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501 A Grande Guerra em O Malho: construção de um projeto civilizador (1914-1918) Fernanda Bana Arouca 1 Resumo: O surgimento das revistas ilustradas no começo do século XX proporcionou uma mudança na transmissão da informação assim como a formação da opinião pública. Nesse sentido, as revistas tiveram um importante papel na cobertura da I Guerra Mundial (1914- 1918). O confronto comumente marca o fim Belle Époque, e, ainda que não tenha participado militarmente da guerra, o Brasil se destacou como sendo o único país sul-americano a enviar homens para a Europa. Os intelectuais à frente dos periódicos foram os mediadores culturais do conflito para os brasileiros, que imaginavam a Grande Guerra a partir de seus comentários, dos informes e fotografias. Propomo-nos a examinar o discurso civilizador por meio das representações da Grande Guerra em O Malho e se ele estava em consonância com o projeto civilizador que o país passava. Palavras-chaves: Primeira Guerra Mundial, imprensa ilustrada, Rio de Janeiro, representações Abstract: The emergence of the illustrated press in the early 20th century provided a shift in the transmission of the information as well as the shaping of the public opinion. Therefore such magazines had an important role on the coverage of the First World War (1914-1918). The conflict commonly sets the end of the Belle Époque and, although it has not been a military participant, Brazil stood out as the only south-american country to send men to Europe. The intellectuals ahead the periodicals were the cultural mediators of the conflict to brazilians, who imagined the Great War through their comments, reports and photographs. We seek to examine the civilization discourse through representations of the Great War on O Malho and if this discourse was in accordance with the civilizational project happening in Rio de Janeiro. Key-words: First World War, illustrated press, Rio de Janeiro, representations I Durante a Primeira República, houve um avanço da tecnologia e do processo de produção da imprensa, que passou a ter uma estrutura semi-empresarial. Passou a se 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ, sob orientação da Profa. Dra. Sílvia Adriana Barbosa Correia. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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A Grande Guerra em O Malho: construção de um projeto civilizador (1914-1918)

Fernanda Bana Arouca1

Resumo: O surgimento das revistas ilustradas no começo do século XX proporcionou uma

mudança na transmissão da informação assim como a formação da opinião pública. Nesse

sentido, as revistas tiveram um importante papel na cobertura da I Guerra Mundial (1914-

1918). O confronto comumente marca o fim Belle Époque, e, ainda que não tenha participado

militarmente da guerra, o Brasil se destacou como sendo o único país sul-americano a enviar

homens para a Europa. Os intelectuais à frente dos periódicos foram os mediadores culturais

do conflito para os brasileiros, que imaginavam a Grande Guerra a partir de seus comentários,

dos informes e fotografias. Propomo-nos a examinar o discurso civilizador por meio das

representações da Grande Guerra em O Malho e se ele estava em consonância com o projeto

civilizador que o país passava.

Palavras-chaves: Primeira Guerra Mundial, imprensa ilustrada, Rio de Janeiro,

representações

Abstract: The emergence of the illustrated press in the early 20th century provided a shift in

the transmission of the information as well as the shaping of the public opinion. Therefore

such magazines had an important role on the coverage of the First World War (1914-1918).

The conflict commonly sets the end of the Belle Époque and, although it has not been a

military participant, Brazil stood out as the only south-american country to send men to

Europe. The intellectuals ahead the periodicals were the cultural mediators of the conflict to

brazilians, who imagined the Great War through their comments, reports and photographs.

We seek to examine the civilization discourse through representations of the Great War on O

Malho and if this discourse was in accordance with the civilizational project happening in Rio

de Janeiro.

Key-words: First World War, illustrated press, Rio de Janeiro, representations

I

Durante a Primeira República, houve um avanço da tecnologia e do processo de

produção da imprensa, que passou a ter uma estrutura semi-empresarial. Passou a se

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ, sob orientação da Profa.

Dra. Sílvia Adriana Barbosa Correia. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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estabelecer uma divisão do trabalho em que, além da redação se separar definitivamente das

oficinas de produção, multiplicaram-se suas divisões a fim de atender a demanda por notícias

inéditas do público. Entre outros marcos do período está a inauguração em 1874 da primeira

agência de notícias no país — a Havas — e o desenvolvimento, ainda durante o Império, do

sistema de correios, telégrafo e transportes, possibilitando a disseminação dos periódicos pelo

território nacional.2 Nesse contexto de delineamento da comunicação em massa, as revistas

ilustradas semanais de grande tiragem tiveram um papel essencial, sobretudo por estarem

atreladas ao cotidiano. Dessa forma, se caracterizavam como “obras em movimento”, de

caráter inacabado, escrita acessível e com possibilidade de intervenção mais rápida.3

