A Graça de Cristo e Os Misticos de fora
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A graça de Cristo e os ―místicos de fora‖
Pré-mística natural
e mística sobrenatural
(Angélico de Roma, 1933)
Rev. Pe. Réginald GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.
Pré-mística natural e mística sobrenatural.
I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA
Os erros extremos a evitar
Duas tendências relativas aos “místicos de fora” e importância do problema
Dificuldades do problema
II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO
O conhecimento natural e o amor natural de Deus
A inspiração superior e suas diferentes formas
O que concluir na ordem da possibilidade e na da existência
Fala-se muito, atualmente, de certos ―místicos de fora‖ que, sem pertencer visivelmente à
verdadeira Igreja de Cristo, teriam tido a vida da graça e da caridade no grau superior que caracteriza
a vida mística.
Desse ponto de vista foram escritos os estudos de Louis Massignon [1] e Asin Palacios [2] sobre o
Islame. Esses trabalhos, que apresentam sobretudo documentos, pedem ser examinados com
cuidado, e cremos que seus autores não aceitariam as conclusões gerais que alguns acreditaram poder
tirar a partir deles.
O Sr. Émile Dermenghem, em obra recente [3], vai muito mais longe do que eles. Ele chegava
mesmo a escrever, em 1930, sobre diversos místicos muçulmanos estudados nestes últimos anos:
―Todos esses sufis, pensadores, poetas ou santos exprimiram a grande experiência mística: morrer
para o mundo para viver em Deus, com fórmulas tocantes e análogas às dos Padres, Doutores e
místicos cristãos, e frequentemente também dos vedantinos hindus. O que confirmaria a tese de R.
Guénon sobre a universalidade da tradição: ‗quod ubique, quod semper, quod ab omnibus‘, segundo a
fórmula católica. Eles não cessam de repetir, com os escolásticos, que as criaturas não têm outro ser
além daquele que elas recebem de Deus e, com São Paulo, que é nele que nós temos a vida, o
movimento e o ser.‖ [4]
A esse respeito, o Padre Eliseu da Natividade fazia, aqui mesmo [5], esta justa observação: ―Não
sabemos o que o Sr. Dermenghem pretende entender por grande experiência mística; em todo o caso,
jamais a Igreja tomará como critério único da verdade essa universalidade da tradição.‖
* * *
Por outro lado, racionalistas e sobreviventes do modernismo se esforçam por reduzir até mesmo a
experiência mística descrita por São João da Cruz à mística natural que se encontra, em níveis
diversos, em todas as religiões e a qual, do ponto de vista deles, é superior a todo Credo. Destarte, a
revelação dos mistérios da salvação, tal como é proposta pela Igreja, a Pessoa mesma de Nosso
Senhor, Seu exemplo, os sacramentos instituídos por Ele, nada trazem de essencial ao católico, mas
somente uma maior segurança, estando o essencial além e acima: numa experiência mística que se
encontraria nas almas mais interiores de todas as religiões, e que não seria outra coisa que o
desabrochar natural do sentimento religioso.
Essa questão, aos olhos do teólogo, é uma das formas mais delicadas do problema já bastante
difícil da salvação dos infiéis, e ela se apresenta cada vez mais, hoje em dia. [6]
Por pouco que se desvie do verdadeiro caminho, pende-se para erros diametralmente opostos, que
é bom recordar no início de toda investigação. Na primeira parte deste estudo, veremos como o
problema se põe, sua importância e suas dificuldades; na segunda parte, tentaremos enunciar os
princípios que possam permitir resolvê-lo.
I. – POSIÇÃO DO PROBLEMA
Os erros extremos a evitar
Todo mundo conhece as duas posições, radicalmente contrárias uma à outra, que a Igreja
condenou como erros graves. Uma delas é mais que heresia: não escolhe, no depósito da Revelação, o
que ela quer conservar; nega toda revelação sobrenatural.
Por um lado, com efeito, o naturalismo, tal como se encontra por exemplo em Espinosa e
sucessores, nega absolutamente a ordem sobrenatural, tanto o milagre como a vida da graça; ele não
vê, por conseguinte, nas diferentes religiões nada além da evolução natural do sentimento religioso. O
modernismo chegava também a essa conclusão, renovando e ampliando o erro pelagiano [7]. Desse
ponto de vista, o catolicismo é, no máximo, a forma mais elevada da evolução do sentimento religioso,
e a mística de que fala São João da Cruz é uma forma interessante de mística natural, a qual se
exprime alhures em linguagem panteísta, como no Oriente com os budistas ou entre os ocidentais
com os teósofos que se inspiram em Jacob Boehme ou na segunda filosofia de Schelling.
O extremo oposto ao naturalismo nada mais é que o pseudo-sobrenaturalismo que aparece, sob
formas variadas, nos predestinacianos, em Wiclef, nos protestantes e nos jansenistas; sustentaram
todos eles que, por decorrência do pecado original, a natureza humana está tão corrompida que todos
os atos dos infiéis são pecados, e as virtudes aparentes deles são vícios esplêndidos, que procedem do
amor próprio e do orgulho.
Contra estes últimos erros, segundo a doutrina católica a predestinação não é necessária para
realizar ações até mesmo excelentes, nem a graça santificante nem sequer a fé infusa são necessárias
para fazer uma obra moralmente boa (ad faciendum actum ethice bonum), como pagar suas dívidas,
dar alguns bons princípios a seus filhos. O homem caído pode inclusive, sem a graça, ter um certo
amor ineficaz por Deus autor da natureza, amor feito de admiração e veleidade, que podem inspirar
em uma alma naturalmente poética páginas repletas de lirismo sobre as perfeições divinas. Os pagãos
podem também, sem a graça, realizar atos moralmente bons; eles também são visitados pela graça
atual, com os auxílios da qual podem fazer certos atos salutares, que os disponham a receber a graça
habitual, princípio radical dos atos não somente salutares, mas meritórios. ―Facienti quod in se est
(cum auxilio gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem).‖ [8] {N. do T. – Tradução
livre: ―A quem quer que faça o que está em seu alcance (com a ajuda da graça atual), Deus não nega a
graça (habitual).‖}
Pio IX diz, efetivamente, que aqueles que ignoram invencivelmente ou sem culpa própria a
verdadeira religião, mas que fazem o que está em seu poder para observar a lei natural, podem por
uma iluminação e uma graça de Deus chegar aos atos sobrenaturais de fé e caridade necessários à
salvação; podem, noutros termos, receber a vida da graça, germe da glória, e ser salvos. [9] Esses
homens ―de boa vontade‖, no sentido teológico da expressão, pertencem assim, como dizem assaz
geralmente os teólogos, à alma da Igreja. [10]
Vê-se como a doutrina católica se eleva, assim, acima dos erros diametralmente opostos do
naturalismo, que nega a ordem da graça, e do pseudo-sobrenaturalismo estreito, que nega que Deus
queira oferecer a todos os adultos graça suficiente para o cumprimento dos preceitos necessários à
salvação.
Mas permanece, todavia, um grande mistério: o da predestinação, e é uma grandíssima graça
pertencer visivelmente à Igreja, beneficiar-se de seu ensinamento infalível, do santo sacrifício da
missa e dos sacramentos. Daí a necessidade das missões.
* * *
Duas tendências relativas aos “místicos de fora” e importância do problema
Ao passo que existiram, e existem ainda, erros diametralmente opostos acerca da salvação dos
infiéis, pode-se distinguir, nos limites da ortodoxia, duas tendências bem diversas quanto àqueles que
foram chamados de os místicos de fora.
Inclinam-se alguns em pensar que a graça santificante, a fé e a caridade infusas podendo existir
em almas que não pertencem visivelmente à Igreja, se possa também encontrar nelas, com maior
frequência do que se disse até aqui, a vida mística, principalmente caso reconheçamos que ela é o
desabrochar normal da vida da graça.
Essa tendência leva a admitir muito facilmente que certos místicos ―de fora‖ sejam místicos
―autênticos‖ e mesmo, por vezes, a falar de mística muçulmana, hindu, judaica, etc., como se se
tratasse, malgrado os erros que nelas se mesclam, de verdadeira mística. É-se conduzido assim a
especificar que este ou aquele desses místicos de fora teve graças sobrenaturais autênticas, e mesmo
graças elevadas, que fariam pensar, senão na união transformante – na VIIª Morada de Santa Teresa
–, ao menos nas que a precedem. Decerto que há analogias impressionantes, notadas pelo Sr. L.
Massignon e pelo Sr. Miguel Asin Palacios [11].
Mas, sob estas analogias, as questões de natureza e origem permanecem muito obscuras, e, em
matéria tão delicada, o exagero, contrário a toda prudência científica, tornar-se-ia depressa tão
perigoso quanto fácil. Nestas fronteiras entre a natureza e a graça, tocamos nos problemas mais
árduos da teologia, e aqueles que os estudaram a vida toda hesitariam talvez com frequência em
formular opinião. Sobre questões relativas aos limites entre dois domínios, o juízo só pode ser uma
resultante do conhecimento aprofundado dos dois domínios considerados em si mesmos.
* * *
Assim, diversos espíritos formulam reservas, que ajudam a colocar o problema mais
profundamente e que mostram melhor sua importância.
Para começar, mesmo admitindo que a vida mística seja o pleno desabrochar normal da vida da
graça, este cimo, embora normal, permanece, não obstante, um cimo. E, por causa da negligência, da
preguiça espiritual, da falta de generosidade na provação e falta de docilidade ao Espírito Santo, esse
cimo já é bem raramente atingido dentro da Igreja Católica, mesmo nas ordens religiosas, mesmo
recebendo nelas tantas luzes sobrenaturais, tantos exemplos, tantas graças, especialmente pelos
sacramentos, sobretudo pela comunhão cotidiana. Tanto mais será difícil de atingi-lo quando se está
privado desses múltiplos auxílios!
Ademais, como nos escrevia recentemente um missionário bem inteirado destas questões, é
facílimo, selecionando bem – e não são escolhas desse gênero que se toma como base? –, reunir
grande número de textos descritivos desses místicos ―de fora‖ que parecem exprimir-se, com
espantosa similitude de termos, como São João da Cruz sobre o essencial da vida mística. E se
chegará a isto:
a) Para todos: a essência da contemplação é o conhecimento geral, amoroso, confuso, indistinto,
―sem formas nem imagens‖, que o Doutor do Carmelo ensina.
b) Para todos: a conduta prática a observar na contemplação é uma espécie de ―nada‖ universal, e
consiste em ―abstrair o entendimento de toda noção particular‖ (Subida do Carmelo, l. II, c. XII) e em
―dedicar-se à atenção amorosa em Deus, sem nada querer especificar‖ (Chama Viva, III, 3, § 6).
c) Para todos, finalmente (e é isto talvez o mais notável) o apogeu e perfeição da vida mística
existe quando a alma, ―transformada totalmente em seu Bem-Amado‖, tornou-se ―Deus por
participação‖ (Cântico Espiritual, XXII).
