas análises sobre o fenômeno da globalização.
Questões que envolvem o debate sobre a ciência e os seus fundamentos epistemológicos em
todas as dimensões, político-ideológicas e socioculturais, referenciadas pelo espaço-tempo da
contemporaneidade, em razão do caráter político-ideológico e sociocultural do fenômeno da
globalização que ganha visibilidade na adoção e implementação de políticas públicas que
57referendam a supremacia do mercado especulativo marcando uma nova divisão do trabalho
executada com êxito pelas empresas multinacionais.
O processo de globalização é “[...] como um vasto e intenso campo de conflitos entre
grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos e grupos sociais, Estados e interesses
subalternos, por outro; e mesmo no interior do campo hegemônico há divisões mais ou menos
significativas”. (SANTOS, 2002a, p.27).
Considerando a amplitude do fenômeno, a globalização tece um jogo entre as
empresas nacionais e internacionais de acordo com os interesses que expressam a realidade do
mundo competitivo e do mercado especulativo gerando também repercussões na cultura, na
educação e no currículo para atendimento aos interesses dominantes.
Essas empresas nacionais e internacionais, em suas alianças estratégicas e por meio
de suas redes de comunicação, podem estar presentes em muitos lugares ou mesmo em todo o
mundo provocando ou agravando tensões entre o nacionalismo, o regionalismo e o
globalismo.
O fenômeno da globalização enquanto desenvolvimento do capital foi se ampliando
desde o fim da Segunda Guerra Mundial, até o momento atual; com o fim da Guerra Fria,
adquiriu posição universal, por apresentar um conjunto de transformações convenientes para a
realização de operações econômicas em todo o mundo, não importando se o capital está sendo
negociado com base em critérios ético-universais que, se adotados, colocariam no centro das
negociações a pessoa humana.
Seja como for, no momento atual, assistimos à manifestação da dinâmica de um
capital operando em escala global, de modo que a produção, a distribuição e o consumo são
regulados pelo mercado competitivo e globalizado.
O ajuste estrutural provocado pela política implementada no Brasil em razão do
atendimento ao receituário neoliberal desmontou ou, na melhor das hipóteses, reduziu o
aparelho estatal, além de aumentar os índices de desemprego e o número de trabalhadores
informais. Esses fatos confirmam o desmonte acelerado da economia formal, a deterioração
das condições de emprego e do mercado de trabalho, redução de salários e o enfraquecimento
dos sindicatos, além de neutralizar os mecanismos de proteção do emprego.
O ajuste neoliberal provocou mais pobreza e exclusão social até mesmo nos Estados
Unidos onde o mercado de trabalho é pouco regulado. O “Furacão Katrina” que assolou Nova
Orleans, em 2005, mostrou ao mundo a exclusão dos pobres e negros americanos. Esse fato é
58uma das provas de que o capitalismo e o receituário neoliberal agravam os problemas
socioeconômicos até mesmo no país mais rico do mundo.
Esse ajuste neoliberal caracteriza-se pela regulação e todo o seu aparato regulatório
como leis, contratos, projetos, acordos financeiros.
A regulação acontece também, no campo da cultura e das relações humanas. É
demonstrado de forma global e institucionalizado pelas empresas transnacionais que impõem,
além dos modelos econômicos, uma política deliberada de manipulação do imaginário, das
necessidades, expectativas do povo por meio de todos os recursos tecnológicos dos meios da
comunicação e da informação presentes em todos os recantos do globo.
A problemática do trabalho e as repercussões na organização social e na vida das
pessoas, das famílias, dos grupos, das classes, da coletividade, das nações e dos continentes
estimulam, contraditoriamente, os movimentos sociais a se organizarem para atingirem o
alvo, tal seja, a transnacionalização do trabalho e da produção, da cultura e da educação que
provocam etnocentrismos, racismos, fundamentalismo, sectarismos e violências.
A sociedade nacional simbolizada pelo Estado-nação e caracterizada como pequena,
média, grande, agrária, industrial, urbanizada, avançada, rica, central, periférica, entre outras
qualificações, se altera no espaço local – localismo globalizado - e no espaço global –
globalismo localizado.
A globalização se faz presente no tempo histórico pelo mundo afora no “teatro-
mundo” ou “economia-mundo”, como já afirmara Braudel, ao estudar o Mediterrâneo do
século XVI, entendendo-o não apenas como o mar, mas tudo o que se apresentava em
movimento nas suas margens. (1996, p. 12).
Citamos exemplos de como esse fenômeno amplia os seus tentáculos mundo a fora
provocando a interdependência entre os estados, os povos, as culturas: o “Plano Marshall”,
criado em 1948 a partir de linhas gerais anunciadas pelo general George Catlett Marshall,
comandante-chefe do Exército americano durante a Segunda Guerra Mundial com o propósito
de recuperar a economia e enfrentar os problemas sociais no pós-guerra; a criação da
Organização para a Cooperação Econômica Européia; o Tratado do Atlântico Norte (OTAN);
o Tratado de Maastricht, em 1991; a União Européia integrada pelos países: Alemanha,
Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Holanda, Grã-Bretanha, Irlanda, Itália,
Luxemburgo e Portugal.
59 Porém, essa interdependência comentada no parágrafo anterior se caracteriza pela
integração e fragmentação de ações e políticas sociais financiadas pelos organismos
financiadores, provocadora de tensões e antagonismos, em razão das desigualdades sociais,
políticas, culturais e educacionais que provocam, e atravessa o mundo.
O fenômeno da globalização ultrapassa fronteiras, altera a realidade em ritmo
frenético, ao se configurar numa dinâmica que minimiza o controle do Estado pobre, as
relações comerciais, a expansão e a abertura das fronteiras territoriais e comerciais, a
disseminação e uso das novas tecnologias da informação e comunicação a partir de um
mercado exigente e excludente e de um consumidor explorado.
A realidade do capitalismo no mundo atual e no Brasil em particular expõe as
características contundentes da globalização: desenvolvimento do modo capitalista de
produção, em forma extensiva e intensiva, ao adquirir o impulso destas novas tecnologias;
recriação da divisão internacional e transnacionalização do trabalho, da cultura e da educação
e globalização dos mercados; formação de cidades globais e polarização de estruturas globais
de poder que implicam em novas formas de organização societal e técnica de trabalho; a
transcendência dos mercados, fronteiras, regimes políticos e projetos nacionais, regionalismos
e geopolíticas, culturas e civilização.
A questão provocativa se refere aos processos de globalização que determinam a
adoção de políticas que afetam a autonomia das sociedades e marcam a ruptura entre o mundo
globalizado e o processo de identidade em construção permanente nas sociedades, hoje
condicionadas pelo mercado que exige um Estado-nação para respaldar os seus operadores.
Para tanto, o Estado deve manter a lei e a ordem e não deve competir com a
iniciativa privada; não deve exercer nenhuma atividade que gere lucro ou concorrência com as
empresas privadas.
A constituição do Estado-nação pressupõe o isomorfismo entre povo, território e
soberania que hoje se encontra ameaçado pelas formas de circulação das pessoas, numa
migração desenfreada em busca de postos de trabalho do tipo intelectual mais sofisticado ou o
mais humilde trabalho braçal. São criadas políticas nos Estados que criam uma máquina
contínua para favorecer que refugiados e imigrantes possam mudar-se de um país para outros,
criando, nesses lugares, instabilidades causadoras de rebeliões, agitação social e mais êxodo,
em razão das desigualdades, como são tratadas as pessoas que estão fora dos seus territórios.
(APPADURAI, 1996).
60Nessa perspectiva, Appadurai apresenta formas de movimento humano criadas por
oportunidades econômicas ou até ilusórias e cita as migrações asiáticas para regiões do
Oriente Médio ricas em petróleo, os trabalhadores móveis especializados como soldados das
Nações Unidas, técnicos em petróleo, trabalhadores agrícolas, trabalhadores da indústria do
lazer, entre outros trabalhadores que criam condições complexas para a produção e
reprodução das culturas da localidade “[...] na qual laços de casamento, trabalho, negócios e
lazer tecem uma rede formada por várias populações circulantes e vários tipos de ‘nativos’,
gerando localidades que pertencem a determinado Estado-nação, mas são, sob outro ponto de
vista, o que podemos chamar de translocalidades”. (1996, p. 1).
O fenômeno da globalização provoca reflexões e imaginações que desafiam a criação
de expressões, mitos e concepções filosóficas, políticas, ideológicas carregadas de valores e
significados que expressam visões diferenciadas de mundo, de homem, de sociedade, de
cidadania, de educação e de currículo.
Destacamos que esse fenômeno é mundial e está presente na realidade e vida das
pessoas. Expressa-se de várias formas: nas vivências e opiniões das pessoas, na realidade e no
imaginário pelo qual se desenha o novo mapa do mundo.
No que se refere à transnacionalização da cultura e os direitos culturais das pessoas,
principalmente os imigrantes, como é o caso dos brasileiros nos Estados Unidos e em outras
partes do mundo e internamente no Brasil, como é o caso dos nordestinos imigrantes no Sul e
no Sudeste do país, emergem as fissuras entre os espaços local, translocal, nacional, território,
identidade cultural. A idéia da terra-pátria se torna relativa, à medida que as pessoas estão
desconectadas das questões práticas de residência e das ideologias de lar, terra, raízes e
culturas.
Concordamos com Appadurai, quando externa o seu pensamento sobre a crise do
Estado-nação na atualidade. A pluralidade étnica não é a única causa da crise do Estado-
nação. O problema não é o pluralismo étnico e cultural em si que provoca a crise, mas a
tensão entre o pluralismo provocado pela diáspora e a estabilidade territorial do projeto de
Estado-nação moderno.
Em outras palavras, diz Appadurai: “Ainda assim, uma geografia pós-nacional não deverá emergir de nossas pesquisas
na academia, nem mesmo de nossas geografias mais recentes e tecnologias
cartográficas mais tecnicamente inventivas. Ela emergirá - de fato, já está emergindo
– das disputas espaciais reais entre grupos de diáspora e o esforço de vários Estados
61para acomodá-los sem abrir mão do princípio da integridade territorial. Este
princípio dificilmente sobreviverá a longo prazo, mas seria imprudente procurar
algum novo princípio organizacional simples para a organização política em larga
escala das sociedades humanas. Pode ser que a maior peculiaridade do Estado-nação
moderno tenha sido a idéia de que fronteiras territoriais poderiam sustentar
indefinitivamente a ficção da singularidade étnica nacional. Esta idéia utópica pode
ser nossa memória mais douradora do Estado-nação moderno”. (1996, p.5).
Os problemas da globalização, os desafios e as perspectivas são explicados por
muitos autores em diferentes enfoques históricos e teóricos.
Assim, podemos sintetizar esses enfoques afirmando que a sociedade global ou a
globalização caracteriza-se pela problemática complexa, contraditória, aberta e em
movimento; é o cenário mais amplo do desenvolvimento desigual; é o emblema que pode
provocar o advento de um novo paradigma que exige a redefinição das ciências sociais, à
medida que os conceitos, as categorias e as interpretações podem se tornar obsoletas; a
sociedade global deixa de ser uma fantasia, metáfora ou utopia, e, no âmbito dessa sociedade,
surgem as possibilidades a partir do repensar da história.
3.2 A globalização econômica e o liberalismo
O fenômeno de globalização na sua faceta hegemônica caracteriza-se por traços da
economia mundial baseada na globalização da produção que desencadeou, no início dos anos
80, uma nova divisão internacional do trabalho.
Porém, esse fenômeno com as características marcantes da economia de mercado foi
impulsionado pelo mercantilismo e depois pela revolução industrial no início da Era Moderna
com o surgimento dos impérios e colônias que optaram pelo domínio dos povos pela
escravidão dos africanos e dizimação dos indígenas negando à humanidade o direito à
dignidade humana.
Referimos-nos à globalização após a idade moderna, iniciada em 1453 com a queda
do Império do Oriente, as grandes descobertas e navegações (Séculos XIV e XV) que
culminaram com a descoberta da América, em 1492, a morte de Lourenzo, o Magnífico, e a
expulsão dos mouros de Granada, ou em 1494, com o início das dominações estrangeiras na
Itália.
62Os principais acontecimentos que marcaram o início da era moderna foram a
descoberta da América e de novas terras, a Reforma Protestante e a invenção do telescópio
por Galileu Galilei. (ARENDT, 1995).
Segundo Arendt, o mais espetacular dos acontecimentos foi o descobrimento da
América; o mais inquietante, a cisão do cristianismo ocidental através da Reforma; e o menos
percebido, o telescópio, que a autora compara com o nascimento de Cristo ao citar
Whitehead: ‘Desde o dia em que a criança nasceu na manjedoura, nenhuma outra coisa tão
importante havia ocorrido com tão pouco alarde’. (Apud ARENDT, 1995, p. 269-270).
Todos esses acontecimentos determinaram o advento de um novo mundo no contexto
do declínio do sistema feudal e podem configurar o início do fenômeno da globalização na
concepção hegemônica da economia de mercado.
Historicamente, os principais acontecimentos que deram início à época moderna
caracterizaram o fenômeno da globalização como causa e conseqüência desse ciclo histórico
que rompeu com a Idade Média e se manifestou em todos os aspectos da vida social.
Cambi afirma que: “Todos os intérpretes, todavia, de modo prioritário, sublinham o aspecto de censura
da modernidade, seu caráter revolucionário em relação a uma sociedade estética
quanto às estruturas econômicas, quanto à organização social e ao perfil cultural
como aquela que a precede: a Idade Média”. (1999, p.195-196).
A era moderna marcou o desaparecimento da negação do exercício das liberdades
individuais, para “valorizar, ao contrário, grandes organismos coletivos (a Igreja ou o
Império, mas também a família e a comunidade) favorecendo o bloqueio de qualquer
mudança e intercâmbio social”. (CAMBI, 1999, p.196).
A sociedade, na Idade Média, caracterizava-se por conflitos e convulsões sociais.
Entrou em crise com a laicização econômica e pelo surgimento do livre comércio. Portanto, a
nova sociedade apresentava-se revolucionária nos aspectos geográficos, ao deslocar o eixo da
história do Mediterrâneo para o Atlântico, do Oriente para o Ocidente, e a colonização de
novas terras e novo mundo com o descobrimento da América.
No aspecto econômico, com o desaparecimento do regime feudal, ativa-se o sistema
de uma economia de intercâmbio, baseada na mercadoria e no dinheiro; nasce o sistema
capitalista e “nasce independentemente de princípios éticos, de justiça, e de solidariedade,
para caracterizar-se, ao contrário, pelo puro cálculo econômico e pela exploração de todo
recurso natural, humano e técnico”. (CAMBI, 1999, p.197).
63Na política, nasce o Estado centralizado e controlado pelo soberano em todas as suas
funções. Estado Nação, Estado Patrimônio; muda a concepção de poder cujo exercício,
mesmo continuando com o rei, se distribui pelas diferentes instâncias da sociedade.
No campo ideológico-cultural, acontece uma dupla transformação: a laicização e
racionalização. A primeira promove a emancipação da mentalidade das classes sociais altas da
sociedade, e a segunda produz uma revolução nos saberes pelo uso da razão. Nasce o
iluminismo que caracterizará um novo modelo de mentalidade e cultura. Acontece a
revolução social com o surgimento da burguesia centrada na concepção de mundo laica e
racionalista.
A racionalidade é o eixo de sustentação da modernidade. Para Weber, a organização
capitalista racional foi influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas e a sua
peculiaridade está em reconhecer e esclarecer a sua origem: a importância da economia e as
condições econômicas, a dependência da técnica e do direito e administração racional. Porém,
segundo o autor citado, o racionalismo econômico é determinado pela capacidade e
disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional que legitimam as formas de
controle social emergindo, neste processo, o seu caráter excludente. (WEBER, 1994, p. 11).
“Trabalhadores de todos os países, uni-vos”.
Com este chamamento, Marx e Engels, há mais de cento e cinqüenta anos,
escreveram um dos textos políticos mais importantes do mundo moderno pela sua repercussão
político-ideológica e econômica – O Manifesto Comunista.
Marx e Engels, afirmam no Manifesto Comunista que a sociedade burguesa “não
aboliu os antagonismos das classes”, pois “estabeleceu novas classes, novas formas de luta no
lugar das antigas”. (1997, p. 9).
Com o crescimento do mercado mundial, a burguesia moderna rompe com as
relações feudais, patriarcais e idílicas. O interesse pessoal “converte mérito pessoal em valor
de troca” e implantou “essa liberdade única inescrupulosa – O Mercado Livre”. (MARX e
ENGELS, 1997, p. 12).
Marx e Engels foram os primeiros a denunciar a burguesia e o mercado livre com o
chamamento dos trabalhadores para instaurar a revolução social com a finalidade de combater
as injustiças da Revolução Industrial. Afirmam: “[...] a burguesia continua sempre mais a
destruir o caracter da população, dos meios de produção e da propriedade”; a sociedade
64burguesa moderna “[...] é como um bruxo que não é capaz de controlar os poderes do outro
mundo que ele conjurou com seus feitiços”. (1997, p.16-17).
Tais críticas são pertinentes ainda hoje em razão da problemática contemporânea que
emana do fenômeno da globalização que põe em relevo a continuidade do processo do capital
destrutivo e excludente, apesar da crise estrutural do capital. As contradições de um sistema
político-econômico discriminatório dominado pelo mercado especulativo assinalam a clara
opção dos países ricos pelos poderosos que dominam o mundo.
Esta opção contraria o postulado marxista que afirma: “[...] os homens devem estar
em condições de viver para poder fazer história”. (MARX e ENGELS, 1997, p.16).
Com base nesse postulado teórico, a sociedade deveria prover a humanidade das
condições dignas para viver e fazer a sua própria história. Porém, a globalização e os seus
efeitos causadores das desigualdades sociais legitimam direitos sociais, políticos, econômicos,
culturais e educacionais aos poucos humanos que usufruem as vantagens e meios da ciência e
dos bens materiais produzidos pela humanidade.
A décima tese de Marx e Engels para Feuerbach explicita a atualização dos
postulados marxistas emancipatórios: “O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade
“civil”; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade socializada”. (1993,
p.14).
A reestruturação econômica tanto na Europa como na América Latina, realizada no
âmbito do contexto de uma nova divisão internacional do trabalho, a partir da crise do Estado
agravada nos anos 70, veio acompanhada de políticas neoliberais introduzidas nos países que
ofereciam mão de obra barata ao mercado competitivo globalizado, a exemplo do Brasil e
outros países da América Latina.
Desde as últimas décadas do século XX, a divisão geoeconômica do mundo separa o
Norte rico, industrializado, e o Sul pobre, pouco desenvolvido, ou subdesenvolvido ou ainda
em processos embrionários de desenvolvimento. Essa divisão classifica o mundo em duas
imensas regiões ou mundos com níveis de desenvolvimento deferentes chamados também de
países ricos e pobres, economias avançadas e atrasadas, países de primeiro mundo e de
terceiro mundo, quando os países do leste europeu e mais a ex-União Soviética eram
considerados de segundo mundo.
Nesse contexto geopolítico, instala-se uma nova ordem mundial baseada no
fenômeno de uma globalização centrada no avanço da ciência e da tecnologia. Nesse
65contexto, os donos do capital especulativo exigem a implementação de um sistema
educacional com escolas, universidades, instituições de ensino em todos os níveis adaptadas e
integradas aos interesses do capital e da expansão do mercado consumidor e de uma minoria
com poder de consumo para crescer e ampliar o seu poder político-econômico e cultural em
todo o mundo.
O mundo e a humanidade têm passado, ao longo da história, por mudanças
constantes nem sempre direcionadas para fins da emancipação humana. Essas transformações
são amplas, intensas, contraditórias; emergem dos conflitos e lutas pelo poder econômico-
político-cultural.
Huberman afirmou no início do século XX: “[...] poderíamos dizer que o capital necessário para iniciar a produção capitalista
veio das almas cuidadosas que trabalharam duro, gastaram apenas o indispensável e
juntaram as economias aos poucos. Houve sempre quem economizasse, é verdade,
mas não foi dessa forma que se concentrou a massa de capital inicial. Seria bonito se
assim fosse, mas a verdade é bem diversa. A verdade não é tão bonita”.(1986, p.157-
158).
Constata-se, então, o surgimento da indústria moderna que obtém lucros acumulando
o capital cada vez mais rápido. Antes o capital era acumulado através do comércio. Segundo
Huberman, significava tanto a troca de mercadorias, a conquista, pirataria, saque e
exploração, apesar da indústria moderna surgir com a existência de uma classe trabalhadora
livre e sem propriedades. (1986, p.157-158).
Huberman cita Marx quando este escreveu: ‘Se o dinheiro... vem ao mundo com uma
mancha congênita de sangue numa das faces, o capital vem pingando da cabeça aos pés, de
todos os poros, sangue e lama’. (1986, p. 161).
Hubermam constata o surgimento do desemprego em massa, e, sem outra escolha,
resta ao trabalhador vender a sua capacidade e força de trabalho. (1986, p. 162)
Reproduz no seu livro “A história da riqueza do homem”, escrito em 1993, a história
contada por Arthur Morgan no livro “Power and the Deal”, o qual questiona: ‘Haverá uma
moral para os capitalistas, na história de como os indianos pegam macacos’? ‘Segundo a história, tomam de um coco e abrem-lhe um buraco, do tamanho
necessário para que nele o macaco enfie a mão vazia. Colocam dentro torrões de
açúcar e prendem o coco a uma árvore. O macaco mete a mão no coco e agarra os
torrões, tentando puxá-los em seguida. Mas o buraco não é bastante grande para que
66nele passe a mão fechada, e o macaco, levado pela ambição e gula, prefere ficar
preso a soltar o açúcar. (1986, p. 303).
A mesma crítica radical ao sistema capitalista é feita por Forrester no seu livro “O
horror econômico”. Para a autora, vivemos em “um engodo magistral”. Milhões de destinos
são destruídos “[...] pelo anacronismo causado por estratagemas renitentes, destinados a
apresentar como imperecível nosso mais sagrado tabu: o trabalho”. (1997, p.7).
Para a autora, as críticas estão inseridas nas discussões sobre o trabalho, o
desemprego, na crise do verdadeiro problema. Afirma: “[...] o único problema verdadeiro é
que esses problemas não são mais problemas, mas, ao contrário, tornaram-se a norma dessa
época ao mesmo tempo inaugural e crepuscular que não assumimos”. (1997, p.8).
Para Forrester, a sociedade ergue uma “espécie de vidraça transparente” para as
pessoas não serem vistas. São os incluídos na marginalidade.