Nos primeiros anos do século XX, o discurso da imprensa em geral passou a estar

unificado e alinhado ao projeto político nacional, em que as ideias de progresso, modernidade

e civilização se confundiam, afastando-se o quanto possível dos costumes provincianos da

sociedade escravista. É importante notar que a concepção de moderno não era fechada,

podendo abarcar diversos significados. As revistas tiveram um papel importante na

disseminação desse ideal, apresentando-o e difundindo-o para a população. No Brasil, a

cidade do Rio de Janeiro foi a vitrine para a Belle Époque, buscando representar o

cosmopolitismo, europeização e modernização. O processo de missão civilizadora que

aconteceu na capital e foi desenvolvida durante a I República também inaugurou “lugares

sociais que questiona[ra]m de forma cética e satírica, embora ambígua, esta mesma

vocação”4, e tem raízes na segunda metade do XIX quando, durante o Segundo Reinado,

houve a instauração de um projeto de Estado moderno, se distanciando da experiência

colonial.5

Nesse sentido, no final do século XIX o Brasil esforçava-se por se modernizar e se

integrar por meio do progresso à cultura europeia, que representava para as elites o que seria o

padrão de civilização. O modelo urbano parisiense de George-Eugène Haussmann foi

aplicado pelo prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro em 1906, simbolizado pela

inauguração da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Sobretudo durante a presidência

de Rodrigues Alves (1902-1906), a então capital do país servira de vitrine para a remodelação

que o país buscava alcançar, situação análoga a que a Argentina passava com as reformas em

Buenos Aires. As cidades nesse momento não se adequavam às aspirações das elites. Além

2 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa (1800-1900). Rio de Janeiro: Mauad, 2010, p. 15.

3 VELLOSO, Monica Pimenta. “As distintas retóricas do moderno”. In: DE OLIVEIRA, Claudia; LINS, Vera;

VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em Revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio

de Janeiro: Garamond. 2010, p. 43-44. 4 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio. Modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 27.

5 Idem, p. 27.

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das reformas urbanas, que levou ao “bota-abaixo” (destruição de cortiços e casas populares no

centro da cidade), o esforço se traduziu também, sob liderança de Oswaldo Cruz, na tentativa

de erradicar a febre amarela.

Como mencionado, essa tentativa de se modernizar tinha raízes ainda durante o

Império, quando o Brasil se utilizou do princípio dinástico para sua legitimação, buscando

dessa forma se diferenciar das demais nações do continente americano, ainda que sob uma

monarquia conservadora. Para isso, se valeu de sua ligação com a tradição europeia, se

colocando no âmbito da “civilização”. Dessa forma, o país, apesar de suas contradições

internas, deteria uma superioridade frente aos demais.6 Nesse contexto, a identidade que o

Estado visava produzir excluía tanto o instituto da escravidão quanto a população negra

mestiça, objetivando, assim, colocar o Brasil como herdeira da “civilização” europeia nas

Américas. A partir de 1870, com a virada anti-romântica, diversos intelectuais passaram a

combater a Monarquia e o passado que consideravam retrógrado.

A segunda metade do século XIX foi palco para mudanças de percepções e

sensibilidade sociais no Brasil e o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870) foi um marco na

divisão entre o tempo antigo e o moderno. A Escola de Recife — um movimento que, na

dimensão de crítica literária, abarcou a introdução do naturalismo, do evolucionismo e

cientificismo no país — buscou inserir o país na modernidade e definir a nacionalidade,

buscando compreender a identidade múltipla nacional e se valendo do paradigma científico

par determiná-la. A literatura brasileira, nesse sentido, seria uma combinação de estilo

tropical7 e mistura étnico-cultural. Os intelectuais vinculados a ela, por exemplo, defendiam

uma literatura nativa, como é o caso de Os Sertões de Euclides da Cunha.8

Produziu-se nesse meio uma ambivalência. Havia a identificação de uma realidade

exótica no país, permitindo um distanciamento em relação à cultura local, e ao mesmo tempo

existia uma dimensão negativa em relação à essa perspectiva, que culminava em uma relação

etnocêntrica no que diz respeito às culturas negra, indígena e miscigenadas.9 Dentro dessa

6 SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. “A América do Sul no discurso diplomático brasileiro.” In: Rev. Bras.

Polít. Int. 48 (2): 185-204, 2005, p. 2. 7 Segundo VENTURA (1987, p. 34), tal conceito, de natureza sincrética, “realiza a integração de uma

designação geográfica para a natureza ou o meio-ambiente, como ‘trópicos’, característica de uma relação entre

‘centro’ e ‘periferia’, a uma teoria de estilo literário nacional, revelando a possibilidade de construção de

sociedade e cultura em espaços ‘marginais’ a um modelo eurocêntrico de natureza e história.” 8 VELLOSO, Monica Pimenta. “O Modernismo e a questão nacional.” In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,

Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação

da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2003,, p. 355-356. 9 VENTURA, Roberto. “‘Estilo tropical’: a natureza como pátria.” In: Ideologia and Literature, nova série, vol.

II, n9 2, out: 27-38, 1987, p. 33.