Parece assim que todas essas almas, seja qual for o caminho pelo qual tenham progredido, com ou
sem o auxílio da doutrina infalível e dos sacramentos da Igreja visível, se reúnem no topo. Mas
reúnem-se deveras?
A questão, como se vê, é das mais importantes:
Admitindo, de nossa parte, que a mesma graça santificante seja pressuposta nessas almas
diversas, acontece que do ponto de vista exposto mais acima tudo pareceria se passar como se essa
graça (com a fé nas duas primeiras verdades de ordem sobrenatural: [i] Deus, autor da salvação,
existe e [ii] Ele recompensa as boas obras; e com a caridade) fosse suficiente para chegar até mesmo
aos altos graus da união sobrenatural com Deus, sem ser necessário ter conhecimento explícito do
mistério da Encarnação redentora e receber os sacramentos. Essa fé explícita na pessoa divina do
Salvador, Seus exemplos, os sacramentos, os ensinamentos e diretrizes da Igreja pareceriam, por
conseguinte, não trazer ao católico nada além de um auxílio secundário, para não dizer acidental, uma
maior segurança, estando o essencial alhures e acima. [12]
Mais ainda, o próprio São João da Cruz (que, na realidade, como é evidente, fundamenta toda a
sua mística na plenitude da Revelação transmitida por Nosso Senhor, no conhecimento explícito do
mistério da Cruz perpetuado no altar durante a Missa e nos sacramentos, especialmente na união com
o Salvador pela comunhão, a uma só vez espiritual e sacramental) não pareceria porventura, no fim
das contas, definir e descrever a contemplação de uma maneira que nada mais teria de
especificamente cristão e católico, com notas e definições das quais se servem, de fato, para
―reconhecer‖ e ―autenticar‖ os místicos de fora? Ficaria assim suficientemente salvaguardada a
palavra de Jesus: ―Eu sou o caminho, a verdade e a vida‖? [13]
A questão assim formulada é grave. Seguindo-se a primeira tendência de que falamos, e que se
apresenta sob formas mais ou menos acentuadas, acaso não se chegaria, sob a arremetida do atual
sincretismo, a perder pouco a pouco o sentido da verdadeira contemplação, que é chamado por São
Paulo o sentido de Cristo (I Cor., II, 16)? É a pergunta que faz o missionário de que falávamos mais
acima.
Responder-se-á, sem dúvida, que a doutrina da fé implícita vai justamente contra esse sincretismo
e não significa, de maneira alguma, que a fé explícita e os sacramentos tenham apenas valor acidental.
Sobre este ponto, o Padre Eliseu da Natividade [14] fez justas observações: ―A dificuldade começa –
escrevia ele – no que diz respeito à fé no Mediador. O adulto não pode ser justificado a não ser crendo
de uma maneira ou de outra na Redenção operada por Cristo. Esta fé no Cristo Redentor admite três
estados ou, se se quiser, três graus diferentes: o conhecimento explícito dos mistérios da Encarnação e
da Redenção, tais como nós, os cristãos, conhecemo-los; a ideia de um mediador que se interpõe entre
Deus e os homens; finalmente a convicção de que Deus, em Sua misericórdia, proveu de algum modo
à salvação do gênero humano. Esse último grau de conhecimento do Redentor chama-se fé implícita
em Cristo e confunde-se, de certa maneira, com a fé (sobrenatural) na Providência e a crença em um
Deus remunerador… Crer que Deus salva os homens pelos meios que Lhe aprazem é possuir fé
implícita em Cristo Redentor… (e isso era suficiente, diz Santo Tomás, antes da vinda de Cristo)… É
difícil de sustentar que as condições tenham mudado para aqueles que, tendo vivido depois de Cristo,
nunca ouviram falar d‘Ele‖ [15].
Resta, contudo, uma séria dificuldade, mesmo para aqueles que admitam a opinião segundo a qual
a fé explícita em Cristo Redentor não seja de necessidade de meio após a promulgação do Evangelho.
Há, efetivamente, notável diferença entre o estritamente necessário para a salvação ou para evitar a
danação e o que a união mística com Deus demanda, sobretudo a união em seus graus mais elevados.
Chegamos, assim, a perguntar-nos se não se descura de considerar, aqui, duas coisas
importantíssimas.
1.º Encontra-se nesses ―místicos de fora‖ o conjunto de condições, sobretudo a purificação
profunda, que a verdadeira mística exige, ou seja, a contemplação sobrenatural e a íntima união com
Deus que dela resulta?
2.º Não há neles, se estão em estado de graça, antes uma mística ou pré-mística natural, isto é,
uma contemplação natural de Deus, que lembra a de Platão e Plotino, ou mesmo a de certos
platônicos cristãos, como Malebranche e os recentes ontologistas que conhecemos? [16]
Se omitirmos de considerar muito atentamente esses dois pontos, seremos conduzidos,
precisamente como o foram os ontologistas, a uma confusão mais ou menos latente entre natureza e
graça, e acabaríamos falando em uma mística universal, mais ou menos bem balbuciada; a nossa seria
apenas a mais correta [17]. E não somente essa confusão seria deplorável para nós, mas seria também
sem proveito algum para as almas de boa vontade que, fora da Igreja visível, possam tender à
verdadeira vida interior, à conversação íntima e profunda com Deus. A questão, como se vê, é grave;
importa não se pronunciar levianamente: toda precipitação aqui seria especialmente perigosa.
Como diz o Pe. Allo, O. P. [18]: ―Hoje, nos meios dedicados ao estudo e à admiração da mística, um
sincretismo perigoso começa a delinear-se; e os fiéis dotados de ciência e de zelo não deveriam fechar
os olhos para essa ameaça. Isso precisava ser dito.‖
* * *
Dificuldades do problema
Há aqui, para começar, as duas grandes dificuldades da teologia mística considerada em si mesma:
1.º o objeto é transcendente, pois trata-se da união com Deus considerado em Sua vida íntima, e não
mais apenas conhecido naturalmente desde fora, pelo reflexo de Suas perfeições no espelho das coisas
sensíveis; 2.º o sujeito de que se trata é o indivíduo humano, do qual diziam os antigos: individuum
est ineffabile, decerto que não como Deus, cuja vida íntima está acima das fronteiras da
inteligibilidade que é para nós naturalmente acessível, mas porque o indivíduo humano é um
composto misterioso de espírito e matéria, matéria pouco inteligível em si e que está, por assim dizer,
abaixo das fronteiras da inteligibilidade. Não há ciência senão do geral, do universal, pois a ciência se
obtém por abstração da matéria individual, que repugna assim, em certa medida, à inteligibilidade.
Daí o mistério do composto humano individual, onde se entrecruzam constantemente os atos das
faculdades superiores, a inteligência e a vontade, e os da imaginação, da memória, dos sentidos
exteriores, e todas as emoções da sensibilidade ou paixões mais ou menos desregradas, em estado de
saúde ou de enfermidade.
Há por conseguinte ―noites escuras‖, no fundo, muito diversas, que se assemelham
superficialmente. Umas vêm de um trabalho profundo da graça divina, outras não, encontrando-se
por vezes nestas últimas, sobretudo, neurastenia e muita miséria humana.
Essas dificuldades são as da teologia mística em geral e de sua aplicação mesmo em ambiente
cristão e católico fervoroso.
Mas essas dificuldades crescem muito, como é evidente, em se tratando dos místicos de fora, que
são o nosso tema.
Não nos esqueçamos de que pode existir e existe, entre a verdadeira mística sobrenatural e a falsa
mística assaz manifestamente diabólica, uma certa mística ou pré-mística natural, cujas
―experiências‖ mais ou menos turvas tornam-se a fonte obscura, e por vezes envenenada, dos sistemas
mais contraditórios.
Já se disse que certas filosofias não-cristãs nada mais fazem que conceptualizar mística selvagem,
que existe desde sempre. Há métodos de êxtase que são pré-históricos.
É certo que essas ―experiências‖ estão dentro do ―sentido da verdade‖? Temos o direito de
conceptualizá-las num sentido cristão de mística autêntica, antes que em sentido panteístico?
Muitas vezes já se falou da falsa caridade, que – por vezes sem se precaver disto – não tem, de
maneira alguma, o mesmo objeto formal que a caridade infusa, mas se atavia com o seu nome e no
fundo não passa de liberalismo ou vão sentimentalismo. O princípio corruptio optimi pessima se
aplica aqui com uma profundidade que frequentemente passa despercebida. Não havendo nada maior
sobre a terra do que a verdadeira caridade, que é essencialmente sobrenatural, não há nada pior do
que a falsa. Assim também, não havendo nada maior do que a verdadeira mística, que é o exercício
eminente das três virtudes teologais e dos dons do Espírito Santo que as acompanham, não há nada
pior do que a falsa. Ela é, evidentemente, tanto mais perigosa quanto mais assume as aparências da
verdadeira. Poder-se-ia ficar tentado a falar da alma de verdade que nela está presente; não há talvez
senão somente um grão de verdade, que longe de ser a alma dela, está a serviço do erro voluntário ou
involuntário que é o princípio daquele desvio. Naquilo que é falso simpliciter e não só secundum quid,
o verdadeiro é desviado de seu fim. Essas observações, que se dirigem diretamente contra os teósofos,
não devem ser esquecidas aqui.
Caso não se considere suficientemente que existe uma pré-mística natural, desemboca-se numa
falsificação, para não dizer numa caricatura da vida contemplativa, e isso poderia ser obra de
predileção do espírito da mentira, que se oculta o mais que pode sob as aparências da verdade.
Um certo sincretismo modernista é levado a dizer: ―Cristo está aqui, ou: Ele está ali.‖ ―Não creiais
nele‖, diz o Evangelho (Mt., XXIV, 23). De tal ponto de vista, Cristo estaria por toda parte, salvo talvez
ali onde Ele verdadeiramente está.
Por onde se vê a dificuldade do problema: como distinguir uma mística sobrenatural que, por
causa da ignorância de vários mistérios revelados, permanece bastante amorfa, de uma mística ou
pré-mística natural, que aliás pode existir mesmo em almas em estado de graça, como se viu em
vários platônicos cristãos, dos quais era às vezes difícil dizer se eram cristãos platonizantes ou
platônicos cristianizantes?
A dificuldade aumenta ainda pelo fato de o vocabulário místico vir em parte de Dionísio e dos
neoplatônicos e, de certa maneira, não ser rigorosamente próprio à Igreja. Plotino fala muitas vezes
de purificação, κάθαρσις {catarse}, mas em sentido completamente diferente que São João da Cruz.
Além disso, esse vocabulário está, frequentemente, bem mais na linha das descrições psicológicas
práticas que na das descrições que poderiam ser chamadas de teológicas, ou escritas pela razão
especulativa à luz dos princípios revelados. É pois, no fundo, como observava o missionário de que
falamos mais acima, uma linguagem demasiado humana, e da perspectiva da ―experiência‖ do homem
contemplativo. Não espanta, portanto, que os pseudomísticos dela se sirvam, como os verdadeiros
místicos.