Afirma a autora: “[...] Eles são absorvidos, devorados, relegados para sempre, deportados,
repudiados, banidos, submissos e decaídos, mas tão incômodos: uns chatos! Jamais
completamente, não suficientemente expulsos! Incluídos, demasiado incluídos, e
em descrédito”.(1997, p.15).
Esses traços da economia são dominados pelo sistema financeiro, pelo investimento
global aliados aos processos de produção flexíveis e pela revolução tecnológica da
informação e da comunicação.
A desregulação das economias nacionais e a emergência de três grandes capitalismos
transnacionais são destacados: o americano – Estados Unidos e Canadá, o México e a
América Latina; o japonês - tigres asiáticos e demais países da Ásia; o europeu - formado pela
União Européia e Europa de Leste e Norte da África. (SANTOS, 2002c, p. 19).
As transformações decorrentes da desregulação das economias lideradas por esses
grandes capitalismos transnacionais atravessam todo o sistema mundial, com intensidade
diferenciada, a depender da posição dos países no sistema mundial.
Para mencionar apenas dois exemplos: 1. A intervenção econômica e política dos
países ricos como os Estados Unidos em suas relações com a América Latina e o Caribe, por
meio de empréstimos e pela imposição e interferência nas políticas econômicas e sociais dos
países no continente Latino-Americano; 2. A proteção e a política de subsídios destinados à
indústria americana (maquinário, aço, metalurgia, agricultura, aeronáutica, produtos
67farmacêuticos, etc) continuam sem muitas mudanças como forma de preservar o poder
político-econômico e cultural no continente. (CHOMSKY, 1999, p. 7-45).
É inegável que hoje os grandes atores do capitalismo mundial estejam presentes nas
grandes corporações transnacionais assessoradas pelos organismos definidores das políticas
mundiais em razão do poder econômico e pelo caráter da transnacionalidade que caracteriza
essas grandes corporações como o Grupo dos oito (G8) composto pelos sete paises mais ricos
do mundo, a saber: Estados Unidos, Japão, França, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Itália e
mais a Rússia, e outras corporações como O Fundo Monetário Internacional – FMI, O Banco
Mundial e as cinco instituições que constituem o banco: o Banco Internacional para a
reconstrução e o desenvolvimento – BIRD, a Associação Internacional de Desenvolvimento –
AID, a Corporação Financeira Internacional – IFC, a Agência Multilateral de Garantia de
Investimentos – AMGI e o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre
Investimentos – CIADI; a Organização Mundial do Comércio – OMC e a Conferência de
Davos.
Essas grandes corporações assumem o centro de dominação política, sociocultural e
econômica e comandam o mundo mais do que os países tradicionalmente dominadores como
os países que fazem parte do G8. O comando é exercido, principalmente, pela imposição dos
acordos intervencionistas de ajustes estruturais junto aos países pobres ou em
desenvolvimento como o Brasil.
Essas transformações geram orientações que podem ser resumidas em políticas
econômicas nacionais, entre elas, destacam-se: as economias devem se abrir ao mercado
mundial e os preços devem se adequar aos preços internacionais; devem priorizar o mercado
da exportação; devem orientar as políticas monetárias e fiscais com o objetivo de reduzir os
processos inflacionários e as dívidas públicas; devem exercer vigilância permanente na
balança de pagamentos; devem privatizar as empresas do Estado; devem definir padrões
nacionais e especialização, e o Estado deve regular minimamente a economia e reduzir ao
máximo os investimentos na política social do seu orçamento, eliminando a sua
universalidade, ao transformá-las em medidas compensatórias e vulneráveis ao mercado.
(SANTOS, 2002a, p.29-30).
Essas políticas econômicas comprovam quanto a globalização econômica é
sustentada pelo consenso econômico liberal e pelas três principais inovações institucionais
que dão sustentação a esta globalização: as restrições drásticas à regulação estatal da
68economia; novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros,
investidores e criadores de inovações e a subordinação dos Estados Nacionais às agências
financiadoras já citadas como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do
Comércio.
São inegáveis as imposições dessas agências financeiras no campo das políticas
implementadas pelos governos em todo o mundo, em nome do desenvolvimento social e
econômico e, principalmente, em nome da reconstrução dos países após conflitos e catástrofes
naturais ou provocadas.
Os países periféricos e semiperiféricos são os mais vulneráveis às imposições do
“receituário neoliberal”, em razão das suas dívidas externas que limitam e impõem
renegociações por meio de ajustamentos estruturais sempre realizados com base na lógica
financeira que privilegia os interesses das empresas e os investidores internacionais com
repercussões negativas na vida das pessoas, pois limitam os investimentos na área social e
aumentam a exclusão social de grande parcela da população.
O receituário neoliberal é bem representado pelo “Consenso de Washington”, como é
assim denominado o documento conclusivo da reunião realizada em novembro de 1989, na
cidade de Washington, onde se reuniram funcionários do governo norte-americano e
representantes dos organismos financeiros internacionais: Fundo Monetário Internacional -
FMI, Banco Mundial e BIRD – Banco internacional, com o objetivo de procederem a uma
avaliação das reformas econômicas empreendidas nos países latino-americanos. A reunião foi
convocada pelo “Institute for International Economics” cuja temática foi “Latin American
Adjustment: How Much Has Happened?”.
Embora sem caráter deliberativo, a reunião propiciou a oportunidade para esses
órgãos coordenarem ações na América Latina com o objetivo de promover as reformas já
iniciadas na região em nome de uma cooperação financeira externa e bilateral ou multilateral
efetivação dessas políticas.
A partir do governo Reagan nos Estados Unidos, a mensagem do “Consenso de
Washington” foi transmitida vigorosamente e, no Brasil, acabaria provocando um processo de
cooptação, expresso em agosto de 1990, no documento “Livre para Crescer – Proposta para o
Brasil Moderno”, no qual a Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP sugere a adoção
de uma agenda de reformas que consolidasse as propostas encaminhadas pelo “Consenso de
Washington”. (BATISTA, 1994, p.6).
69Os países chamados periféricos, como o Brasil, através de sucessivos governos
comprometidos com o receituário neoliberal, buscam a estabilização econômica realizando
uma política monetária que adota, de maneira drástica, o controle salarial do setor público, o
ajuste da previdência social, entre outras medidas que visaram diminuir o tamanho do Estado
para aumentar a sua competitividade no mercado internacional.
Em síntese, para atingir esse objetivo, foi incentivada a competitividade das
pequenas empresas realizando a desoneração fiscal, flexibilizando o mercado de trabalho
através da diminuição dos encargos sociais e da diminuição dos salários com repercussões
dramáticas para a área social, ao acentuar a má distribuição de renda aliada a uma política
equivocada da saúde pública, da educação e de todas as políticas sociais, uma vez que o social
não foi priorizado e continuou piorando com o atendimento insuficiente para toda a população
que segue, entre avanços e recuos, uma luta política, socioeconômica e cultural para crescer
economicamente, distribuir a renda e avançar na área social.
3.3 A globalização e as desigualdades
Constata-se que, embora o Sistema Mundial Moderno tenha se constituído por um
sistema de classes, está emergindo uma classe capitalista transnacional, representada
institucionalmente pelas empresas multinacionais, que elegeu o mundo como campo de ação e
reprodução social, ultrapassando as organizações nacionais de trabalhadores, os Estados
periféricos e semiperiféricos do sistema mundial. (SANTOS, 2002a, p.32).
A classe capitalista transnacional à qual nos referimos é representada pelas empresas
multinacionais que produzem mais de um terço do produto industrial mundial e um percentual
elevado é transacionado entre elas provando que se distinguem das empresas internacionais
em razão da prevalência na economia mundial e o grau e eficácia da direção centralizada
dessas empresas. (BECKER e SKLAR, Apud Santos, 2002a, p.32).
Esta realidade tem sido amplamente debatida nos últimos anos com destaque para os
impactos provocados pelas empresas multinacionais nas formações de classe e na
desigualdade social constatada em nível global.
70No âmbito da tradição da teoria da dependência, Santos analisa a “tripla Aliança”
entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e a “burguesia estatal” enquanto base
da dinâmica da industrialização e do crescimento econômico a exemplo do Brasil. (2002,
p.32).
As desigualdades sociais produzidas pela nova estrutura da classe capitalista são
evidenciados nos dados agravados na última década que apontam o declínio nos anos 80 do
Produto Interno Bruto – PIB nos 54 entre os 84 países menos desenvolvidos. Em 14 países,
esse declínio ficou em torno dos 35%; segundo as estimativas das Nações Unidas, cerca de
um bilhão e meio de pessoas vivem na pobreza absoluta e outros dois bilhões vivem com dois
dólares por dia. (Santos, 2002a, p.33-34).
Evidenciam os dados da Organização Mundial de Saúde que os países pobres sofrem
com 90% das doenças que ocorrem no mundo e, no entanto, não têm mais do que 10% dos
recursos do globo gastos com a saúde; 1/5 da população mundial não tem acesso aos serviços
de saúde modernos, e a metade da população mundial não tem acesso a medicamentos.
(Santos, 2002a, p.35).
No entanto, a globalização neoliberal defende e implementa políticas que reduzem
custos na área social com a justificativa da estabilidade econômica. Com este propósito, a
política de globalização hegemônica adota medidas que reduzem os direitos liberais, fazem
restrições aos ganhos salariais proibindo as indexações dos salários aos ganhos de
produtividade, entre outras medidas que visam impedir o impacto inflacionário dos aumentos
salariais.
Essa globalização na sua face econômica e política se difunde nos países pobres por
meio das ingerências dos países ricos. A regulação da economia e a criação de requisitos
normativos e institucionais desencadeiam uma destruição institucional e normativa com
efeitos que vão além do papel do Estado na economia e na legitimidade deste mesmo Estado
para organizar a sociedade.
Portanto, “[...] a economia é assim, dissociada, o conceito de consumidor substitui o
de cidadão e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência. Os
pobres são os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os limites do
sobreendividamento)”. (SANTOS, 2002a, p.35).
713.4 A globalização política e o Estado-nação
A nova divisão internacional do trabalho e a nova economia política ‘pró-mercado’
desencadeou mudanças significativas no papel desempenhado pelo Estado-nação para o
sistema interestatal – a forma política do sistema mundial moderno. Os estados hegemônicos,
ou por iniciativa deles próprios ou por meio das instituições internacionais, limitaram, sem
precedentes, a autonomia política e a soberania dos Estados periféricos e semiperiféricos,
apesar de cuja capacidade de resistência e negociação, percebemos a perda da centralidade
tradicional que caracteriza o Estado-nação como unidade privilegiada que comanda a
economia, o social e a política.
Daí advém as componentes descritiva e prescritiva inerentes ao conceito de
globalização que, em razão da sua amplitude e da prescrição desse conjunto vasto de
orientações, estão ancoradas no “Consenso de Washington”.
Hoje este consenso está fragilizado em decorrência dos conflitos no interior do
campo hegemônico e da resistência protagonizada pelos “subalternos ou contra-
hegemônicos”.
A análise do que se chama “meta consenso”, a partir da idéia de que hoje
desapareceram as clivagens entre diferentes padrões de transformação social, como se
expressou Fukuyama, com a sua tese do fim da história, apresentada com grande repercussão
no artigo, publicado em 1989, com o título "O fim da história" e, posteriormente, em 1992, no
livro “O fim da história e o último homem”.
No momento em que ganhou força a ofensiva capitalista que tomou conta do mundo
após a derrocada dos regimes estabelecidos nos países do Leste europeu e na extinta União
Soviética, a teoria do fim da história expressou a explosão das propostas neoliberais nos
terrenos econômico e político numa ofensiva sem precedente da ideologia burguesa-
imperialista com o objetivo de conquistar adeptos em escala mundial.
Para Fukuyama, a destruição do fascismo e, em seguida, do socialismo, o grande
adversário do capitalismo e do liberalismo no pós-guerra, desencadearam o fim e o descrédito
tanto de um como do outro regime político como alternativas globais. Restaria, então, como
única alternativa, a proposta capitalista liberal. Com a derrocada do socialismo, a democracia
72liberal ocidental ganha força capaz de tornar-se a solução final do governo humano,
significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade.
A democracia liberal representaria a superação dos regimes totalitários de direita e de
esquerda como também outras formas de governo autoritárias. O único triunfo seria o
coroamento do regime adequado ao progresso e à liberdade humana – a democracia
neoliberal.
A inserção de uma classe capitalista transnacional e o impacto das empresas
multinacionais “[...] nas novas formação de classes e na desigualdade a nível mundial”
reafirma a teoria da dependência que é analisada a partir de outros estudiosos como Evans que
a considera como uma “tripla aliança”: empresas multinacionais, a elite capitalista local e a
‘burguesia estatal’, citando como exemplo, o caso brasileiro. (Apud SANTOS, 2002a, p. 32).
Santos aponta a questão da concentração de riquezas produzida pela globalização
hegemônica e demonstra com dados as “proporções escandalosas” até mesmo nos Estados
Unidos, país que lidera o modelo econômico liberal.
A pressão sobre o Estado-nação é, neste momento histórico, monolítica. O
“Consenso de Washinton” e as suas orientações direcionadas para a economia de mercado é
“o único modelo compatível com o novo regime global de acumulação, sendo, por isso
necessário impor, à escala mundial, políticas de ajustamento estrutural”. (SANTOS, 2002a,
p.37).
Essa pressão monolítica do “Consenso de Washinton” impõe ajustamentos
estruturais de fenômenos, a exemplo do fim da guerra fria, das inovações tecnológicas da
comunicação e da informação, dos novos sistemas de produção flexível, da emergência de
blocos regionais. Ressalta-se ainda a proclamação da democracia liberal como regime político
universal.
O impacto da globalização nas estruturas e práticas nacionais e locais é, de fato,
contraditório e heterogêneo, como afirma Santos: “[...] Em cada uma das áreas da vida social é o produto de uma negociação conflitual
e de resultados relativamente indeterminados entre o que é concebido como local ou
endógeno e o que é concebido como global ou exógeno, entre rupturas e
continuidades, entre novos riscos e velhas seguranças, entre mal-estares conhecidos
e mal-estares desconhecidos, entre emergências e inércias”. (2002a, p.11).
O aparato regulatório e institucional criado para garantir esse modelo de
desenvolvimento neoliberal afeta o papel do Estado na economia, a legitimidade global do
73Estado para organizá-la, afetando a soberania dos Estados fracos, sobretudo, pela ingerência
das agências financeiras internacionais, entre outros atores transnacionais privados, como as
empresas multinacionais.
Referindo-se à realidade na Europa e na América do Norte, Bob Jessop (1995),
citado por Santos, identifica três tendências gerais que caracterizam o poder do Estado, são
elas: a desnacionalização do Estado identificada pelo esvaziamento do aparelho do Estado
nacional e a sua funcionalidade subnacional e supranacional; a estatização dos regimes
políticos os quais refletem a mudança conceitual entre o que significa governo e governação,
ou seja, a regulação social e econômica centrada no papel do Estado para outra centrada em
parcerias entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais
onde o estado tem apenas tarefas de coordenação. (SANTOS, 2002, p.38).
Destacamos as afirmações que identificam a ingerência da globalização política no
Estado-nação:
Em primeiro lugar, no campo da economia, a transnacionalização da regulação
estatal se notabiliza.
Em segundo lugar, as políticas de ajustamentos estrutural e de estabilização
macroeconômica impostas pelo “Consenso de Washington” exigem a liberação dos mercados;
a privatização das indústrias e serviços; a desregulação do mercado de trabalho e a
flexibilização da relação salarial. Destacamos entre estas exigências a redução e a
privatização, ainda que parcial, dos serviços que promovem o bem estar social, tais como:
privatização dos sistemas de pensões, partilha dos custos dos serviços sociais, critérios
restritos de elegibilidade para prestação de assistência social, menor preocupação com temas
ambientais e as reformas educacionais direcionadas para a formação profissional, ao invés da
formação humana para a cidadania.
Em terceiro lugar, a regulação no campo das telecomunicações, que até os anos
setenta, era dominado pelo Estado, em razão do princípio do monopólio natural das
telecomunicações adotado pela maior parte dos Estados durante cem anos. Alguns fatores
foram decisivos para o avanço da desregulação das comunicações, como a inovação e difusão
tecnológica, a revolução dos micro-chips, as comunicações por satélite, a emergência da
tecnologia digital, entre outras inovações.
74Subjazem à globalização três componentes do “Consenso de Washingon”: o
“Consenso do Estado Fraco”, o “Consenso da Democracia Liberal” e o “Consenso sobre o
Primado e do Sistema Judicial”.
O “Consenso do Estado Fraco” é o mais central e na sua base está o pressuposto de
que o Estado é o oposto da sociedade civil e, portanto, o seu inimigo; a tese é de que a
economia precisa de uma sociedade civil forte e, para que ela exista, é preciso um Estado
fraco. Entretanto, esta tese foi sendo substituída pela tese do “Estado como espelho da
sociedade civil” em razão do capitalismo passar a exigir maior intervenção estatal. Segundo
Santos, “Consenso do Estado Fraco” é o mais sujeito a correções.
O componente do “Consenso de Washington” chamado de “Consenso da
Democracia Liberal” objetiva dar a forma política ao “Estado Fraco”, ao recorrer à teoria
política liberal que na sua gênese, definiu como pressupostos a liberdade política e
econômica, eleições livres e o livre mercado. O “Consenso do Estado Fraco” tem como
finalidade repor a idéia liberal original de reposição. A fragilidade deste consenso é
decorrente da complexidade deste processo de reposição.
No âmbito dessa análise, Santos explica que: “[...] é que o encolhimento do Estado – produzido pelos mecanismos conhecidos,
tais como a desregulação, as privatizações e a redução dos serviços públicos -
ocorre no final de um período de cerca de cento e cinqüenta anos de constante
expansão regulatória do Estado”. (2002a, p. 41).
O outro componente considerado que comporia o ‘Consenso de Washington’ é o “O
consenso sobre o Primado e do Sistema Judicial”. Este é um dos componentes essenciais e o
que melhor procura vincular a globalização política à globalização econômica, em razão da
necessidade de uma base legal/judicial para garantir a liberalização dos mercados, para
expandir o consumo - “motor da globalização econômica” - e popularizar o crédito.
(SANTOS, 2002, p. 43).
Constatamos que o importante é produzir uma reflexão teórica da globalização para
captar a complexidade do fenômeno, uma vez que o novo neste fenômeno é o poder e a
amplitude da institucionalidade transnacional que vem sendo construída nessas últimas três
décadas. (Santos, 2002a, p. 44).
Em síntese, para o autor, “o Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja,
tem de regular a sua própria desregulação”.( SANTOS, 2002a, p. 38).
Bauman expressou o seu entendimento sobre globalização:
75“A ‘globalização’ está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma
rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as
portas de todas os mistérios presentes e futuros. Para alguns, a ‘globalização’ é o que
devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade.
Para todos, porém, ‘globalização’ é o destino irremediável do mundo, um processo
irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da
mesma maneira. Estamos todos sendo ‘globalizados’ – e isso significa o mesmo para
todos”. (1999, p. 8).
Conforme o autor, a globalização tanto separa como une; a unidade dos seus efeitos
causa, a um só tempo, “a sinalização de liberdade para alguns” e “um destino indesejado e
cruel para muitos”. (1999, p. 7-8).
O autor denuncia que os efeitos dessa globalização provocam uma condição humana
desigual: “Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social”.
(BAUMAM, 1999, p. 8).
Essa afirmação deve-se à constatação dos limites impostos às sociedades em razão
dos processos de segregação e exclusão de grande parcela da humanidade. Em contrapartida,
os centros de produção mundial, representados pelos países ricos, são contemplados com a
riqueza e a conseqüente emancipação da maioria dos seus cidadãos.
Baumam reafirma: “Todos nós estamos, a contragosto por desígnio ou à revelia, em movimento.
Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade
não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto, os
efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais. Alguns de nós tornam-se
plena e verdadeiramente ‘globais’; alguns se fixam na sua “localidade” – transe que
não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e
fazem as regras do jogo da vida” (1999, p. 8).
No Brasil, o fenômeno da globalização é analisada numa concepção marxista por
Ianni (2002) que identifica diversas teorias, ao procurar explicar esse fenômeno.
Destacamos algumas:
1. ‘Economia-mundo’- O autor destaca a teoria que se fundamenta no conceito de
‘economia-mundo’, presente nos estudos de Braudel, e ‘sistema- mundo’ nos estudos de
Wallerstein.
Segundo Ianni, os autores mapearam a geografia e a história com base no fator
econômico. O autor destaca os estudos de Braudel sobre a expansão do mundo no seu livro
clássico: “O mediterrânio e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II”. (2002,25-44);
762. ‘A internacionalização do capital’: outra teoria enfocada por Ianni apresenta a
realidade da expansão capitalista após a Segunda Guerra Mundial – “A internacionalização do
capital” em razão da intensidade e generalidade do capital, ao perder a sua característica
nacional e adquirir uma característica internacional com base na formação e diversificação do
que se pode chamar de ‘fabrica global’ ou ‘shopping center global’. (2002, p.45-58);
3. ‘A teoria sistêmica das relações internacionais’ - fundamenta-se nas análises
sistêmicas e organizacionais da sociedade mundial e começam a reconhecer os sistemas
nacionais, os regionais e o sistema mundial que vem predominando sobre os demais sistemas
desde o final da Segunda Guerra Mundial e dinamizando desde o término da Guerra Fria em
1989. “Esta teoria privilegia a funcionalidade sincrônica, a articulação eficaz e produtiva das
partes sincronizadas e hierarquizadas do todo sistêmico cibernético”. Para conferir
consistência à teoria, destaca as agências: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo
Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BIRD) entre outros. (2002, p.60-61);
4. “A ocidentalização do mundo” - fundamenta-se no desenvolvimento, evolução e
progresso que tem como eixo a tese da ocidentalização ao assumir os valores e padrões e as
instituições predominantes na Europa Ocidental e Estados Unidos. O autor destaca que a
teoria da modernização está presente nos estudos, práticas e ideais tendo como propósito a
modernização segundo modelo do ocidente. “[...] Modernizar pode ser secularizar,
individualizar, urbanizar, industrializar, mercantilizar, racionalizar”. (IANNI, 2002, p.75-91);
5. “A aldeia global” – caracteriza-se pelo movimento que provoca a modernização, e
o mundo aparece como uma aldeia global. Esta noção expressa a globalidade das idéias,
valores socioculturais e imaginários. Pode ser entendida como “cultura de massa, mercado de
bens culturais, universo de signos e símbolos, linguagens e significados” que circulam no
mundo. (IANNI, 2002, p.93-112);
6. “A racionalização do Mundo” – baseia-se na racionalidade capitalista, segundo o
padrão da Europa, Estados Unidos, em todos os processos e estruturas próprias do sistema
capitalista que adotam formas racionais na organização das atividades sociais, na política, na
economia, nas normas jurídicas, religiosas, educacionais e em diversas esferas da vida social.