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lógica, o atraso e inferioridade poderiam ser remediados se o país se inserisse no contexto

internacional.

Pouco tempo depois, com a proclamação da República, em 1889, e diante da inércia

em ultrapassar fundamentos tradicionais que culminariam no progresso da sociedade, a

intelligentsia brasileira teria passado por um momento intitulado pela historiografia como

“desilusão republicana”, que culminou em uma produção humorística específica.10

Em

relação à imprensa, essa produção teria se dado em um espaço onde as representações eram

fortemente relacionadas às promessas sociais da época, em última análise de cunho

civilizador, como afirma Elias Thomé Saliba em seu importante estudo Raízes do Riso. Cabe-

nos destacar que o posicionamento dos artistas não foi homogêneo e em certos momentos

também se colocaram a favor de ações políticas.

De acordo com Angela de Castro Gomes, uma categoria importante nesse sentido é a

de sociabilidade, que contém a noção de “rede”, isto é, organizações mais ou menos

estruturadas que garantiam a troca de ideias e eram espaços de aprendizado. Outra é a de

“microclimas” que denota as relações pessoais e profissionais de seus integrantes. Com seu

engajamento, esses intelectuais consagraram interpretações alternativas do que se entendia e

desejava postular como Brasil moderno.11

Gomes atenta para a dimensão política que a

produção estética dos intelectuais teve na medida em que eles eram produtores de bens

simbólicos e elaboraram interpretações da realidade social. Entretanto, não necessariamente

essa produção tinha a ver com o engajamento a um projeto político, uma vez que esses

intelectuais trabalhavam com uma ampla liberdade de escolha. Além disso, não caberia falar

de intelectuais cariocas já que a cidade do Rio de Janeiro era um polo de atração de escritores

e artistas de várias partes do Brasil.12

O perfil desses intelectuais combinava uma

aproximação com o Estado, já que vários deles eram funcionários públicos (em uma

alternância entre dependência, atração e desprezo em relação aos seus empregadores), e a

eleição da “rua” como o locus de sociabilidade, tendo em vista que esses homens não

conseguiram ascender ao topo da elite política. Existia também um esvaziamento de sua força

e independência criadora, fazendo parte da “Velha República das Letras”.13

Desse contexto surgiu a produção das revistas de humor, que estava intrinsicamente

vinculada à dinâmica do grupo social que as compunha, os boêmios. Em torno das mesas de

10

Um mapeamento dos trabalhos referentes a visão da caricatura da Primeira República como continuidade

desse sentimento foi feito por Pedro Krause em Usos do povo no discurso político da charge: Zé Povo e Zé

Povinho na imprensa luso-brasileira (1875-1912) (Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2011, p. 22-30). 11

GOMES, op. cit, p. 21-22. 12

Ibidem, p. 19. 13

GOMES, op. cit, p. 24.

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confeitaria ou na Rua do Ouvidor, os literatos, formadores de opinião, levados pelo espírito

do riso e associados à poesia parnasiana, conquistaram seu prestígio por intermédio da vida

social, seja nos salões, contando anedotas, e nos campeonatos de chistes, seja na imprensa,

ainda que o mercado livreiro fosse na época muito estreito14

e a remuneração não fosse alta.15

Entre os participantes desse grupo podemos destacar José do Patrocínio Filho, Raul

Pederneiras, Yantok e Emílio de Menezes. Todos tentavam manter suas atividades

jornalísticas, embora tivessem que buscar outras formas de ganhar a vida. Com raras

exceções, todos trabalharam em revistas ilustradas, combinando diversas funções.

Paralelamente às mudanças que ocorriam nos jornais — tais como o declínio do

folhetim, o maior emprego de entrevistas e maior força da crítica literária e tendência a textos

mais objetivos — o

surgimento das revistas ilustradas semanais de grande tiragem

proporcionou uma mudança na transmissão da informação assim como, consequentemente, a

formação da opinião pública. O intelectual nessa nova configuração teve um papel de

destaque por perceber o papel estratégico das revistas ao possibilitar a disseminação de ideias

e ser um espaço para projetos político-culturais, onde muitas vezes também se tornavam

proprietários ou integrantes do processo editorial. Dessa forma, se formou um microcosmo

que ampliou o circuito da comunicação intelectual e permitiu o desenvolvimento de novas

formas de expressão e de linguagem, seja com caricaturas, propaganda ou poesia. Foi também

um meio em que o ideal civilizador e de modernidade poderia ser expresso, reforçando a ideia

de arte e estética vinculada a ele.16

Parte da “cultura da modernidade” pôde ser manifestada,

assim, por uma nova forma de comunicação social, onde surgiram experimentações com o

intuito de se criar novos sons e significados, e também na forma como os intelectuais

buscavam expressar suas inclinações artísticas, suas atitudes cotidianas de grupo e seu

comportamento.17

Nesse sentido, a visualidade foi uma das principais características dessas publicações,

que recorriam a diversas estratégias comunicativas com o intuito de chamar a atenção do

público e dialogar com ele, principalmente pela criação de símbolos. Esses personagens