Cremos serem estas as principais dificuldades do problema: referem-se umas à natureza do sujeito
bastante misterioso, no qual se encontra a obscuridade vinda do alto, a de Deus, cuja luz é inacessível,
e a obscuridade de baixo, que vem da matéria, parte essencial do composto humano. Entre essas duas
obscuridades, é muito difícil de distinguir a verdadeira mística sobrenatural de suas analogias
naturais. A dificuldade aumenta por decorrência do vocabulário, muitas vezes, bastante comum aos
verdadeiros e aos falsos místicos; ela aumenta ainda pela impossibilidade de ver, e de ver viverem,
―os místicos de fora‖, que não nos são conhecidos a não ser por documentos com frequência bastante
incompletos. Já é bem trabalhoso para um diretor julgar bem um dirigido, que ele conhece só por
alguns colóquios e por cartas, chegando às vezes a um julgamento muito diferente do proferido por
pessoas bastante sensatas que veem viver todos os dias e há muito tempo esse dirigido. Com quanto
mais razão será difícil proferir juízo exato sobre ―os místicos de fora‖ de que se trata aqui! Sem
embargo, estando a questão colocada aos teólogos e aos missionários, cumpre saber a que princípios
diretores recorrer, para procurar resolvê-la.
II. – ELEMENTOS DE SOLUÇÃO
Vários destes elementos foram indicados por dois teólogos que viveram em meio aos muçulmanos,
o pranteado Padre Lemonnyer e o Padre Allo, em La Vie Spirituelle de 1.º de maio de 1932 [19], bem
como pelo Sr. J. Maritain na sua última obra, notabilíssima a mais de um título: Distinguer pour
Unir, ou: Les Degrés du Savoir [20].
Elevemo-nos progressivamente dos graus eminentes da ordem natural para os graus superiores da
ordem da graça. Haveria, para começar, deste ponto de vista, muito que dizer sobre o trabalho da
imaginação e da sensibilidade mais ou menos desordenada em cima dos primeiros dados de que vive
o sentimento religioso, quer provenham estes da razão natural que se eleva para Deus, ou de tradições
religiosas mais ou menos alteradas. Esse domínio é ilimitado: basta pensar nas fantasias por vezes
inverossímeis dos poetas, mesmo cristãos e católicos, sem nem mesmo falar dos decadentes. Para nos
restringirmos, só formularemos os princípios relativos à atividade de nossas faculdades superiores:
inteligência e vontade.
Esses princípios de solução dizem respeito, como se vê, antes de tudo à contemplação natural e ao
amor natural de Deus, na medida em que são possíveis no estado atual; e, em seguida, às diferentes
formas de inspiração superior que o homem pode receber. É fácil de reconduzir os princípios
diretores a estas duas categorias.
* * *
O conhecimento natural e o amor natural de Deus
Importa recordar que, segundo o ensinamento da teologia católica tal como vem formulado por
Santo Tomás de Aquino (Ia, q. 60, a. 5; Ia-IIae, q. 109, a. 1, 2, 3; IIa-IIae, q. 26, a. 3), o homem, após
sua queda [21], pode ainda, sem a graça, por suas forças naturais, conhecer a existência de Deus
autor de nossa natureza, os atributos divinos mais manifestos, e amar a Deus autor de nossa
natureza, com amor natural ineficaz, o qual, sem nos fazer renunciar ao pecado mortal, ou seja, sem
retificar fundamentalmente o nosso querer e a nossa vida, leva-nos a admirar as perfeições de Deus
naturalmente cognoscíveis, Sua infinita sabedoria e bondade. [22] Essa admiração é, ela própria,
princípio de veleidades que, em uma alma naturalmente poética, principalmente nos grandes artistas,
se exprimem com um lirismo que pode fazer pensar na verdadeira mística. Pode não haver aí, todavia,
nada além de um sentimentalismo cheio de flutuações enganosas e cujos mais belos arroubos não
passem de fogo de palha.
Em almas naturalmente dotadas de inteligência vigorosa ou de vontade forte, esse amor natural e
ineficaz por Deus, autor de nossa natureza, parecerá mais intenso, sobretudo se ele se unir, como num
Plotino, ao amor à filosofia; ou, como em outros, ao amor à arte; ou ainda, ao amor à pátria, num
povo oprimido.
É aí que facilmente se encontrará uma prefiguração natural da vida mística que poderá iludir, se
nos esquecermos da palavra de Jesus: ―Não são todos aqueles que me dizem: Senhor, Senhor, que
entrarão no reino dos céus, mas, sim, aquele que faz a vontade de meu Pai‖ (Mt., VII, 21). Não nos
esqueçamos, tampouco, de que no plano atual da Providência todo homem está ou em estado de
graça, ou em estado de pecado mortal; está voltado para Deus ou afastado d‘Ele, sem meio termo; a
indiferença absoluta não é possível com relação a Deus.
Em seguida, sobre as analogias naturais da verdadeira mística, é necessário notar aquilo que diz o
Pe. Lemonnyer, art. cit., p. [78]: ―Que, por exemplo, fatos de catalepsia especial, materialmente
semelhantes ao êxtase místico, ou de levitação, ou de radiação luminosa, ou estados psíquicos mais ou
menos análogos às provações místicas possam aparecer fora da Igreja e ser realmente observados, que
nos importa isso, e quais objeções de princípio se imagina que tenhamos a opor-lhes? Normais ou
patológicos, naturais ou diabólicos, são fenômenos que não exigem necessariamente causa divina.
―Nem mesmo consideramos a aparição deles impossível sob a dependência de uma contemplação
natural com objetivo religioso, como podia ser a contemplação neoplatônica, como pode ser a
contemplação búdica, teosófica ou qualquer outra de afinidade cristã. Essa contemplação natural,
preparada e sustentada por uma ascese conveniente, conduzida em virtude de um método e prática
bem planejados até um grau excepcional de intensidade, pode comportar consequências psíquicas e –
o temperamento contribuindo, principalmente se a imaginação e a emotividade fizeram sua parte –
consequências corporais, materialmente semelhantes a tais ou quais fenômenos místicos acessórios,
salvo, sem dúvida, a levitação. Facilimamente, alucinações aí se mesclarão, suscetíveis de evocar a
ideia de visões proféticas.‖ Haveria muito que dizer, a esse respeito, sobre o temperamento de certas
raças predispostas à passividade e ao fatalismo.
* * *
Porventura o amor natural a Deus, de que acabamos de falar, pode atingir aquilo que foi chamado
de ―apreensão imediata de Deus‖, e que permitiria falar aqui não mais apenas de pré-mística natural,
mas de mística natural propriamente dita?
O panteísmo, especialmente o de Plotino e, mais ainda, o de Espinosa, responde afirmativamente.
Explicamos noutra parte por que a teologia católica deve responder: não. [23] Seria a confusão entre a
natureza e a graça.
Há diferença de objeto formal entre a intuição obscura natural de Deus conhecido desde fora, no
espelho das coisas sensíveis, sem a graça da fé, e o conhecimento sobrenatural e quase-experimental
de Deus, fundado na Revelação divina e na fé infusa unida à caridade e esclarecida pelos dons do
Espírito Santo. Unicamente o conhecimento sobrenatural pode chegar a alcançar ―as profundezas de
Deus‖, como diz São Paulo (I Cor., II, 10); noutros termos, somente ele atinge a vida íntima de Deus,
a Deidade, primeiro obscuramente pela fé e claramente em seguida pela visão beatífica. [24]
O Sr. Maritain insiste com toda a razão neste ponto (Op. cit., p. 533): ―Admitir, a qualquer grau
que seja, sob as formas mais simplesmente esboçadas que se queira, uma experiência autêntica das
profundezas de Deus no plano natural seria necessariamente: ou confundir nossa intelectualidade de
natureza, especificada pelo ser em geral, com nossa intelectualidade da graça, especificada pela
essência divina mesma; ou então confundir a presença de imensidade, pela qual Deus está presente
em todas as coisas a título de Sua eficiência criadora, com a inabitação santa pela qual Ele está
especialmente presente, a título de objeto, nas almas em estado de graça; ou ainda, baralhar em um
mesmo conceito híbrido a sabedoria de ordem natural (a sabedoria metafísica) e o dom infuso de
sabedoria; ou enfim, atribuir ao amor natural por Deus aquilo que pertence exclusivamente à
caridade sobrenatural. De todo modo, seria confundir o que é absolutamente próprio à graça com o
que é próprio à natureza.‖
Se a vida vegetativa, a vida sensitiva e a vida racional constituem três ordens distintas, com
maioria de razão cumpre reconhecer acima delas a ordem da vida propriamente divina, superior à
vida racional do homem e à vida angélica.
Somente assim pode-se salvaguardar o sentido das palavras de São Paulo (I Cor., II, 9): ―São
coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passaram pelo coração do homem: as
coisas que Deus preparou para aqueles que O amam. Foi a nós que Deus revelou-as por meio do Seu
Espírito; porque o Espírito tudo penetra, mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos homens
conhece o que se passa no homem, senão o espírito do homem, que está nele? Assim também,
ninguém conhece o que se passa em Deus (Sua vida íntima), senão o Espírito de Deus.‖ Que distância
há entre conhecer de fora o Vigário de Jesus Cristo, pelo que todo o mundo sabe a respeito dele, e
conhecer sua vida íntima! Com maioria de razão, que distância há entre conhecer Deus de fora, pelo
reflexo de Suas perfeições na ordem criada, e conhecer a Sua vida íntima ao menos obscuramente por
revelação divina!
Por isso, sempre foi necessário, para ser salvo, ter fé infusa explícita no mínimo nestas duas
verdades primeiras da ordem sobrenatural: Deus, autor da salvação, existe e Ele é remunerador:
―Deus est et remunerator est‖ (Hebr., XI, 6). Sem essa fé explícita não há como ter fé implícita nos
demais mistérios sobrenaturais.
Ainda que o nosso amor natural de Deus fosse eficaz, como poderia sê-lo sem a graça caso o
homem não estivesse caído, caso se achasse ele em estado de pura natureza e, sobretudo, de natureza
íntegra, ainda assim o homem não atingiria aquela ―apreensão imediata de Deus‖. Nem mesmo a
alcançariam os anjos, que têm necessidade como nós de ser elevados à ordem sobrenatural da graça,
para conhecer obscuramente primeiro, e claramente em seguida, a vida íntima de Deus ou o mistério
da Deidade (Cf. Santo Tomás, Ia, q. 62, a. 2). Há uma distância imensurável entre conhecer Deus
enquanto Deus, em Sua vida íntima, mesmo obscuramente, e conhecer Deus desde fora, como o
Primeiro Ser e Primeira Inteligência, pelo reflexo de Suas perfeições nas criaturas.