(IANNI, 2002, p.113-207).
O fenômeno da globalização representa “um novo ciclo de expansão do capitalismo”;
configura-se como modo de produção de alcance planetário, como processo de proporções
77infinitas envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e
classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. (IANNI, 2001).
Ianni assimila esta realidade do capitalismo no mundo atual expondo as
características contundentes da globalização: desenvolvimento do modo capitalista de
produção, em forma extensiva e intensiva ao adquirir o impulso das novas tecnologias.
Recriação da divisão internacional e transnacional do trabalho e globalização dos mercados;
formação de cidades globais e polarização de estruturas globais de poder que implicam em
novas formas de organização social e técnica do trabalho; a transcendência dos mercados,
fronteiras, regimes políticos e projetos nacionais, regionalismos e geopolíticas, culturas e
civilização. (2001).
Considerando essa amplitude do fenômeno da globalização, Ianni afirma quando se
refere ao jogo das empresas nacionais e internacionais e corporações: “[...] Tecem a globalização desde cima, em conformidade com a dinâmica dos
interesses que expressam ou simbolizam. Desenham as mais diversas cartografias do
mundo, planejadas segundo as suas políticas de produção e comercialização,
preservação e conquista de mercados, indução de decisões governamentais em
âmbito nacional, regional e mundial.”(2001, p. 16 ).
Ianni observa que um dos “signos” da globalização é o desenvolvimento do capital
ampliado desde o fim da Segunda Guerra Mundial até o momento atual; com o fim da Guerra
Fria, adquiriu posição universal e transformou-se em “parâmetro das operações econômicas
em todo o mundo”, não importando se o capital está sendo “simbolizado pelo dólar norte-
americano, em japonês, marco alemão ou moeda deste ou daquele país.” (2001, p. 17).
Seja como for, no momento atual, assistimos à manifestação da dinâmica de um
capital operando em escala global de modo, que a produção, a distribuição, o consumo são
regulados pelo mercado competitivo e globalizado.
O argumento de Ianni sobre globalização não se atém ao nível genérico. O autor
discute diferentes aspectos como: a problemática do trabalho e as repercussões na organização
social e na vida das pessoas, das famílias, do grupo, classes, coletividade, nações e
continentes. A dimensão social que estimula, contraditoriamente, os movimentos sociais, a
transnacionalidade do trabalho e da produção que “transforma o mundo em uma fábrica
global”; as questões culturais, religiosas, econômicas e políticas que provocam “xenofobias,
etnocentrismos, racismos, fundamentalismos, radicalismos, violências.” (2001, p. 21-22).
78A globalização, de acordo com Ianni, desenvolve-se, à medida que o mercado se
mundializa. Dessa forma, afirma o autor, ao explicitar o seu argumento contra-hegemônico: “[...] Muitos são os que passam a reconhecer que o céu e a terra, a água e o mar, a
fauna e flora, os recursos minerais e a camada de ozônio, tudo isso diz respeito a
todos, aos que sabem, e aos que não sabem, nos quatro cantos do mundo.” (2001, p.
22).
Em consonância com essa análise, Ianni menciona os desafios; entre eles, destaca o
teórico recolocando o “problema da dialética sociedade e natureza”, presente nas ciências da
natureza, sociais e na filosofia; a “diversidade dos nichos ecológicos”, “das formas sociais de
vida e trabalho”, “das singularidades das culturas”, “dos conhecimentos acumulados das
tribos, povos e nações”, “sobre o ambiente”, “a ecologia local”, entre outras representações
culturais que expressam o saber dos povos. (2001, p..23-24).
O autor ressalta a “cidade global” como a sua representação e criação “coletiva”,
“plural”, “caleidoscópica” e a “sociedade global” como desdobramento das ocorrências em
nível local, “nações e regiões, ilhas, arquipélagos e continentes” não é, segundo o autor, “uma
aritmética”, nem “composição geométrica de sociedades nacionais”. A originalidade
configura autonomia própria, abrangente, complexa e contraditória. (2001, p.78-79).
Quase sempre a sociedade nacional é simbolizada pelo Estado-nação e caracterizada
como pequena, média, grande, agrária, industrial, urbanizada, avançada, rica, central,
periférica, entre outras qualificações.
Para Ianni, “[...] a sociedade global começa a ser uma realidade histórica, geográfica,
econômica, pública e cultural, modifica-se o contra-ponto parte e todo, singular e universal.
Também se alteram as modalidades de espaço e tempo, pluralizadas pelo mundo afora”.
(2001, p.97).
Com essa compreensão, o autor analisa a faceta da globalização que se refere ao
nacionalismo, regionalismo e globalismo, desenvolvido desde o término da Segunda Guerra,
início da Guerra Fria.
Segundo Ianni, o “Plano Marshall”, referido no início do capítulo, “é um primeiro
esboço de projeto de integração regional”. O autor cita outros exemplos de tratados e
organismos internacionais que comungam o mesmo objetivo: a integração entre países de um
mesmo bloco ou que tenham os mesmos propósitos político-econômicos, entre esses: a
criação da Organização para a Cooperação Econômica Européia e o Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), o Tratado de Maastricht assinado na cidade do mesmo nome em 1992, a
79União Européia integrada pelos países: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França,
Grécia, Holanda, Grã-Bretanha, Irlanda, Itália, Luxemburgo e Portugal. (2001, p.103).
A realidade problemática da “era da globalização” é analisada por Ianni como
movimentos caracterizados pela integração e fragmentação. “A interdependência e a
acomodação provocam tensões e antagonismos” (2001, p.7).
Ianni alerta: “[...] Para compreender os movimentos e as tendências da sociedade global, pode ser
indispensável compreender como as diversidades e desigualdades atravessam o
mundo” ( 2001, p.7).
Esse fenômeno ultrapassa fronteiras, altera a realidade em ritmo frenético, ao se
configurar numa dinâmica que minimiza o controle do Estado pobre, as relações comerciais,
expansão e abertura das fronteiras territoriais e comerciais, disseminação e uso das novas
tecnologias da informação e comunicação a partir de um mercado exigente e excludente e de
um consumidor explorado.
Como afirma Ianni, o fenômeno da globalização: “É como se fosse um terremoto
inesperado e avassalador, provocando transformações mais ou menos radicais em modos de
vida e trabalho, formas de sociabilidade e ideais, hábitos e expectativas, explicações e
ilusões”. (2000, p. 3).
O fenômeno da globalização se expressa nas transformações que abalam o mundo
pela intensidade das implicações teóricas e práticas que mudam a vida das pessoas pela ação
do ser humano contraditório, poderoso, dominador. “A globalização está presente na realidade e no pensamento, desafiando grande
número de pessoas em todo o mundo. A despeito das vivências e opiniões de uns e
outros, a maioria reconhece que esse problema está presente na forma pela qual se
desenha o novo mapa do mundo, na realidade e no imaginário”. (IANNI,
2002,p.IX).
Vários conceitos de globalização sugerem as idéias básicas provocadoras das
mudanças que direcionam as políticas de Estado. A questão provocativa se refere aos
processos de globalização que determinam a adoção de políticas que afetam a autonomia das
sociedades ao longo da história humana.
O fenômeno da globalização provoca reflexões e imaginações que desafiam a criação
de expressões e metáforas implicadas em concepções filosóficas, políticas, ideológicas
carregadas de valores e significados que expressam visões diferenciadas de mundo, de
homem, de sociedade, de cidadania, de educação.
80Ianni chama a atenção para as metáforas que aparecem em textos científicos nas
áreas da filosofia, economia, arte, política, educação e em tantos outros. ‘A terceira onda’ ‘aldeia global’, ‘sociedade amébica’ ‘primeira revolução mundial’,
entre outras metáforas. São encontradas expressões que o autor as denomina como
“descritivas” ou “interpretativas” e que são encontradas na vasta bibliografia sobre o
assunto: ‘economia do mundo’, ‘sistema-mundo’, ‘shopping center global’,
‘Disneylândia global’, ‘Nova visão Internacional do trabalho’, ‘moeda global’,
‘cidade global’, ‘capitalismo global’, ‘fim da geografia’, ‘fim da história’.(2002,
p.15-16).
Em geral e como podemos constatar, os problemas da globalização, os desafios e as
perspectivas são “explicados por autores, interlocutores, em diferentes enfoques históricos e
teóricos”. Entretanto, Ianni afirma que a sociedade global é uma totalidade problemática,
complexa, contraditória, aberta e em movimento; é o cenário mais amplo do desenvolvimento
desigual; é o emblema que pode provocar o advento de um novo paradigma que exige
reelaborações das ciências sociais, à medida que os conceitos, as categorias e as interpretações
podem se tornar obsoletos; a sociedade global deixa de ser uma fantasia, metáfora ou utopia,
e, no âmbito dessa sociedade, surgem as possibilidades a partir do “repensar da dialética da
história”. (IANNI, 2002, p. 206-207).
Como explica Furtado, o mercado financeiro em escala mundial é denominado de
“capitalismo global”. Sobre o fenômeno da globalização inserido neste “mercado global”,
Furtado afirma que “[...] quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da
ação reguladora do Estado, mas tendem a se apoiar nos mercados externos para
crescer”.(1998, p.7-8).
Observamos que o sistema de poder dos Estados vem sendo vertiginosamente
dependente do sistema financeiro internacional em detrimento às camadas populares
representadas pelos trabalhadores e minorias. As empresas que compõem o mundo
globalizado controlam os meios tecnológicos e geram o desequilíbrio socioeconômico, que
antes era regulado pelo poder público, ainda que este sempre tenha se afiliado aos poderosos.
Segundo Furtado: “Ora, a crescente interdependência dos sistemas econômicos tornou obsoletas as
técnicas que vinham sendo desenvolvidas nos últimos decênios para captar o sentido
do processo histórico que vivemos. Multiplicaram-se os modelos ao impulso do
avanço vertiginoso das técnicas de manipulação de dados. Mas, a finalidade das
projeções reduziu-se a quase nada”. (1998, p.29).
81Por outro lado, Furtado analisou nas últimas duas décadas do século passado que a
economia mundial vive uma fase de “[...] tensões estruturais sem precedentes por sua
abrangência planetária”. Essas tensões, afirmou Furtado à época, se manifestam “[...] nos
países do Terceiro Mundo sob a forma de brusca elevação das taxas de juros dos mercados
internacionais e de intensa drenagem de capitais para os Estados Unidos” (1998, p.35).
Além desse aspecto mencionado, o autor acrescenta às suas análises outros aspectos
ligados à economia e ao fenômeno da globalização que geram tensões: o desequilíbrio
estrutural da economia dos Estados Unidos, o amplo processo de destruição-reconstrução das
economias do leste europeu, a integração dos países da Europa ocidental com reforço dos
grandes grupos econômicos transnacionais sempre beneficiados pela concentração do poder
financeiro e pelos acordos que foram firmados pela Organização do Livre Comércio sobre o
controle de patentes e produção científica (1998, p.38).
Num outro enfoque, o autor ressalta o seu idealismo, ao destacar que a atividade
internacional contribuirá para a abordagem dos problemas ecológicos, uso de drogas,
enfermidade, contagiosas, a erradicação da fome e a manutenção da paz. (Furtado, 1998,
p.38).
Esses entendimentos foram anunciados por Furtado no seu livro “Nova economia
política”, ao analisar a dinâmica do sistema capitalista em seus propósitos estruturais de
provocar as disparidades no crescimento econômico-social dos países centrais e países
periféricos. O autor afirmou: “[...] Quando se acelera o crescimento no centro, o que implica intensificar o fluxo
das inovações ao nível dos bens de consumo, a repercussão na periferia tende a
assumir duas formas: maior concentração da renda e aumento relativo dos
investimentos improdutivos”. (1976, p.100).
A ampliação das distâncias entre centro-periferia, concentração de renda,
crescimento das economias dos países ricos, denota a existência de “uma superestrutura
política que cria as condições para que as grandes empresas de ação transnacional desfrutem
de considerável autonomia.” (1976, p.101).
Lança o desafio brasileiro: “Como preservar a identidade cultural e unidade política em um mundo dominado
por grupos transnacionais que fundam seu poder no controle da tecnologia da
informação e do capital financeiro.” (1976, p. 39).
82Furtado aponta como opções: a modificação do perfil de distribuição de renda com a
clareza que “se torna tanto mais difícil quanto avança a globalização e uma reforma fiscal que
assegure elevação substancial da taxa de poupança.” (1976, p. 80).
O autor reafirma: “O crescimento econômico deve ser visto como meio de aumentar o bem estar da
população e de reduzir o grau de miséria que pune parte dela.” (1978, p. 80).
“[...] Como somar e subtrair valores de natureza distinta como são o prazer e a dor?
É com paradoxos dessa ordem que se deparam os estudiosos do desenvolvimento.”
(1976, p. 81).
O geógrafo e intelectual brasileiro Milton Santos no seu livro “Por uma outra
globalização: do pensamento único à consciência universal” conceitua a globalização como
um processo de internacionalização do mundo capitalista e não vacila em afirmar que dois
elementos devem ser levados em conta para entender este processo: “[...] o estado das técnicas
e o estado da política”. (SANTOS M, 2003, p.23).
O autor advoga que não se deve separar a técnica da política no momento da análise
do processo de globalização, ainda que esta seja a tendência metodológica dominante. Alerta
que, na história humana, não se registra a separação entre as duas questões. Política e técnica
são interdependentes e aliadas ao trabalho humano. “É isso que faz a história”.
Ressalta o avanço da técnica no século XX em decorrência dos avanços da ciência,
fato este que assegurou um novo sistema técnico de amplitude planetária. Entretanto, afirma
que o fenômeno da globalização vai além da existência da técnica. O mais relevante, “[...] é o resultado das ações que dão sustentação a um mercado global ancorado na
unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta
e a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia
globalizada”. (SANTOS M, 2003, p.24).
Para o autor, a unicidade da técnica representa o avanço permanente das técnicas as
quais, a cada evolução, marcam nova etapa da história. No momento atual, em relevo as novas
formas de comunicação e informação que envolvem o planeta em escala global; a
convergência dos momentos é o resultado da confluência dos momentos – do ponto de vista
físico; do ponto de vista histórico, a interdependência e solidariedade do acontecer que não
asseguram, entretanto, a igualdade entre os homens.
Santos M analisa o que ele denomina de “motor único” - a mais valia universal. A
possibilidade do “motor único” deve-se à produção em escala mundial que garante, por meio
das empresas mundiais, “uma concorrência feroz” no patamar da internacionalização e
83mundialização dos produtos, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da informação.
(2003, p. 30).
A “cognoscibilidade do planeta” se refere à possibilidade do homem de conhecer o
planeta “extensiva e aprofundadamente”, quando esta possibilidade não foi real até este
momento histórico. Novos materiais, técnicas, instrumentos, laboratórios avançados...
garantem a comunicação permanente e rápida. Porém, o capitalismo atual está em crise
contínua e se defronta com uma crise global “cuja evidência tanto se faz por meio de
fenômenos globais como das manifestações particulares, neste ou naquele país, neste ou
naquele momento, mas para produzir o novo estágio de crise. Nada é douradouro”.( SANTOS
M, 2003,p.35).
O autor assinala as evidências de uma globalização perversa ao citar: a tirania do
dinheiro e da informação relacionadas mutuamente; o sistema ideológico legitimador desta
tirania e formador de “um novo ethos” que influencia o caráter das pessoas; a competitividade
como fonte de “novos totalitarismos” e a perversidade sistêmica que provoca retrocesso,
quando a questão é permeada pela noção do bem público e pela solidariedade, ambos em
processo de encolhimento das “funções sociais e políticas do estado com a ampliação da
pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas
na regulação da vida social”. (SANTOS M, 2003,p.38).
O paradigma que fundamenta o fenômeno da globalização hegemônica, em crise,
supõe, por outro lado, as mudanças que vêm ocorrendo, vertiginosamente, com a introdução
das novas tecnologias, que passam a exigir a formação de um trabalhador mais flexível,
preparado tecnicamente para se adequar ao mercado competitivo e globalizado.
Para conferir legitimidade e garantir a consecução dos objetivos de um mundo
globalizado, alguns dos principais organismos internacionais têm estado à frente das decisões
políticas que embasam as políticas educacionais, de forma a garantir a formação profissional
exigida pelo mercado. Pode-se destacar: A Organização dos Estados Americanos (OEA),
Banco Mundial (BM), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre outros
organismos que se articulam e ainda atuam no âmbito dos fóruns e conferências
internacionais.
É importante destacar que, na América Latina e Brasil, o Banco Mundial financia e
define a política educacional, conforme diretrizes constantes no seu documento: “Prioridades
84e Estratégias para a Educação”, divulgado em 1995, ainda em vigor e que prioriza o ensino
fundamental.
O fenômeno da globalização refere-se, de maneira geral e na concepção da
racionalidade do mercado competitivo e especulativo, à manifestação das atividades do
mercado financeiro, hoje mais do que antes, dominado por relações especulativas que
caracterizam o neoliberalismo na sua forma excludente, reveladora de uma rede de poder
econômico-político.
É preciso considerar o processo de globalização com características definidas pelo
espaço-tempo e que, na sua concepção hegemônica, representa os detentores do poder
político-cultural e econômico caracterizado pela apropriação do saber cultural, para favorecer
interesses de uma pequena parcela privilegiada que governa o mundo.
Entretanto, a globalização contemporânea caracterizada pelas mudanças tecnológicas
e econômicas apoiada pelas complexas tecnologias da comunicação e informação, pelo
mercado financeiro competitivo, rompe as fronteiras geográficas e políticas em segundos,
com possibilidades reais de ampliar a sua capacidade de desestabilizar estados e nações. Esse
processo foi intensificado a partir da crise do petróleo nos anos 1970, marcando uma nova
ordem, ainda não tão nítida, mas com impactos na soberania do Estado-Nação.
A globalização provoca os amargos números do desemprego, da miséria, da fome, da
falta de saúde, moradia e educação.
3.5 A Globalização, cultura global e homogeneização
Analisar um fenômeno tão complexo exige que o pesquisador lide com os
condicionamentos decorrentes da inserção do local no contexto de um processo mais amplo
no contexto global das transformações decorrentes do fenômeno da globalização.
Embora diferenciado política, cultural, social e educacionalmente, esse fenômeno
preserva uma unidade na forma de provocar os seus efeitos – ações fortes, decisivas,
carregadas de conflitos e contradições, deliberadas e direcionadas para um horizonte preciso,
exigente, poderoso – o mercado.
85É importante considerar que estamos diante de um fenômeno que provoca na
educação e no currículo efeitos e processos continuadamente retomados, reavaliados,
questionados, imprevisíveis e infinitos.
O fenômeno da globalização situa-se no espaço e no tempo histórico e se apresenta
com nuances que expressam diferentes processos socioeconômicos, educacionais e culturais.
Podemos afirmar que esse fenômeno sempre esteve associado, muito mais pelo seu aspecto
econômico, principalmente após o século XV –XVI, com o surgimento de um mercado
crescente em conseqüência das grandes navegações empreendidas pelos europeus,
notadamente portugueses e espanhóis.
Porquanto, antes de conceituar a expressão globalização cultural, é necessário
clarificar o termo cultura. Nessa tese, optamos pelo conceito de cultura na perspectiva
dialética como síntese da dupla capacidade de agir fisicamente e de representar mentalmente o
que o homem adquire, ao se ir constituindo fisiológica e psiquicamente em animal
diferenciado. Sendo síntese, é a reunião de modos opostos de ser, de produzir. (PINTO, 1979,
p. 119-139).
Nessa visão, cultura é criação do homem resultante do processo de hominização que
se manifesta no processo histórico em que o homem vai se constituindo a partir da relação
consigo mesmo, com os outros homens, com a natureza, exercendo uma relação de produção
da cultura ao modificar as circunstâncias.
A III Tese de Marx e Engels, elaborada como resultante da crítica à filosofia neo-
hegeliana alemã e dirigida a Ludwig Feuerbach, fundamenta na gênese o conceito dialético de
cultura: “A doutrina materialista sobre a alteração das circunstâncias e da educação esquece
que as circunstâncias são alteradas pelos homens e que o próprio educador deve ser
educado. Ela deve, por isso, separar a sociedade em duas partes - uma das quais é
colocada acima da sociedade. A coincidência da modificação das circunstâncias com
a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser apreendida e
compreendida racionalmente como práxis revolucionária”. (1977, p.12).
Portanto, ao conceituar a cultura como práxis revolucionária e atributo da pessoa
humana, a cultura não está imune aos impactos do processo de globalização nas suas várias
expressões, tanto as hegemônicas como as contra-hegemônicas. As referências sobre uma
cultura global estão balizadas em estudos que demonstram a complexidade, os conflitos e as
86controvérsias geradas sobre esse fenômeno humano, por expressar as concepções sobre a
vida, a política, a economia, a sociedade, a educação e o próprio homem.
A problemática da globalização cultural assume um interesse especial com a
“viragem cultural” da década de oitenta, quando as ciências sociais deixam em segundo plano
a análise dos fenômenos socioeconômicos e enfatizam os fenômenos culturais.
A “viragem cultural” coloca em lugar de destaque o impacto da globalização na vida
social e cultural de uma sociedade. A preocupação é procurar saber se os aspectos normativos
e culturais têm um papel preponderante na processo de globalização ou ficam relegados a um
segundo lugar. Para alguns, o processo de globalização tem como base a economia mundial
capitalista na qual grupos ou países hegemônicos procuram ajustar econômica e politicamente
os países em desenvolvimento: Chase-Dunn, 1991; Sweezy, 1994; Ianni, 2002. Para outros, a
dominação cultural precede a dominação econômica e política: Meyer,1997; McLuhann e
Powers, 1989; Levy, 1993. (Apud SANTOS, 2002a).
Wallerstein apresenta um argumento interessante, para ele, essas discussões e
diferenças “decorrem da decomposição da dupla crença do século dezenove nas arenas
econômica e política como lugares de progresso social e, conseqüentemente, da salvação
individual”. (Apud SANTOS, 2002a, p.44).
A idéia de uma cultura global é um dos principais projetos da modernidade e pode
ser definida como processo social construído sobre a interseção entre o universal e o
particular.