14

A título de comparação, na época uma edição de 1000 exemplares era considerada satisfatória para livros de

prosa, contrastando com a edição média, por exemplo, de Émile Zola, que ficava por volta de 139 mil. (In:

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como. Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 88.) 15

LUSTOSA, Isabel. Brasil pelo Método Confuso. Humor e boemia em Mendes Fradique. Rio de Janeiro:

Bertrand do Brasil, 1993, p. 35-43. 16

VELLOSO, Monica Pimenta. Percepções do moderno: as revistas do Rio de Janeiro. In: NEVES, Lucia Maria

Bastos; MOREL, Mario; FERREIRA, Tania Maria Bresson (Orgs.). História e Imprensa: representações

culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 314. 17

VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Fundação

Getúlio Vargas, 1996, p. 66; 76.

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funcionavam como mediadores, garantindo a comunicação entre o mundo do texto e o do

leitor. A construção de tipos, que vinculavam ideias, situações e diferentes valores, como é o

caso do famoso personagem Zé Povo, possibilitava uma identificação por parte do público,

adentrando em seu cotidiano e, dessa forma, garantindo a popularidade das revistas. Toda a

sua lógica estava voltada para operacionalizar o moderno, para a nova temporalidade,

familiarizando o público a partir de uma linguagem de humor, vinculada à rede de

sociabilidade que estava por trás de sua formação e expressando sua identidade e cultura

boêmia.18

Nossa fonte escolhida para análise, O Malho, circulou semanalmente entre 1902 e

195419

, tendo sido fundada na cidade do Rio de Janeiro por Luis Bartolomeu. Se no princípio

veiculava conteúdo humorístico, a partir de 1904 a publicação passou a ter um conteúdo

voltado para sátira política e ficou famosa pelo tom de ironia de suas charges e caricaturas,

disputando espaço com a popular Revista da Semana20

. Outros nomes da boemia fluminense

também participaram da equipe como Olavo Bilac, Guimarães Passos, Pedro Rabelo, Renato

de Castro, Emílio de Meneses e Bastos Tigre e entre os que assinavam suas caricaturas e

charges estavam grandes nomes nacionais como Kalixto, Raul Pederneiras, J. Carlos, Crispim

do Amaral, Alfredo Storni, Augusto Rocha, Yantok, Loureiro, entre outros.

Algo era recorrente nas revistas da época. Seu editorial desde a primeira edição

anunciava um caráter satírico e humorístico, um manifesto que se alinhava ao projeto desses

periódicos de serem os porta-vozes da modernidade, e que visava angariar desde o início a

simpatia do público. No caso de O Malho, o seu projeto tinha como objetivo atingir o

“Público”, isto é, o leitor mais sofisticado, embora tenha sido muito popular entre classes

mais baixas como barbeiros e engraxates. Seu repertório era variado, incluindo seções de

opinião, poesia, notícia, piada, sempre com diversas ilustrações e fotografias, característica

desse tipo de publicação. Também mantinha uma postura editorial independente, se

posicionando em relação às polêmicas políticas e sociais da época.

Concomitante às transformações dos meios de comunicação, dos hábitos, costumes,

arquitetura, enfim, às profundas mudanças dos modos de vida que os habitantes da cidade do

Rio de Janeiro passavam no início do século XX, havia também alterações nos valores

18

VELLOSO, Monica Pimenta. Percepções do moderno: as revistas do Rio de Janeiro. In: NEVES, Lucia Maria

Bastos; MOREL, Mario; FERREIRA, Tania Maria Bresson (Orgs.). História e Imprensa: representações

culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 326-29. 19

Devido a sua contraposição à Aliança Liberal, ficou impedida de circular por alguns meses após a Revolução

de 1930. 20

Fundada por Álvaro de Teffé em 1900, a Revista da Semana foi pioneira no uso de técnicas de fotozinco e

fotogravura nesse tipo de publicação.

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interiores dessa sociedade, isto é, na sensibilidade coletiva; as rápidas transformações nos

padrões da ação, do gosto e do pensamento, em meio a volatização dos valores tradicionais.

Foi desse contexto que despontaram as revistas de variedades ilustradas semanais. Parte de

uma nova forma de consumo e visualidade, elas foram parte determinante para disseminar

uma visão de mundo por parte dos intelectuais que as dirigiam.