É porque o nosso amor natural por Deus não pode alcançar essa experiência da vida íntima de
Deus, que nós não falamos de ―mística natural‖, mas somente de ―pré-mística natural‖.
* * *
A inspiração superior e suas diferentes formas
Mas se o nosso amor natural por Deus não pode chegar à experiência íntima que, em virtude do
dom de sabedoria, só se encontra na verdadeira mística, é não raro dificílimo de distinguir na
realidade concreta esse amor natural de um amor proveniente de inspiração superior. É árduo,
sobretudo, num filósofo ou alma vigorosa em que esse amor natural por Deus se una a algum outro
amor forte que tenha a sua grandeza, e venha acompanhado de uma certa ascese purificadora, como a
κάθαρσις de Plotino.
É aqui, principalmente, que pode haver uma pré-mística natural, ainda mais difícil de distinguir
bem, concretamente, da verdadeira mística, porque a inspiração superior de que acabamos de falar
nem sempre é da mesma natureza, longe disso.
Lendo atentamente as obras de Santo Tomás, vê-se que ele distingue pelo menos quatro espécies
de inspirações superiores, dentre as quais duas são de ordem natural, e duas da ordem sobrenatural
da graça. Pode-se reduzi-las à tabela seguinte, a ser lida de baixo para cima:
Inspiração
de ordem sobrenatural
inspiração mística propriamente dita, levando, por exemplo, ao recolhimento passivo e outros graus de oração infusa. inspiração mística impropriamente dita, dada, sobretudo, por causa da indigência do sujeito ou do meio.
de ordem natural
proveniente de Deus, autor da natureza, por exemplo para a salvação temporal de um povo. proveniente dos espíritos criados, bons ou maus, como a inspiração poética.
Pode haver, como sabemos, inspirações que não venham direta e imediatamente de Deus, mas dos
espíritos criados, bons ou maus. E não é raro que os místicos de fora tenham buscado algum contato
com os espíritos.
Como observa o Sr. Maritain (Op. cit., p. 546): ―O cuidado que Santo Tomás dedica em refutar as
teorias de Avempace, de Alexandre de Afrodísia, de Averróis, sobre a possibilidade, para o homem, de
atingir imediatamente por intuição intelectual o mundo dos puros espíritos,[26. C. Gentes, l. III, c.
41, 42, 43, 44, 45.] mostra bem a que ponto a tentação de um tal comércio pode seduzir os filósofos.‖
Esquece-se também, com muita frequência, de considerar que pode haver inspiração divina de
ordem natural, como a que pode receber um grande filósofo, um grande poeta, um artista de gênio,
um legislador, um estratego. Santo Tomás trata disso várias vezes, particularmente na Ia IIae, q. 68,
a. 1, citando o capítulo 14 (De bona fortuna) do livro VII da Moral a Eudemo, escrita por um discípulo
platonizante de Aristóteles, onde se fala dos homens extraordinários que, movidos por um instinto
divino, não têm necessidade de deliberar para fazer grandes coisas. Ver também a Ética a Nicômaco,
l. VII, c. I, n. 1, 2, 3, e o comentário de Santo Tomás, lição 1.
O final do Banquete de Platão e parte do Górgias parecem ter sido escritos sob inspiração desse
gênero. Donde a expressão: o divino Platão.
Basta recordar alguns leitmotivs de obras wagnerianas ou certas sinfonias de Beethoven, para se
dar conta de que a inspiração natural poética ou musical, unida ao amor natural e ineficaz por Deus,
possível sem a graça, pode às vezes proporcionar a ilusão de verdadeira mística. Ela a proporcionará
ainda mais caso se encontre, como pode suceder, numa alma em estado de graça.
* * *
Há muitas vezes também inspirações divinas da ordem da graça, mas é raríssimo que sejam de
ordem propriamente mística.
Primeiro que tudo, cumpre assinalar, nas almas que buscam a verdade religiosa, a inspiração que
as conduz a crer sobrenaturalmente nas verdades necessárias com necessidade de meio para salvar-
se, especialmente nas duas primeiras: Deus est et remunerator est (Hebr., XI, 6), Deus (autor da
salvação e não só da natureza) existe e recompensa as boas obras. Esta fé explícita nessas duas
primeiras verdades sobrenaturais contém a fé implícita nas demais.
Santo Tomás diz inclusive (Ia IIae, q. 89, a. 6) que quando a criança, mesmo não batizada, atinge
plenamente o uso da razão, ela deve ordenar a sua vida a um fim bom, e se ela o faz, recebe pela
graça a remissão do pecado original [27], ou seja, é justificada por batismo de desejo. Noutros termos,
a criança mesmo não batizada, chegando plenamente ao uso da razão, deve escolher, não somente por
veleidade, mas EFICAZMENTE o caminho do bem e afastar-se deliberadamente do caminho do mal.
Ora, escolher assim a reta via é já amar eficazmente ao bem mais que a si mesmo e, portanto, é amar
eficazmente e acima de tudo ao Sumo Bem, Deus, autor de nossa natureza, conhecido ao menos
confusamente.
Isso, o homem caído não pode fazer, como vimos, sem a graça [28]. Para que o cumprimento desse
preceito seja hic et nunc {aqui e agora} realmente possível, a criança recebe então uma graça
suficiente e, se não resistir a esta, ela recebe um maior auxílio e até mesmo, segundo Santo Tomás, ela
é justificada, o pecado original lhe é remido. Este texto da Ia IIae, q. 89, a. 6, deve ser relacionado com
aquele bem conhecido do De Veritate, q. 14, a. 11, ad 1m, esquecido pelos jansenistas: ―Hoc ad
divinam Providentiam pertinet, ut cuilibet provideat de necessariis ad salutem, dummodo ex parte
ejus non impediatur. Si enim aliquis taliter (in silvis) nutritus, ductum naturalis rationis sequeretur in
appetitu boni et fuga mali, certissime est tenendum, quod ei Deus vel per internam inspirationem
revelaret quae sunt ad credendum necessaria, vel aliquem fidei praedicatorem ad eum dirigeret, sicut
misit Petrum ad Cornelium.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Pois pertence à Divina Providência
fornecer a todos o que é necessário à sua salvação, contanto que da parte deles não se interponha
obstáculo algum. Logo, se alguém criado assim (na selva) seguir a direção da razão natural na procura
do bem e evitação do mal, deve-se crer firmissimamente que Deus ou lhe revelará por inspiração
interior aquilo que é necessário crer, ou dirigirá algum pregador da fé até ele, como enviou Pedro a
Cornélio [Act. X, 20].‖} Pio IX fala do mesmo modo, num texto citado no início deste artigo (cf.
Denzinger, nº 1677). Deus não comanda jamais o impossível e torna possível a todos os adultos o
cumprimento de Seus preceitos.
Aqui é mais fácil, do que nos casos precedentes, de discernir – por sua eficácia, pela boa conduta
que dele resulta – aquele amor sobrenatural a Deus, de um amor natural ineficaz que, sob certos
aspectos, se lhe assemelha. Se a criança, de que acabamos de falar, perseverar no bem malgrado todos
os obstáculos que a cercam, ela será salva.
* * *
Finalmente, como observou o Pe. Lemonnyer (art. cit. p. [7]), importa recordar uma distinção feita
com frequência pelos teólogos, especialmente pelos tomistas, a propósito dos dons do Espírito Santo,
os quais, sendo conexos com a caridade, estão em toda alma em estado de graça.
Dentre as inspirações especiais do Espírito Santo que os dons nos dispõem a receber, há aquelas
que nos são concedidas principalmente por causa de nossa fraqueza ou da indigência do meio em
que nos encontramos, para realizarmos certos atos salutares e meritórios, que outras pessoas mais
fortes ou em ambiente menos ingrato realizariam pelo simples exercício das virtudes infusas com
ajuda da graça atual comum. Essas inspirações especiais do Espírito Santo receberam o nome de
graças místicas menores ou impropriamente ditas. Não é raro que convertidos recebam-nas no
momento de sua conversão, e em seguida por um tempo mais ou menos longo, para suprir de algum
modo à falta de formação deles [29].
Outras inspirações especiais do Espírito Santo que os dons também nos dispõem a receber nos são
concedidas, sobretudo, em razão da perfeição do ato a ser realizado. Estas, quando a elas não se
resiste, dispõem proximamente ao estado místico inicial descrito por Santa Teresa na IVª Morada, e
mesmo aos seguintes. Pode-se chamá-las de graças místicas maiores ou propriamente ditas. Dentre
os tomistas, João de S. Tomás fez clarissimamente essa distinção [30].
Vê-se, pois, que a inspiração superior de que acabamos de falar se apresenta sob formas muito
variadas. Ela pode pertencer à ordem natural, e provir seja dos espíritos criados, bons ou maus, seja
de Deus, autor de nossa natureza, como notaram vários filósofos gregos, especialmente o autor da
Moral a Eudemo, l. VII, c. 14.
A inspiração superior pode ser também da ordem sobrenatural da graça. E (sem falar aqui da
inspiração poética, nem das demais graças por si extraordinárias) ela pode ser mística, quer somente
em sentido largo, quer em sentido próprio. A inspiração mística impropriamente dita segue-se
geralmente à justificação e é, então, princípio de atos a um só tempo salutares e meritórios; mas ela
pode preceder à justificação e dispor a esta mediante atos salutares, mas não ainda meritórios, pois o
princípio do mérito é o estado de graça e a caridade.
Acima dos atos naturais que podem conter uma certa prefiguração da mística, há entre os atos
sobrenaturais, portanto, grande diversidade, desde os primeiros atos salutares até atos grandemente
meritórios, que não são todavia, falando propriamente, de ordem mística. — Cremos serem estes os
principais elementos de solução.
* * *
O que concluir na ordem da possibilidade e na ordem da existência
Na ordem da possibilidade é mais fácil de se pronunciar:
1º A verdadeira mística, que comporta – que no mínimo prepara proximamente – o
conhecimento quase-experimental de Deus presente em nós, não é possível fora do estado de graça;
mas, fora do estado de graça, pode haver uma pré-mística natural e, também, influências diabólicas.
Essa pré-mística natural pode existir ao mesmo tempo que graças atuais que disponham a atos
salutares ainda não meritórios; ela pode até mesmo existir em almas em estado de graça, que fazem
atos meritórios, como se viu especialmente em filósofos cristãos de tendência platônica.