Wallerstein (1991), assume a definição de cultura como ‘uma questão de definir
fronteiras’; Appadurai (1997), afirma que o “cultural é o campo das diferenças, dos
constrastes e das comparações” e Santos (2002, p.47) assume a sua própria definição ao dizer
que “[...] a cultura é por definição a luta contra a uniformidade”. Para eles, conceituar cultura
é uma questão de definir fronteiras, territórios, espaços, cidadania, lugar, nacionalidade.
Segundo Appadurai, o motivo que leva o Estado-nação a desenvolver diferentes
relações com o território é crítico em razão dos Estados nações não serem igualmente ricos,
etnicamente coerentes, internamente justificados ou globalmente reconhecidos. Nesse sentido,
o autor relaciona a cultura global à realidade das populações entre uma cultura global e local.
Afirma: “[...] Uma vez que todos os aparatos estatais enfrentam, de uma forma ou de outra, a
realidade de populações que se movem, fluxos de mercadoraias legais e ilegais e
movimentos maciços de armas através de fronteiras, o que podem realisticamente
87monopolizar é pouco, exceto a idéia do território como elemento diacrítico crucial
da soberania”. (http//www.agbcuritiba.hph.ig.com.br/Textos/soberania.htm p.3).
No contexto da globalização cultural, os meios de comunicação eletrônicos,
especialmente a televisão, têm sido objeto de intensos debates. Para Appadurai (1996), a
globalização cultural que acontece nessa época da globalização é visível pelo movimento das
pessoas por todos os lados do globo –“ethnoscapes"; a globalização que faz circular o
dinheiro pela via das corporações internacionais –“financescapes”; a globalização que faz
circular as imagens por meio dos instrumentos da comunicação e informação -
“mediascapes”; a globalização que faz circular as idéias e ideologias políticas –“ideoscapes” e
a globalização tecnológica - “technoscapes”. Esses movimentos circulatórios e permanentes
são visíveis e acontecem ao mesmo tempo com muita rapidez. (Apud SANTOS, 2002a).
Appadurai salienta o papel dos média eletrônicos e descarta a idéia de que estes são o
ópio do povo; ao contrário, afirma que os média eletrônicos são processados pelas pessoas ou
grupos de maneira ativa num campo fértil com o objetivo de fomentar a resistência,
seletividade e ironia; observa ainda o crescente papel da imaginação na vida social provocado
pela globalização e que, através dela, os cidadãos são disciplinados e controlados pelos
Estados, mercados e outros interesses dominantes.
Ainda Appadurai, ao se referir à nova economia global e considerando a
complexidade dessa economia nos dias atuais, reafirma a existência de disjunções
fundamentais entre a economia, a cultura e a política. Nessa perspectiva, reafirma a sua
estrutura de análise dessas disjunções a partir do estudo do relacionamento entre as cinco
dimensões do fluxo da cultura global agora utilizado o sufixo panorama, como ele mesmo
afirma, para indicar, “[...] que não se trata de relações objetivamente dadas que têm a mesma aparência a
partir de cada ângulo de visão, mas, antes, são interpretações profundamente
perspectivas, modeladas pelo posicionamento histórico, lingüístico e político das
diferentes espécies de agentes: os estados nacionais, as multinacionais, as
comunidades diásporas, bem como os grupos e movimentos subnacionais
(religiosos, políticos ou econômicos), e até mesmo os grupos intimamente mais
relacionados, como as vilas, os bairros e os grupos familiares”. (1999, p. 312).
Portanto, com essa compreensão, Appadurai apresenta as dimensões do fluxo da
cultura global: os etnopanoramas ou “ethnoscapes"; às midiapanoramas ou mediascapes;
tecnopanoramas ou techonoscapes; finançopanoramas ou financescapes e os ideopanoramas
ou ideoscapes, já explicados nos parágrafos anteriores.
88Porém, consideramos importante ainda destacar que, para Appadurai, com quem
concordamos, a globalização da cultura envolve o uso de uma variedade de instrumentos de
homogeneização (armamentos, técnicas de propaganda, hegemonia da linguagem, estilos de
vestuário; nós acrescentamos a música, a dança, as artes em geral e, no campo educacional, a
ênfase na formação dos profissionais e nos currículos dos cursos), que são absorvidos pela
economia, política, pela cultura local, etc. Nesse contexto em que a globalização e a
homogeneização se fazem presentes, o Estado-nação deve desempenhar um papel “delicado”,
pois uma abertura excessiva para o fluxo global gera revolta e uma abertura reduzida
significará a sua ausência ou omissão do “palco internacional”. ( 1999, p. 324).
Portanto, no nosso entendimento, Appadurai expõe a política do esforço mútuo da
igualdade e da diferença no sentido “[...] de se devorarem mutualmente e assim proclamar o
assalto bem sucedido das idéias gêmeas do Iluminismo do universal que triunfa e do
particular que se recupera”. (1999, p. 324).
O autor adverte que o aspecto lúcido dessa questão “[...] é a ampliação dos
horizontes de esperança e de fantasia de muitos indivíduos, a difusão global da terapia de
reidratação oral e de outros instrumentos de bem-estar de baixa tecnologia”. (APPADURAI,
1999, p. 324-325).
Ao citar exemplos, Appadurai aponta o ponto crítico: o produto da controvérsia
muito variado entre a igualdade e a diferença caracterizado pelas disjunções entre os
diferentes fluxos globais e os panoramas presentes nessas disjunções. (1999, p. 325).
De uma outra perspectiva, Ianni, também citado por Santos, fala do “príncipe
eletrônico”. Segundo ele: “As tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas impregnam crescente e
generalizadamente todas as esferas da sociedade nacional e mundial; e de modo
particularmente acentuado as estruturas de poder, as tecnoestruturas, os think-tanks,
os lobbies, as organizações multilaterais e as corporações da mídia. Esse pode ser o
clima em que se forma, impõe e sobrepõe o príncipe eletrônico, sem o qual seria
difícil compreender a teoria e a prática da política na época da globalização”. ( 2000,
p. 143).
Conforme propõe Ianni, “O “príncipe eletrônico” é uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível,
predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade, em
âmbito local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico das
estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala nacional,
89regional e mundial, sempre em conformidade com os diferentes contextos
socioculturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo”. (2000,
p. 148).
Nessa perspectiva, os meios de comunicação de massa têm como objetivo a
universalização da produção de bens de consumo. A herança cultural, em sua totalidade, é
reduzida ao eixo capitalista da utilidade e da dominação.
No entanto, o príncipe eletrônico não representa uma entidade monolítica, coesa em
seus princípios e seus diferentes ramos de atuação. Tanto em âmbito nacional e mundial, ele
sofre diversas influências decorrentes das leis de mercado e concorrência.
Entretanto, os posicionamentos sobre essas questões não deixam clara a elucidação
das relações de poder que permeiam a produção da homogeneização, a diversidade ou
diferenciação e as relações de poder entre a cultura global/universal e a cultura
local/particular.
Para Ritzer (1995), a globalização é um risco para as culturas nacionais, e, por essa
razão, o autor indaga se não seria mais adequado falar da ocidentalização ou americanização
em vez de globalização, já que os valores e costumes globalizados são ocidentais e
particularmente norte-americanos; para Robertson e Khondker (1998), a globalização produz
homogeneização e diversidade cultural. Para Friedman (1994), a fragmentação cultural e
étnica produzida pela globalização e homogeneização, não são opostas, mas duas tendências
da globalização. (Apud SANTOS, 2002a p. 45-46).
Em geral, há uma preocupação com a homogeneização cultural, com a perda da
identidade nacional pela importação descontrolada de valores estrangeiros em países como o
Brasil. Essa perda se dá pelas formas de apropriação efetuadas pelos museus, pela indiferença
da população local; pela ignorância e a destruição do patrimônio cultural em nome do
progresso e do desenvolvimento, em função da urbanização e da ocupação do solo, além do
comércio clandestino realizado por comerciantes de antiguidades. Todos esses fatores têm
sido responsabilizados pela destruição do patrimônio nacional.
De acordo com Hall, na era da globalização, fala-se em identidades compartilhadas,
como consumidores dos mesmos bens, clientes dos mesmos serviços, públicos para as
mesmas mensagens e imagens, ao mesmo tempo em homogeneização cultural -
"supermercado cultural". Dessa forma, no interior do discurso do consumismo global, as
diferenças e as distinções culturais que até então definiam a identidade ficam reduzidas a uma
90espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as
tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. (2002, p. 32).
Para o Secretário-executivo do Ministério da Cultura do Brasil, Juca Ferreira, no
Interacción, Barcelona, 2004, “[...] a globalização tem gerado uma maior integração em escala planetária,
aprofundando a interdependência de toda a humanidade e gerando processos de
homogeneização. São processos de homogeneização parcial, provocados sobretudo
pela dominação cultural do Ocidente”.
Muitos autores chamam a atenção para o fato de que a mundialização não começa
hoje e de que é necessário que seja analisada em um contexto histórico mais amplo. A história
do colonialismo europeu e a tentativa de uniformização pelo cristianismo, tentando eliminar
as diferenças, conseguiram de fato tornar a humanidade muito mais próxima e semelhante,
sob muitos aspectos, mas, felizmente, não lograram abolir a diversidade cultural planetária. A
Europa ficou marcada pelas culturas dos povos colonizados. Assim, a ocidentalização desses
povos não foi homogênea, nem unilateral.
Nas últimas décadas, a ideologia da globalização hegemônica tem propagado que as
nações, seus estados e as culturas nacionais são sobrevivências arcaicas e estão condenadas ao
desaparecimento. Mas não é isso que estamos vendo: os problemas e desequilíbrios desta
globalização, tais como o aumento da distância entre ricos e pobres, as guerras e a fome em
várias partes do mundo têm estimulado a valorização das singularidades nas diversas
comunidades humanas.
Acreditamos que o príncipe eletrônico e a sua destruição da diversidade cultural são
um risco real e, com ela, a eliminação das formas culturais que expressam a riqueza das
experiências humanas em todos os cantos do planeta. A situação é grave: a comunicação é,
com os avanços tecnológicos, a cada dia, mais avassaladora e instantânea. Ao invés de trocas,
o que temos são vias de mão única, impondo formas e conteúdos simbólicos e ameaçando a
sobrevivência das culturas dos povos não hegemônicos, transformados em meros
consumidores de conteúdos culturais.
Faist, ao estudar espaços transnacionais como campos sociais transnacionais,
transnacionalismo ou formações sociais transnacionais em sistemas de migração, refere-se às
ligações de pessoas, redes e organizações através de fronteiras de múltiplas nações. O autor
afirma que a migração internacional é um processo econômico, político, cultural e
91demográfico multidimensional que engloba várias ligações entre dois e mais cenários. (2000,
www.mexnor.org/programs/TRP/Takito/ takaindex.htm - acesso em: 29 set.2006).
Ao discutir o pluralismo cultural a partir da transferência e retenção da cultura,
afirma que o processo de assimilação e depois de desassimilação das culturas nacionais
distintas pode existir lado a lado. Para além do conceito de cultura e das visões pluralistas de
cultura, Faist apresenta o que chama de sincretismo transnacional como forma de alcançar os
resultados desejados de aculturação ou retenção das culturas, impondo, então, a natureza
dinâmica de todas as culturas. (2000, www.mexnor.org/programs/TRP/Takito/ takaindex.htm
- acesso em 29.09.2006).
Chiribuca, por outro lado, estuda no seu texto ‘Notas sobre globalização cultural” o
mesmo assunto iniciando reflexões sobre o fenômeno da globalização situando-o nas
diferentes dimensões do campo social, ou seja, na economia, na política, na cultura. Então,
questiona: o que exatamente significa ‘uma sociedade mundial única?’. O autor apresenta
duas tendências principais envolvendo a análise da globalização cultural que podem ser
sintetizadas como ‘Mundo McDonald’ e ‘Mundo Jihad’; uma nomenclatura equivalente para
o Mundo McDonald pode ser “homogeneidade” e para o Mundo Jihad, “especificidade”. Para
o autor, os símbolos Mundo McDonald e Mundo Jihad sintetizam as ferramentas definidoras
da realidade mundial atual, enquanto homogeneidade e especificidade representam posições
teóricas relativas à realidade empírica.
O autor apresenta quatro aproximações diferentes do processo de globalização
cultural e dos cenários da evolução mundial a partir do ponto de vista da dimensão cultural.
Aproximação – Cenário 1: Mundo McDonald/Homogeneidade Cultural. Nesse
cenário, a globalização é materializada em termos de interdependência econômica e
subseqüentemente dá origem à homogeneização cultural. A partir dessa perspectiva, a
globalização cultural significa similaridade.
Aproximação – Cenário 2: Mundo McDonald/Diversidade Cultural. Nesse cenário, a
globalização é inquestionavelmente real, mas as similaridades são superficiais. É verdade que
nós compramos as mesmas coisas, mas nossa identidade cultural não se traduz em nossas
compras. Essa aproximação é baseada na hipótese da dicotomia da civilização-cultura.
Aproximação – Cenário 3: Mundo Jihad/Homogeneização representa uma
contradição, uma impossibilidade teórica. O mundo Jihad é idêntico a Balkanização e
significa, pela definição, a ruptura do localismo, a hipótese aberta da identidade minoritária, a
92recusa da homogeneização e especificidade. A Balkanização como uma expressão de
dominação do localismo é o oposto de homogeneização.8
Aproximação – Cenário 4: Mundo Jihad/Diversidade Cultural representa tanto uma
negativa da globalização como o postulado de um determinismo cultural muito rigoroso. As
estruturas institucionais idênticas geradas pela modernidade são localmente contextualizadas
pelas culturas.
O autor conclui que a homogeneidade não cancela a diversidade. As culturas são
conglomerados de subculturas. Mesmo quando uniformizada, a cultura global da sociedade
global não pode ser somente um conglomerado de diversidade, mas certamente uma
diversidade diferente do que a existente antes da globalização.
Portanto, uma das principais funções da cultura é promover a identidade cultural.
Isso constitui um efeito penetrante da globalização cultural, é a necessidade de assumir uma
identidade cultural personalizada e distinta. Os valores do sistema global cultural estão
crescentemente se tornando ‘consumir” e hedonismo. Mas, uma sociedade global constituída
sobre esses valores não pode ser algo além de uma sociedade auto-destrutiva.
Featherstone também questiona: existe uma cultura global? O autor apresenta duas
hipóteses. A primeira hipótese parte do pressuposto de que seria impossível uma cultura
global integrada sem a formação de um estado universal, perspectiva pouco provável para o
autor; a segunda hipótese que admite a existência de uma cultura global assume um conceito
de cultura mais amplo, ou seja, a cultura pensada como processos de cultura, processos de
integração e de desintegração cultural.
Afirma o autor: “[...] Conseqüentemente, pode haver sistemas emergentes de ‘terceiras culturas’, os
quais, eles próprios, constituem canais para toda a sorte de fluxos culturais
diferentes, que não podem simplesmente ser interpretados como o produto de trocas
bilaterais entre estados nacionais”. (1999, p. 7).
Para o autor citado, é equivocado conceber a idéia de uma cultura global como
enfraquecimento da soberania dos estados nacionais, ou de um estado mundial que produziria
a homogeneidade e a integração cultural. 8 A Balkanização é o conceito que alerta para o cuidado para com o processo de fragmentação em pequenas regiões hostis e não cooperantes entre si. Tal como aconteceu nos países balcânicos da Europa. O substantivo balcanização remonta ao princípio do século XX, após a I Guerra Balcânica (1912): a Turquia foi derrotada por uma aliança entre a Sérvia, a Bulgária, a Grécia e depois o Montenegro (apoiados pela Rússia), mas os vencedores não se conseguiram entender quanto à partilha dos territórios europeus conquistados aos Turcos. Por isso, passou a designar-se como balcanização a confusão de nacionalidades ou etnias, culturas e religiões, consubstanciada na ocorrência freqüente de litígios fronteiriços.
93Afirma que:
“[...] precisamos investigar os fundamentos, os processos geradores que envolvem a
formação de imagens e das tradições culturais, bem como as lutas e as
interdependências intergrupais, que levaram até essas oposições conceptuais que se
tornaram estruturas de referência para a compreensão da cultura dentro da sociedade
do estado que, a partir daí, se projeta em todo o globo”. (FEATHERSTONE, 1999,
p. 08).
Ao debater o espaço da cultura na teoria dos sistemas mundiais, Featherstone cita
Wallerstein, quando este autor argumenta que o sistema mundial se baseia na lógica particular
da acumulação incessante do capital trazendo para o âmago da questão a possibilidade de uma
cultura global, ainda que Wallerstein considere a visão da cultura como “mero derivativo” da
lógica da acumulação do capital. (FEATHERSTONE, 1999, p.10).
Consideramos importante assinalar que a competição desenfreada do mercado e a
acumulação do capital provocam deliberadamente processos de homogeneização.
Featherstone cita que esses processos provocaram uma americanização no campo jurídico
com o surgimento das ‘firmas do megadireito’ e a criação de ‘feitorias jurídicas’ abrindo
espaço para novos advogados com a competência técnica para utilizar táticas agressivas
consideradas importantes para o crescimento do mercado jurídico.
A homogeneização se torna possível também através dos novos meios da tecnologia
da comunicação e da informação nos campos da arquitetura e da indústria de filmes, vídeos,
na televisão, na música, nos bens de consumo. O autor assinala que autores como King
(1990), Hannerz (1989), referem-se às ‘cidades globais’ onde se concentram as atividades
financeiras, bancárias, alta cultura e da moda, aos centros econômicos, às indústrias culturais,
etc. Esses autores citados por Featherstone apresentam Paris, Los Angeles, Bobaim, Hong-
Kong, Tóquio, Nova York, Londres como ‘cidades globais’. (Apud FEATHERSTONE, 1999,
p. 14).
Numa outra perspectiva, Cortesão e Stoer (2002) estudam a dialética global e local
como um fenômeno da transnacionalização do campo educativo. Consideram o local e o
global em sentidos opostos e realizam uma cartografia para analisar a complexidade do
fenômeno da transnacionalização no campo educacional em Portugal. Para os dois
intelectuais, é importante analisar a globalização e a transnacionalização no campo da cultura
enfrentando a questão da emergência de uma cultura mundial ou de uma cultura global.
94Cortesão e Stoer trazem para o debate os estudos de Dale realizados em 2001, sobre
a relação entre educação e globalização que ele denomina, por um lado, ‘cultura educacional
mundial comum’ e, por outro lado, ‘agenda de educação globalmente estruturada’. (Apud
CORTESÃO E STOER, SANTOS, 2002a, p. 379).
A ‘cultura educacional mundial comum’ defende a concepção que ‘o
desenvolvimento dos sistemas educativos e das categorias curriculares nacionais, em vez de
ser explicado por factores nacionais distintivos, é compreendido através da utilização de
modelos universais da educação, estado e sociedade’; sobre a ‘agenda de educação
globalmente estruturada’ reafirma que ‘é a natureza mutável da economia capitalista mundial
que constitui a força principal da globalização e que procura influenciar, embora haja efeitos
de mediação, os sistemas educativos nacionais’. (DALE, Apud CORTESÃO E STOER, 2002,
p. 379).
Cortesão e Stoer têm a mesma posição questionadora de Dale sobre o papel que
desempenham as dimensões cultural e normativa do processo de globalização. Seria
secundário ou principal? No entanto, fecham a questão, quando afirmam que, embora o papel
dessas dimensões cultural e normativa seja importante, ele é delimitado nos seus efeitos no
campo educacional pela dimensão socioeconômica.
A educação está implicada na política cultural e por essa razão o campo educacional
não é neutro, e os conhecimentos são produzidos pelos conflitos, tensões e compromissos
culturais.
Compartilhamos também com essa posição questionadora dos autores citados, ao
ratificarmos como factível os efeitos e impactos das forças supranacionais no processo de
definição dos objetivos da política nacional e em todos os processos educativos, em razão da
natureza capacitadora dessas forças em atuarem no campo da educação considerando-o como
campo de transnacionalização, visto que percebemos as ligações entre as mudanças na
economia global e as mudanças na política e práticas educativas.
Destacamos para exemplificar: a ligação entre mudanças na economia e mudanças
nas políticas educativas, citamos os dados do próprio Ministério da Educação que, ao
apresentar à comunidade “O Censo da Educação Superior 2003”, destaca que, do conjunto de
1859 instituições de educação superior no Brasil, 1652 são privadas, ou seja, 88,9%, contra
207 públicas que correspondem a um percentual de 11,1%. Comparando os dados do Censo
de 2002, constata-se um acréscimo de 222 novas instituições que ofertam educação superior
95representando um crescimento que corresponde a 13,6% quase que totalmente no setor
privado, uma vez que do total de 222 instituições apenas 12 pertencem ao setor público.
(BRASIL, MEC/INEP, Censo da Educação Superior, 2003).9
Sob as condições da economia mundial capitalista e do sistema interestadual
moderno, parece que o espaço das culturas locais é restrito, enquanto o espaço para as culturas
globais/parciais é ampliado.
Entretanto, Santos observa a diferença que existe nesta relação entre as culturas
localizadas em regiões do globo colonizadas pelos europeus e submetidos ao imperialismo
ocidental, em nome do qual as tradições e identidades culturais foram em grande parte
destruídas. (2002, p. 48).
Em razão do controle e da dominação política exercidas pela globalização cultural
como disfarce, é importante identificar os grupos, Estados e interesses que definem culturas
globais.
Segundo Santos, é verdade que: “[...] a intensificação dos contatos e da interdependência transfronteiriços abriu
novas oportunidades para o exercício da tolerância, do ecumenismo da solidariedade
e do cosmopolismo, não é menos verdade que simultaneamente, tem surgido novas
formas e manifestações de intolerância, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e,
em última instância, de imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta
forma, ter natureza, alcances e perfis políticos muito diferentes.” (2002a, p.48).
O que faz diferença hoje são os meios que favorecem a comunicação e informação
entre culturas que geram novas formas de comunicação. As novas tecnologias da
comunicação (as tecnologias digitais da comunicação, o jornalismo participativo, o vídeo, a
fotografia digital, os códigos lingüísticos e e-mails, os computadores em rede, a internet, o
celular, a televisão, o rádio, o cinema, etc) têm efeitos na identidade e cultura do povo e fazem
parte do cotidiano das pessoas impondo a redefinição do papel do Estado-nação e,
conseqüentemente, das políticas públicas, entre elas, as políticas educacionais.
A educação e o currículo são afetados pelos efeitos da globalização na cultura
considerando que hoje o mundo é marcado pela quase inexistência das fronteiras tanto no
aspecto econômico como no aspecto cultural.