O fim desse período da Belle Époque é comumente delimitado pelo ano de 1914,

quando teve início a I Guerra Mundial. Com o conflito então teria se dado um distanciamento

dos intelectuais em relação à Europa a favor das novas reflexões sobre a identidade brasileira

que surgiram no período.21

É importante notar que essas revistas recém-criadas eram

formadas por homens de letras, muitos dos quais eram aliadófilos22

e utilizavam os meios de

comunicação para se manifestar. Entre os grupos que se mobilizaram para apoiar a Entente, se

destaca a chamada “Liga Brasileira pelos Aliados”, fundada em 1915 e formada por

intelectuais e políticos como Olavo Bilac e Graça Aranha. Em um momento em que se deu a

profissionalização do literato em jornalista, essa intelectualidade se mostrou uma figura

poderosa, emergindo como agente social diferenciado ao cristalizar e difundir as

representações da guerra. Foram eles os mediadores culturais do conflito para os brasileiros,

que imaginavam a Grande Guerra a partir de seus comentários, dos informes da imprensa por

meio de agências internacionais, e de fotografias. De fato, tais publicações atingiam e

transformavam os hábitos também das camadas populares, apesar de serem endereçadas às

elites. Em um período de alto analfabetismo, esses leitores foram expostos a imagens

publicitárias, desenhos, mapas, cartazes e estandartes, frutos de uma “pedagogia urbana”

moderna.23

Dessa forma, ao auxiliar na coesão interna da classe dominante, as revistas

ilustradas tiveram papel fundamental na naturalização de suas representações, difundindo uma

determinada forma de ver e reproduzir o mundo, entre tantas possíveis.

II

Caracterizada como uma experiência sem precedentes por sua violência extrema, a

Grande Guerra (1914-1918) fez com que os homens tivessem que se confrontar e lidar com

21

OLIVEIRA, Lucia Lippi. “A Primeira Guerra e o Brasil.” In: LIMONCIC, Flávio; MARTINHO, Francisco

Carlos Palomanes. A experiência nacional: Identidades e conceito de nação na África, Ásia, Europa e nas

Américas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 60. 22

Configura-se como Aliados, ou Tríplice Entente, o Reino Unido, França e Império Russo, e como Impérios

Centrais, a chamada Tríplice Aliança, Alemanha, Império Austro-húngaro, à qual se juntariam o Império

Otomano e Bulgária. 23

DE OLIVEIRA, Claudia; LINS, Vera; VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em Revistas: representações

do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 89.

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ela em diversos níveis, fossem eles pessoais, políticos ou culturais. A “guerra total”24

ultrapassou os limites da frente de batalha e afetou todas as esferas do cotidiano. Ao ser

domesticada, sua experiência foi trazida para o centro da vida de homens e mulheres, e estava

fortemente relacionada à maneira como eles a confrontaram e lhe deram sentido.

Ainda que não tenha participado militarmente da guerra, a América Latina foi

espectadora do confronto liderado pela França e pela Alemanha. O Brasil se destacou como

sendo o único país sul-americano a enviar homens para a Europa em 1918, quando,

primeiramente, rompeu relações diplomáticas com a Alemanha e, no mesmo ano, entrou no

conflito. Sua participação contou com o envio de uma missão médico-militar à França, nove

oficiais aviadores do Exército e da Marinha para auxiliar nos combates aéreos, e uma Divisão

Naval, que foi vítima da pandemia de gripe espanhola na África. Embora se tenha declarado

neutro até 1917, tal fato não impediu que mobilizações a favor e contra a eclosão da guerra ou

a favor dos Aliados e dos Impérios Centrais tenham ocorrido no país. Pelo contrário, a

imprensa desde o início fez ampla cobertura do conflito, buscou o apoio da opinião pública e

criticou a política brasileira.

Durante a guerra, a herança do sistema de representações da Belle Époque possibilitou

que a França fosse o grande paradigma moral para muitos brasileiros. A civilização francesa,

encarnando o ideal latino — palco da Revolução de 1789, filha das Luzes e mãe dos direitos

do homem e do cidadão — estaria enfrentando a barbárie militarista e expansionista do Reich

alemão. Dessa forma, um sentimento pró-Aliado, que se confunde com uma francofilia,

expresso majoritariamente pelas elites brasileiras, pôde ser observado já desde 1914. Essa

referência intelectual e o culto à França se combinaram com a dominação financeira e

comercial da Grã-Bretanha.

Paralelamente, havia círculos neutros, pouco mencionados pela historiografia e que

tinham pouco acesso aos meios de imprensa, além dos germanófilos, advindos, sobretudo, de

mobilizações imediatas de comunidades de imigrantes alemães. Setores das elites militares,

membros da hierarquia católica, juristas e homens de leis, assim como sociólogos e filósofos,

mesmo que de forma não exclusiva, também deram preferência ao lado alemão no decorrer da

guerra. Ainda que seja necessário um aprofundamento das pesquisas no Brasil em torno da I

Guerra Mundial, podemos sugerir que a escolha pelo lado francês não foi unanimidade, e

tampouco a relação binária França x Alemanha seja suficiente para situar a posição de setores

24

Em State, society and mobilization: in Europe during the First World War (New York: Cambridge University

Press, 1997), John Horne considera as vantagens de tratar a “guerra total” como um processo durante os anos de

1914-1918, em vez de um resultado alcançado.