2º No plano atual da Providência, em que o estado de pura natureza não existe, todo homem está
ou em estado de graça ou em estado de pecado mortal, não existe meio termo. Todo homem está ou
voltado para Deus, ou desviado d‘Ele, conversus ad Deum vel aversus a Deo. No estado de natureza
pura, o homem teria nascido com uma vontade ainda não convertida para Deus, nem desviada d‘Ele,
mas capaz de se converter ou de voltar as costas para Ele. No estado atual, o homem nasce pecador,
―aversus a fine ultimo supernaturali, et indirecte a fine ultimo naturali‖ [31], pois todo pecado contra
a lei sobrenatural transgride ao menos indiretamente a lei natural, que nos prescreve obedecer a Deus
no que quer que Ele mande. Por conseguinte, todo homem ou está voltado para Deus, ou apartado
d‘Ele. Mais precisamente: todo homem, ou ama a Deus eficazmente com um amor de estima
(―appretiative‖) acima de todas as coisas, o que supõe a graça santificante e a caridade, ou então não
atinge esse amor eficaz de Deus, e isso seja por causa do pecado original, se ele não tem o pleno uso
da razão, seja também por causa de um pecado mortal pessoal (cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 89, a. 6). Por
isso Nosso Senhor disse: ―Quem não está comigo, está contra mim‖ (Mt., IX, 39), e também aos
Apóstolos, o que é consolador: ―Quem não é contra vós, é por vós‖ (Mc., IX, 39; Lc., IX, 50). A
indiferença propriamente dita ou neutralidade absoluta não é possível com relação ao fim último.
Logo, na economia atual da salvação, todo homem está em estado de graça ou em estado de pecado
mortal.
3º O estado de graça é possível fora da Igreja visível, e realiza-se nos homens que, fazendo com a
ajuda da graça atual o que está em seu poder, chegam a amar eficazmente a Deus mais que a si
mesmos com um amor de estima, senão com um amor sentido. ―Facienti quod in se est (cum auxilio
gratiae actualis) Deus non denegat gratiam (habitualem)‖ [32]. {N. do T. – Tradução livre: ―A todo
aquele que faz o que está em seu poder (com o auxílio da graça atual), Deus não recusa a graça
(habitual ou santificante).‖}
4º As graças místicas impropriamente ditas, ou menores, não somente são possíveis fora da
Igreja visível, como podem ali ser bastante frequentes nas melhores das almas em estado de graça,
para suprir à indigência de tais ambientes, onde os filhos de Deus que ali se encontram têm tão
poucos auxílios [33]. Assim, as almas que verdadeiramente estejam, no sentido teológico, de boa fé e
de boa vontade, podem chegar a um genuíno espírito de oração, como observaram os missionários
com bastante frequência. Poderá haver aí, por conseguinte, tentativas mais ou menos duradouras de
intimidade com Deus, principalmente se no ensinamento religioso restam vestígios do Evangelho,
como na doutrina do Islame e em algumas de suas tradições [34]. A fortiori, essas graças se
encontrarão em meios onde, apesar dos erros da heresia protestante ou do cisma, o Evangelho for
pregado e Cristo for amado por almas de boa fé [35].
5º Quanto às graças místicas propriamente ditas, ou maiores, pelas quais a alma chega aos
estados místicos propriamente ditos, descritos por Santa Teresa a partir da IVª Morada (recolhimento
passivo e quietude), elas são possíveis fora da Igreja visível, pois ―a graça das virtudes e dos dons‖
pode desenvolver-se, embora bem mais dificilmente. Mas tudo leva a pensar a priori que essas graças
místicas propriamente ditas, raras já na Igreja visível, são raríssimas nesses meios. Pode até ser que
existam aqui e ali certos casos do que Santa Teresa chama de IVª Morada, mas é muito duvidoso que
haja mais [36].
* * *
Se, da ordem da possibilidade, passamos à da existência, é muito mais difícil de se pronunciar.
1º Quase sempre nos faltam os elementos de apreciação necessários para julgar sobre o caráter
―essencialmente sobrenatural‖, sobre as ―experiências‖, dos místicos de fora. Somente a Igreja poderia
se pronunciar firmemente sobre esses casos.
2º Mesmo para se ter uma séria probabilidade, seria preciso, ao trazer textos desses místicos de
fora, não se contentar em reter aqueles que produzem uma sonoridade de mística cristã, mas haveria
que expor também os que têm caráter nitidamente panteístico, ou quietista, ou mesmo erótico, como
os há em muitos deles.
Sendo suficientemente exigente, os casos seriamente prováveis de verdadeira mística nesses meios
seriam verossimilmente bem pouco numerosos e reduzir-se-iam quiçá, em sua maioria, a tentativas
de curta duração. Não nos esqueçamos, com efeito, do que São João da Cruz disse até mesmo dos
meios católicos mais protegidos (cf. Noite Escura, l. I, c. 9): ―Deus não eleva à contemplação
propriamente dita todos aqueles que, seguindo o caminho do espírito, desejam alcançá-la; Ele não
leva nem sequer a metade.‖ — Chama Viva, 2ª estr., v. 5: ―Por que tão poucos chegam a este alto
estado?… (Muitas almas), a partir do momento em que Deus as prova, fogem do labor e recusam-se a
padecer a menor secura e mortificação.‖ Se assim é na Igreja visível, com mais forte razão fora dela.
3º Notemos que seria preciso, consequentemente, mostrar-se reservadíssimo com relação a
pretensos místicos numerosíssimos que estão, no mínimo, manchados de monismo panteísta [37].
Sem dúvida, para o bem das almas ―de boa vontade‖ em sentido evangélico, a pré-mística natural que
se acha nesses meios pode ser utilizada por Deus, assim como Ele pode utilizar a poesia; São Paulo o
fez, em seu discurso perante o Areópago: ―In ipso enim vivimus et movemur et sumus, sicut et
quidam vestrorum poetarum dixerunt: Ipsius enim et genus sumus‖ {N. do T. – Na tradução da
Vulgata pelo Pe. Matos Soares: ―Porque n‘Ele vivemos, nos movemos e existimos, como até o
disseram alguns dos vossos poetas: Somos verdadeiramente da Sua linhagem.‖} (Act. Ap. XVII, 28).
Mas nós ignoramos em que medida Deus serve-Se assim, para o bem das almas, dessas flores
naturais.
4º Seria necessário, acima de tudo, excluir de entre esses pretensos místicos aqueles que, como os
teósofos, querem possuir a beatitude final só pelas forças da sua natureza, o que lembra o pecado do
anjo, tal como o descreve Santo Tomás [38], muito mais do que verdadeira mística.
5º Tudo considerado, é bem provável, portanto, que se venha a encontrar muito frequentemente a
contemplação natural cara a Plotino e Proclo.
Plotino [39] fala diversas vezes do êxtase e diz que, para unir-nos ao primeiro princípio, é preciso
que nos reduzamos à simplicidade absoluta, que ultrapassemos todo raciocínio e toda multiplicidade.
―Devemos esperar em silêncio que a luz divina nos apareça, tal como o olho, voltado para o horizonte,
aguarda o sol que vai se levantar do Oceano… O pensamento não pode senão elevar-nos, pouco a
pouco, à altitude donde é possível descobrir Deus. É como a onda que nos carrega e, dilatando-se,
ergue-nos, de modo que, de sua crista, subitamente, nós enxergamos.‖ Por mais elevada que seja para
Plotino, essa contemplação é natural, pois nossa natureza provém aí do Uno por emanação, é nele que
nós somos e que nós subsistimos. Nesta forma do panteísmo como nas demais, seria verdadeiro dizer
já de nossa natureza aquilo que a doutrina cristã diz da graça: ela é já uma participação da natureza
divina.
Proclo [40] diz do mesmo modo: ―A alma, ao inteligir, conhece a si mesma junto de todos os seres
contingentes. Mas, elevando-se acima da inteligência, ela se ignora e ignora também os contingentes;
unindo-se assim ao Uno, ela se compraz no repouso, fechada a todos os conhecimentos, tornada
muda e silenciosa, de um silêncio intrínseco.‖
Acerca dessa contemplação natural, é necessário recordar-se do que dizem a respeito Ruysbroeck e
Tauler. Este último diz no Sermão LV, 5: ―Se alguém considerasse esse caminho (da alta
contemplação) com uma liberdade abusiva e uma falsa luz, seria a maneira de proceder mais
lamentável que poderia haver no tempo. O caminho que conduz a este termo deve passar pela
adorável vida e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo… É por esta amável porta que é preciso passar,
forçando a natureza, exercitando-se na virtude com humildade, doçura e paciência. Em verdade,
sabei-o: quem não vai por este caminho acabará por extraviar-se‖. [41] Essa observação é feita
certamente para cristãos, mas mostra bem que diferença imensa existe entre a contemplação
sobrenatural e aquela que se encontra num Plotino ou num Proclo.
Recordemos, para terminar, as razões pelas quais a verdadeira mística, embora seja o desabrochar
normal da vida da graça, é, assim como a perfeita docilidade ao Espírito Santo, coisa rara mesmo na
Igreja visível, mesmo nas ordens religiosas, onde se acha todavia o auxílio dos sacramentos, da
comunhão cotidiana. Embora esteja ela no desenvolvimento normal da vida da graça, a vida mística
permanece um cimo e, lá onde ela existe, ela frequentemente não ultrapassa a IVª Morada ou oração
de quietude. A razão disso é que ela exige ordinariamente como condições: pureza de coração,
simplicidade de espírito, uma verdadeira humildade, amor ao recolhimento, perseverança na oração,
uma ardente caridade, o que se obtém utilizando da melhor maneira possível os grandes meios que a
Igreja nos proporciona, os sacramentos, a santa comunhão, deixando-se formar pela liturgia e pelo
estudo sobrenatural da doutrina sagrada. Esse conjunto de condições não se encontra realizado com
frequência nem mesmo nos católicos, muito menos ainda naqueles que não pertencem visivelmente à
Igreja.
E, portanto, – sem negar por mais minimamente que seja que os pagãos recebem graças
suficientes que lhes permitem, se a elas não resistirem, chegar à fé infusa das verdades absolutamente
necessárias à salvação e à caridade [42], – pode acabar sendo que ―a experiência do divino‖ que se
acredita observar em diversos ―místicos de fora‖ não seja, o mais das vezes, senão uma espécie de pré-
mística natural, profundamente distinta da verdadeira, que é de ordem essencialmente sobrenatural.
Se há algumas tentativas dessa última, parecem ser apenas de curta duração ou não ultrapassar os
graus inferiores do conhecimento quase-experimental de Deus.
A gente se dá conta disso melhor, ao comparar esses ensaios com o espírito e a vida dos santos, por
exemplo o que São Paulo diz da vida dos Apóstolos: ―Chamados de impostores e contudo verídicos, de
desconhecidos embora bem conhecidos; considerados como moribundos, e eis que estamos vivos;
como acabrunhados, nós que estamos sempre alegres; como pobres, nós que enriquecemos a muitos;
como não tendo nada, nós que possuímos tudo‖ (II Cor., VI, 8-10). Tal é a verdadeira mística, com os
sinais que a acompanham.
Esta solução, cremos ser ao mesmo tempo firme, para responder às exigências dos princípios, e
bastante maleável, para respeitar os diferentes modos de ação da graça divina nas almas. Ela evita os
dois erros que assinalamos no início deste artigo: o naturalismo e um pseudo-sobrenaturalismo
estreito como o dos jansenistas. Ela mantém, de um lado, que é uma grandíssima graça nascer na
Igreja Católica, e ela afirma com vigor, por outro lado, que Deus não manda jamais o impossível e que
Ele torna realmente possível a todo adulto o cumprimento dos preceitos que eles têm de observar.