Portanto, podemos inferir que tanto a cultura como a educação e, conseqüentemente,
o currículo, que visam à fidelidade as suas raízes locais, estão inseridos no campo dos
9 Voltaremos a abordar essa questão no capítulo cinco
96conflitos envolvendo a autonomia e soberania do Estado-nação, como veremos nos capítulos
seguintes, quando analisarmos as questões da globalização e do currículo.
Assim, nos capítulos seguintes, analisaremos o fenômeno da globalização e os efeitos
que provocam a homogeneização no campo do currículo da educação superior brasileira, a
partir de uma matriz cartográfica que será explicada no capítulo três e apresentada e analisada
no capítulo quatro.
974 A MATRIZ CARTOGRÁFICA: instrumento para a análise do fenômeno da Globalização no campo do currículo da educação superior
Esse capítulo foi elaborado com o objetivo de explicar a matriz cartográfica que
construímos para organizar didaticamente as dimensões de análise que utilizamos para
analisar o fenômeno da globalização no campo do currículo da educação superior -1996-2001
- que será apresentado no capítulo quatro.
Entretanto, como a nossa pesquisa se caracteriza como teórica, este capítulo também
segue o referencial teórico já apresentado nos capítulos anteriores, para favorecer a análise
das especificidades do fenômeno estudado e as suas implicações no currículo da educação
superior no Brasil.
Ao apresentar um caminho metodológico, concordamos com Richardson para o qual: “O método científico pode ser considerado algo como um telescópio; diferentes
lentes, aberturas e distâncias produzirão formas diversas de ver a natureza. O uso de
apenas uma vista não oferecerá uma representação adequada do espaço total que
desejamos compreender. Talvez diversas vistas parciais permitam elaborar um
‘mapa’ tosco da totalidade procurada. Apesar de sua falta de precisão, o ‘mapa’
ajudará a compreender o território em estudo”. (1999, p. 19).
A partir da perspectiva geral da pesquisa, optamos pela dialética enquanto diretriz
metodológica, pela possibilidade que o método oferece para a realização de um estudo
teórico-analítico e crítico-reflexivo. Este não é um caminho qualquer. Reflete os propósitos,
limites e possibilidades e, invariavelmente, envolve aspectos que nos conduzem à
compreensão do objeto de estudo da nossa investigação: o currículo na Educação Superior no
Brasil tende a ser homogeneizado em razão dos efeitos do fenômeno da globalização no
campo curricular. Essa tendência constatada ‘a priori’ será ou não confirmada no capítulo
seguinte.
É importante esclarecermos as razões que justificam o período delimitado para a
realização do estudo.
Em primeiro lugar, no ano de 1996, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – Lei 9394/1996, com abrangência desde a Educação Básica à Educação
Superior, sancionada em 20 de dezembro de 1996.
Em segundo lugar, nesse período, são intensificados os debates sobre os
desdobramentos da Lei 9394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB os
98quais implicariam na discussão e definição, no caso da educação superior, das Diretrizes
Curriculares Nacionais para os cursos superiores.
Em terceiro lugar, o período coincide com o avanço do neoliberalismo expresso no
fenômeno devastador da globalização hegemônica intensificado no mandato do Presidente da
República Fernando Henrique Cardoso. Esse avanço neoliberal provocou efeitos no campo da
educação e, conseqüentemente, no campo do currículo.
Para tanto, adotamos a matriz cartográfica para organizar didaticamente o caminho
trilhado durante o trabalho objetivando captar o perceptível, o subjetivo e o sensível sobre o
fenômeno estudado mesmo concordando com Cortesão e Stoer segundo os quais dificilmente
uma grelha “[...] é capaz de captar toda a complexidade e turbulência sempre inerentes aos
fenômenos sociais”. (2002, p. 396).10
Porém, antes de apresentar a matriz cartográfica, torna-se indispensável clarificar o
conceito de campo curricular para uma maior compreensão tanto da própria matriz como do
fenômeno da globalização no campo do currículo. É o que faremos no item seguinte.
4.1 Clarificação do conceito de campo curricular
A necessidade de elucidar o conceito de campo curricular surgiu durante o trabalho,
em razão, principalmente, da abrangência dos estudos do currículo no campo educativo. Esse
campo se caracteriza pela complexidade, que lhe é peculiar, em razão de apresentar situações
que envolvem a produção do conhecimento como instrumento para a formação do homem,
sem esquecer que o homem é condicionado às determinações materiais de existência e,
contraditoriamente, é construtor da sua própria história (Marx e Engeles, 1993, p.27-39).
A perspectiva de realizar a análise do fenômeno da globalização no campo do
currículo na educação superior expõe o pesquisador aos seus limites e possibilidades, porque
envolve relações de poder e formas de resistência sempre presentes no processo de construção
curricular.
10 Cortesão e Stoer denominaram o seu instrumento de análise de “grelha de análise” baseados no “quadro” de Boaventura de Sousa Santos. No nosso trabalho de tese denominamos o instrumento de análise de “Matriz Cartográfica”.
99No campo do currículo, exerce-se o poder, porque estão presentes as mais diversas
concepções e valores humanos sobre o mundo, a sociedade, o homem, a vida, o trabalho, a
cultura, a educação. O poder é, muitas vezes, representado pelos antagonismos das posições
assumidas pelos educadores e educandos, pelas propostas, políticas e ações que reproduzem o
currículo. Contraditoriamente, nesse mesmo campo, apresentam-se as ações e reações de
resistências que provocam as mudanças contra-hegemônicas na direção de um currículo que
tem como horizonte a produção do conhecimento para a emancipação humana.
Sobre a reprodução no espaço escolar, destaca Apple: “[...] embora seja importante
compreender que as escolas contribuem para reproduzir relações de gênero e as relações de
produção, elas também historicamente reproduzem, ‘por detrás de suas costas’, formas
específicas de resistências”. (1989, p.182).
Com esse destaque de Apple, evidenciamos as relações de poder no campo curricular
tanto na perspectiva da reprodução como na perspectiva da emancipação numa relação não
linear, mas dialética.
Portanto, o campo curricular é assim espaço de conflitos, de contradições, de
exercício de poder, de resistências e de jogo de interesses onde se expressa o currículo
homogeneizado e por onde se dá a luta permanente para manter a diversidade cultural.
4.2 A matriz cartográfica como instrumento de análise
A grelha foi utilizada por Cortesão e Stoer, em 2002, como instrumento de análise no
estudo sobre a transnacionalização do campo educativo em Portugal a partir das análises de
Santos que utilizou esse recurso em forma de quadro para a análise de trabalhos na área
jurídica. No entendimento dos autores Cortesão e Stoer, o instrumento parece conter em si
potencialidades interessantes para aplicação no campo educativo, porque exige do
pesquisador pensar relacionalmente, pensar em termos de um campo delimitado. (Cortesão e
Stoer, 2002a, p. 388).
Com a mesma compreensão em relação à aplicação do instrumento no campo
educativo, apresentamos a matriz cartográfica como recurso metodológico para compreender
100os efeitos provocados pela globalização e homogeneização que se situam no campo do
currículo no Brasil.
A cartografia é utilizada como recurso para representar as análises no campo da
Geografia. É conceituada como ramo da ciência que trata da elaboração de mapas propiciando
subsidiar a análise e a interpretação de mapas, tabelas entre outros recursos aplicados aos
estudos geográficos.
É também entendida como um conjunto de operações artísticas e técnicas produzidas
a partir de resultados de observações diretas ou de exposições de documentos no campo dos
estudos geográficos. Enquanto instrumento de análise no campo da Geografia, utiliza-se de
símbolos, cores, traços e convenções.
A sua aplicação neste trabalho de análise será adaptada ao campo da educação para o
estudo do currículo. Entretanto, ainda que as adaptações sejam feitas para atender às
necessidades desse trabalho de tese será utilizada como um instrumento técnico de análise que
congrega o conjunto de informações científicas organizadas didaticamente em forma de
matriz que antecede as análises descritivas sobre o fenômeno estudado.
Como reafirmam Cortesão e Stoer por meio de uma grelha de análise, “[...] é possível identificar um conjunto de afirmações que, desafiadoramente,
exprimem claras semelhanças com situações que ocorrem no campo educativo:
também no campo educativo se podem notar claras influências de outros países,
influências que se fazem sentir através de processos formais e informais; também
nas análises de políticas educativas tem de se ter em conta a ‘posição do país na
hierarquia do sistema mundial’ a sua ‘trajectória histórica’ através da modernidade;
também nesse se podem identificar aspectos que decorrem do
conflito/complementaridade de culturas locais e transnacionais”. (2002, p. 389).
Nessa perspectiva, assumimos também a matriz como um instrumento metodológico
auxiliar capaz de expressar o panorama do conteúdo que será analisado e constituirá a tese.
Por essa razão, devemos fazer a leitura da matriz, de forma que possamos relacionar as quatro
dimensões de análise aos tipos de globalização percebendo “[...] a simultaneidade de
mandatos e áreas de influência da educação entre o que é possível e desejável, mandatos que,
por vezes, coexistem, conflitualmente, num mesmo contexto temporal”. (Cortesão e Stoer,
2002a, p. 396).
Como afirmam os autores citados, esta é “uma cartografia simbólica”, e nós a
utilizamos para analisarmos um fenômeno complexo inter-relacionado ao campo do currículo
também complexo, contraditório e conflituoso, o qual é estabelecido por valores, crenças,
101teorias e políticas educacionais direcionadas aos interesses e forças políticas que interagem e
atuam no sistema educativo.
Sacristán, ao referir-se ao currículo, assegura que: “Trata-se de um complexo processo social com múltiplas expressões, mas com
determinada dinâmica, já que é algo que se constrói no tempo e dentro de certas
condições. É uma realidade difícil de aprisionar em conceitos simples, esquemáticos
e esclarecedores por sua própria complexidade e pelo fato de que tenha sido um
campo de pensamento de abordagem recente dentro das disciplinas pedagógicas,
além de controvertido, ao ser objeto de enfoques contraditórios e reflexos de
interesses conflitantes. Não é estranho, tampouco que as autodenominadas teorias de
currículo sejam enfoques parciais e fragmentários”. (2000, p. 21-22).
Em razão dessa complexidade inerente ao campo do currículo, que não se reduz à
prática pedagógica, mas que incorpora ações de ordem política, cultural, administrativa e
pedagógica, e em razão das relações de poder presentes nesse campo propomos apresentar na
matriz as seguintes formas de atuação e representação do fenômeno da globalização e
homogeneização do currículo para, no capítulo seguinte, proceder a uma análise do que é
apresentado na matriz.
Portanto, a matriz é apresentada como se segue:
I. Denominação da matriz: Globalização do campo do currículo no Brasil: 1996 –
2001.
II. Tipos de globalização que serão apresentados na matriz e analisados no capítulo
quatro:
1. A homogeneização dos currículos dos cursos de graduação que se refere ao
enquadramento desses currículos numa sociedade mundial das políticas educativas adotadas
pelos Estados-nação. Entretanto, é importante advertir que mesmo assim esses estados,
incluindo o Brasil, lutam pela preservação das características que definem as suas identidades,
como exemplo a sua história, a sua posição geográfica, as orientações políticas e situação
econômica e cultural, apesar das imposições externas advindas do poder hegemônico dos
países ricos que detêm poder econômico, político-cultural.
2. A mercadorização da educação superior se relaciona com as mudanças ocorridas
no campo educativo na relação Estado-Mercado e demonstra a voracidade com que o mercado
vem assumindo o domínio da educação superior tanto pela oferta de vagas, cursos e escolas
como pelo aparato regulatório, ao expor uma relação de subserviência entre o Estado e o
Mercado.
1023. A educação cosmopolita que se refere ao novo enquadramento democrático para
políticas educativas que estão sendo desenvolvidas por meio de identidades transnacionais.
Caracteriza-se como educação contra-hegemônica e representa a resistência de Estados-nação,
regiões, classes ou grupos sociais contra a educação de base liberal ou hegemônica vinculada
ao mercado. A educação cosmopolita é processual e pode atravessar fronteiras.
4. As questões universais de educação se relacionam com as problemáticas atuais,
que podem constituir o arcabouço sinalizador para a construção de uma educação superior que
atenda aos interesses e necessidades da população brasileira.
III. As dimensões de análise serão as mesmas que foram utilizadas por Cortesão e
Stoer em 2002, com base nos estudos de Santos na área jurídica. São as seguintes:
Dimensão de análise 1. Modos de produção da globalização. Esta dimensão enfoca
quatro tipos de modos de produção da globalização de acordo com os seguintes conceitos. São
eles:
1.1 Localismos globalizados conceituado como o processo pelo qual um determinado
fenômeno local é globalizado com sucesso. Exemplo: a transformação da língua inglesa em
língua universal; a globalização do “fast food” americano representado pela rede de
lanchonetes Mcdonald, etc.
1.2 Globalismos localizados conceituado como o impacto específico nos locais
(exemplo: cultura local) produzidos pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem
dos localismos globalizados os quais provocam mudanças nas condições locais por imposição
dos localismos globalizados que desestruturam e desintegram essas condições locais para
reestruturá-las sob a forma de inclusão subalterna.
1.3 O cosmopolitismo que é conceituado como um primeiro modo de organização
transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais considerados
como vítimas pelas imposições desiguais dos localismos globalizados e globalismos
localizados. “[...] A resistência consiste em “transformar trocas desiguais em trocas de
autoridades partilhada, e traduze-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a
dependência, a desintegração, a despromoção”. (SANTOS, 2002a, p. 67).
1.4 O patrimônio comum da humanidade se refere às lutas transnacionais em razão
da proteção e desmercadorizaçãso de recursos, entidades, artefatos, ambientes, que são
considerados essenciais para a sobrevivência da humanidade e devem ser preservados em
função de toda a humanidade. O patrimônio comum da humanidade é conceituado como um
103segundo modo de produção em que se organiza a resistência aos localismos globalizados e
globalismos localizados. Exemplos: as lutas pela preservação da Amazônia, da Antártida, da
biodiversidade em escala planetária, os fundos marinhos, o planeta Terra, o universo, etc. Em
síntese, o patrimônio comum da humanidade trata de temas que fazem sentido enquanto
reportados ao globo e à humanidade na sua totalidade.
Dimensão de análise 2. Área de controvérsia. Esta dimensão é assim denominada,
porque apresenta as tensões e os conflitos inerentes ao campo do currículo. Por essa razão,
enfocamos na matriz as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Superior, as quais
serão analisadas no quarto capítulo, porque apresentam as normas e as orientações dos
currículos dos cursos superiores, conforme preconiza a Lei 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional.
Dimensão de análise 3. As agências de financiamento transnacionais citadas na
matriz são aquelas que financiam, impõem e definem as bases para a educação superior no
Brasil. Apresentamos as agências transnacionais de acordo com o entendimento de Cortesão e
Stoer (2002), para os quais são entidades que se movimentam e atuam no âmbito do
fenômeno da globalização. Acrescentamos nessa dimensão os órgãos governamentais e as
instituições de educação superior públicas e privadas nacionais que destinam recursos e
financiam a educação superior brasileira com recursos oriundos de empréstimos
internacionais.
Dimensão de análise 4. Resultados potenciais. Essa dimensão apresenta os resultados
das ações e políticas definidas pelas agências financiadoras e implementadas pelo governo
brasileiro. Por outro lado, apresenta os resultados das ações contra-hegemônicas dos
processos de resistência que comprovam a capacidade humana de romper e atravessar o
caminho do autoritarismo, da exclusão, da intolerância.
4.3 A formatação da estrutura da matriz cartográfica
Neste capítulo apresentamos a matriz cartográfica com o objetivo de visualizar, na
sua estrutura, a relação entre os tipos de globalização e as dimensões de análise. O corpo
104argumentativo da tese, apresentada em primeiro plano por meio da matriz cartográfica, é parte
integrante do capítulo cinco.
105Globalização do Campo do Currículo no Brasil: 1996 - 2001 Tipos de GlobalizaçãoDimensõesde Análise
Homogeneização dos Currículos dos Cursos de Gradução
Mercadorizaçãoda Educação
EducaçãoEmancipatória
Questões Universaisde Educação
1. Localismos globalizados2. Globalismos localizados
Área de controvérsia
Construção de projetos político-pedagógicospara os cursos de gradução com base no ensino,na pesquisa e na extensão; Revisão dasDiretrizes Currículares Nacionais para osCursos de Graduação;Experiências com aformação de professores com base numa basecurricular comum a exemplo da experiência daUFPB. Revisão do Sistema Nacional deAvaliação da Educação Superior; Revisão dosmarcos regulatórios da educação nacional (Leis,Resoluções que definem as DiretrizesCurrículares Nacionais em âmbitonacional).Definição de uma base nacional paraos cursos de graduação, em especial, para oscursos de formação de professores.
Agências transnacionais
Banco Mundial; FMI; Unesco; Mercosul;Organismos Governamentais (Ministérios daEducação e de Planejamento);ConselhoNacional de Educação; Instituições de educaçãosuperior públicas e privadas.
Resultados potenciais Currículos homogeneizados e hegemônicosem função do Mercado
Modos de produção da globalização e os efeitosno campo do currículo
1065 GLOBALIZAÇÃO E HOMOGENEIZAÇÃO NO CAMPO DO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL
O capítulo se inicia contextualizando historicamente o currículo no Brasil no período
1996 – 2001. O percurso histórico visa situar no tempo e no espaço o fenômeno da
globalização no currículo problematizando a homogeneização como um dos seus efeitos na
educação superior.
A análise do currículo da educação superior no período definido, segundo critérios
explicitados no capítulo anterior, será intensificada nos demais itens a partir das dimensões de
análises já referenciadas na matriz. Elas aparecem no corpo dissertativo como base da análise
e não como itens específicos.
Portanto, analisamos a matriz considerando a globalização no campo do currículo
com destaque para o processo de homogeneização dos currículos da educação superior no
Brasil.
5.1 Sinopse histórica do campo do currículo no Brasil
Chamamos à atenção para uma das características da educação brasileira: desde a sua
origem com a educação jesuítica no período da colonização não contemplou a adoção de
princípios curriculares que interagissem com a cultura, aspirações e necessidades do povo
brasileiro.
Esse fato acusa o comportamento autoritário da elite brasileira, detentora do poder
político-econômico do Estado-nação brasileiro, que desde a época da colonização esteve
ancorada na velha tradição colonizadora dependente e não transparente em relação aos seus
reais propósitos, como já denunciava Teixeira: “Nascemos, assim, divididos entre propósitos reais e propósitos proclamados. A essa
duplicidade dos conquistadores seguiu-se a duplicidade da própria sociedade
nascente, dividida entre senhores escravos, dando assim ao contexto social do
continente recém-descoberto o caráter de um anacronismo, mesmo em relação à
Europa, na época, em plena renovação social e espiritual”. (1976, p.7-8).
107Os “propósitos reais” da elite brasileira, denunciada por Teixeira e por outros
educadores brasileiros contemporâneos, continuam direcionando as políticas públicas que
negam os interesses populares, perpetuando os problemas sócio-econômico-educacionais e
culturais que afetam direta e indiretamente, tanto a educação básica como a educação
superior, apesar das relevantes e exitosas experiências que emergem nos recantos do país e se
contrapõem a uma visão tradicional, reducionista e homogeneizadora da educação e do
currículo.
As origens e o desenvolvimento do currículo no Brasil estão ancorados em estudos
de muitos autores. È importante considerar que vários estudos sobre as teorias educacionais
elucidam as tendências curriculares no Brasil e as origens históricas.
Portanto, faremos o recorte no tempo histórico enfocando os acontecimentos que
marcaram significamente as políticas educacionais para a educação superior com as
repercussões no currículo na década de 1990 até final do ano 2001, ano que se encerra o
governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Na década de 1990 a educação superior brasileira adota o discurso da modernização
dando continuidade ao projeto político do ex-presidente Fernando Collor de Melo iniciado em
1990. Nessa perspectiva “modernista” assumida pelo governante caberiam as instituições de
ensino superior à formação de recursos humanos para atender a demanda do mercado cada
vez mais exigente e competitivo. Para alcançar o objetivo de inserir o Brasil no “Primeiro
Mundo” a universidade deveria, entre outras medidas, ampliar o acesso e desenvolver
parcerias entre o poder público e a iniciativa privada.
Assim, o governo Collor marca o início da expansão do ensino privado na educação
superior em meio aos conflitos que esbarraram na estrutura do Estado como no antigo
Conselho Federal da Educação órgão responsável pelo reconhecimento e recredenciamento de
cursos e instituições.
Após a deposição do ex-presidente Collor em outubro de 1992 e com a assunção dos
presidentes Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995–2003) se
aprofunda a privatização da economia brasileira e, logicamente, do ensino superior.
A Tabela 5.1 mostra a evolução do número de instituições de ensino superior por
categoria administrativa de 1997 a 2003. Esses dados obtidos por meio do Censo da Educação
Superior, INEP/2003 colocam o Brasil entre os países mais privatizados do mundo.
108TABELA 5.1 Evolução da matrícula inicial em cursos de graduação do ensino superior por
dependência administrativa (1960 –2003)
Ano Total Matrícula
Pública
Matrícula
Privada
Abs. % Abs. %
1960 95.691 53.624 56,0 42.067 44,0
1980 1.377.286 492.232 35,7 885.054 64,3
1994 1.661.034 690.450 41,6 970.584 58,4
1995 1.759.703 700.540 39,8 1.059.163 60,2
1996 1.868.529 735.427 39,4 1.133.102 60,6
1997 1.945.615 759.182 39,0 1.186.433 61,6
1998 2.125.958 804.729 37,9 1.321.229 62,1
1999 2.369.945 832.022 35,1 1.537.923 64,9
2000 2.694.245 887.026 32,9 1.807.219 67,1
2001 3.030.754 939.225 31,0 2.091.529 69,0
2003 3.887.022 1.135.370 29,2 2.750.652 70,8
Taxa de Cresc.
(1994 –2003)
134,0 %
64,6%
183,4%
Fontes: - (1960 –2001) MEC. Política e resultados 1995 –2002 . O ensino superior: maior e melhor – Brasília, 2002.
- (2003) MEC/INEP- Sinopse Estatística do Ensino Superior 2003
Como podemos comprovar, o crescimento do número de matrículas de graduação do
ensino superior relaciona-se, sobretudo à expansão no setor privado. Entre os anos 1998 e 1999,
por exemplo, o setor privado ofereceu 115.689 novas matrículas, número superior ao total de
matrículas oferecidas pelas instituições federais de ensino superior então existentes no país.