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da sociedade brasileira nesse período. Sobre o posicionamento da imprensa durante a guerra,

o brasilianista Thomas Skidmore atenta que

Os jornais e as revistas mais populares seguiam, geralmente, a linha pró-aliados e apresentavam a

guerra como uma ameaça de barbárie à liberdade e à cultura. A propaganda inglesa sobre a violação

da Bélgica, acompanhada da descrição da carnificina de bebês, foi reproduzida e glosada pela

imprensa brasileira. Tal lealdade à causa aliada não é de surpreender. A elite brasileira estava

empapada de cultura francesa. Poucos dos seus membros jamais se tinham sentido verdadeiramente à

vontade com a civilização germânica.25

No que diz respeito ao posicionamento de O Malho, durante os primeiros anos do

conflito não houve declaradamente o apoio a nenhuma potência. Pelo contrário, pode se

verificar um distanciamento em relação à Europa tendo em vista que a destruição do que é

considerado o patrimônio da Humanidade é arrasado por motivos bárbaros e imperialistas.

Nesse sentido, a imagem de Brasil e seu lugar na Civilização que a revista buscou disseminar

com as ilustrações que tem como tema a I Guerra Mundial variou com os anos e os estágios

do conflito. De forma geral, podemos dividir o posicionamento brasileiro em dois momentos:

antes e depois do torpedeamento do navio mercante Paraná no início de abril de 1917.

Durante os três primeiros anos de guerra, a neutralidade foi defendida pela revista. Seu

pacifismo significava a construção de relações solidárias na América do Sul, uma expressão

do que seria verdadeira civilização naquele momento.26

É significativo que já no primeiro ano de guerra o contraste entre a Europa e a

América seja tão forte. Por meio da ironia, as charges frequentemente mostravam como os

“super civilizados”27

europeus na verdade eram os verdadeiros selvagens, as bestas que se

destruíam por ambição. Paralelamente a uma Europa decadente estava o Novo Mundo em

ascensão. A América do Sul abrigaria, assim, a verdadeira civilização, pregando a paz

internacional, o progresso real e a concórdia. Apesar da constatação dos problemas

enfrentados pela República, havia também um tom otimista de reconstrução da pátria

brasileira e regeneração dos costumes. No que se refere diretamente à guerra, o Brasil era

visto como um local seguro, que deveria ser apreciado, sobretudo pelos brasileiros que

estavam na Europa e não deram valor ao próprio país.

É possível constatar uma grande crítica pela destruição do patrimônio da Humanidade,

que não pertenceria a nenhum povo em particular, e de todos os séculos de civilização. Como

25

SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, p. 168. 26

Capas que retratam a amizade entre o Brasil e os países sul-americanos: nº 659, 661, 664 e 689. 27

Exemplos desse tipo de referência estão nas edições de nº 626 p. 15; 628 p. 17; 628, p. 36; 692, p. 30; 713 p.

15.

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mencionado anteriormente, a revista não se posiciona a favor de nenhum lado na guerra, pelo

contrário, constantemente retrata as nações como animais em combate28

e reforça seu

posicionamento pacifista. Narrativa essa que continua em 1915. A América (enquanto

continente) e o Brasil em particular continuaram a ser a expressão do melhor futuro com sua

busca pela paz e harmonia dos povos, seu engrandecimento moral e material. A guerra ainda é

retratada durante esse período como barbaridade e sacrifício de inocentes, sem uma causa

nobre e por pura ambição, no qual os europeus estariam acabando com o Progresso e

Civilização. Nesse momento ainda não havia escolha por algum lado; a crítica era geral a

todos os envolvidos, em especial à Inglaterra pelas políticas econômicas no país..

O ano seguinte é dedicado a reforçar a necessidade da posição neutra brasileira.

Segundo as charges, a guerra ainda era palco de uma luta entre selvagens, um conflito entre

“loucos e teimosos”, e o momento para o Brasil tomar consciência dos seus próprios

problemas. Dessa forma, ainda está presente o distanciamento em relação às nações europeias

e já desponta um esforço para se dedicar às questões internas do país que, de acordo com a

revista, estão problemáticas.29

A questão da interferência britânica com a “Lista Negra”30

causava grande incômodo e a questão marítima tensa entre os Estados Unidos e a Alemanha

foi observada com atenção.

Entretanto, o discurso de Rui Barbosa na Conferência de Buenos Aires31

mudou o tom

do discurso da revista. Apoiando o diplomata, o que importava a partir daquele momento com

a guerra submarina entre as potências era a neutralidade astuta, “de olho aberto e ouvido

alerta”32

, para as nações estrangeiras não interferissem no Brasil e que o país não fosse

envolvido pelo “sangue e loucura”. O pronunciamento de Barbosa não passou pela aprovação

do Ministro das Relações Exteriores Lauro Müller, que o repudiou, e provocou um debate

28

Alguns exemplos: nº 621 capa; 623, p. 11; 625 p. 5; 626 p. 9; 632 p. 25; 662 p. 29; 682 capa; 29

Durante os anos da Grande Guerra, podemos observar que a República é fortemente valorizada e que segue em

constante perigo. De fato, diversos são os momentos em que ela é representada como uma mulher violentada

(também aparece como Pátria). Alguns exemplos: nº 631 p. 15; 666 p. 4; 717 p. 22; 730 p. 21; 738 p. 21; 760 p.