Frisando-se, como fizemos, as deficiências desses místicos de fora, cremos que se propõe melhor a
verdadeira vida àqueles que, segundo a expressão de São Paulo, buscam-na como que às apalpadelas
(Act., XVII, 27) e que, pela graça de Cristo, mas somente por ela, podem encontrá-la e perseverar nela
até a morte.
Recordemo-nos de que Leão XIII, no começo deste século [vinte], consagrou o gênero humano ao
Sagrado Coração de Jesus; a irradiação dessa graça deve aumentar neste ano jubilar [a. 1933] que
marca o aniversário da Redenção.
Roma, Angelico.
fr. Rég. GARRIGOU-LAGRANGE, O. P.
_______________
1. Louis Massignon, La passion d’Al-Hosayn-ibn-Mansour-al-Hallâj, martyr mystique de l’Islam, 2 vol., Paris,
Geuthner, 1922. — Le Dîwân d’al-Hallâj, diário asiático, janeiro-março de 1931.
2. Miguel Asin Palacios, El Islam cristianizado, estudio del “sufismo” a través de las obras de Abenarabi de
Murcia, Madrid, 1931.
3. Émile Dermenghem, L’Éloge du vin (Al Khamriya), poema místico de Omar ibn al Faridh, ―L‘Anneau d‘or‖,
Les Éditions Véga, Paris, 1931. Tradução integral acompanhada de notas, introdução crítica e ensaio histórico e
teológico sobre a mística muçulmana.
4. Nouvelles Littéraires, 25 de janeiro de 1930. Resenha da obra do Pe. Bruno O. C. D. sobre São João da Cruz.
5. Études Carmélitaines de outubro de 1931, p. 162: ―L‘expérience mystique d‘Ibn‘Arabi est-elle surnaturelle ?‖
6. O Padre Clérissac, O. P., notara bem como os grandes problemas de nosso tempo desembocam neste.
Escrevia ele:
―Existe um fato notável. Não o chamo de o conflito das grandes tendências modernas (científicas, sociais e
místicas), mas de sua convergência, pois elas convergem por toda parte na direção de uma religião única, sejam
quais forem aliás os desígnios daqueles que as representam.
Sem dúvida, a questão científica se pôs em todos os tempos, se bem que antigamente ela provavelmente não
implicasse, como hoje, enigmas filosóficos nem problema algum de história e de exegese.
Sob as formas variadas da escravidão e do pauperismo, a questão social sempre nos assombrou.
Entre as formas extremas do iluminismo e do quietismo, as aspirações místicas encontraram no passado
múltiplas aberturas para se extravasarem.
Mas, em nossos dias, essas tendências adquiriram um aspecto especial e uma vida nova. Cada uma delas toma
algo de empréstimo às duas outras, e comunica-lhes em troca algo de si mesma: a ciência pretende ser religião,
o socialismo quer ser uma moral e se apresenta como culto febril à justiça; a mística, por seu turno, defende o
seu direito de ser científica. Some-se a isso que essas três tendências, por seu conteúdo e sua ação, concorrem
para realizar, sob uma forma definida e suprema, seja o conhecimento experimental de Deus, seja a apoteose do
homem. Não considero exagerado ver aí o maior acontecimento da história desde as invasões bárbaras. Não
tomemos um fato desses por simples manifestação de forças cegas. Acautelemo-nos contra a atração sedutora
dessas tendências que cativam por toda parte os espíritos e os corações; acautelemo-nos quanto à importância
das transformações inevitáveis que daí resultarão.‖
De fato, a estas aspirações gerais dos povos, respondem as últimas encíclicas do Soberano Pontífice sobre Cristo
Rei, sobre Sua influência santificadora em todo o Seu corpo místico, sobre a família e a santidade do
matrimônio cristão, sobre as questões sociais, sobre a necessidade de reparação, sobre as missões. Em todas
essas encíclicas está em jogo o reinado de Cristo sobre toda a humanidade. De tudo isso segue-se que, para ela
conservar a preeminência que ela deve ter sobre a atividade científica e sobre a atividade social, a religião, a
vida interior, tem de ser profunda, tem de ser uma verdadeira vida de união com Deus. É uma necessidade
manifesta.
7. Cf. Bulletin de la Société Française de Philosophie, maio-junho de 1925: Saint Jean de la Croix et le
problème de la valeur noétique de l’expérience mystique; cf. ibid., p. 87: Observações escritas pelo Sr. M.
Blondel ao Sr. J. Baruzi sobre o caráter infuso da contemplação de que fala São João da Cruz. Ver também R.
Dalbiez, Une nouvelle interprétation de saint Jean de la Croix (Vie Spirituelle, 1928): ―A interpretação integral
da experiência mística, ou será teológica, ou não existirá.‖ — Pe. Benoît Lavaud, O. P., Psychologie
indépendante et prière chrétienne (Revue Thomiste, 1929) e Les problèmes de la vie mystique (Vie Spirituelle,
junho de 1931).
8. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: Utrum homo possit sese ad gratiam praeparare sine gratia. – ―Ad hoc
quod praeparet se homo ad susceptionem doni gratiae habitualis oportet praesupponi aliquod auxilium
gratuitum Dei interius animum moventis, sive inspirantis bonum propositum‖ et Ia IIae q. 112, a. 3: Utrum ex
necessitate detur gratia, se praeparanti ad gratiam. – ―Praeparatio (non secundum quod est a libero arbitrio,
sed) secundum quod est a Deo movente, habet necessitatem ad id ad quod ordinatur a Deo, non quidem
coactionis, sed infallibilitatis: quia intentio Dei deficere non potest, secundum quod Augustinus dicit in libr. de
Dono persev., c. XIV: quod per beneficia Dei certissime liberantur, quicumque liberantur.‖
{N. do T. – Tradução livre da nota acima: « Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6: ―Se um homem, por si
mesmo e sem o concurso externo da graça, pode ou não pode preparar-se para a graça. …Ora, para que o
homem se prepare para receber esse dom, não é necessário pressupor algum dom habitual suplementar na
alma, do contrário continuaríamos até o infinito. Mas devemos pressupor um dom gratuito de Deus, que move
a alma interiormente ou inspira o bom desejo.‖ E também Ia IIae, q. 112, a. 3: ―Se a graça é ou não é dada
necessariamente a todo aquele que se prepara para ela. …A preparação do homem para a graça vem de Deus,
como Motor, e do livre arbítrio, como movido. Logo, a preparação pode ser considerada…tal como ela é desde
Deus, o Motor, e assim ela tem uma necessidade – não de coerção, claro, mas de infalibilidade – quanto àquilo
a que ela está ordenada por Deus, já que a intenção de Deus não tem como falhar, conforme o dizer de
Agostinho em seu livro sobre a predestinação dos santos (De dono persev., 14) de que ‗pelas boas dádivas de
Deus todo aquele que é libertado, é com plena certeza libertado‘.‖ »}
9. ―Notum Nobis Vobisque est, eos qui invincibili circa sanctissimam nostram religionem ignorantia laborant,
quique naturalem legem ejusque praecepta in omnium cordibus a Deo insculpta sedulo servantes ac Deo
obedire parati, honestam rectamque vitam agunt, posse, DIVINAE LUCIS ET GRATIAE OPERANTE VIRTUTE,
aeternam consequi vitam...‖ Denzinger, 1677.
{N. do T. – Tradução no contexto (o trecho citado na nota acima é o que vem grifado a seguir): ―E aqui,
queridos Filhos e Veneráveis Irmãos, é preciso recordar e repreender novamente o gravíssimo erro em que se
acham miseravelmente alguns católicos, ao opinar que os homens que vivem no erro e alheios à verdadeira fé e
à unidade católica possam chegar à eterna salvação. O que certamente se opõe em sumo grau à doutrina
católica. Coisa notória é para Nós e para Vós que aqueles que sofrem de ignorância invencível acerca de nossa
santíssima religião, que cuidadosamente guardam a lei natural e seus preceitos, esculpidos por Deus nos
corações de todos, e que estão dispostos a obedecer a Deus e levam vida honesta e reta, podem, AUXILIADOS
PELOS SOCORROS DA LUZ E DA GRAÇA DIVINAS, conseguir a vida eterna; pois Deus, que manifestamente
vê, esquadrinha e sabe a mente, o ânimo, os pensamentos e costumes de todos, não consente, de modo algum,
conforme Sua suma bondade e clemência, que ninguém seja castigado com os eternos suplícios que não for réu
de culpa voluntária. Porém, bem conhecido é também o dogma católico, a saber, que ninguém pode salvar-se
fora da Igreja Católica, e que os contumazes contra a autoridade e definições da mesma Igreja, e os
pertinazmente divididos da unidade da mesma Igreja e do Romano Pontífice, sucessor de Pedro, ‗a quem foi
encomendada pelo Salvador a guarda da vinha‘, não podem alcançar a eterna salvação.‖ (Papa Pio IX, Quanto
Conficiamur Moerore, Denzinger 1677).}
10. Cf. Dublanchy, De axiomate: Extra Ecclesiam nulla salus, Bar-le-Duc, 1895, p. 373 ss. e art. Église, col.
2.163 ss. do Dict. de Théol. Cathol. — Capéran, Le problème du salut des infidèles (ensaio teológico), Paris,
Beauchesne, p. 80 ss., 92. — Édouard Hugon, Hors de l’Église point de salut, Paris, Téqui, 2.ª ed., 1914, cap. I,
II, III, IV.
11. Como notam o Sr. Maritain (Les Degrés du Savoir, p. 542) e também o Pe. Bruno, parece todavia que o caso
de Ibn‘Arabi, narrado pelo Sr. M. Asin Palacios, requer muito maiores reservas que o de al-Hallâj, de que trata o
Sr. L. Massignon.
No número de abril de 1932 de Études Carmélitaines, o Sr. Miguel Asin Palacios, p. 139-239, cita textos
impressionantes do ―Sharh Hikam‖ de Ibn‘Abbâd Rondi, que certamente fazem pensar no que, mais tarde,
escreverá São João da Cruz, especialmente estas sentenças e seu comentário: ―Frequentemente Deus te ensina,
na noite da desolação, o que Ele não te ensina no esplendor do dia da consolação... Convém, pois, que o
servidor reconheça a graça que Deus lhe dá na noite de angústia‖ (citado ibid., p. 152). — ―As tribulações
escancaram generosamente o tesouro dos dons divinos... As tribulações levam a alma à presença de Deus e a
ensinam a conversar com Ele firmada na tapeçaria da sinceridade... Sê convicto da tua própria baixeza e Deus te
ajudará com Sua nobreza... Dize a teu Senhor, prosternado sobre o tapete da pobreza espiritual: ―Ó Rico! Quem
ajudará o pobre, senão Tu?‖ — ―Ó Forte! Quem ajudará o fraco, senão Tu?‖ — ―Ó Nobre! Quem ajudará o vil,
senão Tu?‖ (Ibid., p. 158).