Em 1996 foi sancionada a LDB 9394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional baseada no substitutivo do então Senador da República Darcy Ribeiro a um projeto
que foi discutido amplamente pela sociedade brasileira. Um exemplo de autoritarismo e
aplicação de normas emanadas de organismos internacionais. A nova LDB 9394/1996 senta
as bases do paradigma neoliberal aplicado pelo Governo do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso.
Do mesmo modo, após doze anos de promulgação da Constituição Brasileira que
determinou em seu Artigo 214, a obrigatoriedade do Plano Nacional de Educação, de duração
109plurianual o Congresso Nacional aprova o Plano Nacional de Educação PNE fundado na Lei
10.172/2001, resultante da preponderância das teses oficiais que representam a política
educacional imposta ao Brasil pelo Banco Mundial11
Em razão dessa constatação histórica podemos identificar, simultaneamente como
constataram Cortesão e Stoer em Portugal, os efeitos da globalização no campo do currículo
da educação superior. Exemplificamos essa questão pela adoção do governo aos programas
estruturados em grades curriculares, programas curriculares, livros didáticos, Parâmetros
Curriculares Nacionais para a Educação Básica, Referenciais para Educação Infantil e
Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em nível superior, os quais reproduzem
uma concepção de mundo, de pessoa humana, de sociedade, de educação, a partir da
reprodução sistemática do conhecimento, posto de razão do grupo hegemônico que tem como
horizonte, a ser perseguido indefinidamente, o projeto de uma sociedade globalizada sob o
comando de um mercado cada vez mais cruel e excludente.
Em geral as políticas públicas educacionais deflagradas pelo governo do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso para a educação superior, por intermédio do MEC,
refletem um processo sistemático de homogeneização dos currículos dos cursos superiores.
O Plano Nacional da Educação aprovado com a Lei 10.172/2001 se fundamenta na
política educacional imposta pelo Banco Mundial como podemos verificar pelos seus
objetivos restritivos se compararmos ao Plano nacional de Educação encaminhado ao
Congresso Nacional pela sociedade. O Plano Nacional de Educação aprovado não se refere
com prioridade à questão curricular fato que libera indiretamente a adoção de currículos em
forma de “pacotes” para atender ao mercado.
Em 1991, os ministros de Educação dos países membros do Mercosul se reuniram e
assinaram o “Protocolo de Intenções” que originou o Plano Trienal para a educação com três
programas: “Formação de consciência favorável ao processo de integração”, “Capacitação de
recursos humanos” e o programa “Compatibilização e harmonização dos sistemas
educacionais” todos com o objetivo de estimular a apropriação de atitudes e valores definidos
pelo Mercosul para consolidar uma consciência regional. Este fato que não foi isolado
demonstra a vinculação da educação aos interesses comerciais.
11 Os estudos críticos de vários intelectuais brasileiros sobre o processo histórico que culminou com a provação da Constituição Federal, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e do Plano Nacional da Educação demostram a luta aguerrida da sociedade brasileira, representada pelos seus órgãos de representação tanto das universidades, como das associações de classe , Fóruns entre outras entidades, em razão da proposta democrática de educação para a sociedade brasileira.
110Os programas do Mercosul na área da educação procuraram estimular o incentivo ao
estudo das línguas Português e Espanhol, idiomas oficiais na região, para facilitar as
transferências escolares e os intercâmbios econômicos. As disciplinas História, Geografia,
Ciências e Matemática também deveriam integrar os currículos. Na ocasião, afirmou o ex-
ministro Paulo Renato Sousa: “A educação apresenta-se, nessas circunstâncias, como o
cimento que dará consistência e solidez ao Mercosul”. (SOUSA, 1995).
Nessa direção, a concepção de currículo regulatório, utilitarista, efêmero,
fragmentado define como objetivo transformar as escolas superiores em espaços para a
preparação de trabalhadores para mercados de trabalho instáveis e, portanto, preparados para
mudar de emprego durante o decorrer da vida.
No campo do currículo o fenômeno da globalização é percebido no âmbito das
políticas educacionais que são expressas e implementadas pelo Estado. Os seus efeitos
também podem ser entendidos como impactos que se conjugam, principalmente, em
conseqüência da revolução tecnológica e da globalização do mercado que constituem o elo
que unifica os objetivos de uma minoria poderosa que detêm o poder econômico em um
mundo globalizado.
De fato, se considerarmos os processos de globalização que tem acento no mundo o
Brasil, como revelam Cortesão e Stoer (2002) em relação a Portugal, ainda está construindo o
seu caminho educacional para cumprir as exigências de um Estado- nação como unidade
política, econômica e cultural tanto na América do Sul como no mundo.
A leitura da matriz considera cada um dos quatro processos de globalização do
campo do currículo no Brasil tentando relacionar os processos e as características principais
da globalização.
Assim, serão consideradas as diferentes dimensões de análise para posteriormente
fazermos uma interpretação global da homogeneização do currículo no Brasil.
111Globalização do Campo do Currículo no Brasil
Tipos de GlobalizaçãoDimensões de Análise
Homogeneização dos Currículosna Educação Superior Mercadorização da Educação Educação emancipatória Questões universais de educação
1. Localismos globalizados 1.Localismos globalizados 1.Localismos globalizados 1.Localismos globalizados 2. Globalismos localizados 2.Globalismos localizados 3.Cosmopolitismo 2. Globalismos localizados
3.Cosmopolitismo4.Patrimõnio Comum da Humanidade
Áreas de controvérsias
Homogeinização dos currículossuperiores; Diretrizes CurricularesNacionais para os cursos degraduação; Educação à Distância;Exame Nacional de Cursos -Provão(Implantado no Governo FHC);Sistema Nacional de Avaliação daEducação Suiperior - SINAES(Implantado em 2004 - Lei 10.861;Cursos de Graduação com dois doisanos de duração, entre outros cursosofertados em pacotes. Exemplos:MBA, Cursos de universidadesestrangeiras, etc.
Expansão da Educação Superiorprivada em todo o país;Ampliação da oferta na redeprivada de cursos superiores degraduação e pós-graduação comcarga horária reduzida e emfuncionamento nos finais desemana; Proliferação decurrículos fragmentados,baseados na atividade prática,sem sólida fundamentação teórico-prática e de carater imediatista.
Construção de projetos político-pedagógicos para os cursos degradução com base no ensino, napesquisa e na extensão; Revisão dasDiretrizes Currículares Nacionaispara os Cursos deGraduação;Experiências com aformação de professores com basenuma base curricular comum aexemplo da experiência da UFPB.Revisão do Sistema Nacional deAvaliação da Educação Superior;Revisão dos marcos regulatórios daeducação nacional (Leis, Resoluçõesque definem as DiretrizesCurrículares Nacionais em âmbitonacional).Definição de uma basenacional para os cursos degraduação, em especial, para oscursos de formação de professores.
Educação e Direitos Humanos;Educação Ambiental;Conservação daAmazônia . Luta pela Saúde Pública;Luta pela preservação da diversidadecultural; Educação para a Paz noMundo; Universalização da EducaçãoBásica; Ampliação do acesso àEducação Superior Pública.
Agências transnacionais
Banco Mundial; FMI; Unesco;Mercosul; OrganismosGovernamentais (Ministérios daEducação e dePlanejamento);Conselho Nacional deEducação; Instituições de educaçãosuperior públicas e privadas.
Banco Mundial; FMI; Unesco;Mercosul; OrganismosGovernamentais (Ministérios daEducação e dePlanejamento);Conselho Nacionalde Educação; Instituições deeducação superior públicas eprivadas.
ONGs;Forum Social Mundial;ForumMundial de Educação, Sindicatos,Comissões e Associações Nacioanis eRegionais de representação dosprofissionais da educação e dasociedade civil. Exemplos: ANDES,CNTE, ANFOPE, FORUNDIR, ANPED, etc); Organismos Governamentais:(Ministério da Educação e doPlanejamento); Instituições deEducação superior públicas e privadas.
Resultados potenciaisCurrículos homogeneizados ehegemônicos em função doMercado; Educação como negócio.
Privatização da educaçãosuperior; Currículos aligeiradossem base de pesquisa;Sucateamento dasUniversidades PúblicasFederais; Homogeneização doscurrículos dos cursossuperiores em função doMercado.
Currículo emancipatório Currículo emancipatório
Modos de produção da globalização e os efeitos nocampo do currículo
1125.2 A homogeneização dos currículos
A partir de 1996 quando se inicia a discussão no âmbito da educação superior das
Diretrizes Curriculares Nacionais e, ainda, as políticas públicas educacionais deflagradas pelo
poder central para e educação superior por intermédio do MEC assistimos o gradual e
sistemático processo de homogeneização dos currículos dos cursos superiores.
Nessa discussão sobre globalização, homogeneização e currículo na educação
superior focalizamos a tendência homogeneizadora do currículo considerando o papel que as
instituições privadas vêm desempenhando no país a partir da sua expansão com açodamento
em busca do lucro fácil.
As evidências da homogeneização dos currículos são sutis porque não são assumidas
nos documentos legais e muito menos nos projetos político-pedagógicos dos cursos.
Percebemos como a homogeneização invade os espaços curriculares em meio ao confronto
entre as concepções e visões diferentes de homem, de sociedade, de educação, de formação
humana e de currículo. Essas evidências são notadas no momento das decisões curriculares
sobre o perfil do curso, objeto de estudo, competências, habilidades do formando, matriz
curricular (componentes curriculares, carga horária, tempo para integralização curricular),
sistemática de avaliação, entre outros aspectos do currículo envolvidos nos projetos político-
pedagógicos.
A forma contundente da tendência homogeneizadora dos currículos é constatada
quando analisamos as finalidades e identidades dos cursos de graduação explicitadas nas suas
Diretrizes Curriculares Nacionais. Os currículos se vinculam às exigências do mercado; eles
são direcionados para o atendimento imediato às exigências de uma economia globalizada. As
diretrizes uniformizam os currículos ainda que de maneira sutil porque não explicitam esse
objetivo.
Na visão homogeneizadora não é preciso construir o conhecimento; é preciso
dominar a técnica, supostamente neutra, que já foi produzida; conseqüentemente, não é
necessário inserir no curso a pesquisa como um dos seus eixos político-pedagógicos que
proporcionaria ao futuro profissional o exercício da reflexão, da crítica e da busca pelo
domínio do saber científico em razão da pessoa humana.
113A globalização gera conflitos, tensões e desafios quando constatamos os seus efeitos
e a sua vinculação a um mercado sem fronteiras, tanto no sentido econômico quanto no
sentido cultural que impõe trabalhadores aliados e engajados a esse mercado global.
As análises demonstram que o sistema educacional brasileiro na educação superior
adota como eixo da política de expansão a reprodução do Estado capitalista o qual continua a
alterar a relação entre a educação e o Estado em razão do ajuste estrutural realizado pelo país
em atendimento a exigência das novas relações globais que ultrapassam os limites territoriais
e culturais e afetam a constituição e a preservação das identidades locais e nacionais.
Afirma Candau com a qual estamos de acordo: “Em um mundo marcado pela fluidez, quer no sentido econômico, quer no sentido
cultural, onde tempo e espaço são redimensionados pela divulgação crescente dos
recursos tecnológicos, configura-se um novo cenário cujo pano de fundo pode ser
representado por um emaranhado de fios urdidos em uma teia que tende a se tornar
cada vez mais onipresente”. (2002, p. 13).
A homogeneização do currículo reflete uma tendência caracterizada pelas questões
analisadas a seguir.
O Fórum de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras ao analisar os
impactos socioeconômicos e culturais no âmbito da educação superior, notadamente no
ensino de graduação, afirma que a globalização na contemporaneidade gera mudanças “[...]
que se tornam visíveis na vida cotidiana do cidadão” e da própria universidade. (FORgrad,
1999, p.3).
A globalização ao priorizar o aspecto econômico contribui para o estreitamento da
esfera pública e coloca em crise o Estado que, ao ser privatizado põe em evidência “[...] um
novo ‘modelo de cidadania’ que não se nutre mais dos valores coletivos e, consequentemente,
constata-se a emergência de uma nova ética, na qual se valoriza, não mais o humano, mas o
que atende aos interesses do mundo do trabalho” (FORgrad, 1999, p. 4).
Em decorrência do avanço do fenômeno da globalização e da exigência de uma outra
cidadania que tem o seu destino direcionado para tornar-se ‘produto comercial de circulação’
vinculado às exigências do mercado o conhecimento é produzido de forma concentrada e nos
países que formam o Grupo dos Sete – G7 que são os países financiadores das políticas
públicas em razão dos seus interesses”.(FORgrad, 1999, p. 4).
Essa visão tem a ver com a forma como se dá a transmissão do saber cultural através
da escola, seja Básica ou Superior. Nesse sentido, envolve o papel dos docentes e a sua
114autoridade enquanto dirigentes do processo de transmissão, assimilação e produção do
conhecimento.
No processo de definição das Diretrizes curriculares constatamos como os conselhos
profissionais das diversas profissões estão presentes, tanto quanto o governo, impondo ao
Conselho Nacional de Educação a indicação de conselheiros, participando das audiências
públicas direcionadas para a definição do perfil profissional, da definição de carga horária, do
tempo curricular dos cursos, competências e habilidades profissionais. Esta constatação é
observável também pela imposição dos conselhos profissionais junto aos seus associados que
agem como multiplicadores dos interesses e reivindicações sempre direcionados para a
reserva do mercado de trabalho profissional de cada categoria em particular.
Porquanto, os argumentos que justificam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Superior consideram principalmente as demandas de mercado e os interesses
corporativos pela defesa do campo de trabalho.
No campo do currículo o fenômeno da globalização é percebido no âmbito das
políticas educacionais que são expressas e implementadas pelo Estado. Os seus efeitos
também podem ser entendidos como impactos que se conjugam, principalmente, em
conseqüência da revolução tecnológica e da globalização do mercado que constituem o elo
que unifica os objetivos de uma minoria poderosa que detêm o poder econômico.
As Diretrizes Curriculares Nacionais implementadas pelo governo brasileiro aliado
aos grandes mentores internacionais e agências transnacionais representadas pelo Fundo
Monetário Internacional, pelo Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento –
BIRD/Banco Mundial entre outros agentes financiadores, atingiram as políticas curriculares
no Brasil e a educação superior também.
As repercussões dos efeitos das políticas educacionais financiadas pelo Banco
Mundial privilegiam a formação de trabalhadores preparados para produzir mercadorias e
serviços compatíveis com os interesses dos consumidores. Acontece que o processo é
paradoxal, pois a globalização enquanto estratégia para homogeneizar a cultura, por meio da
tecnologia, do poder financeiro e cultural e das novas tecnologias da informação e
comunicação, tende a aumentar a concentração da produção e do poder econômico dos países
ricos marginalizando grande parcela da população pobre do mundo.
As idéias referentes às Diretrizes Curriculares Nacionais tendo como base os debates
e estudos vinculados à educação superior e ainda, as políticas públicas educacionais
115deflagradas pelo poder central, principalmente por intermédio do MEC, centralizaram as
discussões no âmbito dos cursos superiores das Universidades.
As Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovadas pelo CNE e homologadas pelo
Ministro da Educação constituem a base legal para normalizar os projetos de todos os cursos,
inclusive os cursos profissionalizantes de nível médio.
Entre outros efeitos a globalização ao priorizar o aspecto econômico contribui para o
estreitamento da esfera pública e coloca em crise o Estado que, ao ser privatizado, põe em
evidência um novo ‘modelo de cidadania’ que não se nutre mais dos valores coletivos.
Consequentemente constatamos a emergência de uma nova ética, na qual se valoriza, não
mais o humano, mas o que atende aos interesses do mundo do trabalho. (FORgrad, 1999, p.
4).
Em decorrência do avanço do fenômeno da globalização e da exigência de uma outra
cidadania que tem o seu destino direcionado para tornar-se ‘produto comercial de circulação’
vinculado às exigências do mercado, o conhecimento é produzido de forma concentrada e nos
países que formam o Grupo dos Sete – G7 que são os países financiadores das políticas
públicas em razão dos seus interesses”. (FORgrad, 1999, p. 4).
5.3 Mercadorização da educação
O desenvolvimento do mercado educacional no mundo tem repercutido no Brasil em
decorrência dos efeitos da globalização os quais incidem na educação e no currículo.
O Censo da Educação Superior 2003 destaca ainda que World Education Indicators
classifica o sistema de educação superior brasileiro entre os mais privatizados do mundo
como mostra Tabela 5.2.
116TABELA 5.2 Evolução do Número de Instituições por Categoria Administrativa - Brasil
1997-2003
Ano Pública % Privada % Total % 1997 211 - 689 - 900 - 1998 209 -0,9 764 10,9 973 8,1 1999 192 -8,1 905 18,5 1.097 12,7 2000 176 -8,3 1.004 10,9 1.180 7,6 2001 183 4,0 1.208 20,3 1.391 17,9 2002 195 6,6 1.442 19,4 1.637 17,7 2003 207 6,2 1.652 14,6 1.859 13,6
Fonte:Deaes/INEP/MEC
Essa expansão da educação superior com a predominância do setor privado vem
favorecendo o crescimento do setor como forma de atender rapidamente às exigências de um
mercado que exige uma formação profissional especializada, competitiva, técnica e
facilmente adaptável às mudanças e exigências do próprio mercado globalizado que não
assume a defesa da cultura nacional, mas os interesses econômicos gerando processos de
homogeneização cultural.
Por exemplo, no Nordeste até meados da década de 90 quase inexistiam instituições
privadas de educação superior. A partir da política de expansão adotada pelo governo
brasileiro, principalmente no último mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a
rede privada ampliou para essa região a oferta de cursos como mercadoria vendável no
mercado como qualquer produto lucrativo.
As figuras dos anúncios abaixo comprovam a expansão da rede privada.
117
Figura 1 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro dos Estados – Arquivo da pesquisa
Figura 2 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro do Bessa - Arquivo da pesquisa
118
Figura 3 Anúncio na cidade de João Pessoa – Bairro dos Estados - Arquivo da pesquisa
Figura 4 Anúncio na BR – 232 – Recife – Caruaru/PE - Arquivo da pesquisa
119
Figura 5 Anúncio na BR – 232 – Recife – Caruaru/PE - Arquivo da pesquisa
Como podemos comprovar nesses anúncios o conhecimento é mercadoria e a
educação superior um negócio. Esses são efeitos da expansão do mercado globalizado que
passa a exigir políticas curriculares em resposta as suas demandas e, consequentemente, um
processo de avaliação curricular acompanhado de reformas nas políticas curriculares dos
cursos em todos os níveis de escolaridade com repercussões que vão desde as concepções de
currículo ao plano de aula de um professor. Para ilustrar reproduzimos a propaganda de uma
dessas instituições: “Ganhe tempo para crescer.
Se o seu dia tem menos de 24 horas, então a sua faculdade só deve ter dois anos de
duração. A UNIUOL sabe que você precisa de tempo e de conhecimento para
crescer, por isso desenvolveu cursos com dois anos de duração, mais rápidos e
voltados para a prática. O Projeto UNIUOL foi idealizado por profissionais
qualificados, com o objetivo de formar pessoas capazes para atuar em qualquer
empresa ou organização, nas áreas de: Gestão de Varejo, Gestão Financeira e
Marketing de vendas.
Prática! Esta é a palavra que está presente nos métodos de ensino dos
cursos superiores oferecidos pela UNIUOL”. (Folder distribuído na cidade de João
Pessoa, 2006).
120A Educação Superior, nessa perspectiva mercadológica em que o conhecimento é
visto como mercadoria se anuncia a oferta de cursos superiores em “apenas dois anos” e com
preços que variam dependendo da demanda e do prestígio social e econômico do curso, como
podemos constatar nas figuras 1 e 2.
Nessa concepção, o currículo é concebido para reproduzir as exigências do mercado
que tem pressa para “formar” o trabalhador polivalente e alienado politicamente configurando
um projeto de educação e currículo caracterizados como regulação social.
Nesse contexto, a educação superior é massificada em razão da imposição do
mercado. Surgem faculdades empresariais e cursos aligeirados, rápidos e ofertados nos finais
de semana e que privilegiam nos currículos os imperativos da produção flexível, em nome da
globalização. Esses cursos exigem o trabalhador competitivo para reforçar o crescimento de
uma economia global que enfraquece o Estado ao abrir o caminho para uma mercodorização
cada vez maior da educação.
Ratificamos a crítica sobre esse assunto feita por Marrow e Torres: “[...] Enquanto as escolas ou (antes delas) os tutores agiam in loco parentis
preparando os aprendizes para uma variedade relativamente previsível de
oportunidades e desafios futuros, as escolas de hoje confrontam uma série de
expectativas instantâneas conflitantes e mutáveis, dirigidas para imprevisíveis
caminhos alternativos de desenvolvimento e para pontos de referência e
identificação em constante alteração”. (2004, p.24).
Estão inseridos nessa concepção do currículo regulatório os fundamentos da “Razão
Indolente” que impõe a adoção de conteúdos e procedimentos pedagógicos que vêm ratificar
o projeto de sociedade defendido pelo poder econômico. Essa concepção exige trabalhadores
com o domínio de habilidades compatíveis com o modelo de sociedade que não admite a
conflitualidade inerente ao processo de construção do conhecimento porque nega as
capacidades do ser humano de indignar-se, de criar, de se auto-determinar, de desenvolver a
criticidade pela capacidade de refletir e fazer história.
A globalização no seu aspecto econômico incide diretamente na oferta de empregos
em razão de optar pelo interesse do mercado e não pelo engajamento dos trabalhadores nos
espaços de trabalho que vêm sendo usurpados em nome da eficiência e lucratividade cada vez
maior pelo uso das novas tecnologias da informação e comunicação colocadas a serviço do
mercado e não da pessoa humana.
121Por esta razão, entre outras, consideramos algumas teses incontestáveis: as políticas
educacionais públicas, no caso brasileiro, sob a égide das agências transnacionais, inclusive o
Banco Mundial, atuaram deliberadamente na definição das Diretrizes Curriculares dos cursos
superiores apesar da resistência permanente das entidades representativas dos educadores.
Os Estados-nação têm desempenhado papel ambíguo diante da luta política frente
aos processos de homogeneização e diferenciação da cultura porque ora assumem
internamente a autenticidade das culturas nacionais ora promovem a homogeneização e
uniformidade ao realizarem o esmagamento da rica diversidade cultural existentes em todas
culturas locais/nacionais, por meio do “[...] poder da polícia, do direito, do sistema
educacional e do meios de comunicação social, e na maior parte das vezes por todos eles em
conjunto”. (SANTOS, 2002a, p. 47-48).