22. 30

O parlamento britânico, com o intuito de impedir transações comerciais com súditos inimigos, aprovou em

1916 a lei de comércio que viria a produzir a chamada “Lista Negra” (Black Lists no original) com nomes de

firmas e cidadãos banidos. Houve grande protesto no Brasil, uma vez que sua aplicação afetou negativamente a

economia. (In: VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial: a diplomacia

brasileira e as grandes potências. Rio de Janeiro: IHGB, 1990, p. 54) 31

Realizada no dia 14 de julho de 1916 na Faculdade de Direito de Buenos Aires, a Conferência foi um evento

onde Rui Barbosa recebeu o título de professores honoris causas. A palestra tinha como título oficial “Conceitos

Modernos do Direito Internacional”, entretanto, por conta de sua repercussão, ficou conhecida como “Deveres

dos Neutros”. 32

O MALHO, 05 de agosto de 1916. nº 725 p. 22.

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irado na imprensa brasileira.33

Os caricaturistas de O Malho, contudo, não o criticaram. Rui

Barbosa foi pelo menos desde 1914 uma figura enaltecida pelas charges34

e, no caso da

Conferência, a revista o coloca como defensor da Civilização e dos neutros, reagindo contra

os interesses estrangeiros no Brasil.

Também em 1916 as representações dos países beligerantes se alteraram, havendo

uma forma mais clara de posicionamento pró-Aliados. Não mais a humanidade, agora a

França passa a ser a mãe da Civilização. Os Aliados começam a ser representados como

nações guerreiras contra o monstro da guerra, onde a Bastilha e a Itália, por exemplo, são

glorificadas. Ainda assim, o problema não é propriamente a Alemanha, mas a guerra em si,

criada pelos interesses das potências. Não há uma crítica aberta ao país ou identificação deste

como o grande inimigo, mas o jogo das relações internacionais entre os países no conflito e o

papel do Brasil nesse contexto é abordado.

A grande virada no discurso de O Malho aconteceu no início de 1917, uma vez que os

ataques alemães nos mares mudou o posicionamento do Brasil em relação ao conflito. Antes

do torpedeamento do navio Paraná, não parecia haver dúvidas sobre a manutenção da

neutralidade, entretanto, ao ser atingido, o país rompeu no dia 11 de abril as relações

diplomáticas com a Alemanha. O anúncio do fim da neutralidade em apoio aos Estados

Unidos foi feito em maio por conta do torpedeamento do navio Tijuca, e um mês depois aos

demais Aliados. De grande peso nessa decisão foi a mudança de Ministério, quando — devido

a pressões e descontentamento geral — Lauro Müller se demitiu e Nilo Peçanha assumiu o

cargo em maio, adotando uma política abertamente a favor da parceria com os Estados

Unidos. O Malho se colocou categoricamente contra Müller e atribuiu a crise diplomática ao

ministro.

Se antes de abril de 1917 predominava o discurso pacifista da revista e uma crítica às

nações que fomentavam a guerra, a partir desse momento a soberania nacional passa a falar

mais alto e uma intervenção se mostra inevitável. Na capa que circulou após o rompimento

com a Alemanha (Figura I), os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, Woodrow Wilson

e Venceslau Brás, respectivamente, empunham as bandeiras de seus países, que são beijadas

pela Civilização, representada por uma mulher com louros na cabeça e vestes brancas. Abaixo

em segundo plano está o Povo, que reverencia a campanha “santa” dos dois países. Como fica

claro pela legenda da ilustração, o Direito toma o lugar da Paz na justificativa da posição do

33

SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, p. 171-172. 34

Exemplos: nº 720; 70 p. 21; 769; 723 p. 21;725 p. 22; 732 p. 21.

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Brasil frente ao conflito e também reforça a relação de solidariedade que se buscava construir

com os norte-americanos.

Figura I – Kalixto. O Malho, 14 de abril de 1917, n.761. (FBN)

Mais dois paladinos

WILSON e WENCESLAU: — O Direito é mais precioso do que a Paz! Que os Estados Unidos da America

do Norte e do Brasil, mostrem ao mundo como se pugna pelo Direito, em nome da Honra, da Civilisação e da

Humanidade!

VOX POPULI: — Vivem os Estados Unidos e o Brasil! Deus os proteja nesta campanha santa!