Não se fica menos impressionado com o que é dito (ibid., pp. 118 ss.) das virtudes desse mestre: castidade,
mortificação, humildade, abnegação, caridade. Essas virtudes se exprimem nestas belas sentenças: ―Quem ama
ser famoso não é sincero diante de Deus‖ (ibid., p. 140); — ―Roga por aquele que te ofendeu, tua oração será
ouvida‖ (p. 143); — ―É nas tribulações que o homem pratica as virtudes interiores, dentre as quais a menor é
mais meritória do que montanhas de obras exteriores de virtude. São elas, por exemplo, a paciência, a
conformidade, a renúncia às coisas deste mundo, o abandono confiante à providência e o desejo de sair ao
encontro de Deus‖ (p. 145); — ―Para os que buscam a Deus, os dias de tribulação devem ser páscoas‖ (p. 157); —
―Mediante a visita de tribulações, aquele que busca a Deus obterá uma grande pureza de coração e uma
delicadeza de consciência que, por vezes, ele não obtém nem pela oração, nem pelo jejum‖ (p. 157); — ―Que o
servidor de Deus examine a obra com a qual gostaria de estar ocupado no momento mesmo de morrer, e que ele
a escolha...‖ (p. 161); — ―Engana-se aquele que se preocupa mais com suas devoções do que com suas
obrigações‖ (p. 162); — ―Há dois tipos de servidores: aquele que no estado místico se compraz em seu estado, e
aquele que está com Deus que lho concede‖ (p. 165).
Assegura-se-nos que Ibn‘Abbâd não escreveu poemas eróticos e que é por erro que se os atribuiu a ele.
{N. do T. – A nota acima foi levemente modificada pelo autor, quando este seu estudo de out. 1933 para
Études Carmélitaines foi incluído como penúltimo capítulo de seu livro de 1934 Le Sauveur et Son Amour pour
Nous, passando então a concluir com o seguinte parágrafo:
« Em contrapartida, uma pessoa muito clarividente, alma de oração, que vive em Marrocos, nos escreve depois
de tomar conhecimento desses textos de Ibn‘Abbâd: ―O trato cotidiano com as serventes daqui auprès des
fathmas qui nous servent (N. do T.) me demonstrou com frequência o quanto é preciso ter circunspecção para
dar um sentido ao seu vocabulário religioso e julgar acerca de sua vida interior. Constantemente, por exemplo,
elas empregam as mesmas palavras que nós para significar abandono à vontade divina, e contudo, que abismo
entre seu abatido fatalismo e nosso vívido abandono cristão! Isso me ajuda a compreender como pode haver
profunda diferença de fonte para os estados mais elevados que têm analogias aparentes.‖ »}
12. Por isso, os tomistas defendem geralmente como mais provável, com Santo Tomás (IIa IIae, q. 2, a. 7), esta
tese bem conhecida: ―Post Evangelium sufficienter promulgatum, fides explicita Incarnationis est omnibus
necessaria necessitate medii ad salutem.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Depois de o Evangelho ter sido
suficientemente promulgado, a fé explícita na Encarnação é, para todos, necessária com necessidade de meio
para a salvação.‖}
Santo Tomás, loc. cit., diz: ―Post tempus gratiae revelatae, tam majores quam minores tenentur habere fidem
explicitam de mysteriis Christi.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Depois de a graça ter sido revelada, tanto os
doutos quanto os simples estão obrigados a ter fé explícita nos mistérios de Cristo.‖}. — Item, IIa IIae, q. 2, a. 8,
fine, ad 1m et 2m.
A razão disso é que Jesus Cristo é o caminho para chegar à salvação: ―Ego sum via, veritas et vita‖ {―Eu sou o
caminho, a verdade e a vida‖} (João, XIV, 6). E São Pedro diz em Atos IV, 12: ―Non est aliud nomen datum
hominibus, in quo oporteat nos salvos fieri‖ {―Nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual devamos ser
salvos‖}. Não há como ser salvo a não ser por Cristo, sendo incorporado a Ele, pertencendo a Seu corpo místico;
isso parece exigir nos adultos, após a realização do mistério da Encarnação, uma fé explícita nesse mistério,
uma fé explícita n‘Aquele que apaga os pecados do mundo.
Sem embargo, podemos nos indagar se o Evangelho deve ser considerado como promulgado lá onde ele ainda
não foi pregado e lá onde sua pregação foi completamente esquecida. Em todo caso, mística verdadeira
pressupõe fé, no mínimo implícita, no Redentor.
13. São João da Cruz, no Cântico Espiritual, estrofe 37, diz que os mistérios que há em Cristo recebem o nome
de cavernas, para simbolizar sua profundidade e grandeza; que os tesouros que Ele encerra são semelhantes a
uma mina inesgotável; e que aquilo que os Doutores aí descobriram representa apenas uma mínima parte. Na
Subida do Carmelo, l. II, c. 20, ele mostra que é faltar com o respeito para com Cristo, que trouxe a plenitude
da Revelação, pedir revelações privadas. Ele insiste na palavra divina proferida no Tabor: ―Este é o meu Filho
bem-amado, em quem pus minha complacência; ouvi-o‖ (Mt., XVII, 5). São João da Cruz crê ademais, como
Santa Teresa, que o contemplativo não deve, por seu próprio movimento, afastar-se da consideração da
Humanidade de Cristo.
14. Études Carmélitaines, out. 1931, p. 162, art. já citado.
15. Ibidem, p. 163.
16. O Padre Allo, O. P., Mystiques Musulmans (Vie Spirituelle, 1.º de maio de 1932, p. 110), cita as palavras do
persa Bisthâmi, que transformado pela união, em nome de Alá exclamava: ―Não há outro Deus além de mim,
adorai-me. Glória a mim! Quão grande é a minha majestade!‖, e também aquelas de Al Hallâj: ―Ana al Haqq.
Eu sou a Verdade.‖ — ―Levemos em conta‖, diz ele, ―o exagero oriental; mas, também em território cristão, a
Inquisição teria tido que se haver com eles… No que toca ao ‗puro amor‘ deles, será mesmo de admirar aquela
boa mulher (de que fala E. Dermenghem, op. cit., p. 30) que queria apagar o inferno com seu balde de água e
queimar o céu com sua tocha, para que Deus deixasse de ser amado por outra razão que não por Si mesmo?‖ —
Esse artigo excelente do Padre Allo deve ser lido na íntegra, por sua incidência na questão que nos ocupa.
17. A propósito, por exemplo, do livro do Sr. E. Dermenghem, o Padre Allo escreve justamente (loc. cit., p. 114):
―Teríamos desejado que o distinto tradutor e comentador se apoiasse um pouco mais na crítica e fizesse ver
melhor que ele capta o alcance de todas essas diferenças. De fato, uma confiança nobilíssima no espírito
humano esclarecido e dirigido por Deus, uma largueza de coração quase demasiadamente ‗católica‘, levaram-no
a descobrir por toda parte os mesmo efeitos da iluminação divina, a reduzir tudo a um catolicismo que sabe
expressar-se mais ou menos bem; parece que ele muitas vezes não viu nada além de nuances onde, porém, há
contrastes de cor muito distintos… Há diferenças de espécie, e uma só espécie pode ser a boa, a verdadeira, a
sobrenatural.‖
18. Vie Spirituelle, loc. cit., p. 117.
19. A. Lemonnyer, L’existence des phénomènes mystiques est-elle concevable en dehors de l’Église ?, onde é
lembrada (p. 73-77 sq.) aquela boa distinção entre ―as graças místicas menores, que podemos chamar de
suplência (por causa da fragilidade do sujeito ou das dificuldades especiais em que ele se encontra) e as graças
místicas maiores, que nomearemos de perfeição‖; é destas últimas que falam habitualmente os autores
místicos, especialmente Santa Teresa, a partir da IVª Morada, ou das primeiras orações passivas.
20. Ver nessa obra a IIª Parte, cap. VI, Experiência mística e Filosofia, especialmente p. 532-539: ―Existe
experiência mística de ordem natural? 532. — Primeira objeção, 534. — Segunda objeção, 535. — Terceira
objeção, 539... As analogias naturais da experiência mística, 555-573.‖
21. Por causa dessa queda, ele nasce pecador, ―aversus a Deo, directe aversus a fine ultimo supernaturali et
indirecte aversus a Deo fine ultimo naturali‖ {N. do T. – Tradução livre: ―apartado de Deus, diretamente
apartado do fim último sobrenatural e indiretamente apartado de Deus, fim último natural‖}, pois todo
pecado que vá diretamente contra a lei sobrenatural vai indiretamente contra a lei natural, que nos prescreve
obedecer a Deus não importa o que Ele ordene.
22. Cf. os Comentadores de Santo Tomás no tratado da graça, Ia IIae, q. 109, a. 3. A maioria formula assim a
questão: ―Utrum homo lapsus possit diligere Deum super omnia ex solis viribus naturalibus sine gratia? et
Utrum homo lapsus possit sine speciali gratia omnia legis naturalis praecepta implere?‖. {N. do T. –
Tradução livre: ―Se só por suas próprias forças naturais e sem a graça o homem pós-lapsário pode amar a Deus
acima de todas as coisas?‖ e ―Se o homem pós-lapsário pode, sem uma graça especial, cumprir todos os
mandamentos da lei natural?‖} Nós tratamos amplamente, noutra parte, desse amor natural e ineficaz por
Deus: L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 107-150.
23. L’Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 199-205: ―Que pensar de uma apreensão imediata de Deus na
ordem natural‖.