Um outro ponto preocupante poderá ter repercussões nefastas e comprometer
totalmente o sistema educacional brasileiro, onde já prevalece a visão privatista e
globalizante: a ênfase das políticas públicas para a educação superior conferida a Educação à
Distância – EaD. Ao abrir essa possibilidade para todos os cursos superiores, da graduação à
pós-graduação stricto sensu, sejam cursos de mestrado e doutorado, são conferidos os mesmos
títulos de mestre e doutor equivalentes aos cursos presenciais bastando à instituição ser
credenciada pelo MEC. Especialmente preocupantes são os possíveis reflexos das ações do
governo em EaD para a formação de docentes.
A explosão dos cursos de MBA no Brasil ofertados entre 1987 e 2004 tem repercutido
na pós-graduação com um crescimento de 136% no País; saltou de 815 cursos em 1987 para
os atuais 1 925 e seus 122 mil alunos. Em conseqüência, houve a mudança de perfil dos
candidatos locais que diante da oferta deixaram de buscar cursos no exterior e passaram a
ficar no País disputando as vagas em escolas como o IBMEC, Fundação Getúlio Vargas e
Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais.
Essa mudança de rota favoreceu as universidades estrangeiras as quais passaram a
ofertar os cursos aqui mesmo no Brasil a preços competitivos. Um curso MBA numa
universidade estrangeira pode custar US$100mil e as universidades não abrem mão dessa
receita. A última edição do evento The MBA realizado no Brasil trouxe representantes de
escolas como Oxford na Inglaterra e Berkeley nos Estados Unidos. Algumas universidades
estrangeiras oferecem pacotes mais baratos para os brasileiros e alunos de origem latina.
Exemplo: a HULT International Business School apresenta um MBA ao preço de US$14 mil.
122De maneira geral, os profissionais que saem da América do Sul e vêm estudar no Brasil
adotam o país como terra natal. (Isto É Dinheiro, nov.2006).
Portanto, a globalização pode ser vista como estratégia para homogeneizar a cultura,
por meio da tecnologia, do poder financeiro e cultural e das novas tecnologias da informação
e comunicação. Tende a aumentar a concentração da produção e do poder econômico dos
países ricos marginalizando grande parcela da população pobre do mundo. Desse modo,
podemos inferir que a concepção sobre educação superior dos órgãos financiadores é pautada
pelo modelo de desenvolvimento econômico e tem como eixo central o papel que a educação
deve desempenhar para atender ao mercado.
Assim, a educação passa a ser um negócio.
5.4 Educação cosmopolita
A globalização favorece, contraditoriamente, a ampliação das lutas pela resistência a
opressão, a exclusão e a discriminação das pessoas em todas as partes do mundo. Essa
resistência anuncia que a preservação e a construção permanentes da diversidade cultural é
possível e que a educação e o currículo exercem um papel importante nesse processo de
construção humana, em razão diversidade cultural.
Como expressão da resistência a esta globalização o Fórum Social Mundial –FSM,
na sua dimensão utópica, proclama a existência de alternativas à globalização neoliberal.
O Fórum Social Mundial que surgiu após a queda do Muro de Berlim e da União
Soviética neutraliza a impressão generalizada que o capitalismo triunfara sobre o socialismo
tornando-se irresistível à medida que garantiria à humanidade um futuro radiante. A utopia do
Fórum Social Mundial é radicalmente democrática. Surgiu dos movimentos de resistência ao
propor uma outra forma de ação política onde a diversidade é respeitada e valorizada como
uma força. Santos reafirma o que dizem os participantes do Fórum: ‘Se um outro mundo é
possível, será um mundo onde caibam muitos mundos’ (2003, p. 12).
A educação cosmopolita acompanha a luta da sociedade brasileira como parte da
construção democrática que aspira a educação como direito fundamental, inalienável e como
dever do Estado conforme assegura a Constituição Brasileira e a Lei de Diretrizes e Bases da
123Educação Nacional. Todos devem ter direito à educação com qualidade social comprometida
com os anseios da sociedade brasileira com relação ao atendimento a todos desde a educação
básica à educação superior.
A perspectiva cosmopolita na concepção da emancipação humana supõe a produção
de uma cultura educativa que oportunize as pessoas a se expressarem, a terem voz e
representação de maneira que possam participar e influenciar nas decisões relativas ao projeto
político-social, tanto no nível local, nacional ou internacional. Essa visão preserva o diálogo
de saberes, a cultura local e nacional com abertura para a comunicação com outras culturas,
diferentemente da concepção liberal a qual baseia a educação ao enquadramento à cultura
mundial comum que nega as culturas locais o direito à preservação da identidade e autonomia
de um povo.
Afirmam Stoer e Cortesão com os quais compartilhamos a idéia de cospolitismo: “A educação cosmopolita desenvolve-se em larga medida através de
identidades transnacionais que se constroem a nível de ciências, arte e política. O
que caracteriza essas identidades transnacionais é o seu bilingüismo cultural, isto é, o
seu forte domínio de mais do que uma cultura. A produção de uma cultura educativa
cosmopolita relaciona-se com o desenvolvimento de um modelo de organização
política no qual os cidadãos de todo o mundo não só têm voz e representação como
dispõem da capacidade de influenciar o desenrolar dos assuntos internacionais.
Trata-se de uma cultura forjada na sua capacidade de ‘atravessar fronteiras’, de
romper (como sustenta Said, citado por Santos, 1995:495)) com barreiras do
pensamento e da experiência (sobretudo nacionais). (2002a, p. 405).
Entretanto, nos opomos a idéia de uma “cultura forjada” pelo significado do termo
“forjar” como sinônimo de falsificar. O forjador é um enganador e não é essa a proposta que
acreditamos como uma alternativa emancipatória, considerando que a educação cosmopolita
ao se constitui como uma alternativa à globalização neoliberal rompe com os princípios dessa
globalização que engana, omite, exclui ao adotar uma retórica enganadora.
A partir dessa concepção de educação cosmopolita o currículo na educação superior
assume o espaço possível para a realização da educação emancipatória ao apontar um novo
horizonte: o currículo é construção do conhecimento; adota a visão cosmopolita numa visão
de totalidade do saber universal, não excludente, partindo das experiências e culturas dos
alunos; é conceituado como expressão de um projeto político-pedagógico em permanente
construção coletiva, fundamentado e contextualizado na realidade socioeconômica, histórico
cultural.
124A cultura educativa cosmopolita é intercultural, baseada em comunicação entre
culturas de naturezas diferentes. No Brasil, a riqueza cultural de um país continental deve
privilegiar, no seu projeto educacional e em todos os níveis de escolaridade, todas as
expressões culturais identificadas e não homogeneizadas por uma única língua (ainda que
com diferentes sotaques e expressões regionais), mas com expressões culturais diversas que
identificam o brasileiro do Norte, Nordeste, Sul, Leste e Centro-Oeste do país.
Nesse sentido, o currículo não será homogeneizado e sim guardião da diversidade
cultural, da identidade, da autonomia e da formação humana voltada sempre para o ser
humano livre e construtor do conhecimento.
Nessa mesma perspectiva, Cortesão e Stoer anunciam a construção em Portugal da
“Cidade Educativa”. (2002a, p.406).
No Brasil, temos várias referências que exemplificam e se aproximam da educação
emancipatória como os movimentos, grupos, organizações: a luta pela conservação do meio
ambiente, com especial destaque para a preservação da Amazônia; o Movimento Negro, o
Movimento pela preservação das comunidades indígenas; movimento e grupos contra a
violência das mulheres, o movimento pelos direitos humanos, movimento pela paz mundial,
Movimento dos Sem Terra – MST, e todos os movimentos contrários à discriminação e
exclusões sociais.
É importante assinalar a os movimentos, experiências, estudos e pesquisas em prol da
educação popular, principalmente os estudos e as experiências do educador nordestino Paulo
Freire com a sua Pedagogia do Oprimido, da Esperança, da Indignação.
Destacamos que esses grupos apresentam características transnacionais porque já
conseguiram notoriedade frente à comunidade internacional, a exemplo da repercussão que
causam nos Fóruns Internacionais.
Concluindo esse capítulo queremos enfatizar que analisamos a matriz, desde a fase do
seu preenchimento parcial constante no capítulo três ao seu preenchimento total nesse
capítulo, acreditando na possibilidade de apresentar um panorama da homogeneização do
currículo da educação no Brasil para no capítulo seis apresentarmos a síntese com o objetivo
de ampliar o debate acadêmico sobre o fenômeno estudado.
1256. CONSIDERAÇÕES FINAIS: contribuições à produção de uma síntese
6.1 Resultados potenciais dos efeitos da globalização no currículo da educação superior
A globalização atua direta e indiretamente no campo do currículo provocando efeitos
potenciais que se inter-relacionam dialeticamente: currículos homogeneizados em função do
mercado e currículos emancipatórios resultantes da luta pela preservação da diversidade
cultural em razão da emancipação humana.
As discussões sobre globalização, cosmopolitismo, emancipação, educação superior
e currículo requerem uma maior compreensão dos novos cenários mundiais que se
caracterizam pelos avanços científicos, tecnológicos como conquistas da humanidade e como
cenários geradores da desumanização em escala global.
Nesses cenários ainda prevalece à sociedade excludente, com uma população pobre,
excluída, marginalizada, sofrida e com poucas expectativas de uma vida digna que lhe confira
saúde, trabalho, moradia, segurança, alimentação, educação, lazer, alegria, felicidade, paz...
O mundo, a América Latina, o Brasil, o Nordeste são paradoxais. Convivem com
pobreza e riqueza, saúde e doença, segurança e insegurança, violência e paz, educação e
analfabetismo. Direitos humanos são negados, usurpados e vedados à maioria das pessoas e
apropriados, quase que exclusivamente, pelos detentores do poder social, político e
econômico do mundo.
Nesse contexto paradoxal, a educação se apresenta como espaço de conflitos e de
jogo de poder entre concepções diferentes que contribuem tanto para a homogeneização da
cultura como para a preservação da sua diversidade e, consequentemente, também contribui
para a homogeneização e diversificação do currículo.
Porquanto, entendemos o currículo caracterizado como complexo, contraditório e
repleto de relações de poder considerando, entre outros motivos, que as instituições
educativas fazem parte de um contexto histórico-sócio-político-cultural e econômico. Sendo
assim, o currículo se caracteriza como espaço de reprodução ao tempo em que,
contraditoriamente, se apresenta também como possibilidade de resistência à reprodução.
126O currículo se nutre do conflito e da contradição que impulsionam um movimento
permanente e infinito de construção e reprodução do conhecimento e se apresenta como um
campo para transmissão e produção do saber e da cultura, se configura como uma rede de
relações que reproduz e produzem o conhecimento em um campo determinado de conflitos,
de posições antagônicas, convergentes e aproximadas, ao envolver múltiplas concepções
sobre o mundo, a vida, a pessoa humana, a sociedade, a cultura e a educação.
A homogeneização do currículo na educação superior, analisada no capítulo anterior,
coexiste dialeticamente com a perspectiva curricular em razão da diversidade cultural como
forma de preservação da identidade, da autonomia e dos propósitos de uma educação
profissional ética e comprometida com a emancipação humana. Uma alternativa possível vem
sendo construída no âmbito dos processos de construção do currículo como expressão de um
projeto político-pedagógico em oposição à regulação do currículo homogeneizado que
responde a competitividade do mercado.
O currículo emancipatório é movimento permanente e envolve múltiplas concepções
sobre o mundo, a vida, a pessoa humana, a sociedade, a cultura e a educação, num
“caleidoscópio” de interesses e relações de poder que se expressam nas decisões curriculares,
sejam no âmbito das políticas públicas, dos marcos regulatórios como: leis, pareceres,
resoluções, planos, projetos; sejam nos conceitos, conteúdos, metodologias definidos pela
administração central dos sistemas educacionais, conselhos profissionais, comunidade
científica, educadores e educandos, famílias, instituições e movimentos sociais.
O currículo emancipatório compreende as relações de poder conflitantes que
contraditoriamente, mantêm as estruturas dominantes, ao tempo em que distribui e constrói o
conhecimento na perspectiva da sua superação. Nesse sentido, o currículo assume uma
proposta educacional problematizadora da realidade e trabalha para desmistificar formas
autoritárias de gestão presentes no cotidiano da prática acadêmica, nas atividades de Ensino,
de Pesquisa e Extensão.
Nessa visão, o currículo emancipatório se expressa no projeto político-pedagógico
institucional e no de cada curso em particular. Esses projetos congregam a cultura, a história,
as necessidades pessoais, as aspirações e necessidades das instituições e das pessoas para que
possam desempenhar diferentes papéis na sociedade. O currículo, nessa concepção, se opõe
aos processos de homogeneização ao socializar conhecimentos e considerar a cultura por
127meio do diálogo de saberes pautado no exercício democrático que deve orientar o processo de
construção do conhecimento.
O currículo assim concebido é espaço de possibilidades para formar a pessoa humana
crítica, preparada intelectual e tecnicamente para construir formas de resistência e
intervenção contra a exclusão social. Procura propiciar aos seus alunos a compreensão crítica
do mundo através dos processos de transmissão, construção e reconstrução do conhecimento.
Para isso, tenta superar o autoritarismo impregnado no currículo e a fragmentação do
conhecimento para favorecer uma formação profissional com qualidade social e preparo
técnico.
Nessa concepção, referendemos o conhecimento que represente a cultura do povo não
como uma outra cultura ao fundo ou ao lado da cultura dominante, mas como uma cultura
que se consolida por dentro da cultura hegemônica ainda que para resistir a ela. (CHAUI,
1994).
O currículo pode favorecer a construção e a reconstrução do saber e da cultura e
favorecer a luta em razão das mudanças necessárias aos interesses da maioria da população.
Nessa perspectiva, é condição tornar o currículo espaço para construção do conhecimento
enquanto emancipação humana compatível com vocação ontológica do ser humano: fazer-se a
si mesmo em suas relações com a sociedade, com a natureza com os outros seres humanos.
O currículo representa um dos espaços de luta no campo educacional pela rede de
relações que reproduz e produz o conhecimento. Podemos caracterizá-lo como um campo de
luta determinado numa amálgama de conflitos, de posições antagônicas, convergentes e
aproximadas.
O currículo pode seguir o caminho oposto à homogeneização se ampliar o espaço
político-pedagógico para “traduzir” os conceitos que orientam o currículo majoritário,
centrado nos postulados de uma globalização comprometida com o mercado competitivo.
Numa referência a Santos, o currículo deve expandir o presente e contrair o futuro numa fase
de transição entre a “Razão Indolente” e a “Razão Cosmopolita” que significará valorizar o
espaço da experiência social.
Expandir o presente significa adotar os fundamentos da “sociologia das ausências”,
ao tempo que contrair o futuro significa adotar os fundamentos da “sociologia das
emergências”.
128O currículo se expressa nas decisões educacionais, tanto no âmbito das políticas
públicas, nos marcos regulatórios definidos pelas agências financiadoras transnacionais, pela
administração central dos sistemas educacionais, pelos conselhos profissionais, pela
comunidade científica, pelos educadores, educandos, famílias, instituições e movimentos
sociais.
O currículo não está imune às pressões da sociedade e do mercado de trabalho.
Considerando essas pressões é afetado pelas demandas sociais e pelo mercado globalizado. O
currículo expressa a cultura e tem uma íntima relação com os processos mais amplos de
educação. Nesse sentido, devemos reconhecer que toda educação é relação dialética que
envolve sociedade, cultura, educação e currículo.
O currículo pode representar a ruptura com as formas e conteúdos que dificultem a
produção do conhecimento necessário à emancipação humana à medida que favorece a
aquisição e construção de um conhecimento como instrumento de luta para essa emancipação;
o caráter contraditório que lhe é peculiar revela o currículo a um só tempo enquanto
reprodução e espaço de mudança pela resistência construída a favor do que ainda não existe.
Ou seja: centrada na “sociologia das ausências” que, tem como objetivo “transformar objetos
impossíveis em possíveis, objetos ausentes em presentes”. (SANTOS, 2005, p. 21).
O currículo se caracteriza enquanto espaço de práticas e experiências que resistem à
destruição, a ocultação. Ao invés da não-existência a existência, da desqualificação a
qualificação, da invisibilidade a visibilidade, da homogeneização a diversidade, o respeito às
diferenças sem deixar de demarcar os princípios gerais que unificam as lutas pela
emancipação humana. Esse postulado orienta o entendimento da “Razão Indolente” que
respalda a globalização que é incapaz de “[...] captar a riqueza e a diversidade da experiência
social do mundo, e, sobretudo, que eles discriminam as práticas de resistência e de produção
de alternativas contra-hegemônicas”. (SANTOS, 2005, p.20-21).
Essa racionalidade e a eficiência hegemônicas provocam a contração do mundo ao
ocultar as práticas, os agentes e os saberes que não são racionais ou eficazes na concepção
dessa racionalidade. A contração do mundo expressa na ocultação e no descrédito das
práticas, dos agentes e dos saberes representam o desperdício da experiência social.
(SANTOS, 2005, p. 21).
129No nosso entendimento esse desperdício no campo do currículo é resultado de um
currículo que reproduz o conhecimento sem considerar a cultura, o saber popular, as
experiências, as expectativas e as necessidades que têm raízes nas práticas da resistência.
Os estudos investigativos sobre globalização, com ênfase nas questões específicas do
currículo, devem procurar identificar as concepções curriculares que se contrapõem ao
processo de construção do “currículo grade” que é ainda hoje imposto pelo Estado aos
educadores.
O “currículo grade” se refere ao currículo fragmentado, tradicional, eminentemente
disciplinar, centrado nas polarizações entre os conceitos e princípios teórico-científicos, entre
o particular e o universal, entre a cultura local e a cultura global, entre o saber do professor e o
saber do aluno e, principalmente, entre os processos de homogeneização e diversidade.
Ao contrário, o currículo concebido como projeto político pedagógico é construído
pela coletividade a partir dos interesses e perspectivas da sociedade representando a contra-
hegemonia à tendência homogeneizadora da educação nacional em todos os níveis.
Nessa visão, o saber fruto da produção humana é incorporado e representado também
pelo senso comum de caráter transclassista que representa, sobremaneira, o saber produzido
em função dos ideais, perspectivas, necessidades e da resistência à dominação.
Nessa perspectiva, devemos considerar a íntima relação entre os saberes do senso
comum e científico e as diferenças epistemológicas que os diferenciam como interesses,
aspirações e visão de mundo, formas de resistência à dominação e a homogeneização da
cultura. As mais diversas expressões culturais: o trabalho, o cordel, a música, o teatro, a
literatura, a gastronomia, os rituais religiosos, a linguagem, os valores, a sexualidade, entre
outras expressões da vida humana são ameaçados pela globalização hegemônica quando
transformados em localismos globalizados e globalismos localizados.
O diálogo de saberes como forma de superação da homogeneização cultural se dá na
cotidianidade, na experiência e na práxis das pessoas. Eles se reproduzem de diferentes modos
nas relações sociais e, na educação por meio do currículo.
Assim, torna-se indispensável considerar a pessoa humana em seu contexto político-
sócio-cultural. Mais do que nunca, o momento histórico exige o enfrentamento dos problemas
sociais da maioria da população e, para tanto, faz-se necessário à transmissão, reconstrução e
construção dos saberes produzidos pela humanidade nas relações sociais e de trabalho como
130forma de transformar as relações de dominação, consolidando outras relações sociais que
priorizem, antes de tudo, a pessoa humana independentemente da sua condição de classe.
Nessa concepção, o educador assume uma nova postura. Abomina posições
aparentemente neutras e coloca com eixo do seu trabalho a realização de ações coletivas que
avancem na produção e sistematização dos saberes. No sentido mais amplo, o saber representa
o conhecimento construído pela humanidade nas relações sociais e no trabalho em razão da
emancipação humana, ao contrário do conhecimento em razão da reprodução das
desigualdades e dos privilégios.
O currículo se justifica pelo compromisso com um projeto político-pedagógico
conseqüente em razão dos grandes problemas sócio-político-econômico-culturais que
continuam persistindo e gerando mais exclusão e barbárie. Portanto, é um currículo solidário
porque assume uma direção contra a apropriação do conhecimento apenas por uma minoria
privilegiada que representa o poder dominante; se constitui como um currículo emancipatório
porque concebe a pessoa humana desvinculada das amarras da injustiça social na perspectiva
da superação possível da falta de liberdade para aprender e construir o conhecimento para
construir um mundo melhor e mais justo.
Esses pressupostos filosóficos podem redirecionar o currículo e as atividades teórico-
práticas; as metodologias são participativas; o sistema de avaliação é qualitativo e não
punitivo; o relacionamento e as relações pessoais e profissionais entre alunos e docentes são
democráticas; os conteúdos são redefinidos; o conhecimento é construído e reconstruído para
ser socializado em razão de princípios epistemológicos curriculares em razão da emancipação
humana.
O currículo como espaço para a realização da educação emancipatória inclui os
saberes e permite o diálogo para produzir outros saberes; assume os conflitos, as diferenças e
semelhanças entre as pessoas; respeita a diversidade cultural; orienta o trabalho do educador
como forma de valorização do outro, do diferente e do que parece inusitado; valoriza e
considera a realidade concreta como ponto de partida e referência para avançar na produção
do conhecimento, por meio do acesso à informação, à tecnologia e aos diferentes saberes em
todas as áreas do conhecimento. Por essa razão, o currículo deve compartilhar com rigor e
radicalidade os mesmos princípios sem significar a sua homogeneização.
Afirma Moreira com o qual concordamos: “Nesse sentido, a luta no campo educacional inclui a abertura de espaços para as
culturas dos grupos excluídos do currículo escolar tenham condições de se tornar
131representados, por meio de narrativas que valorizem e dêem voz às suas
experiências, possibilitando ainda o diálogo entre diferentes culturas, condição
fundamental para a criação, a ampliação e a consideração de uma democracia
radical”. (1997, p.38).
Por essa razão, apontamos o currículo que possibilita o acesso ao saber organizado e
sistematizado que é também instrumento de trabalho. Sem o acesso a esses saberes, os
trabalhadores ficam limitados para construir outros saberes, embora participem dessa
construção pela atividade prática real que exercem no trabalho aqui concebido como ação
humana que cria a cultura também numa outra racionalidade – a racionalidade contra-
hegemônica em razão da emancipação humana.
Como reafirma Chauí: na concepção da “[...] racionalidade que navega contra a
corrente cria seu curso, diz não e recusa que a única história possível seja aquela concebida
pelos dominantes, românticos e ilustrados”. (1994, p.179).