No que se refere aos Estados Unidos, as representações e posicionamentos da revista

variaram durante os anos de 1914 a 1918. Em relação ao pan-americanismo35

, O Malho não

escondia seu descontentamento com a interferência dos Estados Unidos nos assuntos

35

Discurso identitário e oficial das Conferências Pan-Americanas elaborado, sobretudo, pelas delegações norte-

americanas. As Conferências teriam o intuito de criar laços harmoniosos entre os países do continente. Na

prática, entretanto, houve interferências dos Estados Unidos nos demais países ao mesmo tempo em que se deu a

disseminação da Doutrina Monroe. (in DULCI, Tereza Maria Spyer. As Conferências Pan-Americanas:

identidades, união aduaneira e arbitragem (1889 a 1928). Dissertação de mestrado, USP, 2008, p. 34 e 40)

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brasileiros e latino-americanos em geral.36

Se por um lado as nações do continente americano

não deveriam se intrometer nos assuntos europeus, por outro existia a perspectiva de

submissão aos Estados Unidos, isto é, a troca de uma dependência por outra.37

O discurso

mudou com a entrada de Nilo Peçanha no cargo de chanceler. Como mencionado acima,

Lauro Müller, depois de ser duramente criticado por ações diplomáticas consideradas brandas

após o início da guerra submarina e as acusações de ser inimigo da pátria por sua ascendência

alemã,38

se retirou do cargo. Com Peçanha, imediatamente se iniciou uma aproximação com

os Estados Unidos. Segundo Francisco Vinhosa, esse estreitamento na relação entre os dois

países se deveu mais ao interesse em atender suas necessidades devido à crise do comércio

internacional que estava em curso do que por desejo.39

Entretanto, o discurso da revista

justificava o intervencionismo por uma questão sobretudo moral, isto é, a obrigação do Brasil

defender sua soberania, o Direito e a Democracia. Pela análise das charges, parece também

que o Brasil teria uma oportunidade para consolidar seu lugar como uma das lideranças do

continente americano e, consequentemente, no palco das grandes nações do mundo. Caso

entrasse de fato na guerra, poderia fazer parte do seleto grupo que participaria das

negociações de paz.

Em outubro de 1917, a Alemanha voltou a torpedear um navio brasileiro, dessa vez o

Macau. O Congresso levou a proposta, aceita pela grande maioria, para que o país entrasse

em estado de guerra. Segundo as charges de O Malho, a honra e soberania nacional foram

ultrajadas. O Brasil tinha a intenção seguir neutro, mas, uma vez que os “selvagens

prussianos” não o permitiram ao atacá-lo, não havia outra saída a não ser se posicionar e lutar

contra a Alemanha.40

A capa da edição de nº 790, que circulou em novembro do mesmo ano,

reforça o posicionamento da revista. Assinada por Kalixto, a ilustração retrata um homem

representando o Brasil revelando para a população atônita um sapo que tem como rosto a

figura de Joaquim Pires, o único deputado que votou contra o estado de guerra do país contra

a Alemanha. A fala do representante da nação pode ser entendida como um posicionamento

editorial. Nela, apelando para a união nacional e o senso de dever do povo, “Brasil” critica o

voto de Pires.

36

A guerra entre o México e os Estados Unidos foi coberta pela revista e esta colocava frequentemente.. 37

Edições de nº 705, p. 11, e a capa da 709. 38

Edições de nº 761 p. 13 e p. 22; 762 p. 27; 764 p. 13 e p.21. 39

VINHOSA, op. cit, p. 94. 40

Curiosamente, o Brasil não declarou guerra ao Império Austro-Húngaro.

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O BRAZIL. — Vêde, brazileiros! Foi este! No momento em que devemos ser — Um por todos e

todos por um; quando — O Brazil espera que cada um cumpra o seu dever... é que surge isto! Não

lhe peguem! Passem por elle de largo!...

A narrativa criada pela revista durante os anos da Grande Guerra parece ter ligação

com a diplomacia brasileira. Na medida em que a guerra era um fenômeno ainda distante

durante os primeiros anos, seu posicionamento foi de afastamento da Europa e se colocando

como modelo de civilização e liderança na América do Sul, fomentando a paz continental.

Esse projeto mudou ao ter seus interesses comprometidos, seja pela guerra submarina seja

pela pressão norte-americana. A mudança do discurso se deu pois passou, segundo as charges,

a existir uma missão moral de combater a Alemanha, ao lado dos Aliados, em nome da defesa

nacional e dos valores em questão.

Desvinculando-se e até mesmo criticando os que apontavam para as ambições

econômicas dos que tomaram essa a decisão da entrada, O Malho apoiou o esforço de guerra e

justificou, desde o início, a causa pela qual os sacrifícios em nome da nação deveriam ser

feitos. Sempre em nome da Civilização, do Direito, da soberania, contra a barbárie. Isso não

parece ter significado um desprezo pela Europa, mas uma oportunidade para o Brasil se

colocar em um nível tão importante quanto as nações que faziam parte dela. O primeiro

desencanto não anulou a adesão a esse projeto que mobilizou a pátria para ascensão do país

no cenário mundial.

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