24. É precisamente porque a Deidade, ou a Essência divina como tal, constitui um OBJETO FORMAL que
ultrapassa infinitamente o objeto próprio de toda inteligência criada, angélica ou humana, que Santo Tomás
pôde escrever C. Gentes, l. I, c. 3: ―Quod sint aliqua intelligibilium divinorum, quae humanae rationis penitus
excedant ingenium, EVIDENTISSIME APPARET.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Que, dentre as verdades
referentes a Deus, haja aquelas que excedem totalmente a capacidade da razão humana, É
EVIDENTÍSSIMO.‖}
O objeto próprio de nossa inteligência é efetivamente o ser inteligível das coisas sensíveis; a partir daí, ela pode
naturalmente elevar-se ao conhecimento da existência de Deus e das perfeições analogicamente comuns a Deus
e às criaturas, mas ela não pode elevar-se a conhecer (―quidditative‖) o que é em si A DEIDADE, objeto formal
da inteligência divina, nem o que pertence PER SE PRIMO, essencialmente e imediatamente a este objeto
formal. Como diz Santo Tomás, ibid.: ―Sensibilia ad hoc ducere intellectum nostrum non possunt, ut in eis
divina substantia videatur quid sit, quum sint effectus causae virtutem non aequantes.‖ {N. do T. – Na
tradução de D. Odilão Moura, OSB: ―As coisas sensíveis não podem levar o nosso intelecto a ver nelas o que é a
substância divina, porque elas são efeitos não equivalentes à virtude da causa.‖}
Os anjos não podem, tampouco, conhecer naturalmente aquilo que é o objeto próprio da inteligência divina:
―Non autem naturali cognitione angelus de Deo cognoscit quid est, quia et ipsa substantia angeli, per quam in
Dei cognitionem ducitur, est effectus causae virtutem non adaequans‖. {N. do T. – Tradução livre: ―O intelecto
angélico, porém, não conhece naturalmente o que Deus é, porque a própria substância angélica – da qual o anjo
se serve para chegar a conhecer Deus – é efeito não equivalente à virtude de sua causa.‖}
Santo Tomás, ibid., n.º 2. — Item, Ia, q. 1,a. 6: ―Sacra doctrina propriissime determinat de Deo, secundum quod
est altissima causa: quia non solum quantum ad illud, quod est per creaturas cognoscibile, sed etiam quantum
ad id, quod notum est sibi soli de seipso, et aliis per revelationem communicatum.‖ {N. do T. – Tradução livre:
―A doutrina sagrada ou: teologia sobrenatural trata, propriissimamente, de Deus enquanto causa excelsa: não
somente do que se pode conhecer d‘Ele por intermédio das criaturas, mas também do que só Deus conhece de
Si mesmo, e que é comunicado aos outros por revelação.‖}
É por causa dessa diferença de objeto formal que nós mantemos, contra uma objeção recente, que se pode
demonstrar que há em Deus uma ordem de mistérios sobrenaturais, isto é, de mistérios inacessíveis às forças
naturais de toda inteligência criada.
É por isso que Santo Tomás disse, na passagem da Contra Gentes que acabamos de citar: ―Evidentissime
apparet…‖ Se há um objeto formal que pode constituir uma ordem nova, é o da inteligência divina.
Tratamos desta questão mais extensamente no número de janeiro de 1933 da Revue Thomiste (p. 71-84), e em
De Revelatione, Vol. I, cap. 11. {N. do T. – Esse artigo para a Revue Thomiste foi incluído no ano seguinte como
o primeiro capítulo da Parte II de seu livro Le Sens du Mystère et le Clair-Obscur Intellectuel (cf. trad. esp.
baixável no site ObrasCatolicas.com): é o estudo sobre ―A existência da ordem sobrenatural ou da vida íntima
de Deus‖, em resposta à recém-mencionada objeção.}
27. ―Cum usum rationis habere incoeperit... primum quod tunc homini cogitandum occurrit, est deliberare de
seipso. Et si quidem seipsum ordinaverit ad debitum finem, per gratiam consequetur remissionem originalis
peccati‖ (loc. cit.). {N. do T. – Tradução livre: ―Quando começa a fazer uso da razão... a primeira coisa na qual
ocorre a um homem refletir então é deliberar sobre si mesmo. E, se ele então dirige-se para o devido fim, ele,
por intermédio da graça, receberá a remissão do pecado original.‖ (Ia IIae, q. 89, a. 6).}
28. Cf. Sto. Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3.
29. Os convertidos recebem por vezes também, no momento de sua conversão, graças propriamente místicas e
mesmo graças inteiramente extraordinárias, como a conversão do Padre A. Ratisbonne, que lembra a de São
Paulo.
30. Cf. João de S. Tomás, Cursus Theol., De Donis, In Iam IIae, q. 68, diss. XVIII, a. 2; Solv. obj. nº 6: Como o
Espírito Santo vem em socorro de nossa fraqueza em meio às dificuldades. Cf. Sto. Tomás de Aquino, Ia IIae, q.
68, a. 2, ad 1 e 3. — Nós tratamos noutra parte da influência dos dons do Espírito Santo na vida ascética,
influência esta latente e bastante frequente, ou então manifesta mas rara, enquanto que na vida mística ela se
torna simultaneamente frequente e bastante manifesta. Cf. Perfection Chrétienne et Contemplation, 6ª ed., p.
371, 404-408, 769.
31. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 3, e nos comentadores, no início do tratado da graça, a exposição da tese:
―Utrum homo in statu naturae lapsae nondum reparatae minores vires habeat ad bonum morale (naturale)
quam habuisset in statu naturae purae?‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Se o homem em estado de natureza
decaída ainda não reparada tem menos forças para realizar o bem moral (natural) do que ele teria em estado de
natureza pura?‖}.
32. Cf. Santo Tomás, Ia IIae, q. 109, a. 6; e q. 112, a. 3.
33. Como observa o Pe. Lemonnyer, art. cit., p. 73 et sq.: ―As graças místicas menores são, propriamente,
graças de suplência. Deus, para concedê-las, leva menos em consideração o mérito, que a necessidade. Ele as
mantém em reserva, antes como socorros misericordiosamente concedidos à fraqueza, que como meios diretos
de acelerar o progresso na perfeição… Se há candidatos natos às graças místicas menores, são aqueles católicos
incógnitos, membros unicamente da Igreja espiritual… Faltam-lhes tantas coisas…‖
34. Cf. Pe. Allo, art. cit., p. 108 sq.: ―Os ‗sufis‘ ou contemplativos maometanos aprofundaram e vivificaram o
monoteísmo do Corão, que sempre foi a autoridade dogmática deles; se o cristianismo (eles estimavam
enormemente os monges cristãos) exerceu sobre eles algumas influências, foram bem menores que as do
neoplatonismo. O Vedanta indiano exerceu também as suas… Naturalmente que não admitiam a Encarnação,
dogma cristão. Eles veneravam muito a Jesus… que era para eles o tipo mesmo da união transformante… Eles
foram muitas vezes, embora no geral ortodoxos, expostos às calúnias e perseguições dos teólogos literalistas, ao
ponto de terem seus mártires, como o famoso Al Hallâj.‖ Compreende-se que, num meio desses e com tais
provações, haja nos melhores uma certa intimidade com Deus e genuínas inspirações do Espírito Santo.
35. Essas graças devem mesmo ser mais frequentes depois da Consagração do gênero humano ao Sagrado
Coração, feita pelo Papa Leão XIII no começo deste século {vinte}. E Maria, Mãe de todos os homens,
certamente obtém a salvação de muitos pecadores. {N. do T. – Mais ainda depois da Congração do Mundo ao
Imaculado Coração de Maria, com menção especial à Rússia, realizada pelo Papa Pio XII em 31 de outubro de
1942 (repetida a 8 de dezembro) e, ainda mais explicitamente, em 7 de julho de 1952.}
36. Cf. Lemonnyer, loc. cit.: ―As graças ou fenômenos místicos maiores supõem uma caridade em vias de se
tornar perfeita, e chamada a sê-lo efetivamente. Mesmo no seio da Igreja visível, onde a graça de Jesus Cristo se
derrama com maior abundância, são raras, em suma, as almas que Deus assim favorece, após tê-las disposto a
tanto. É-se levado a crer que sejam bem mais raras ainda naquela dispersão onde a atmosfera espiritual é
menos pura e são tão reduzidos os meios exteriores de santificação... A existência de fenômenos maiores da
vida mística permanece perfeitamente concebível naquela porção da Igreja espiritual que é exterior à Igreja
visível, se bem que há fortes razões a priori para crê-la raríssima.‖
37. Não obstante, como foi justamente assinalado: ―Se o coração é humilde e fiel sem saber dizê-lo, a graça
sobrenatural saberá tomar plena posse dele, e tal imperfeição na formulação doutrinal nada mais será que
homenagem muda e involuntária à plena transcendência da Revelação cristã.‖ — As graças prevenientes e de
confortação, concedidas às almas mais conscienciosas desses meios pagãos, visam talvez menos, em geral,
retificar fórmulas abstratas que traduzem mal por vezes o que está no fundo da inteligência e do coração, que
compensá-las no movimento concreto da alma para Deus, delas surrupiando o veneno mediante o vazio da
teologia negativa, mediante o espírito de renúncia e de abandono. Assim Eckart e Rosmini juntavam a fórmulas
especulativas errôneas uma verdadeira caridade.
38. Ia, q. 63, a. 3: ―In hoc angelus appetiit indebite esse similis Deo, quia appetiit ut finem ultimum
beatitudinis id ad quod virtute suae naturae poterat pervenire, avertens suum appetitum a beatitudine
supernaturali, quae est ex gratia Dei.‖ {N. do T. – Tradução: ―O anjo maligno desejou indevidamente ser
semelhante a Deus, porque desejou como fim último de sua bem-aventurança aquilo a que poderia chegar com
suas próprias forças, desviando o seu desejo da bem-aventurança sobrenatural, que é dada pela graça de
Deus.‖}
39. Enéadas, V, 5, 10; IV, 3, 32 {N. do T. – Na versão que pude consultar: V, 5, 8; VI, 7, 36}.
40. Procli Opera Inedita, edição de Victor Cousin, Paris, 1864, col. 171.
41. Cf. Sermões de Tauler, tradução pelos Rev.s Pe.s Hugueny, Théry O.P., e A. L. Corin. Introdução teológica
do Pe. Hugueny, t. I, pp. 92, 93.
42. Santo Tomás diz até que não repugna que Deus faça um milagre para confirmar uma verdade natural da
religião ou o valor de uma virtude como a castidade. Cf. De Potentia, q. 6, a. 5, ad 5m, onde ele diz, a propósito
de uma vestal que teria carregado água do Tibre num vaso perfurado, como relata Santo Agostinho em De
Civitate Dei, l. X, c. 26: ―Non est remotum quin sit in commendationem castitatis quod Deus verus per suos
angelos bonos hujusmodi miraculum, per retentionem aquae fecisset, quia si aliqua bona in gentibus fuerunt, a
Deo fuerunt.‖ {N. do T. – Tradução livre: ―Não se exclui que, para recomendar a castidade, o verdadeiro Deus
fizesse por meio de Seus anjos bons um milagre desse gênero, retendo a água, pois se houve entre os pagãos
alguns bens, estes vieram de Deus.‖} É verdade que esse fato extraordinário não é um milagre propriamente
dito, pois não excede o poder natural dos anjos bons ou maus.
_____________
PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Rev. Pe. R. GARRIGOU-LAGRANGE, O. P., A graça de Cristo e os ―místicos de fora‖ — Pré-
mística natural e mística sobrenatural, Roma, 1933; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, abr.
2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2gn
de: ―Prémystique naturelle et mystique surnaturelle‖, publicado originalmente em: Études
Carmélitaines, out. 1933, pp. 51-77 [cf. transcrição em:
https://web.archive.org/web/20040322113858/http://www.salve-
regina.com/Spiritualite/Premystique_naturelle.htm], e reproduzido no ano seguinte pelo A. sob o
título ―La grâce du Christ et les mystiques du dehors‖, como capítulo XVIII de seu belíssimo livro: Le
Sauveur et Son Amour pour nous, pp. 427-64.