6.2 A discussão sobre currículo na Universidade Federal da Paraíba: uma experiência de resistência contra a homogeneização
Como resistência a homogeneização do currículo citamos a experiência da
Universidade Federal da Paraíba – UFPB que, a exemplo de outras universidades públicas
federais e estaduais, desenvolve uma ampla discussão sobre os Projetos Político-Pedagógicos
dos cursos de graduação. Até o ano de 2004, como resultado dessa discussão, doze cursos
aprovaram os seus projetos político-pedagógicos no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
– CONSEPE após aprovação desses projetos pelos colegiados departamentais, colegiados dos
cursos e conselhos de centro. Entre os cursos de graduação com projetos político-pedagócos
aprovados citamos: Ciências Sociais, Arquitetura, Serviço Social, História, Ciências Agrárias,
Agroindústria e Odontologia. Em 2004, vinte e um projetos político-pedagógicos estavam em
processo de finalização das suas propostas. (CCP/PRG/UFPB, Relatório de Gestão, 1996 -
2004).
Os demais cursos da UFPB, nesse período, continuavam em processo de reavaliação
e construção dos Projetos Político-Pedagógicos tendo como referências: a Resolução
132CONSEPE/UFPB 39/99 e as propostas das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos
de graduação, aprovadas ou em discussão no Conselho Nacional de Educação - CNE.
No exercício da sua autonomia a Universidade Federal da Paraíba aprovou em 1999
a Resolução do CONSEPE/UFPB 39/99 para orientar a elaboração dos projetos político-
pedagógicos dos cursos. Essa resolução foi construída a partir dos princípios definidos pela
comunidade universitária, nos Seminários e Oficinas de Currículos realizadas por esta
Universidade, após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei
9394/1996.
Para definição dos princípios constantes na Resolução supra citada o Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão-CONSEPE considerou as mudanças socioeconômicas e políticas
decorrentes da revolução informacional e as suas implicações na formação profissional dos
egressos dos cursos mantidos pela instituição, compatibilizando esses princípios com as
Diretrizes fixadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- Lei 9394/1996 que
orientam a elaboração curricular.
Os projetos político- pedagógicos dos cursos, com vistas à formação profissional,
segundo a Resolução CONSEPE/UFPB 39/99, deveriam está comprometidos com a
promoção individual e social e a preservação do meio ambiente; o currículo foi concebido
como parte integrante do projeto político-pedagógico e instrumento de produção e
transmissão do conhecimento sistematizado, para possibilitar a integração entre o ensino, a
pesquisa e a extensão e a unidade teoria-prática; a construção do projeto político-pedagógico
elegeu como horizonte a prática profissional, assumida nas dimensões política, técnica e
humana, e deveria processar-se de forma democrática envolvendo toda a comunidade do
curso num trabalho interdisciplinar. (CONSEPE/UFPB, 1999).
Os Projetos Político-Pedagógicos se fundamentaram em diretrizes curriculares de
bases epistemológicas que desestabilizam os currículos autoritários e excludentes ainda em
vigor na instituição. Estas diretrizes assumiram o conflito entre duas concepções antagônicas:
o projeto político-pedagógico que concebe e constrói o conhecimento para conservar e regular
a sociedade e o projeto político-pedagógico que concebe e constrói o conhecimento para
favorecer a emancipação humana.
Na UFPB as perspectivas curriculares se apresentaram em duas direções inter-
relacionadas: uma direção se caracteriza como reguladora em que a educação superior e o
currículo dos cursos visam atender o mercado gerando uma leitura economista do mundo.
133Conceitos como: globalização da economia, estado mínimo e formação polivalente deveriam
regular a formação humana e, portanto, a sua profissionalização. Seria o currículo centrado
numa concepção unidimensional voltado para atender exclusivamente ao mercado; o
conhecimento, nessa concepção, é concebido como regulador e conservador sobrepondo a
aplicação técnica da ciência em detrimento a sua aplicação ética. Acentuam-se as polaridades
entre o conhecimento geral e o específico, e as dimensões técnica e política e a formação
teórico-prática são concebidas na visão tradicional ao separar o homo-faber do homo-sapiens,
ou seja: o homem que faz e o homem que pensa.
A outra direção se caracteriza como emancipatória e democrática. Nessa perspectiva,
os conceitos e princípios teórico-científicos são unitários e universais. A pessoa humana é
entendida como ser social que faz história, produz o conhecimento e transforma a realidade; o
currículo é trabalhado para superar as polaridades entre o conhecimento geral e o específico,
entre o teórico e o prático; é concebido como transformação, supõe atitudes e ações solidárias
e o projeto político-pedagógico deve expressar um currículo que assume a construção do
conhecimento como possibilidade de emancipação humana.
Nessa visão emancipatória, a universidade deverá considerar o avanço da tecnologia
e a complexidade das relações de trabalho na formação do profissional, principalmente pela
complexidade dos problemas sociais ainda presentes na sociedade.
A UFPB tem aprofundado as discussões sobre a Base Comum Nacional, defendida
pela ANFOPE e outras instituições representantes dos educadores brasileiros, para os cursos
de graduação como garantia de uma prática nacional comum aos cursos de formação
profissional e, principalmente, para os cursos de licenciatura.
Os princípios que fundamentam a Base Comum Nacional encontram solidez na
proposta para a formação profissional construída pelos educadores nos debates, nas
discussões que geraram documentos, moções, propostas, ações e projetos.
Nessa concepção de base comum nacional a formação humana é centrada nos eixos
que concebem a pessoa humana como ser histórico, currículos que contemplem sólida
formação teórica, unidade entre a teoria e a prática, trabalho coletivo e interdisciplinar e a
pesquisa como princípio da formação para garantir a integração entre Ensino, Pesquisa e
Extensão, compromisso social e político com o processo de democratização da sociedade e da
educação e a gestão democrática em todos os níveis.
134 Esses eixos constituem a base para a definição do projeto político-pedagógico dos
cursos de graduação, independentemente da área de conhecimento. Nessa perspectiva, o perfil
profissional se caracteriza por um desempenho que deve corresponder a um profissional
competente, crítico e criativo; a perspectiva profissional se expressa pelo domínio de uma
sólida fundamentação teórico-prática construído a partir da busca permanente do
conhecimento.
Outros aspectos importantes prescrevem na UFPB a relação teoria e prática e a
interdisciplinaridade entendida como uma atitude criativa ao exercitar o trabalho coletivo de
construção do conhecimento. A ênfase dada ao trabalho coletivo reforça a responsabilidade
entre alunos e professores no desenvolvimento de uma práxis educativa motivada pelo
compromisso social e político com a formação do profissional socialmente engajado no seu
tempo.
Ao reafirmar os fundamentos teórico-metodológicos que embasam o projeto
político-pedagógico a instituição ratificou o compromisso social e político com a
democratização da sociedade e da educação pública de qualidade social e técnica, na
perspectiva de possibilitar condições de vida justas, democráticas e igualitárias para toda a
população. Esses fundamentos político-pedagógicos são premissas para a construção de
projetos político-pedagógico que atendam às reais necessidades da comunidade expressas na
luta pelo acesso às oportunidades sociais, materiais e culturais.
A construção de um projeto político-pedagógico baseado na concepção de educação
emancipatória surge como aspiração dos educadores engajados na luta contra a exclusão e
seletividade, ainda presentes na educação brasileira, marcada pelo autoritarismo, que
desencadeia privilégios e discriminações.
O Projeto Político-Pedagógico na UFPB tem como eixos: a gestão democrática, o
currículo enquanto produção de conhecimento e a avaliação processual. Esses eixos definem
as ações exigindo da comunidade universitária o exercício da democracia, do trabalho
coletivo, da produção do conhecimento centrada na reflexão contínua que supõe a avaliação e
auto-avaliação de todos os envolvidos no processo de construção do conhecimento, tanto nas
atividades de ensino, como nas atividades de extensão e de pesquisa.
Partindo desses eixos, a UFPB concebe o projeto político-pedagógico em premissas
conceituais e epistemológicas centradas na concepção que considera a pessoa humana
enquanto ser histórico-social e construtor de conhecimento. É, em suma, um projeto que
135define como utopia à defesa intransigente de uma sociedade fundamentada nos princípios da
democracia e da solidariedade. A universidade enquanto espaço de construção do
conhecimento científico se caracteriza, principalmente, como formadora de profissionais nas
diversas áreas do saber na perspectiva da transformação das condições de vida da sociedade.
Os princípios teóricos que fundamentam a Resolução CONSEPE/UFPB 39/99
resultaram da concepção de currículo que tem o trabalho e a cultura como princípio educativo.
Essa concepção atribui ao currículo uma função dinâmica, articulada com os
determinantes de ordem sócio-política e cultural e deve ser concretizado numa relação
dialética entre sujeito-objeto, teoria e prática, mundo acadêmico e mundo do trabalho. Rompe
com a concepção do “currículo-grade” destinado a estruturar o ensino em disciplinas
passando a idéia equivocada de que o currículo estaria desvinculado de uma concepção
política sobre a pessoa humana, o mundo, a sociedade e a educação. Assume o “currículo-
projeto político-pedagógico” destinado a orientar o processo de formação profissional.
Essa concepção de currículo implica em redimensionamento do conjunto de ações
sócio-políticas e técnico-pedagógicas realizadas pelos cursos, de modo a superar a supremacia
da pesquisa sobre o ensino e deste sobre a extensão e a evitar que atividades fundamentais
para a formação sejam consideradas extracurriculares. As ações e projetos desenvolvidos
pelos alunos e professores durante o curso com o objetivo de dinamizar a profissionalização
são integrados ao currículo, desde que tenham a função de mediar à articulação teoria-prática.
Em termos de princípios normativos, a Resolução CONSEPE/UFPB 39/99
fundamenta-se na Lei 9.394/96, naqueles aspectos relacionados à formação profissional: tanto
referentes ao currículo quanto à avaliação. Com relação ao currículo, a referida Lei estabelece
que os Projetos Pedagógicos devam ter como referência as Diretrizes Curriculares Nacionais.
A orientação para a elaboração de Diretrizes pelos Cursos sugere que os currículos
devem incluir conteúdos básicos, relacionados à formação profissional, conteúdos
complementares destinados a atender às especificidades regionais e locais e conteúdos
flexíveis que atendam aos interessem dos alunos. A referida Resolução contempla tais
orientações e busca a convergência dos princípios teóricos e normativos, de modo a pontuar a
diferença entre a formação orientada para as demandas sociais e aquela destinada a atender as
demandas do mercado. É uma perspectiva de romper a estratégia cartorial de conferir títulos
acadêmicos marcados pela interação mercadológica.
136A Resolução CONSEPE/UFPB 39/99 conceitua o projeto-político pedagógico como
sendo o conjunto de ações sócio-políticas e técnico-pedagógicas relativas à formação
profissional que se destinam a orientar a concretização curricular de um referido curso ao
definir como princípios: a orientação e a formação de profissionais comprometidos com a
promoção individual e social e a preservação do meio ambiente; o projeto-político pedagógico
concebido como o instrumento de produção e transmissão do conhecimento sistematizado
devendo possibilitar a integração entre o ensino, a pesquisa e a extensão e a unidade teoria-
prática; o projeto-político pedagógico como resultado da avaliação da conjuntura e da infra-
estrutura do curso e da instituição; a prática profissional como horizonte, assumida nas suas
dimensões política, técnica e humana, e deve processar-se de forma democrática envolvendo
toda a comunidade do curso num trabalho interdisciplinar e a avaliação permanente e
processual.
A Resolução CONSEPE/UFPB 39/99 determina que a composição curricular
integrante do projeto-político pedagógico dos cursos de graduação contemple conteúdos
básicos e conteúdos complementares: os conteúdos básicos são resultantes das Diretrizes
Curriculares Nacionais fixadas pelo órgão federal competente e compreenderão pelo menos
50% da carga horária do curso; os conteúdos complementares podem ser desdobrados em:
conteúdos complementares obrigatórios que além daqueles específicos de cada curso devem
incluir Metodologia Científica, Pesquisa Aplicada e Seminários relativos à Educação
Ambiental, Educação Especial e Direitos Humanos; os conteúdos complementares optativos
constituídos por área de aprofundamento e de componentes curriculares livres e componentes
instrumentais regulamentados de acordo com as normas específicas dos Colegiados dos
Cursos e os conteúdos complementares flexíveis, de caráter eletivo, sob a forma de projetos,
seminários, congressos e outros, de livre escolha do aluno correspondentes a, no mínimo, 20%
da carga horária total do curso. (Resolução CONSEPE/UFPB 39/1999).
É importante destacar que a referida resolução foi revogada em 2004 pela resolução
CONSEPE 34/2004 para permitir algumas alterações necessárias à oferta dos Seminários
relativos à Educação Ambiental, Educação Especial e Direitos Humanos que passaram a
compor o bloco dos conteúdos complementares optativos; outra alteração se referiu ao
percentual de no mínimo 20% determinado para os conteúdos complementares flexíveis que
foi alterado para até 10% da carga horária total do curso. Essas alterações foram
137encaminhadas pelas equipes de avaliação dos cursos a necessidade apontada pelos
professores, durante a Oficina de Trabalho realizada no campus da UFPB na cidade de Areia.
Em 2003, o CONSEPE/UFPB aprovou a Resolução 52/2003 que cria o bloco de
componentes curriculares flexíveis e a sua inclusão nos projetos político-pedagógicos dos
cursos de graduação da UFPB. Essa resolução significou também a oportunidade do aluno da
instituição ampliar os seus conhecimentos em áreas diferentes do seu curso.
É importante destacar que a citada resolução aprovou de imediato a possibilidade da
oferta para a comunidade universitária dos seguintes componentes curriculares: Gerontologia
(Centro de Ciências Humanas Letras e Artes - CCHLA), Biologia e Desenvolvimento
Humano (Centro de Ciências da Saúde - CCS), Educação Ambiental, Tópicos em Ciências
Sociais da Educação, Tecnologia Educacional, Educação e Trabalho, Avaliação Educacional e
Ética Profissional (Centro de Educação- CE).
Com relação à formação de professores, a proposta institucional da UFPB está
diretamente articulada à política de formação profissional conferida pelos cursos de
graduação. As normas e os princípios gerais que regulamentam a formação do licenciado são
os mesmos que foram sistematizados na Resolução UFPB/CONSEPE 39/99, que regulamenta
a elaboração e reformulação do Projeto Político-Pedagógico dos Cursos de Graduação.
Na mesma concepção não homogeneizadora foram definidas as bases para os cursos
de licenciatura originando a Resolução CONSEPE/UFPB 04/2004. De acordo com a citada
resolução os cursos de licenciatura passaram a ser definidos em função do objeto de estudo
com o objetivo orientar a composição curricular a partir de eixos temáticos. As Licenciaturas
devem ter a docência como base comum e o objeto da formação. A estruturação curricular em
função do objeto de estudo deverá contemplar conteúdos relacionados ao saber específico e à
formação pedagógica, articulados à prática pedagógica.
Os componentes curriculares da formação pedagógica que integram base curricular
comum para os cursos de licenciatura foram definidos em amplo processo de discussão. Esta
resolução representa a nosso ver a garantia da busca de uma identidade para os cursos que não
significa a homogeneização em razão de basear-se em eixos temáticos e não em conteúdos
pré-estabelecidos e metodologias únicas.
Esses eixos constituem a base curricular comum para os cursos de licenciatura e
representam um avanço que resultou dos amplos debates entre os cursos de licenciatura, junto
a Pró-Reitoria de Graduação e o Centro de Educação representado pelos departamentos
138envolvidos com as licenciaturas, tanto neste centro como nos demais centros, que ofertam
cursos de formação de professores no âmbito da universidade.
O ponto de partida para a definição da base curricular foram às discussões nacionais,
regionais e locais, em todas as instâncias representativas do magistério, acumuladas ao longo
da discussão de mais de vinte e cinco anos sobre a formação de professores, que sempre
contaram com a participação ativa da Universidade Federal da Paraíba.
Os eixos temáticos explicitados na Resolução CONSEPE/UFPB 04/2004 foram os
seguintes: 1) gestão escolar e princípio educativo, compreendendo os componentes
curriculares Fundamentos, Administração e Planejamento da Educação; 2) Projeto
Pedagógico, compreendendo Estrutura do Ensino e Currículo; 3) Organização Didática,
compreendendo Psicologia do Desenvolvimento, Didática, Metodologia do Ensino e
Avaliação; 4) Transversal, compreendendo a Prática Pedagógica, desenvolvida ao longo do
processo de formação, assumida como mapeamento da realidade ocupacional e como
iniciação profissional. (CONSEPE/UFPB, 2004).
Os procedimentos pedagógicas que orientam a formação do licenciado são
desenvolvidos em torno do projeto político-pedagógico do curso, previsto como instrumento
de aglutinação do trabalho dos docentes em razão de objetivos definidos.
Como podemos constatar os currículos dos cursos de graduação na UFPB estão
expressos nos projetos político-pedagógicos dos cursos. E na concepção desses projetos
político-pedagógico não é o aluno, nem o professor isolados que determinam os conteúdos
que serão trabalhados; tais conteúdos devem resultar da articulação entre mundo acadêmico e
do trabalho e inclui o conjunto das demandas sociais que se colocam além do mercado.
Por essa razão, à medida que a formação para a cidadania implica na inserção social
de um cidadão, há uma intencionalidade implícita no sentido de possibilitar o contato do
estudante com a realidade ocupacional para que lhe seja possível conhecer e construir o seu
projeto de formação em espaços reais e fora dos limites da sala de aula.
A dinâmica pedagógica é construída num processo de articulação democrática dos
segmentos acadêmicos, a partir do trabalho interdisciplinar extensivo ao currículo enquanto
produção do conhecimento permeado pela avaliação processual, capaz de viabilizar a reflexão
e a revisão da prática pedagógica orientada para a qualidade social da formação profissional.
A avaliação como referência para a prática tem a função de indicar parâmetros para a
concretização das bases que delineiam a formação profissional. A avaliação da conjuntura
139deverá indicar os efeitos das transformações operadas pelas novas tecnologias de informação
no campo específico da profissão e a avaliação institucional deverá informar as possibilidades
e limitações para concretizar o novo perfil profissional, construído em função do objeto de
estudo de cada área de formação.
Entretanto, existem dificuldades para implantar as Diretrizes Curriculares Nacionais
(Pareceres do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno - CNE/CP 009/2001, CNE/CP
027/2001, CNE/CP 028/2001 e Resolução CNE/CP 01/2001), considerando a existência de
divergências entre a política do MEC para a formação dos profissionais em todas as áreas do
conhecimento e a política das entidades representativas dos profissionais da educação nas
diferentes instituições de educação superior. Essas divergências são acentuadas,
sobremaneira, em relação aos princípios que fundamentam a política do MEC que beneficia o
aligeiramento dos cursos de formação ao abdicar da sua função de guardiã da qualidade dos
cursos.
Essa situação tem gerado no espaço acadêmico da UFPB questionamentos e críticas
que dificultaram a finalização dos projetos político-pedagógicos dos cursos, em especial os de
licenciatura, uma vez que, a divergência no âmbito dos princípios, concepções e fundamentos
se configuram nos eixos definidores das políticas implementadas pelo governo e pelas
universidades públicas. Na verdade, participamos no país de um embate histórico entre o
público e o privado representado por duas propostas curriculares que se interpenetram
dialeticamente: uma na visão neoliberal reguladora e homogeneizadora e a outra
emancipatória e democrática.
Essa afirmação sobre os princípios, concepções e fundamentos definidores das
políticas educacionais que também envolve a questão curricular, não exclui do debate a rede
pública de educação superior, entre elas a UFPB. Entretanto, podemos afirmar que existe uma
luta que congrega parte do corpo docente, discente e técnico-administrativo da UFPB pela
preservação da diversidade cultural, pela independência e autonomia das universidades e
também contrária a educação superior como negócio.
No momento atual, a UFPB continua com o processo de construção dos projetos
político-pedagógicos por entender que esse é um processo permanente de construção e
avaliação que exige o espaço permanente do debate.
Enfim, a UFPB circunscreve, ao longo da sua história de cinqüenta anos, a adesão ao
projeto de educação emancipatória calcado na democratização da sociedade brasileira.
140Considerando essa experiência com a discussão curricular a Universidade Federal da
Paraíba ratificou o seu compromisso para acionar e implementar novas formas para
atendimento a demanda de formação de profissionais cumprindo o papel social esperado pela
sociedade para com a educação profissional em todas as áreas do conhecimento. É importante
destacar que a UFPB conta com grupos de pesquisa na pós-graduação que produzem
conhecimento nas áreas de currículo, formação de professores, políticas públicas e educação
nos movimentos sociais, entre outros relacionados à educação.
Portanto, essa experiência entre outras em processo de construção no país legitimam
a resistência ao processo de homogeneização no campo do currículo na educação superior, ao
tempo que impulsiona a continuidade da dinâmica curricular que elege como premissa a
construção do currículo emancipatório porque exige a participação permanente dos
envolvidos num amplo processo de “tradução de conceitos e concepções em razão do
compromisso ético com a emancipação humana”.
Na afirmação de Santos justificamos a credibilidade no fazer humano ético e
solidário.
“O trabalho de “tradução cria as condições para a emancipações sociais
concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com
base num maciço desperdício de experiência. O trabalho de tradução, assente na
sociologia das ausências e na sociologia das emergências, apenas permite revelar ou
denunciar a dimensão desse desperdício. O tipo de transformação social que a partir
dele pode construir-se exige que as constelações de sentidos criadas pelo trabalho
de tradução se transformem em práticas transformadoras”. (2004, p. 814-815).
Posta essa questão, nos parece que o desafio é produzir um currículo que transforme
as atuais relações de poder em relações solidárias, comprometidas com a vocação ontológica
da pessoa humana de ser livre.
Essa concepção é utópica na concepção da utopia como ato da denuncia e do anuncio
como lembra Freire: “Por isso mesmo, somente os utópicos – quem foi Marx se não um utópico? Quem
foi Guevara senão um utópico? – podem ser proféticos e portadores de esperança.
Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos
permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os
homens possam ser mais. Os homens reacionários, os homens opressores não podem
141ser utópicos. Não podem ser proféticos e, portanto não podem ter esperança”. (1980
p. 28).
Acrescentamos: Quem foi Paulo Freire e todos que fizeram educação em razão da
emancipação humana, nesse país, na América Latina, na África e em outros recantos da Terra,
senão utópicos? E hoje: quem são os utópicos senão aqueles que continuam defendendo a
vida, a esperança, a igualdade, a democracia, a emancipação humana nos movimentos sociais,
nos Fóruns, nas experiências cotidianas, nas escolas básicas ou superiores, nas ruas, nas
famílias...
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